You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Canudos, tragédia, ficção<br />
“Escondida pela caatinga, ainda restam antigas trincheiras feitas pelos soldados no alto do<br />
Mário”(Livro “Canudos 100 Anos”, de Evandro Teixeira)<br />
Nei Leandro de Castro (poeta e escritor)<br />
campanha de Canudos foi uma grande farsa que o gênio de<br />
A Euclides da Cunha transformou em brutal realidade.<br />
De mentira era o exército republicano feito de soldadinhos de<br />
chumbo, oficiais malucos, epilépticos, acovardados, sanguinários<br />
todos. Delírio seria supor que um grupo de famintos e fanáticos<br />
– perto de Uauá e pra lá de onde Judas perdeu as alpercatas –<br />
pudesse ameaçar a recém-nascida República. Aliás, a República<br />
era uma abstração ao alcance de muito poucos. Os romeiros,<br />
viajando no ópio da pregação do Conselheiro, só queriam as<br />
benesses da vida eterna, nem que tivessem de deixar a sola dos<br />
pés no chão de pedra e espinhos, ou passar mais fome do que já<br />
passavam. O sertanejo é antes de tudo um crédulo.<br />
Sem a testemunha ocular de jornalistas, sem a onipresença<br />
de Euclides da Cunha, como chegaria à história oficial a<br />
campanha de Canudos? Talvez tudo estivesse sob a poeira do<br />
esquecimento, como o arraial está hoje sob as águas do açude<br />
Cocorobó. O Exército, que levou surras homéricas dos caboclos<br />
armados de peixeira e espingarda de matar arribaçã, iria soterrar<br />
qualquer vestígio de vergonha. Todas as testemunhas, mesmo<br />
aquele velho, os dois homens e a criança, “na frente dos quais<br />
rugiam raivosamente 5.000 soldados”, seriam mortas depois de<br />
obrigadas a gritar vivas à República.<br />
Sempre vi Canudos não como fato histórico,<br />
mas como o grande marco da ficção brasileira.<br />
Lido há mais de 30 anos, relido algumas vezes,<br />
o livro de Euclides da Cunha me causou um<br />
impacto que perdura até hoje. Em suas páginas,<br />
Moreira César (nome de rua em várias cidades<br />
importantes, mas um engodo histórico) é<br />
fascinante como vilão. Foi um trapalhão<br />
sanguinário e folhetinesco, que chegou a<br />
Canudos com fama de Corta-Cabeças, Belzebu,<br />
Treme-Terra, e acabou derrotado pela epilepsia.<br />
No campo de batalha, justificou a fama que<br />
inspirou a quadrinha:<br />
Moreira foi ao inferno<br />
Com seu trabuco de lado.<br />
O Cão viu e disse vixe<br />
Eita que cabra malvado.<br />
Julho 2003<br />
7