Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)
Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)
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Chegaram à igreja, entraram. Baleia ficou passeando na<br />
calçada, olhando a rua, inquieta. Na opinião dela, tudo devia<br />
estar no escuro, porque era noite, e a gente que andava no<br />
quadro precisava deitar-se. Levantou o focinho, sentiu um<br />
cheiro que lhe deu vontade de tossir. Gritavam demais ali<br />
perto e havia luzes em abundância, mas o que a incomodava era<br />
aquele cheiro de fumaça.<br />
Os meninos também se espantavam. No mundo, subitamente<br />
alargado, viam Fabiano e Sinha Vitória muito reduzidos,<br />
menores que as figuras dos altares. Não conheciam altares,<br />
mas presumiam que aqueles objetos deviam ser preciosos. As<br />
luzes e os cantos extasiavam-nos. De luz havia, na fazenda, o<br />
fogo entre as pedras da cozinha e o candeeiro de querosene<br />
pendurado pela asa numa vara que saía da taipa; de canto, o<br />
bemdito de Sinha Vitória e o aboio de Fabiano. O aboio era<br />
triste, uma cantiga monótona e sem palavras que entorpecia o<br />
gado.<br />
Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as<br />
velas acesas, constrangido na roupa nova, o pescoço esticado,<br />
pisando, em brasas. A multidão apertava-o mais que a roupa,<br />
embaraçava-o. De perneiras, gibão- e guarda-peito, andava<br />
metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um<br />
bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e<br />
braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e<br />
da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não<br />
diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as<br />
mãos e os braços da multidão fossem agarralo, subjugá-lo,<br />
espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor.<br />
Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam,<br />
mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se<br />
em questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se<br />
inutilmente por abanar-se com o chapéu. Difícil mover-se,<br />
estava amarrado. Lentamente conseguiu abrir caminho no<br />
povaréu, esgueirou-se até junto da pia de água benta, onde<br />
se deteve, receoso de perder de vista a mulher e os filhos.<br />
Ergueu-se nas pontas dos pés, mas isto lhe arrancou um<br />
grunhido: os calcanhares esfolados começavam a afligi-lo.<br />
Distinguiu o cocó de Sinha Vitória, que se escondia atrás de<br />
uma coluna. Provavelmente os meninos estavam com ela. A<br />
igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeça da<br />
mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. E o<br />
colarinho furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram<br />
indispensáveis. Não poderia assistir à novena calçado em<br />
alpercatas, a camisa de algodão aberta, mostrando o peito<br />
cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religião, entrava na<br />
igreja uma vez por ano.