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Natal, RN - N° 2, Julho, 2003<br />
<strong>Janduís</strong><br />
Arte à luz do dia<br />
Entrevista: Abimael Silva, do Sebo Vermelho<br />
A universalidade de Zila Mamede<br />
Campo Grande - Música de geração a geração<br />
O Beco da Lama, das artes e dos orixás
A Preá está na Internet: www.fja.rn.gov.br<br />
“Vocês da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> estão de<br />
parabéns. E a nossa Orquestra Sinfônica<br />
não deve nada, em qualidade, às grandes<br />
orquestras do Brasil”. (Senador José<br />
Agripino, durante o concerto<br />
da OSRN em Caicó).<br />
FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO<br />
Rua Jundiaí, 641 - Tirol - CEP 59020-120<br />
Fone/fax: (84) 221.0342<br />
Governadora:<br />
Wilma Maria de Faria<br />
Presidente:<br />
François Silvestre de Alencar<br />
Diretor:<br />
Laércio Bezerra de Melo<br />
Assessor Cultural:<br />
Nei Leandro de Castro<br />
PREÁ - REVISTA DE CULTURA DO<br />
RIO GRANDE DO NORTE<br />
ANO I Nº 2<br />
JULHO/2003<br />
EDITOR: TÁCITO COSTA<br />
tacito@fi ern.org.br<br />
EDITOR ASSISTENTE: GUSTAVO PORPINO<br />
gporpino@hotmail.com<br />
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:<br />
LUCIO MASAAKI<br />
FOTOS:<br />
JOÃO MARIA ALVES<br />
CANDINHA BEZERRA<br />
VLADEMIR ALEXANDRE<br />
Expediente/Índice<br />
- Palavra da casa 04<br />
- Cartas 05<br />
- Canudos pelas lentes de<br />
Evandro Teixeira 06<br />
- Canudos, tragédia, ficção 07<br />
- Algumas marcas de<br />
cachaça do RN 09<br />
- É o seguinte 11<br />
- Entrevista: Abimael Silva 13<br />
- 13 por 1 22<br />
- A universalidade de Zila 23<br />
- Os bichos na poesia 30<br />
- Escritura Potiguar 35<br />
- Campo Grande 39<br />
- <strong>Janduís</strong> 45<br />
- Esse estranho<br />
magnetismo 52<br />
- A biografia que falta 56<br />
- Pai Bastião<br />
e a Casa de Usher 57<br />
- A travessia do “nonada”<br />
pelo Grande Sertão 61<br />
- O senhor do futuro 65<br />
- Sobre a vida e a morte 68<br />
- A tarrafa de Deífilo 70<br />
- O Beco da Lama, das<br />
artes e dos orixás 71<br />
Julho 2003<br />
3
Editorial<br />
4 Julho 2003<br />
A palavra da casa<br />
François Silvestre<br />
Preá no segundo número. O que a segunda filha perde no<br />
alvoroço da espera ganha na serenidade da experiência.<br />
Agradeço aos colaboradores. Agradeço aos editores Tácito<br />
Costa e Gustavo Porpino. Por fim, a colaboração inescondível de<br />
Nei Leandro de Castro. Agradeço aos críticos. Todos eles. Os que<br />
gostaram e tornaram público o aplauso. Os que não gostaram e<br />
tornaram público o desgosto.<br />
Há uma confusão, na crítica, de que a Préa é substituta de<br />
O Galo. Não é verdade. O Galo não foi editado porque não<br />
tivemos condições de cuidar de dois veículos. E dei prioridade<br />
à revista.<br />
A diferença da revista para o jornal, além de outras, é a<br />
durabilidade. O jornal tem o condão da notícia e a fragilidade<br />
do material. No interior, ele não teria vida longa. A não ser<br />
nos colecionadores ou arquivistas. Até a sua distribuição para<br />
o interior é difícil. Veja o caso dos jornais de Natal, todos com<br />
distribuição precária no interior.<br />
Uma revista cultural, além da informação, ou até mais que ela,<br />
há de ser um veículo de formação. Que sirva para pesquisas e<br />
discussão. Coisa de que o jornal carece, por conta de seu material<br />
de feitura.<br />
Préa não é um boletim das Casas de Cultura. Será um elo<br />
informativo entre elas. Mas Préa irá a todos lugares, onde haja<br />
ou não Casas de Cultura.<br />
No geral é isso aí. Mas uma vez a minha gratidão aos<br />
colaboradores. Sem eles não haveria revista.<br />
Toda crítica será recebida com serenidade. Poderá ser acatada ou<br />
não. Todo aplauso será recebido com a mesma serenidade. E será<br />
guardado em um envelope de gratidão.
Cartas<br />
Tácito Costa<br />
Parabéns pela bonita edição da revista. Sou de Fortaleza. Vi<br />
a revista na casa de um amigo. Espero que os números que<br />
virão tenham o mesmo cuidado gráfico e editorial da primeira.<br />
Um abraço.<br />
Evandro Abreu (evabreu@globo.com).<br />
.................................................................<br />
Digaí, Tácito!<br />
Rapaz, parabéns pela revista Preá. Muito legal. Bem<br />
diagramada, os textos interessantes e bem escritos. Peguei-a<br />
na Cooperativa Cultural, da UFRN, há uma semana.<br />
Espero que continue a publicação: a nossa cultura agradece.<br />
Forte abraço do amigo.<br />
Francisco Duarte Guimarães (jornalista].<br />
.................................................................<br />
Tácito,<br />
Gostei muito do seu artigo sobre meu livro, não apenas porque<br />
você compreendeu perfeitamente a idéia dele, mas porque<br />
também o seu texto está belíssimo. Envio este e-mail também<br />
para dizer que enviarei em breve o texto que vc me pediu<br />
para ser publicado na Preá nº 3 (e por falar na Preá, ela está<br />
excelente, com um projeto gráfico muito bonito). A cultura<br />
de Natal precisava de uma revista cultural dessa qualidade.<br />
Até mais,<br />
Mário César Rasec (poeta)<br />
.................................................................<br />
Tácito Costa<br />
Ano passado, finzinho de ano, provei o primeiro preá de minha<br />
vida, caçado por Seu Chagas, cozido por Dona Alzira, trazido<br />
à mesa com as pompas e circunstâncias de estilo e, ali mesmo,<br />
saboreando o bicho, sou doutrinado e conduzido através dos<br />
meandros intricados de uma ciência complexa e insuspeita que<br />
define e classifica tatus e preás. Tatus, conheço-os só de vista.<br />
Mas, se o assunto é preá, já me atrevo a botar banca.<br />
Correspondência<br />
Pra melhor dizer, o caso é que, mal refeito da<br />
surpresa e do resgate gastronômico de ignoradas<br />
raízes culturais, me vem este Preá, caçado por<br />
François Silvestre nas pradarias de sua memória<br />
afetiva e cultural de humanista e escritor<br />
inteligente e sensível; servido pela <strong>Fundação</strong><br />
José <strong>Augusto</strong> na forma de uma gostosa revista<br />
de cultura, eclética e provocativa, leve e<br />
instigante, séria e bem humorada, corajosa e<br />
criativa.<br />
E aí só me resta louvar este Rio Grande do Norte<br />
que me inicia na heráldica e na hermenêutica<br />
dos preás, esses bichos encourados como<br />
vaqueiros de duras pradarias, que agora, além<br />
de se embiocarem nos desvãos das tripas, me<br />
alimentam a alma de sortilégios e enlevos.<br />
Jairo Lima (escritor e livreiro do Recife)<br />
.................................................................<br />
Meu amigo Gustavo,<br />
Parabéns pala revista! Ficou muito legal. Pra ser<br />
a número um, então, tá mais do que perfeita.<br />
Foi um grande primeiro passo. Gostei da cara,<br />
do nome, da diagramação, dos textos. Acho que<br />
ficou bem potiguar. E adorei sua matéria de<br />
Martins. Que personagens!!! O Dinho é digno<br />
de cinema. Que bom registrar a existência deste<br />
homem.<br />
Parabéns a todos.<br />
Espero continuar recebendo a revista.<br />
E quero fazer apenas uma pequena sugestão.<br />
Pra publicação ficar menos elitista, que<br />
tal grafar as palavras estrangeiras de forma<br />
aportuguesada, como “Lucerna” e “Zurique”?<br />
É só uma sugestão.<br />
Grande abraço!<br />
Alan Severiano (jornalista - TV Globo-SP)<br />
Julho 2003<br />
5
Canudos<br />
pelas<br />
lentes de<br />
Evandro<br />
Teixeira
Canudos, tragédia, ficção<br />
“Escondida pela caatinga, ainda restam antigas trincheiras feitas pelos soldados no alto do<br />
Mário”(Livro “Canudos 100 Anos”, de Evandro Teixeira)<br />
Nei Leandro de Castro (poeta e escritor)<br />
campanha de Canudos foi uma grande farsa que o gênio de<br />
A Euclides da Cunha transformou em brutal realidade.<br />
De mentira era o exército republicano feito de soldadinhos de<br />
chumbo, oficiais malucos, epilépticos, acovardados, sanguinários<br />
todos. Delírio seria supor que um grupo de famintos e fanáticos<br />
– perto de Uauá e pra lá de onde Judas perdeu as alpercatas –<br />
pudesse ameaçar a recém-nascida República. Aliás, a República<br />
era uma abstração ao alcance de muito poucos. Os romeiros,<br />
viajando no ópio da pregação do Conselheiro, só queriam as<br />
benesses da vida eterna, nem que tivessem de deixar a sola dos<br />
pés no chão de pedra e espinhos, ou passar mais fome do que já<br />
passavam. O sertanejo é antes de tudo um crédulo.<br />
Sem a testemunha ocular de jornalistas, sem a onipresença<br />
de Euclides da Cunha, como chegaria à história oficial a<br />
campanha de Canudos? Talvez tudo estivesse sob a poeira do<br />
esquecimento, como o arraial está hoje sob as águas do açude<br />
Cocorobó. O Exército, que levou surras homéricas dos caboclos<br />
armados de peixeira e espingarda de matar arribaçã, iria soterrar<br />
qualquer vestígio de vergonha. Todas as testemunhas, mesmo<br />
aquele velho, os dois homens e a criança, “na frente dos quais<br />
rugiam raivosamente 5.000 soldados”, seriam mortas depois de<br />
obrigadas a gritar vivas à República.<br />
Sempre vi Canudos não como fato histórico,<br />
mas como o grande marco da ficção brasileira.<br />
Lido há mais de 30 anos, relido algumas vezes,<br />
o livro de Euclides da Cunha me causou um<br />
impacto que perdura até hoje. Em suas páginas,<br />
Moreira César (nome de rua em várias cidades<br />
importantes, mas um engodo histórico) é<br />
fascinante como vilão. Foi um trapalhão<br />
sanguinário e folhetinesco, que chegou a<br />
Canudos com fama de Corta-Cabeças, Belzebu,<br />
Treme-Terra, e acabou derrotado pela epilepsia.<br />
No campo de batalha, justificou a fama que<br />
inspirou a quadrinha:<br />
Moreira foi ao inferno<br />
Com seu trabuco de lado.<br />
O Cão viu e disse vixe<br />
Eita que cabra malvado.<br />
Julho 2003<br />
7
Canudos, tragédia, fi cção<br />
Moreira, Tamarindo, Febrônio e os milhares de<br />
coadjuvantes das quatro expedições a Canudos<br />
sempre foram vilões para mim na leitura de<br />
“Os sertõe”s. Meus heróis foram e continuam<br />
sendo Pajeú, João Abade, o sineiro Timoninho<br />
e aqueles figurantes que partiam de faca na<br />
mão para cima da “Matadeira”, o canhão que<br />
reduzia a pó os seus casebres, a sua igreja, as<br />
suas vidas, mas os transportavam para o reino<br />
celestial prometido pelo demiurgo cearense.<br />
Quinze mil sertanejos morreram em Canudos.<br />
Junto com eles, o vilarejo bombardeado até o<br />
último cartucho, a miséria em sépia incendiada<br />
pelos soldados do marechal Bittencourt.<br />
Antônio Mendes Maciel, o Conselheiro, já<br />
estava morto, morte inglória, disenteria. Foi<br />
desenterrado, fotografado, execrado, sendo<br />
incerto e não sabido se teria subido aos céus. Lá<br />
nas alturas, muito acima dos nimbos e cúmulos,<br />
está o livro de Euclides da Cunha, com a<br />
eternidade que marca as obras definitivas.<br />
Ler “Os sertões” não é tarefa fácil. Mas o leitor<br />
não precisa atravessar a aridez da primeira parte<br />
do livro, “A terra”, nem a segunda parte, “O<br />
homem” – travessia difícil como uma caatinga<br />
de facheiros e xiquexiques. Convém passar ao<br />
largo desses episódios e começar a viver a luta<br />
de Canudos, um épico do subdesenvolvimento,<br />
da miséria, do fanatismo, do embuste oficial,<br />
de um exército de soldadinhos de chumbo e de<br />
generais sanguinários.<br />
Os mortos de Canudos têm nas águas tranqüilas do Cocorobó uma majestosa lápide<br />
8(Livro “Canudos Julho 2003 100 Anos”, de Evandro Teixeira)<br />
Há 106 anos, nos sertões da Bahia, o Exército concluiu a ferro e<br />
fogo um dos episódios mais sombrios de sua história. Tropas de<br />
elite destruíram famintos desarmados, degolaram suas mulheres,<br />
transformaram em pó suas taperas. O gênio de um escritor<br />
atormentado testemunhou: “Canudos não se rendeu. Exemplo<br />
único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo.<br />
Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu<br />
no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores,<br />
que todos morreram.”<br />
A campanha de Canudos foi uma mentira. Viva a ficção de<br />
Euclides da Cunha.
de cachaças do RN<br />
Algumas marcas<br />
Ilustração de Flávio Freitas (livro: “Encantaria da Pedra”)<br />
Gutenberg Costa (pesquisador e escritor)<br />
Muitos estudiosos escreveram sobre a cachaça brasileira,<br />
entre eles, Câmara Cascudo, José Calasans e Mário<br />
Souto Maior. Na qualidade de um vagaroso e<br />
indisciplinado colecionador de marcas brasileiras de aguardentes,<br />
pude acompanhar tanto degustando, quanto testemunhando o<br />
surgimento de outras ao longo da coleta colecionadora. A bem<br />
da verdade cheguei a vender o primeiro ajuntamento, devido a<br />
falta de espaço em minha casa e um quase acidente com a minha<br />
filha mais nova, que muito sapeca derrubou em direção aos seus<br />
pés algumas garrafas do alto da estante. Não só bêbado como<br />
colecionador tem santo forte, pois nada de grave aconteceu com<br />
a pequena Sarah. Desgostoso com este quase acidente, certa feita<br />
estando bebendo e proseando na churrascaria “Gauchinha” do<br />
país de Mossoró, ao lado dos amigos Paulo Gastão e Kydelmir<br />
Dantas, eis que em meio ao nosso bate papo, um sujeito de<br />
“ouvido de tuberculoso” e como eu, também<br />
colecionador de aguardentes, que na ocasião<br />
encontrava-se numa mesa ao lado, ouvindo<br />
a minha pretensão de vender todas as marcas<br />
que dispunha em minha coleção, rapidamente<br />
pediu-me o endereço e no primeiro fim de<br />
semana correu de Mossoró para Natal com<br />
o intuito de levá-la. Como não pude fugir da<br />
palavra, meio chateado recebi o tal pagamento<br />
e nem tomei nota do nome do comprador. O<br />
que é certo, é que este esperto colecionador<br />
ampliou e muito o seu acervo de marcas de<br />
cachaças, com as mais de trezentas garrafas de<br />
minha residência.<br />
Julho 2003<br />
9
Algumas marcas de cachaças do RN<br />
Comecei a partir daí a segunda coleção, pois<br />
muitos amigos que não tomaram conhecimento<br />
deste fato lamentável, continuaram a presentearme<br />
com outras marcas de cachaça, oriundas<br />
de suas viagens e outras eu as<br />
compro quando vejo à venda,<br />
principalmente em velhas<br />
bodegas interioranas. O ruim<br />
de tudo é que desde algum<br />
tempo esta segunda coleção<br />
vem crescendo e pleiteando um<br />
lugar com mais espaço, numa<br />
tremenda briga com os livros.<br />
O certo é que esta não mais<br />
será vendida de jeito nenhum.<br />
Nem que galo deixe de cantar<br />
ou preá deixe de cair em quixó!<br />
Uma das grandes coleções que vi em minha<br />
vida, foi a de “seu” Paulo da cidade de Triunfo/<br />
PE, que toma conta de duas grandes salas. Em<br />
Natal, a primeira coleção que observei foi a de<br />
Nazi da Meladinha. Miranda Sá, outro amigo<br />
colecionador, foi o primeiro político a lançar a<br />
sua campanha num rótulo de cachaça no RN.<br />
Aliado a mania de colecionar, me veio a idéia de<br />
pesquisar as nossas marcas potiguares, que no<br />
passado fizeram tanto sucesso de venda entre<br />
10 Julho 2003<br />
os degustadores da boa aguardente brasileira. Tínhamos orgulho<br />
de nossas marcas. Quando travei conhecimento com o saudoso<br />
mestre folclorista Mário Souto Maior (1820–2001), que além de<br />
autor do “Dicionário da Cachaça”, era um grande colecionador<br />
etílico e bem antes de seu encantamento, num<br />
gesto louvável para a nossa memória, doou toda<br />
a sua valiosa coleção de aguardentes a <strong>Fundação</strong><br />
Joaquim Nabuco, de Recife/PE, que reservou um<br />
espaço digno para os visitantes, colecionadores e<br />
principalmente os pesquisadores poderem apreciála.<br />
Se no futuro, alguém se interessar em publicar<br />
a história das marcas das aguardentes brasileiras,<br />
o nosso pequeno Rio Grande do Norte terá a sua<br />
participação histórica. O desconhecimento com<br />
nossas marcas é muito visível além fronteiras,<br />
posto que a editora Escala publicou recentemente<br />
uma revista dedicada aos colecionadores de<br />
aguardente do País, aonde a única marca potiguar<br />
relacionada na citada publicação, foi a “Olho D’água”, que<br />
inclusive faz muito tempo que está fora de mercado e a edição<br />
211 de maio de 2003, da Revista Globo Rural, com dez páginas<br />
dedicadas a nossa pinga brasileira, deixou o RN de fora.<br />
No RN ainda não tem, mas em vários Estados já existem os seus<br />
museus dedicados a cachaça, entre eles, os de Maranguape/CE<br />
e o de Lagoa do Carmo/PE, de propriedade do empresário<br />
José Matias de Moura, hoje, o maior colecionador do mundo,<br />
possuidor de 4.141 marcas, expostas em seu museu particular.<br />
Aqui estão as marcas do RN, que até o momento pude anotar, num futuro primeiro inventário da<br />
cachaça potiguar. Algumas marcas são comerciais, enquanto outras são criações particulares, sem fins<br />
de venda e lucro. Sabendo perfeitamente que, nem tudo chegou ao nosso pouco conhecimento, acredito<br />
perfeitamente que esta poderá ser acrescida desde já.<br />
- CRISTAL – Ceará-Mirim – Fora de Mercado - Coleção Mário Souto Maior - EXTRA – São José de Mipibu – Fora de Mercado - Coleção MSM - FASCINAÇÃO<br />
Natal – Fora de Mercado - CMSM - GATO – Natal – Fora de Mercado - CMSM - MARIA BOA – Natal – Fora de Mercado - CMSM. - MUCURIPE – Ceará-<br />
Mirim – Fora de Mercado- CMSM - MURIM – Canguaretama – Fora de Mercado - Coleção Gutenberg Costa/Mário Souto Maior - OLHO D´ÁGUA – São<br />
José de Mipibu – Fora de Mercado - CMSM/CGC - PODE ENCHER – Natal – Fora de Mercado - CMSM - QUERIDINHA – Natal – Fora de Mercado<br />
- CMSM - RAINHA DA GUANABARA – Natal – Fora de Mercado - CMSM - SABOROSA– Mossoró – Fora de Mercado - CMSM - SENTINELA – Natal<br />
– Fora de Mercado - CMSM - TOME JUÍZO – Ceará-Mirim – Fora de Mercado - CMSM - KANGURU – Natal – Fora de Mercado - CMSM - BALALAICA<br />
– Nova Cruz – Engarrafamento de “seu” Reginaldo, pai do jornalista Flamínio Oliveira – Fora de Mercado - ARATÚ – Natal - Engarrafamento de Clóvis<br />
Galvão – Fora de Mercado- CGC - MALHADA VERMELHA – Severiano Melo – Encontra-se à venda e é considerada uma das melhores do RN - CGC<br />
- MEL BORGES – Macaíba – Fora de Mercado- CGC - ALEGRIA DE POBRE – Macaíba – Fora de Mercado - CGC - MACAIBA – Macaíba – Encontra-se<br />
a venda - CGC - PAPA- JERIMUM – Natal – ( Criação de Gutenberg Costa para presentear os amigos) - PAPARY – Nisía Floresta – Encontra-se à venda e<br />
é considerada uma das melhores cachaças atualmente do RN - CGC - MURIM – MIRIM – da mesma Murim – fora de mercado - Canguaretama – CGC<br />
- ENGENHO DAS MANGABEIRAS – Macaíba – Encontra-se à venda e é uma das melhores cachaças atualmente do RN - CGC - ZEFA DOIDA – Lagoa do<br />
Bonfim – Engarrafamento de Marcos Lopes – à venda – CGC - FARRA NA PRAIA – Engarrafamento do poeta Zé Saldanha – Fora de Mercado - Natal -<br />
GUAIAMUM – Tangará – Cachaça encontrada à venda atualmente - CGC - MIRANDA SÁ – Criação de Miranda Sá – Produto fora de Mercado- Natal - BOM<br />
JARDIM - Goianinha - Fazenda Bom Jardim – Produto fora de mercado - SUCURÚ – Goianinha – Fazenda Bom Jardim – Produto fora de Mercado - SUMARÉ<br />
– Goianinha – Produto fora de Mercado - TARUMÃ – Goianinha – Produto fora de Mercado - BOHÊMIA – Goianinha – Cachaça fora de Mercado.
Afrânio Pires Lemos (escritor)<br />
É o seguinte<br />
É o seguinte Seguinte seguinte<br />
- Ou você vai pra o Sul ou morre sem ser lido<br />
pela metade do povo que lhe ajuda. E se você<br />
se ajuda, trate de ver isso. Não há chances. É<br />
ir ou largar. Ou viver escrevendo laudas que<br />
os críticos lhe dizem estarem longas e pesadas<br />
ou os não críticos tacharem de desenxabidas.<br />
Olhares atravessados, caras feias, rostos duros<br />
que não lhe transmitem impressão qualquer de<br />
simpatia ou de perdão pelas suas dívidas. Assim<br />
assuma a sua condição de escritor medíocre ou<br />
parta em direção ao Sul. Lá você será homem<br />
de letras que incluirá o Brasil na lista de nações<br />
que têm gente que sabe manejar uma pena.<br />
Não há como se manter escritor aqui, com<br />
possibilidade de viver da arte, pela arte, e com<br />
arte. Arrebente-se todo e vá para o Sul. Saia<br />
daqui de Natal.<br />
- Não se deve olhar assim. Há esperança, mesmo<br />
remota, sei, que algo vai acontecer. E algo está<br />
acontecendo. Repare que o azul fica verde, o<br />
amarelo embranquece e o verde vira cor de<br />
burro-quando-foge. Segundo opinião de altas<br />
personalidades o Lula disse que reparassem bem nele e vissem<br />
que algo no país muda. E se você for sincero há de combinar<br />
comigo. Algo está acontecendo, a partir dessas reuniões com<br />
prefeitos, com ministros, com juízes. Essas passeatas a pé, verbas<br />
para a cultura, amparo pras ferrovias, labuta pelos juros. Repare<br />
que algo muda. E pra melhor e com o apoio dos que ajudam.<br />
Se do Governo se quer posições ortodoxas, heterodoxos não nos<br />
comportemos. O Brasil está mudando.<br />
- Sei. Mas não misturando alhos com bugalhos, essa história<br />
de você morar aqui e ser um autor nacional é completamente<br />
impossível. Ilusória. Não tem solução, não tem como se realizar.<br />
Ou você vai ou então não será conhecido nem aqui nem acolá.<br />
E vai tudo pro raio que o parta. Por exemplo: você tem quantos<br />
livros publicados?<br />
- É lamentável lhe dizer que quatorze. E a propósito: como é que<br />
se escreve quatorze? Tem gente que escreve assim e gente que<br />
não. Mas bem: tenho l4. E sei. Não há possibilidade de se sair do<br />
ostracismo, sem a ajuda oficial de algum mecenas ou de alguma<br />
empresa que, geralmente luta muito pra se manter à tona. Olhe:<br />
nós somos inclinados a ser bons, com a capacidade de ser maus.<br />
E variamos. A harmonia do mundo, dentro da ordem, é relativa.<br />
Valoriza-se o gasto por obras suntuosas e não se olha um moço<br />
Julho 2003<br />
11
É o seguinte<br />
triste que apregoa a publicação de um livro como fonte de apoio<br />
para um obelisco em construção na Praça da Liberdade. Seriam<br />
obras de curto alcance. São armas de pouco calibre, que não<br />
vale a pena testar. Você é, portanto, uma arma branca de pouca<br />
utilidade.<br />
- Chego a uma conclusão arrepiante. Não há chance então de<br />
me tornar um escritor nem no âmbito estadual. Um escritor<br />
que tenha força assim como uns meninos que andam por ai<br />
escrevendo páginas de condoreiras paixões e emocionadas<br />
belezas risíveis. Causos e reparações. Lutas e amores. E se<br />
assanham, apresentam-se na imprensa reduzida da localidade,<br />
tentando a todo custo, como heróis que são, se manter heróis e<br />
respeitados como um anjo do Bem. E viva a literatura potiguar.<br />
Amor reinando enquanto se chora por um leite derramado,<br />
existindo só remota possibilidade de se recuperá-lo, através de<br />
pano úmido de bondade e esperança, também no amanhã.<br />
- Não digo assim. E lute sua luta. Faça como eu que já fui pro<br />
Rio e lancei um livro lá. E o que aconteceu? Nada. Mas, lancei o<br />
danado lá. E voltei, porque aqui é o meu lugar e o meu lugar éme<br />
prezado e tenho esperanças remotas de voltar, e no Rio lançar<br />
outro livro de contos.<br />
- Não se iluda. Não há mais muitas chances para se ir em frente.<br />
No Brasil, desde os tempos de Castro Alves, o moço que não<br />
andasse nos trilhos, não brilhava jamais, e não subia. Então ande<br />
em direção ao sol. Seja um condoreiro. Seja um lutador. Vá em<br />
frente.<br />
- Não. Eu vou. Quero lhe dizer que você é quem deve lutar.<br />
Brigar, pedir para que se acabem com a burocracia nos incentivos.<br />
Penduricalhos legais. Novas leis cheias de leis anteriores. Se faça<br />
por menos. Hoje se lute pelo interior, se traga produção do<br />
homem que pontua nas cidadezinhas para que seja visto aqui. E<br />
possa numa sorte, bater no Sul. Por exemplo, você já lançou um<br />
livro de contos e até um romance. Quem sabe disso?<br />
- Olhe: tenho um livro de contos publicado em 1957, e que além<br />
de esquecido, não se insere em qualquer compêndio estadual.<br />
Não há em qualquer antologia, um conto meu, Não se inscreve.<br />
Lógico que foi um livro de estréia. Tem seus pontos fracos. É<br />
quase todo fraco. Mas, tá lá. E quantos contos tenho publicados?<br />
Dezenas. E não se vê e não se cheira e não se pede desculpas. E<br />
seguem em frente como se lá na frente estivesse a mulher dos<br />
ovos de ouro que nos consagrasse e nos embalasse com um véu<br />
de simpatia e nos desse um copo d´água e nos fizesse afagos e<br />
nos prometesse carinhos profissionais e nos deixasse conhecido<br />
no mundo literário. Valer o que peso, maduro e esperto. Mas<br />
não é assim. Há a cortina churchiana, das pesadas, em redor.<br />
E sem recursos, pedimos água, pedimos sal, e não nos dão<br />
absolutamente nada,<br />
- E cê acha que um livro seu, publicado aqui ou no Rio, teria<br />
algum valor maior, algum peso na literatura potiguar?<br />
12 Julho 2003<br />
- O livro, não. E eu, muito menos. Levaramme<br />
as gorduras todas. Por permanecer<br />
morando em Natal, nascido no sertão brabo<br />
do Rio Grande, não tenho peso de nada em<br />
nenhuma sala de livros do país. Este Brasil de<br />
solavancos, que ouve apenas a quem deseja e<br />
canta apenas os que encontraram um amigo<br />
que os ajudou e publicou todos os seus livros.<br />
Assim forçosamente se aparece. No Estado e no<br />
país. Mas, cadê este programa, este amigo, esta<br />
editoracão? O galo comeu.<br />
- Olhe, cuidado. Você parece só querer a<br />
glória.<br />
- Não. A Glória anda arisca, exibida,<br />
interesseira. Prefiro a Vitória. A Vitória é boa,<br />
mansa, bonita, balzaquiana. E rende.<br />
- Certo. Vejo que o seu mal é permanecer<br />
chorando como sertanejo que é. Não há mais a<br />
Emergência. Creio que agora, com a idade que<br />
você tem lá lascadim, lascadim... E ninguém vai<br />
chorar. Não há o que se fazer por você.<br />
E por que eu lhe digo isso? Porque você jamais<br />
quis ir pro Rio ou para São Paulo. Pra lá se<br />
encontrar com esse amigo que lhe falei e lhe<br />
desse a mão. E com a capacidade que tem de<br />
arrumar as histórias que ouve, na certa seria<br />
igual a alguns cabras bons que enfeitam as<br />
prateleiras de nossa literatura.<br />
- Isso é um elogio ou uma traição? Não sei o<br />
que faça, tampouco vou lhe dar mais atenção<br />
neste mato sem cachorro. Como a roda da<br />
vida gira, as normas mudam e o tempo corre,<br />
eu chegarei lá, sem sair daqui. Continuarei na<br />
pisada de alpercatas-de-rabicho, pois sei que<br />
algo está mudando e há animais de estimação<br />
soltos pelo arvoredo. E algum irá nos socorrer<br />
qual são-bernardo das neves lá de cima.<br />
- Tá.
Foto: Eduardo Felipe<br />
Fome de livros<br />
Por Tácito Costa e Carlos Magno Araújo<br />
Abimael Silva, 40 anos, dono do Sebo Vermelho, tornouse<br />
um fenômeno editorial nacional. Sem praticamente<br />
nenhum apoio conseguiu em 12 anos editar mais de cem<br />
livros de autores potiguares. Tanto obras de autores novos, como<br />
Cleudo Freire e Mário Rasec, como de autores consagrados<br />
como Eloy de Souza e Câmara Cascudo. Um trabalho que vem<br />
tendo reconhecimento local e nacional. Em maio, a Câmara<br />
Municipal de Natal entregou-lhe o título de Cidadão Natalense<br />
e em julho ele foi entrevistado no programa de televisão de Jô<br />
Soares. Durante a solenidade na Câmara ele lançou o centésimo<br />
livro, “Contistas Potiguares”, de Manoel Onofre Jr. O que<br />
distingue Abimael de outros sebistas de Natal é que ele é um<br />
grande leitor, conhece bem a Literatura norte-rio-grandense<br />
e possui uma biblioteca “interessante”, segundo suas próprias<br />
palavras. De temperamento afável, bem humorado e boêmio<br />
empedernido, é também um hábil negociante. Nessa entrevista,<br />
Abimael Silva conta como surgiu o Sebo Vermelho, fala sobre<br />
a sua saga de editor “liso”, sua relação com os escritores e,<br />
principalmente, revela qual é a “mágica” para editar tantos livros<br />
com tão poucos recursos.<br />
Julho 2003<br />
Entrevista<br />
13
Entrevista<br />
Abimael Silva Silva<br />
Abimael Silva<br />
PREÁ – Quem o conhece sabe que você tem uma relação de<br />
amor com os livros. Como isso surgiu?<br />
ABIMAEL SILVA - Desde menino, com 14, 15 anos eu já<br />
comprava livros. Ia nas livrarias, no final dos anos 70, e procurava<br />
livros. Na época, eu trabalhava numa loja de comércio, ganhava<br />
um salário mínimo e comprava os livros de acordo com o<br />
preço. Olhava os preços dos exemplares, separava, dava uma<br />
lida, comparava e, muitas vezes nem conhecia o autor, mas aí<br />
eu dizia: - esse aqui eu gostei, vou levá-lo. E assim comecei.<br />
Toda semana, todo mês, eu comprava um livro. Isso era possível<br />
porque eles ficavam até dois anos sem ter os preços remarcados.<br />
Então eu ia comprando livros de Zila Mamede, Cascudo, Nei<br />
Leandro, Luís Carlos Guimarães. De repente, sem nenhuma<br />
pretensão, já estava com um acervo de mais de 500 títulos.<br />
PREÁ - Que autores mais o marcaram nesse seu primeiro<br />
contato com os livros?<br />
ABIMAEL SILVA - O primeiro autor que eu tive prazer em ler<br />
foi José Lins do Rego. Cheguei até Zé Lins através de um exprofessor<br />
meu, Antenor Laurentino Ramos, irmão de Afonso<br />
Laurentino Ramos, que dava aulas de português e sempre<br />
indicava alguns livros. Ele pedia à turma resumos das obras<br />
que passava para a gente ler e a metade da turma que fizesse<br />
as melhores sínteses era convocada para conhecer a cidade de<br />
origem do autor. Li “Menino de Engenho” em 1976 ou 1977,<br />
fiz um resumo, o professor gostou e eu fui um dos escolhidos<br />
para conhecer Pilar, na Paraíba, a terra de José Lins. Exatamente<br />
onde se passava a história de “Menino de Engenho”. Vi o<br />
engenho, as caldeiras em ruínas, conheci inclusive uma filha<br />
de José Lins. Foi uma viagem inesquecível. Esse professor foi<br />
uma pessoa muito importante neste ponto. Tanto que, depois<br />
de “Menino de Engenho”, li toda a obra de José Lins. Em 1980,<br />
quando meu pai faleceu, eu estava lendo “Fogo Morto”. Só que<br />
eu estava tão empolgado com a leitura que, de repente, meu pai<br />
morreu num acidente de trânsito e, apesar de toda a comoção,<br />
não parei a leitura. No outro dia, quando minha mãe viu o livro<br />
perto de minha cama, disse: - É assim que você sente amor por<br />
14 Julho 2003<br />
Foto: Alexandro Gurgel<br />
seu pai? Depois, para ela entender isso foi uma<br />
dificuldade. Hoje ela já entendeu, mas na época<br />
foi uma confusão.<br />
PREÁ – Você nasceu no interior, em Várzea...<br />
ABIMAEL SILVA – Nasci na cidade de Várzea<br />
num lugarejo chamado ‘Tanque do Boi’. Meu<br />
avô tinha uma propriedade razoavelmente<br />
grande e meu pai era o filho mais velho. Cada<br />
filho morava numa casa dentro da propriedade.<br />
No final dos anos 60, ele vendeu tudo, sem<br />
chegar a um acordo com os filhos e, de<br />
repente, todos tiveram que se mudar. Fomos<br />
morar em Canguaretama, na Penha. Nós o<br />
acompanhamos por um tempo e depois meu<br />
avô ficou lá e meu pai foi morar em Tibau<br />
do Sul. Ele era carpinteiro e foi trabalhar no<br />
porto, construindo barcos e fazendo consertos<br />
em embarcações. Morei lá até 1971. Vivia<br />
exclusivamente de comer – durante o dia -<br />
batata, macaxeira e peixe. Isso diariamente. À<br />
noite, acompanhados de cabeça de lagosta. Era<br />
uma vida em que se misturavam os aspectos<br />
rurais e litorâneos. Eu estudava, pois minha<br />
mãe sempre teve essa preocupação com os<br />
estudos. Todos os dias de manhã eu ia para<br />
o porto buscar um saco de<br />
Com o poeta Falves Silva
Foto: Clóvis Tinoco<br />
cabeça de lagosta que meu pai recolhia porque<br />
nesse tempo tinha tanta lagosta naquele litoral<br />
que a cabeça era desprezada. Trazia e minha<br />
mãe cozinhava. A gente morava em Tibau mais<br />
por necessidade mesmo, tanto que eu e duas<br />
irmãs viemos morar em Natal para estudar no<br />
Isabel Gondim. Só depois de quatro anos foi<br />
que meus pais vieram.<br />
PREÁ - Como surgiu a idéia do sebo?<br />
ABIMAEL SILVA - Fui motivado pela<br />
dificuldade. Já estava de ‘saco cheio’ do banco.<br />
Antes, trabalhei numa padaria por um tempo.<br />
Acordava logo cedo, às 5 da manhã, para<br />
embalar aqueles sacos de bolacha e de biscoito,<br />
ficava a manhã toda e estudava à tarde. Depois<br />
trabalhei na Discol, uma loja de discos no<br />
Centro, que ainda hoje existe. Por volta de<br />
81, 82, fui trabalhar no Unibanco. De repente<br />
enchi o saco, porque trabalhar em banco é<br />
uma profissão para quem não tem profissão.<br />
Trabalhava como contínuo. Até aí tudo bem,<br />
mas um ano depois fui promovido para o setor<br />
de contas correntes, aí era bronca mesmo.<br />
Todos os dias você mexer com milhares e<br />
milhares de cheques das outras pessoas, somar,<br />
dar o valor como correto, não poder ter uma<br />
diferença sequer... Era um horror. Trabalhei até<br />
1985, mas fui para lá por pressões familiares.<br />
Minha mãe queria que eu fosse porque foi um<br />
cunhado meu que conseguiu esse emprego. E<br />
eu já tinha, inclusive, falado com Carlos Lima<br />
para trabalhar na livraria Clima.<br />
Com o fotógrafo Carlos Lira<br />
E acabou não tendo jeito, tive que trabalhar no banco mesmo,<br />
pois coincidiu com o período em que meu pai tinha morrido.<br />
Eu ainda era muito novo. Considero esse o tempo mais inútil da<br />
minha vida.<br />
PREÁ - Você chegou a trabalhar em alguma livraria?<br />
ABIMAEL SILVA - Não. Estava de ‘saco cheio’ do banco e disse:<br />
- Vou ter que sair. Então inventei o sebo. Pensei: - Vou botar<br />
um sebo, pois se eu for vender os meus livros em um outro,<br />
no de Jácio {Jácio Torres, dono do Cata Livros}, por exemplo,<br />
para depois pegar o dinheiro e fazer alguma coisa, não terei<br />
muita vantagem. Portanto, a idéia do sebo surgiu meio que<br />
por acaso. Se não tivesse dado certo, eu teria ido embora para<br />
Maceió passar um tempo e tentar a sorte. Eu tinha visto o filme<br />
“Memórias do Cárcere” e tinha ficado bem impressionado. Mas<br />
depois de muita luta o sebo foi começando a dar certo.<br />
PREÁ – Onde o sebo funcionou inicialmente?<br />
ABIMAEL SILVA - O primeiro local foi na rua Vigário<br />
Bartolomeu, vizinho ao edifício 21 de Março. Quando saí<br />
do Unibanco, peguei a indenização e comprei uma cigarreira.<br />
Resolvi pintá-la, mas fiquei em dúvida com relação à cor. Pensei:<br />
se pintar de azul não vai dar nenhum impacto, de amarelo<br />
também. Só tinha duas opções: ou branco ou vermelho. Então<br />
decidi pintar de vermelho, uma cor bem chocante, muito viva.<br />
Pintei, e foi um choque danado!<br />
PREÁ – Até então o sebo não tinha nome.<br />
Abimael Silva<br />
ABIMAEL SILVA – Exatamente. Logo nas primeiras semanas,<br />
algumas pessoas do movimento de esquerda começaram a<br />
freqüentar e logo passaram a chamar de “Sebo Vermelho”.<br />
Eu gostei do nome e resolvi adotá-lo. Mandei colocar o nome<br />
na frente e comecei a fazer umas pichações pela cidade. Nessa<br />
época, eu andava muito de bicicleta e gostava de fazer pichações.<br />
Comprava alguns sprays e saía pichando tudo que era muro com<br />
o nome Sebo Vermelho. Mas era o período da Nova República e<br />
eu comecei a ter medo que houvesse um retrocesso político, um<br />
golpe, e todo mundo pensando que eu era um cara de esquerda,<br />
um radical. Ainda hoje tem muita gente que pensa que faço parte<br />
de algum grupo de esquerda, de algum partido. Um dia, minha<br />
Julho 2003<br />
15
Entrevista<br />
mãe passou no sebo, viu o nome e ficou horrorizada. Chegou em<br />
casa e me disse: - mas meu filho, você sabe o significado dessa<br />
palavra? Aí eu peguei o Aurélio e li o verbete ‘sebo’ para ela: -<br />
Sebo é livraria onde se comercializam livros usados. Aí ela disse: -<br />
Não é nada disso. Essa é uma palavra horrorosa. Parte da minha<br />
família também implicava com a minha nova profissão. Dizia:<br />
- como é que você sai do banco para botar uma coisa dessas?<br />
PREÁ – Como foram os primeiros dias de negócios?<br />
ABIMAEL SILVA - Só depois de uns três meses é que a coisa<br />
começou a funcionar. Nos primeiros dias não vendia nada, mas<br />
fui levando, levando até começar a dar certo.<br />
PREÁ – Onde você adquiriu o acervo para comercializar?<br />
ABIMAEL SILVA – Comecei com a minha biblioteca.<br />
Sacrifiquei todos os meus livros, sem nenhuma exceção. Alguns<br />
eu vendia com a maior pena. Posteriormente fui comprando<br />
alguns dos livros dos quais eu tinha me desfeito. Hoje, tenho no<br />
sebo um acervo de cerca de 25 mil livros.<br />
PREÁ – Depois da Vigário Bartolomeu, você mudou-se para<br />
que local?<br />
ABIMAEL SILVA – Quando deixei a Vigário Bartolomeu, me<br />
instalei numa outra cigarreira, na parada Metropolitana. Fiquei<br />
lá uns dois anos. Depois passou a ser na rua Princesa Isabel, num<br />
1º andar, em cima do Gimmy Lanches. Era um ponto pequeno,<br />
mas muito freqüentado. Posteriormente, me transferi para um<br />
local vizinho ao Memorial Câmara Cascudo, na rua Santo<br />
Antônio. De lá vim para a Avenida Rio Branco, onde estou até<br />
hoje.<br />
PREÁ – Quem foram os primeiros freqüentadores do Sebo?<br />
ABIMAEL SILVA – Nelson Patriota foi um dos primeiros a<br />
freqüentar, Luís Carlos Guimarães, Gutemberg Costa, que<br />
era funcionário público da Caern e comprou muitos livros,<br />
Diógenes da Cunha Lima, Dom Inácio, principalmente,<br />
considero-o como um guru, um pai, um amigo, um irmão. No<br />
momento lembro destas pessoas, mas sei que foram muitas outras.<br />
16 Julho 2003<br />
PREÁ – Dos grandes nomes da Literatura<br />
Brasileira de outros Estados, quem você lembra<br />
que esteve no seu sebo?<br />
ABIMAEL SILVA – Gilberto de Mendonça<br />
Teles, Francisco Dantas, o grande romancista<br />
sergipano, o crítico literário João Alexandre<br />
Barbosa; o doutor José Mindlin apareceu<br />
certa vez, mas lamentavelmente o Sebo estava<br />
fechado. Foi durante a SBPC. Alguns nomes<br />
da música também apareceram por lá, como<br />
Sérgio Sampaio, o grande compositor do<br />
sucesso “Eu quero botar meu bloco na rua”,<br />
o cantor e compositor Belchior, que inclusive<br />
recebe nossas edições.<br />
PREÁ – Que bibliotecas importantes você já<br />
adquiriu?<br />
ABIMAEL SILVA – “N” bibliotecas eu já<br />
comprei. A do doutor Esmeraldo Siqueira<br />
{poeta}, foi a primeira biblioteca que comprei,<br />
com cerca de 3 mil livros, boa parte em francês,<br />
em alemão, espanhol, ou edições brasileiras da<br />
maior importância. Muitos livros raros. Foi o<br />
filho dele, Mano, que me ofereceu. Essa foi<br />
adquirida nos primeiros meses do Sebo. Muitos<br />
desses livros eu levei para casa. Outros foram<br />
comprados por Sanderson Negreiros, Inácio<br />
Magalhães, Leonardo Barata... Mas enfrentei<br />
negócios complicadíssimos com aquisição de<br />
bibliotecas, como com a de Manoel Rodrigues<br />
de Melo, que<br />
Com o escritor Roberto da Silva
Foto: João Maria Alves<br />
comprei em 96. Um filho dele esteve aqui<br />
oferecendo. Só depois que tinha acertado<br />
tudo é que percebi que os livros pertenciam<br />
a Manoel Rodrigues. Mas como o filho dele,<br />
com 50 anos, não era nenhum menino, nem<br />
débil mental, os livros estavam na casa dele e<br />
foi ele quem me procurou no meu local de<br />
trabalho, eu acabei comprando. Essa biblioteca<br />
deu uma confusão tão danada. Diógenes<br />
da Cunha Lima foi o advogado da família,<br />
Garibaldi era o governador na época, deu<br />
declarações, dizendo que a biblioteca tinha de<br />
ficar com a família. Foi uma novela... Tive que<br />
devolver, mas lamentavelmente alguns poucos<br />
livros foram vendidos.<br />
PREÁ – Tem alguma biblioteca hoje no Estado<br />
que você gostaria de ter?<br />
ABIMAEL SILVA – Não é que eu gostaria<br />
de ter, mas um dia pretendo pelo menos ter<br />
um contato com a biblioteca de Antônio<br />
Soares de Araújo. A biblioteca desse homem é<br />
simplesmente considerada a melhor em termos<br />
de autores do Rio Grande do Norte. Ele fez a<br />
doação de seus livros para o Instituto Histórico<br />
e Geográfico. Do acervo dele, catalogado, fazem<br />
parte mais de três mil títulos só de autores<br />
potiguares. Todos os livros importantes do Rio<br />
Grande do Norte estão nessa biblioteca. Essa<br />
biblioteca, segundo o presidente do IHGRN,<br />
está sendo organizada para depois ser reaberta<br />
ao público.<br />
Com um grupo de amigos<br />
Abimael Silva<br />
PREÁ – De que outras bibliotecas importantes você tem<br />
conhecimento?<br />
ABIMAEL SILVA – O embaixador Fernando Abbot Galvão tem<br />
uma grande biblioteca. Acredito que ele seja o maior bibliófilo<br />
do Estado. Vicente Serejo não fica atrás do embaixador. Inácio<br />
Magalhães de Sena tem também uma senhora biblioteca.<br />
Mas acho que a do embaixador e a de Serejo são as mais<br />
conceituadas.<br />
PREÁ – Hoje você coloca à venda todos os livros que compra ou<br />
têm aqueles que você seleciona para sua biblioteca particular?<br />
ABIMAEL SILVA – Na verdade, modéstia à parte, eu tenho<br />
uma biblioteca razoavelmente interessante, mas totalmente<br />
desorganizada. É tanto que misturo autores do Rio Grande<br />
do Norte com autores nacionais, estrangeiros... é uma mistura!<br />
Desde o início do Sebo eu tinha essa prioridade: - Se o sebo der<br />
apenas para eu viver, pagar os custos mensais, e eu tendo como<br />
lucro esses livros que vão chegando e vou guardando para a<br />
minha biblioteca, para mim isso já era um ‘Negoção’. A minha<br />
biblioteca, que fica em minha casa, tem aproximadamente 2.000<br />
exemplares.<br />
PREÁ – Você tem uma identificação grande com os autores<br />
potiguares. Como você explica isso?<br />
ABIMAEL SILVA – Indiscutivelmente, a Literatura do Rio<br />
Grande do Norte é de alto nível. O que falta é um trabalho de<br />
seleção, que separe o joio do trigo. Temos autores de altíssimo<br />
nível, autores que fizeram sucesso, inclusive, no Rio e em São<br />
Paulo.<br />
PREÁ – Quais são os livros potiguares que não podem faltar<br />
numa biblioteca?<br />
ABIMAEL SILVA - São tantos livros...”História da Cidade do<br />
Natal”, “Nomes da Terra” e “História do Rio Grande do Norte”,<br />
de Cascudo, todos os livros relatando a presença dos americanos<br />
em Natal e a cidade durante a 2ª Guerra. As poesias completas<br />
de Ferreira Itajubá, o “Livro de Poemas”, de Jorge Fernandes.<br />
Julho 2003<br />
17
Entrevista<br />
PREÁ – E que autores norte-rio-grandenses você destacaria?<br />
ABIMAEL SILVA – Othoniel Menezes, Câmara Cascudo,<br />
Manoel Rodrigues de Melo, Newton Navarro, Nei Leandro,<br />
Luís Carlos Guimarães, Anchieta Fernandes, Carlos de Souza,<br />
Eloy de Souza, Henrique Castriciano, Hélio Galvão, Carlos<br />
Lyra, Manoel Dantas, Miguel Cirilo, Lenine Pinto, Moysés<br />
Sesyom, Manoel Onofre Júnior, Moacy Cirne, Renato Caldas,<br />
Olavo de Medeiros Filho, François Silvestre.<br />
PREÁ – Como começou sua carreira de editor?<br />
ABIMAEL SILVA - Por acaso. Em 1990, Anchieta Fernandes<br />
me apresentou um livro, “’O Écran Natalense – a história do<br />
Cinema em Natal”. Esse é um livro sensacional, uma página da<br />
história da cidade. Anchieta me procurou dizendo que já tinha<br />
tentado editar o livro através dos órgãos de cultura do Estado e<br />
não tinha conseguido. Então eu disse a ele: - Anchieta, eu vou<br />
tentar editar o seu livro. Eu li e achei uma coisa tão bonita e<br />
tão importante. Aí - porque na verdade eu edito a duras penas,<br />
com excesso de dificuldades - me juntei a Varela Cavalcanti,<br />
na época presidente do Sindicato dos Bancários, que deu a<br />
impressão gráfica. O passo seguinte foi pedir o papel a Afrânio,<br />
que tinha uma representação de papel aqui em Natal. Pedi uma<br />
força também ao sebista Jácio e conseguimos lançar o livro, que<br />
foi um sucesso estrondoso. Ainda hoje tem várias universidades<br />
que indicam esse livro para os alunos. Inclusive, estou<br />
reeditando-o esse ano.<br />
PREÁ – Qual a “mágica” para editar tantos livros?<br />
ABIMAEL SILVA - Realmente tem que fazer uma certa<br />
mágica. No início, tendo a consciência da importância destes<br />
livros para o futuro e para a história da nossa cidade, eu fazia o<br />
seguinte: como não tinha capital, ia pedindo a fulano, sicrano,<br />
beltrano e aos amigos, tipo 50 reais, 100 reais, que depois eu<br />
devolveria esse valor em dobro, em exemplares e colocaria no<br />
livro: “Essa publicação teve o apoio cultural de fulano, sicrano<br />
e beltrano”. Deu certo. O primeiro, o segundo, o terceiro,<br />
o quarto... Acontece que isso acabou se tornando uma coisa<br />
desgastante, eu ia como se estivesse mendigando, às vezes deixava<br />
o livro lá e não conseguia receber o dinheiro de volta, conforme<br />
o combinado. Eu fazia isso e distribuía os livros entre todos que<br />
faziam parte desta espécie de “cooperativa”. Ainda assim, ficou<br />
uma coisa ridícula, tanto da minha parte, quanto destas pessoas<br />
que estavam me dando esse apoio. Algumas até me davam como<br />
se fosse uma esmola, tipo ‘toma, nunca mais apareça aqui’.<br />
18 Julho 2003<br />
Resolvi então fazer de outro jeito. Descubro um<br />
determinado autor, com uma obra interessante,<br />
procuro a família para saber o interesse dela<br />
na reedição. Eles pagam uma parte, eu pago<br />
outra e a gente vai juntando, depois divide.<br />
Um fica com a parte dos livros, outro fica com<br />
outra, no geral. Mais recentemente, outras<br />
pessoas me procuram apenas para que o livro<br />
saia pelas edições do Sebo Vermelho, com esse<br />
padrão de qualidade, dentro da coleção João<br />
Nicodemos de Lima e me dão entre 10% e<br />
15% da edição em exemplares, em média.<br />
Eu também pego determinado livro e tento<br />
fazer uma edição o menor possível, com 100,<br />
200 ou 300 exemplares. Se o autor vende a<br />
metade no lançamento, ele pode ir na gráfica e<br />
encomendar outros exemplares.<br />
PRÉA - Você esperava que a sua carreira de<br />
editor tomasse a dimensão que tomou?<br />
ABIMAEL SILVA - De nenhuma maneira,<br />
ainda bem que não é uma coisa só para mim,<br />
mas para toda a cidade, para o Estado. Até<br />
porque eu não sou muito de ‘oba oba’.<br />
Foto: Eduardo Felipe
Foto: Evaldo Gomes<br />
PREÁ – Outro dia você deu uma declaração<br />
em um dos jornais da cidade dizendo que era<br />
o único editor ‘liso’ no Brasil. Esse trabalho de<br />
editor lhe rende alguma coisa financeiramente?<br />
ABIMAEL SILVA – Até o presente momento<br />
isso não me rendeu nada financeiramente. Aqui<br />
e acolá tem um empresário que sabe de nossas<br />
dificuldades e dá alguma ajuda. Quem sempre<br />
tem dado muita força é <strong>Augusto</strong> Maranhão,<br />
que é uma pessoa sensacional, vem por livre e<br />
espontânea vontade e me ajuda. Quando vou<br />
editar, pego a pessoa, arrumo todo o material<br />
gráfico, os papéis, as chapas, mando fazer o<br />
fotolito no Diário de Natal, vou lá peço um<br />
favor à direção do jornal para dar uma ajuda<br />
como apoio cultural, peço a um amigo que<br />
faça uma capa, a arte da capa como uma<br />
presença, uma gentileza. Mas, mesmo tendo<br />
editado todos esses livros, sobre Natal ou o Rio<br />
Grande do Norte - a maioria de autores norterio-grandenses<br />
-, acontece uma coisa cruel,<br />
porque até hoje nenhuma biblioteca do Estado<br />
tem as nossas edições. Tem livro de sicrano, de<br />
beltrano, mas não tem os nossos livros.<br />
Abimael Silva<br />
PREÁ – Mas não é obrigatório as bibliotecas terem ao menos<br />
um volume de cada livro publicado no Estado?<br />
ABIMAEL SILVA – Sim. Mas isso é quando se trata da<br />
Biblioteca Nacional. Aqui as pessoas fazem ofícios pedindo<br />
doações, enquanto se gasta dinheiro com tantas outras coisas<br />
que não fazem o menor sentido. Eu já recebi “n” ofícios pedindo<br />
doações de livros, mas não posso doar esses livros, até para que as<br />
pessoas reconheçam que existe um custo extremamente elevado<br />
por trás desse trabalho de editoração. Não dá para ser de graça.<br />
PREÁ – Você conhece alguém em outro Estado que tenha um<br />
trabalho semelhante a esse seu?<br />
ABIMAEL SILVA – Sebista fazendo esse trabalho de editoração,<br />
no Brasil, que eu saiba, não existe nenhum outro.<br />
PREÁ – De todos os livros que você editou quais são os seus<br />
preferidos?<br />
ABIMAEL SILVA – Tem alguns pelos quais tenho um carinho<br />
todo especial, como por exemplo, “As Cartas de Drummond<br />
a Zila Mamede”, um livro que até hoje me enche de alegria;<br />
“Os Americanos em Natal”, de Lenine Pinto; “Costumes<br />
Locais”, de Eloy de Souza; “Os Elementos do Caos”, de<br />
Miguel Cirilo; “69 Poemas de Chico Doido de Caicó”,<br />
organizado por Nei Leandro de Castro e Moacy Cirne;<br />
“Nomes da Terra”, de Cascudo; “Contistas Potiguares”, de<br />
Manoel Onofre Júnior; o “Papa Jerimun”, de Cleudo Freire;<br />
“Uma Câmara vê Cascudo”, de Carlos Lyra; a antologia de<br />
contos organizada por Manoel Onofre Júnior, “Poetas do Rio<br />
Grande do Norte”, de Ezequiel Wanderley, que foi a primeira<br />
antologia da poesia potiguar, editada em 1922, tendo inclusive<br />
sido resenhada no Jornal do Brasil.<br />
PREÁ – É mais fácil vender livros de prosa ou de poesia?<br />
ABIMAEL SILVA – Com todo o respeito aos poetas, não se<br />
compara. Poesia é a coisa mais difícil de se vender. Em geral,<br />
depois do lançamento, o livro de poesia fica na estante. Só<br />
quando o poeta é muito pavão, tem um nome consagrado e usa<br />
bem a mídia é que consegue vender um pouco mais.<br />
Julho 2003<br />
19
Entrevista<br />
PREÁ – Os autores dão muito trabalho a você na hora de editar<br />
um livro?<br />
ABIMAEL SILVA – Ainda bem que esses são uma minoria.<br />
Tem uns chatérrimos, que acabam virando meus inimigos.<br />
Teve um insuportável, que simplesmente queria editar o livro<br />
dele bilingüe, em português e inglês. Ligava de manhã cedinho,<br />
vinha aqui toda hora, só faltou tirar meu juízo. Ainda bem que,<br />
de cem, tem apenas uns cinco que não têm quem agüente.<br />
PREÁ – Você se considera discriminado por não contar com<br />
apoio governamental para editar seus livros?<br />
ABIMAEL SILVA – O que existe é uma certa incompreensão<br />
por parte de alguns órgãos. Não era para ser obrigação, mas pelo<br />
menos algumas obras deveriam merecer uma atenção maior<br />
desses órgãos. Para você ter uma idéia, no lançamento de um livro<br />
que eu editei no final do ano passado, teve um cidadão, um dos<br />
coordenadores da Biblioteca Doutor Américo de Oliveira Costa,<br />
que teve a ousadia de ir ao lançamento, dizer que a Biblioteca<br />
tinha o melhor acervo. Aí eu disse: rapaz, com certeza lá, em<br />
relação a livros do Rio Grande do Norte deve ser muito fraco,<br />
mesmo porque não tem essas nossas edições... Ele concordou e,<br />
em cima da bucha, pediu uma doação. Um camarada da UnP<br />
também veio com essa conversa para eu doar 50 livros. Imagine<br />
eu doar 50 livros para a UnP, sem mais nem menos. Ora, eles<br />
têm obrigação de adquirir esses livros, até mesmo porque podem<br />
abater no Imposto de Renda.<br />
PREÁ – Se procurado, você aceitaria fazer parcerias com órgãos<br />
públicos?<br />
ABIMAEL SILVA – Já procurei muito essas parcerias e estou<br />
aberto a qualquer proposta, a qualquer negociação. Pode ser que,<br />
por eu ser muito independente, existam dificuldades. Inclusive,<br />
acho muito importantes as parcerias. Graças a essas parcerias é<br />
que no ano passado foi comemorado o centenário de Renato<br />
Caldas {poeta}. A prefeitura do Assu mandou imprimir quatro<br />
livros: a reedição de “Fulô do Mato”, a publicação das cartas<br />
de Renato Caldas para Fausta; o livro “Renato Caldas, o Poeta<br />
das Melodias Selvagens” e mais outro livro inédito com a versão<br />
de “Fulô do Mato”, bem antiga. Ou seja, só através de uma<br />
parceria dessas é possível fazer esse tipo de coisa.<br />
PREÁ – É verdadeira a história de que mal morre o dono de<br />
uma grande biblioteca a viúva ou os filhos correm aos sebos para<br />
se desfazer dos livros? Quem chega primeiro ao sebo? As viúvas<br />
ou os filhos?<br />
20 Julho 2003<br />
Foto: Alexandro Gurgel<br />
ABIMAEL SILVA – Olhe, aí é uma pergunta<br />
cruel {risos, faz uma pausa}. Eu acho que as<br />
viúvas. As viúvas, com certeza. Mas hoje isso<br />
está mudando um pouco. Até os anos 90 isso<br />
era um pouco cruel. Claro que livro é uma coisa<br />
que a pessoa tem de ter uma certa intimidade,<br />
um certo prazer. Só como exemplo: teve um<br />
senhor, um médico muito conceituado, morava<br />
ali perto de Parnamirim, que começou a perder<br />
a visão. Esse médico era muito amigo de um<br />
grande amigo meu, Otacílio Lopes Cardoso. E<br />
esse homem simplesmente não queria vender<br />
os livros, embora estivesse 90% cego. Mas a<br />
pressão da família era grande. O acervo dele era<br />
especial, todo em capa dura, bem conservado.<br />
Ele implorava para que a família não vendesse<br />
os livros, porque poderia muito bem recuperar<br />
a visão, depois não ter mais os livros, uma coisa<br />
extremamente dramática. Cheguei a ir lá numa<br />
kombi comprar os livros, mas desisti. Disse à<br />
família que se eles quisessem vender levassem os<br />
livros até o sebo. Isso é para mostrar o quanto<br />
muitas pessoas têm desprazer com livros.<br />
PREÁ – Os intelectuais pechincham muito<br />
ou esquecem de pagar quando compram<br />
parcelado?<br />
ABIMAEL SILVA – Bem, não posso dizer que<br />
não, se disser estarei mentindo. Isso é natural<br />
em todo comércio.<br />
PREÁ – Quem chega pela primeira vez ao<br />
Sebo Vermelho pode se surpreender com a<br />
desorganização. Como você faz para encontrar<br />
determinado livro?<br />
Com o poeta Pedro Grilo
Foto: Eduardo Felipe<br />
ABIMAL SILVA – À primeira vista tem essa<br />
aparência, só que ali é uma desorganização<br />
organizada {risos}. Nós colocamos os livros<br />
em determinadas estantes, levando em conta<br />
os assuntos. Por exemplo, os livros sobre<br />
filosofia estão todos na mesma estante, o<br />
mesmo acontecendo com obras sobre história,<br />
literatura, os didáticos, etc. Claro que devemos<br />
ter cerca de 5% de livros fora do lugar.<br />
PREÁ – Você lembra de algum livro que tenha<br />
sido oferecido a você e que, na hora, o tenha<br />
deixado entusiasmado por tratar-se de algo<br />
valioso?<br />
ABIMAEL SILVA – Livro, livro mesmo, não.<br />
Agora uma vez uma pessoa foi vender uma<br />
discoteca. E no meio dos discos, uns 300,<br />
tinha o primeiro LP de Roberto Carlos, um<br />
disco raríssimo, que custa hoje no mercado<br />
cerca de R$ 1 mil. Eu comecei a olhar, olhar,<br />
olhar, quando vejo lá o primeiro disco de<br />
Roberto. “Louco por você” é o nome do disco.<br />
Eu então comecei a fazer a maior propaganda,<br />
disse: - rapaz, esse é o primeiro disco de<br />
Roberto, é<br />
Abimael Silva<br />
uma raridade e tal. O cidadão então disse, separe ele, que vou<br />
vender apenas os outros, deixe esse de Roberto fora. O pacote,<br />
com uns 300 discos – sem o de Roberto -, era mais ou menos R$<br />
250,00. Ainda cheguei a botar R$ 250,00 somente pelo disco de<br />
Roberto, mas ele não vendeu. Eu fiquei chateado por ter dado<br />
com a “língua nos dentes” e perdido um grande negócio.<br />
PREÁ – Você lembra de algum caso pitoresco acontecido no<br />
sebo durante esses anos todos?<br />
ABIMAEL SILVA – Teve o caso de uma ninfomaníaca, inclusive<br />
amiga minha. A mulher chegava no sebo e fazia de tudo para a<br />
gente ter um envolvimento. Mas eu ficava fugindo. No começo,<br />
eu meio menino, e ela fazendo a maior pressão. Um certo dia ela<br />
chegou no sebo, nessa época ficava em cima do Gimmy Lanche,<br />
por volta das 11 horas da manhã. Estávamos apenas eu e o cantor<br />
Cleudo Freire, e ela não contou conversa: foi logo trancando a<br />
porta, pegou a chave e tirou a blusa e, mesmo na presença de<br />
Cleudo, que a conhecia, disse: - hoje você não escapa {risos}.<br />
Mas, felizmente, eu consegui escapar.<br />
PREÁ – Como foi receber o Título de Cidadão Natalense? Você<br />
já tinha vestido paletó antes na sua vida? {risos}<br />
ABIMAEL SILVA – Na verdade, eu só usei o tal do ‘blazer’,<br />
gravata não. Eu tenho um paletó na minha casa, lá no Pium,<br />
mas eu uso ele exclusivamente para dormir no inverno,<br />
porque lá nesse período faz muito frio. Paletó é o fim da<br />
linha, pretendo inclusive nunca mais usar na vida. Eu já<br />
tinha recebido umas propostas para receber o título, mas<br />
eu sempre achei uma coisa tão comum e também, com todo<br />
respeito, tem tanta gente sem futuro que recebe esse título que<br />
a coisa acabou ficando meio ridicularizada. Mas como foi uma<br />
proposta de Hermano {Hermano Morais, vereador}, um amigo,<br />
sempre vai nos nossos lançamentos, e como eu ia completar<br />
40 anos e estava editando o centésimo livro, ele mandou um<br />
assessor, com esses argumentos, e eu acabei convencido.<br />
PRÉA- Você tem percebido na rotina do sebo alguma mudança<br />
no nível de leitura do leitor médio natalense?<br />
ABIMAEL SILVA - Tenho observado um aumento pela procura<br />
de livros. As pessoas lêem de tudo. Existem homens e mulheres<br />
que compram livros de Adelaide Carraro e de Cassandra Rios,<br />
outros preferem os registros técnicos, autores do Rio Grande<br />
do Norte, best sellers. Com certeza, os tempos mudaram para<br />
melhor.<br />
Julho 2003<br />
21
13 por 1<br />
22 Julho 2003<br />
13 POR 1<br />
Ana Luiza (diretora de jornalismo da Tv Cabugi)<br />
Romancista: Rubem Fonseca<br />
Poeta: Carlos Drummond de Andrade<br />
Livro: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar<br />
Filme: Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore)<br />
Diretor/Cinema: Alfred Hitchcock<br />
Ator/Atriz: Matheus Nachtergaele /Fernanda Montenegro<br />
Pintor: Van Gogh<br />
Cantor/Cantora: Caetano Veloso/Marisa Monte<br />
Compositor: Tom Jobim<br />
Música: I´ve got you under my skin - Cole Porter<br />
Peça teatral: Rei Lear - Shakespeare<br />
Intelectual: Sebastião Vicente (jornalista potiguar)<br />
Personalidade cultural do RN: Câmara Cascudo
A universalidade de Zila<br />
A poetisa em um alojamento na Universidade de Syracuse (Estados Unidos), em 1961<br />
Esse ano faz 50 anos da publicação de “Rosa de Pedra” (primeiro livro) e 25<br />
de “Navegos” (antologia), da poetisa Zila Mamede. Um ensaio fotográfico,<br />
poemas de Zila e de Nivaldete Ferreira, e um texto de Graça Aquino<br />
marcam nossa homenagem a grande poetisa. Entre dezenas de fotos para o ensaio,<br />
colocadas à disposição pela irmã de Zila, Ivonete Mamede, com a assessoria de<br />
Gildete Moura, optamos por escolher aquelas que mostravam um pouco da<br />
intimidade da poetisa. Nas legendas, constam as informações que a própria Zila<br />
escrevia, às vezes atrás das fotos, em outras vezes, no papel onde ela as colava.<br />
Apenas em uma não aparece o ano em que foi feita. O ensaio abarca fotografias<br />
feitas entre o final dos anos quarenta e início dos anos sessenta.<br />
Julho 2003<br />
23
Especial/Zila<br />
Ouvindo música em sua casa, à rua Trairi, 719, no Tirol, em 1952<br />
Partida<br />
(Zila Mamede)<br />
Quero abraçar, na fuga, o pensamento<br />
da brisa, das areias, dos sargaços;<br />
quero partir levando nos meus braços<br />
a paisagem que bebo no momento.<br />
Quero que os céus me levem; meu intento<br />
é ganhar novas rotas; mas os traços<br />
do virgem mar molhando-me de abraços<br />
serão brancas tristezas, meu tormento.<br />
Legando-te meus mares e rochedos,<br />
serei tranqüila. Rumarei sem medos<br />
de arrancar dessas praias meu carinho.<br />
Amando-as me verás nas puras vagas.<br />
Eu te verei nos ventos de outras plagas:<br />
juntos – o mar em nós será caminho.<br />
24 Julho 2003<br />
Escrito quando Zila contava com 22, 23 anos, “Rosa de Pedra”<br />
estava pronto desde 1951 e seria lançado pela editora Hipocampo.<br />
Mas a editora, dirigida pelos poetas Geir Campos e Thiago de<br />
Mello, faliu. Somente dois anos mais tarde, o livro seria publicado<br />
pela Imprensa Oficial do Rio Grande do Norte, numa modesta<br />
edição de 200 exemplares, com capa do artista Newton Navarro.<br />
De acordo com o poeta e professor Paulo de Tarso Correia de Melo,<br />
estudioso da obra de Zila, “Rosa de Pedra representa o início de uma<br />
carreira importante para a poesia potiguar. Zila se mostra fiel ao seu<br />
destino de poeta, seu livro contém os germes de todas as constantes<br />
da sua poesia. Temas como a infância e o mar, que acompanhariam<br />
toda a sua obra, também estão presentes em Rosa de Pedra”.<br />
Zila Mamede está nacionalmente relacionada com o que se<br />
convencionou chamar de Geração de 45 na literatura brasileira.<br />
“No caso específico de Zila, ela alcança o Pós-45, geração essa que<br />
curiosamente nasce no Nordeste, com nomes do porte de Mauro<br />
Mota e João Cabral de Melo Neto”, afirma Paulo de Tarso.<br />
Uma poeta de personalidade. Uma pessoa compenetrada, resignada,<br />
e sempre terna com a família e os amigos. Para Ivonete Mamede,<br />
assim era “Pêta” (como ela ainda hoje chama Zila). “Ela era muito<br />
católica e monitorou toda a minha juventude. Quando terminei<br />
meus estudos, fomos morar juntas”.<br />
Segundo a irmã, Zila parecia ser muito quieta, mas na verdade<br />
era bastante ativa. Prova disso foram os diversos trabalhos que<br />
desenvolveu não só na poesia, mas na biblioteconomia e no<br />
jornalismo.<br />
Ivonete atesta o cuidado que Zila tinha com a poesia. “Ela<br />
‘esqueletava’ o poema na cabeça e depois no papel. E era bastante<br />
humilde em relação à sua obra. Várias vezes ela chegava para mim e<br />
perguntava por uma palavra, se estava boa, se eu tinha uma sugestão<br />
melhor”, revela.
Cronologia<br />
Especial/Zila<br />
1928 - Nasce em 15 de setembro, na Vila de Nova Palmeira, em<br />
Picuí (PB), Zila da Costa Mamede. É a segunda de sete filhos.<br />
1933 - Muda-se com a família para Currais Novos (RN). 1942<br />
- Nova mudança, desta vez para Natal. O pai de Zila trabalharia<br />
na construção de Parnamirim. 1943 - Estuda no Colégio<br />
Imaculada Conceição. Religiosa, pensa em tornar-se freira.<br />
1951 - Primeiras publicações em jornais. Desiste de ser freira<br />
depois de conhecer e se amedrontar com a vida que as freiras<br />
levavam em um convento no Recife. 1953 - Publica seu primeiro<br />
livro, “Rosa de Pedra”. 1954 - Obtém o 1º lugar nos Concursos<br />
Permanentes do “Jornal de Letras”, no Rio de Janeiro, com o<br />
soneto “Noturno do Recife”. 1955 - Muda-se para o Rio, onde<br />
estuda biblioteconomia na Biblioteca Nacional. 1956 - Recebe o<br />
diploma em Biblioteconomia. Foi a primeira biblioteconomista<br />
formada no RN. 1957 - Viaja para a Europa, como jornalista<br />
enviada pelo jornal “O Globo”. 1958 - Publica “Salinas”,<br />
pelo qual recebe o prêmio “Vânia Souto Carvalho” de poesia,<br />
em Recife. 1959 - Publica “O Arado”. Trabalha na Secretaria<br />
Municipal de Cultura de Natal. Reorganiza a Biblioteca do<br />
Tribunal de Justiça do RN. Organiza a Biblioteca da Faculdade<br />
de Direito. Promove curso intensivo de Biblioteconomia.<br />
1961 - Viagem de estudos aos Estados Unidos. 1963 - Trabalha<br />
na organização do Serviço Central de Bibliotecas da UFRN,<br />
atualmente denominado Biblioteca Central Zila Mamede. 1964<br />
- Perde a mãe, Elídia Bezerra Mamede, falecida aos 59 anos de<br />
idade. 1966 - Publica “Bibliografia de Xico Santeiro”. É incluída<br />
na “Antologia Poética da Geração de 45”. 1969 - Organiza a<br />
Biblioteca Pública Câmara Cascudo, em Natal. 1970 - Publica<br />
“Câmara Cascudo: 50 Anos de Vida Intelectual”. 1974 - Assume<br />
o cargo de diretora da Biblioteca Central da UFRN. 1975 -<br />
Publica “Exercício da Palavra”. Os cem livros que recebe como<br />
direitos autorais são doados para o Hospital do Câncer. 1978<br />
- Publica o livro “Navegos”, comemorando seus 25 anos de<br />
atividade poética, reunindo todos os livros até então publicados<br />
e o inédito “Corpo a Corpo”. 1980 - Aposenta-se como Diretora<br />
da Biblioteca Central da UFRN. 1983 - Publica seu último<br />
livro, “A Herança”. 1985 - Morre, em 13 de dezembro, aos 57<br />
anos, por afogamento, quando nadava na Praia do Forte. Participa de pic-nic do Sesi, em 1953, na praia de Ponta Negra<br />
Julho 2003<br />
25
Especial/Zila<br />
Rosas para Zila<br />
Nivaldete Ferreira (Poetisa)<br />
Rosa de Pedra - metáfora, escultura intangível.<br />
Alquímica poética: a pedra se tornando pétala,<br />
A pétala vencendo o tempo,<br />
Mais do que aquela que se guarda nas páginas de um livro.<br />
Saber a rosa não é saber a pedra, e saber a pedra não é saber a rosa.<br />
Mas Zila sabia uma e outra.<br />
Sabia a pedra/pedregulho que seus pés de menina pisaram<br />
Nos campos do avô.<br />
Sabia a pedra/sustentação, a que sustenta para além da casa onde<br />
se mora.<br />
Zila sabia a pedra que sustenta a nossa morada na própria vida: a<br />
pedra da coragem e da firmeza.<br />
Zila sabia a pedra que viaja no coração das águas e,<br />
Inventando asas, retorna ao lugar anterior,<br />
Até que não retorna mais...<br />
Zila sabia a pedra do anel falhado,<br />
A pedra incrustada nas paixões sem gesto.<br />
Sobretudo sabia o mais difícil: o hálito da pedra,<br />
Aquele que, tão sutil, pode gerar a rosa,<br />
A rosa dos ritos poéticos,<br />
A rosa desfolhada em versos, versos, versos...,<br />
Como água boa de matar essa outra sede.<br />
Versos, versos de altear a vida,<br />
De lembrar que o humano é mais do que o humano,<br />
Mais do que um envelope guardando um conteúdo provisório.<br />
Rosas, rosas para Zila.<br />
Rosas marítimas, cachos de espuma,<br />
Rosas brancas, por esses dias em que o corpo da história anda febril,<br />
Porque há homens que esqueceram a poesia.<br />
Rosas para Zila.<br />
Porque, enfim, a vida é mais com Zila.<br />
Mesmo sem Zila.<br />
Em seu primeiro emprego (1951), no escritório de<br />
contabilidade de Sérgio Severo<br />
26 Julho 2003<br />
Em Parati (RJ), no carnaval de 1957<br />
Velha parede ponte limitando:<br />
passado e presente<br />
Graça Aquino (mestre em Literatura)<br />
“O Arado”, terceiro livro de poesia de Zila Mamede, lançado em<br />
1959 pela Livraria São José, do Rio de Janeiro, com prefácio de<br />
Câmara Cascudo, tinha em sua primeira edição vinte poemas.<br />
Quando relançado em “Navegos” (1978), que reúne toda<br />
poesia de Zila até aquela época, perdeu um poema, intitulado<br />
sintomaticamente de “Retirada”.<br />
Dos vinte poemas que compõem o livro, sete são escritos na<br />
forma de soneto, cinco são tercetos, um é quarteto e os demais<br />
são elaborados em estrofes irregulares, com predominância de<br />
versos livres.<br />
Neste estudo, analiso dois poemas: “O Açude” e “Rua (Trairi)”;<br />
ambos remetem à experiência de vida da poeta que, nesse livro,<br />
através do processo da rememoração, traz para seus textos<br />
poéticos as lembranças de menina sertaneja entrelaçadas pela<br />
sua vida de “moça da cidade”.<br />
O poema “O Açude” vai se construir a partir de uma velha<br />
parede ponte imitando/os dois barrancos entre chão e chão. A<br />
parede implica limites e divide chão e chão. Os dois chãos podem<br />
representar as experiências vivenciadas pela poeta: um, sua terranatal;<br />
o outro, a vida urbana. No meio das duas experiências, a<br />
parede, que divide e controla, e que bem poderia ser lida como<br />
signo de um coração dividido entre os dois espaços: o rural e o<br />
urbano. Vejamos o soneto:
O passadiço pode significar a passagem de um tipo de vida a<br />
outro, já que na praticidade da vida, o mesmo permite que as<br />
pessoas possam fazer uma travessia por cima de uma cerca, ou<br />
seja: possam vencer barreiras, metaforicamente falando.<br />
A represança é a represa que segura as águas e balde concha, o<br />
medidor da profundidade. Trocando em miúdos: por mais que o<br />
passadiço permita a passagem da narradora de um lugar a outro<br />
(do sertão à cidade), ela sente-se presa ao lugar de origem. Todos<br />
esses fatos são enunciados como sobras de um passado distante.<br />
É a poeta no presente, sentindo-se presa às origens, revelando<br />
que as lembranças da infância permanecem vivas na mulher<br />
adulta, ainda cheia de saudades e sentindo-se só, como mostram<br />
os dois últimos versos do poema:<br />
Sobras do antigo na menina extinta:<br />
redorme na vazante a solidão.<br />
A linguagem é cristalina e se estrutura a partir dos signos<br />
açude, sangradouro e balde, apontando para a possibilidade de<br />
resgate de vivências no sertão. A poeta bebeu das águas também<br />
cristalinas de Nova Palmeira, e delas não pôde mais esquecer.<br />
O livro, inclusive, foi dedicado à sua terra-mãe. Vejamos a<br />
dedicatória:<br />
A meu avô Caçote<br />
A Nova Palmeira,<br />
terra mãe, fonte raiz,<br />
chão do meu chão.<br />
Percebe-se que as imagens do sertão utilizadas nos poemas de<br />
“O Arado” passam por um processo tão intenso de elaboração,<br />
que a terra, em alguns momentos, deixa de ser tema e passa a<br />
personagem, como nos exemplos que seguem:<br />
... Sofrida pelo arado<br />
a terra inova-se...<br />
(“Moenda”)<br />
...<br />
nervuras duma terra que desperta<br />
alucinadamente a fecundar-se...<br />
(“A Apanha”)<br />
Julho 2003<br />
O Açude<br />
A Odilon Ribeiro Coutinho<br />
Velha parede ponte limitando<br />
os dois barrancos entre chão e chão.<br />
Ao passadiço (em que montavam luas,<br />
xexéus milipousavam no mourão)<br />
a represança vinha da montante<br />
em balde concha. Sobre a levação<br />
do sangradouro retesou-se tempo<br />
de quando as águas, nos rasgando a mão.<br />
Na praia de Areia Preta (sem data)<br />
Especial/Zila<br />
Desciam na revência, verdivida<br />
amarelando cheiro de melão:<br />
eram celeiros, peixes nos maretas<br />
e em nós era ternura, era canção.<br />
Sobras do antigo na menina extinta:<br />
redorme na vazante a solidão.<br />
27
Especial/Zila<br />
Lendo, em 1949, na Praça Pedro Velho<br />
Com um grupo de amigos (1957) em Parati (RJ)<br />
28 Julho 2003<br />
A terra agora não será mais a da infância, mas a da mocidade,<br />
presente no soneto “Rua (Trairi)”. Este poema, aparentemente<br />
deslocado em relação aos outros do livro, cumpre seu papel de<br />
chamar atenção para os dois tempos da vida/poesia de Zila<br />
Mamede: a terra (o passado da poeta vivenciado no sertão) e a<br />
cidade representada pelo sal (o presente/momento da elaboração<br />
de sua poesia).<br />
Nos cubos desse sal que me encarcera<br />
(pedra, silêncios, picaretas, luas,<br />
anoitecidos braços na paisagem)<br />
a duna antiga faz-se pavimento.<br />
Meu chão se muda em novos alicerces,<br />
sob as pedreiras rasgam-se meus passos;<br />
e a velha grama (pasto de lirismo)<br />
afoga-se nos sulcos das enxadas,<br />
nas ânsias do caminho vertical.<br />
Ao sono das areias abandonam-se<br />
nesta rua vividos fantasmas<br />
de seus rios-meninos que descalços<br />
apascentavam lamas e enxurradas.<br />
Meu chão de agora: a rua está calçada.<br />
Este poema faz parte das recordações do tempo juvenil, pois a<br />
referida rua era o local onde Zila morou quando mocinha, recém<br />
chegada do sertão de Currais Novos/RN, até a época em que<br />
escreveu “O Arado”. Não é, portanto, em vão que ela constrói<br />
o poema com essa temática. São sentimentos da jovem/poeta<br />
presentificando-se no texto, através da voz memorialística.<br />
A cidade (Natal) é apresentada pela palavra sal, por se tratar de<br />
litoral, e é esse sal que encarcera a poeta. A cidade, lugar almejado<br />
anteriormente, não vai significar a liberdade tão desejada. O sal<br />
remete à penitência, misticamente falando, e é usado no batismo<br />
do cristão. Na imagem construída no poema, ele encarcera a<br />
narradora e a penitencia na medida em que a afasta da paisagem<br />
de origem, fonte de suas lembranças.
No decorrer da leitura dos poemas de “O Arado”, observa-se<br />
que a fertilização da terra e do texto são uma constante nos<br />
mesmos. Em “Rua (Trairi)” ocorre o oposto, pois o sal pode<br />
opor-se à fertilização. Nesse caso, a terra salgada pode significar,<br />
também, terra árida, endurecida. Um costume antigo e por<br />
demais conhecido em tempo de guerra, era jogar sal nas terras<br />
das cidades destruídas para tornar o solo sempre estéril.<br />
Talvez a poeta se sentisse mais segura morando numa rua de<br />
duna (terra) e não de pavimento, porque a terra a faz sentir-se<br />
mais próxima do sertão, a antiga paisagem sertaneja, do que o<br />
cimento da cidade grande.<br />
As picaretas, por sua vez, anunciam outro espaço e outro tempo:<br />
o presente da cidade moderna chegando nas ânsias do caminho<br />
vertical, em contradição com o passado. Seus passos rasgam os<br />
novos alicerces, pois estão acostumados ao chão da antiga rua<br />
(de barro, de terra). A poeta viu e sentiu o chão moldando-se<br />
do novo e trazendo o fim do espaço que estava intrinsecamente<br />
ligado à sua vida, às suas origens e, que, agora, no presente,<br />
mostra-se revestido de outro aspecto misturando o antigo e o<br />
moderno. Seus braços nada podem fazer para mudar tal situação<br />
porque se encontram anoitecidos na paisagem e inertes frente ao<br />
progresso que avassala a rua. Diante da impossibilidade de atuar,<br />
ela apenas observa e a duna antiga faz-se pavimento.<br />
Junto às mudanças por que passa a rua vai o “mundo” da<br />
poeta, o mundo em que formou seu ser e seus valores. E agora?<br />
Meu chão de agora: a rua está calçada. As mudanças exteriores<br />
provocam transformações na poeta/narradora, como se junto<br />
com a “morte” da antiga rua ela também morresse um pouco;<br />
ela, que simbolicamente já havia morrido uma vez, quando<br />
afastada do seu chão de origem: o sertão. As lembranças, que são<br />
seus vívidos fantasmas, angustiam-na, pois não está preparada<br />
para as transformações ou não as quer realmente.<br />
Nesse discurso poético sobre a rua, o “eu” decide buscar sua<br />
infância (quase) perdida. No entanto, ela vê as transformações<br />
pelas quais a rua passa e não as aceita. A rua - locus da<br />
modernidade - vai se transformando em sua multiplicidade de<br />
significados, que o eu-poético procura reler, agora, pelos fios<br />
da memória. A rua, portanto, na atualidade, é um mundo de<br />
signos, apontando para infinitas e inacabadas leituras. Espaço de<br />
possibilidades...<br />
Especial/Zila<br />
No verão de 1958, nas proximidades do SCBEU (Sociedade<br />
Cultural Brasil-Estados Unidos)<br />
Com a mãe Elídia e o sobrinho Jorácio, em 1952<br />
Julho 2003<br />
29
Título ou Tópico<br />
Os bichos<br />
30 Julho 2003
na poesia<br />
Anchella Monte (poetisa)<br />
Ilustração: Venâncio Pinheiro<br />
Há um livro – lindo! lindo! – publicado pela Bertrand<br />
Brasil (Programa Nacional Biblioteca da Escola, do<br />
Ministério da Educação, Coleção “Literatura em<br />
minha casa”) intitulado “A Poesia dos Bichos”, que reúne poemas<br />
de Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros e Thiago<br />
de Mello, tendo os animais como matéria-prima poética. O livro<br />
é encantador, pena que tão pouco volumoso, deixando ausentes,<br />
talvez por isso, dois mestres chegados também aos bichos, como<br />
Manuel Bandeira e Mário Quintana.<br />
Aproximei-me do livro por causa do projeto “A presença dos<br />
animais nos textos narrativos”, desenvolvido com meus alunos<br />
da 7ª série da Escola Municipal Professor Ulisses de Góis.<br />
Estudamos, principalmente, fábulas e crônicas, mas também<br />
poemas com enredo.<br />
A presença dos bichos é uma constante na poesia de muitos<br />
autores, quer como metáforas da própria existência humana,<br />
quer como elementos indissociáveis das paisagens da memória,<br />
afetiva (animais de estimação, animais observados, animais cujo<br />
sofrimento ou tipo de vida provocam inquietação) ou espacial<br />
(imagens ligadas à composição de um cenário).<br />
Os bichos estão também vivíssimos no trabalho de poetas<br />
do Rio Grande do Norte, do pioneiro Lourival Açucena, do<br />
tempo em que nossa cidade começava sua vida cultural, aos<br />
contemporâneos Luís Carlos Guimarães, Diógenes da Cunha<br />
Lima, Demétrio Vieira Diniz, Lisbeth Lima (e na minha poesia,<br />
por que não me incluir?), entre outros.<br />
Julho 2003<br />
31
Os bichos na poesia<br />
Nei Leandro de Castro, no “Poema da<br />
Longitude”, deixa escapar o pássaro do<br />
dicionário – somos nós quem viaja no meio<br />
de todas as texturas do azul. Sabemos que a<br />
metáfora resulta da visão interior do poeta,<br />
do emprego pessoal de uma palavra, frase ou<br />
texto. Mas essa subjetividade é igualmente do<br />
leitor, a metáfora não existirá sem os olhos<br />
nos olhos. Como não perceber, porém, neste<br />
poema, o homem-pássaro que se entrega ao vôo<br />
da liberdade, após estudar as suas possibilidades<br />
logísticas e afetivas?<br />
O pássaro/ não levanta vôo em vão./ Ele<br />
avalia na brisa imprecisa/ o peso exato do seu<br />
coração,/ e só depois viaja/ vai além,<br />
No poema “O Gato”, de Dailor Varela, o<br />
bichano sai do enquadramento da janela e se<br />
incorpora no homem:<br />
Desmistifi cada/ a liberdade do<br />
gato/ é tédio na janela.<br />
O gato, animal doméstico, ronrona entre a<br />
casa e a rua, colocando-se no limiar: a janela.<br />
Mas há sempre o salto latente em suas patas e<br />
no seu coração felino. Mas o homem – gato,<br />
domesticado, padece do tédio existencial<br />
absoluto, pois se encontra por trás da janela,<br />
consistindo a sua liberdade apenas no olhar<br />
para fora.<br />
Luiz Rabelo, em versos belíssimos, deixa<br />
mais clara a transferência de sentidos, porque<br />
o homem se torna pássaro. No entanto, na<br />
realização do poema a metáfora se expande,<br />
pois o pássaro também vai além, cresce na<br />
plenitude do amor (personificado através do<br />
vocativo) para a própria leveza:<br />
Cresceu na tarde o pássaro que<br />
fui,/ amor, tanta leveza.<br />
32 Julho 2003<br />
Em “A Última Lição”, a voz do poeta convida:<br />
Aqui é a Casa./ Seja bem-vindo./<br />
Descanse os pés./ Recolha as asas. [...]<br />
Use seus pés./ Conserve as asas.<br />
Nesse poema de Homero Homem, o ser humano torna-se<br />
híbrido, metade homem, pois a necessidade de descansar os pés<br />
sugere muito uso, e metade pássaro, o que tem asas. Ter asas<br />
implica em poder alçar vôo, daí a necessidade de conservá-las<br />
(tratar bem e mantê-las), e recolhê-las quando necessário, posto<br />
que tem os pés no chão.<br />
Em Vera Lúcia Pinto, o eu-lírico, escondido no casulo, tece asas<br />
aquecido por um olhar. O casulo, porém, e depois a borboleta,<br />
representada metonimicamente pelas asas, denuncia a presença<br />
do ser poético, do próprio eu:<br />
Casulo tanto tempo,/ Deixei-me penetrar pela<br />
luz do teu olhar,/ Pude tecer devagarinho,/<br />
Com meus sonhos,/ As mais belas asas.<br />
No poema “Corujas”, Carmen Vasconcelos pondera:<br />
Belo é não ter pátria/ Morar em entrecascas, por aí...<br />
O eu-coruja mora entre árvores, de árvore em árvore, nômade,<br />
à vontade diante da vida, tornando possíveis todos os lugares.<br />
Bicho e gente, mesmo ser.<br />
Às vezes, porém, os animais apenas povoam os campos das<br />
palavras. Mais do que o espaço capturado por um olhar sensível,<br />
a paisagem vista nos poemas resulta do que as pontua: os bichos.<br />
Da cidade ou do sertão, são eles que enchem de vida a texto que<br />
abre porteiras. Não se trata, no caso, de relacionar paisagem e<br />
estado de alma, o que ocorre é um repasse, uma transferência do<br />
estado natural para a linguagem, paisagem elaborada.
A noite fi ndou a ronda.<br />
Na aurora acesa no campo<br />
Rubro galo no horizonte<br />
Arremessou o seu canto.<br />
Este cajueiro plantado<br />
no chão de areia fi na<br />
é asa de passarinho:<br />
de pintassilgo, pardal, [...]<br />
Os dois trechos transcritos, de Luís Carlos Guimarães, dos<br />
livros “A Lua no Espelho” e “Ponto de Fuga”, basicamente<br />
descritivos, relevam a presença dos bichos: o galo que arremessa<br />
o canto, marcando o fim da noite (imagem recorrente, mas não<br />
desgastada), o papel do cajueiro não como árvore que fornece<br />
frutos, mas que abriga passarinhos.<br />
A figura do galo acolhendo a manhã também aparece em<br />
Diógenes da Cunha Lima. Nos versos do poeta o galo dá vida<br />
às cores da manhã. Os passarinhos desassossegando as árvores<br />
também surgem na poesia de Jaime dos Guimarães Wanderley:<br />
Assobiam, no arvoredo despenteado,/<br />
canários, sanhaços e sabiás.<br />
Elementos de linguagem verbal, sinônimos de leveza, liberdade e<br />
alegria, e não verbal, puro canto, nota musical transferida para o<br />
papel, multiplicam-se nos poemas os pássaros- signos:<br />
Quando ouço a juriti/ Soltar saudosa<br />
um gemido/ Saudoso, pensando<br />
em ti,/ Respondo com um ai dorido.<br />
Lourival Açucena<br />
Senhor! Consola e abençoa/ As almas simples da Terra,/<br />
Desde os sapos da lagoa/ Aos pintassilgos da serra!<br />
Henrique Castriciano<br />
Todas as tardes, sempre a mesma hora/<br />
Vem visitar-me um passarinho amigo...<br />
Palmyra Wanderley<br />
As aves abriam o vôo e voejavam/<br />
sobre as ásperas faces da manhã desnuda.<br />
Vital Correa de Araújo<br />
No claro azul da noite, em paz<br />
de ermos, solidários, passam<br />
cantando/ pássaros marinhos,<br />
à busca de pouso.<br />
Gilberto Avelino<br />
Manhã adolescente.<br />
Algazarra de pássaros cantando.<br />
Jaime dos Guimarães Wanderley<br />
Curió avoa<br />
voa<br />
Curió avoa(ante)<br />
espaços e<br />
desafi os.<br />
Carlos Humberto Dantas<br />
Os bichos na poesia<br />
Assobia o teu – viva o sol – concliz!<br />
Canta o teu lundum forte – graúna!<br />
Canta poeta – plagiador: - xexéu!<br />
Todos os pássaros são poetas neste mormaço...<br />
Jorge Fernandes<br />
No último poema, de Jorge Fernandes,<br />
os nomes dos pássaros, exclamativos,<br />
parecem movimentar o texto, para<br />
deleite do leitor, que segue os pulos dos<br />
pássaros, de verso em verso, como se em<br />
galhos de árvores.<br />
Em todos os poemas destacados, o<br />
pássaro é selo: estampa e autenticação<br />
do texto poético, relação simbiótica<br />
entre poeta e pássaro. Jorge Fernandes<br />
assevera: Todos os pássaros são poetas<br />
neste mormaço. Poderíamos dizer<br />
que todos os poetas têm um pássaro<br />
dentro de si. Ou desejam ser como eles,<br />
conforme Auta de Souza:<br />
Ah! Quem me dera só andar cantando, /<br />
Sempre criança, como os passarinhos!<br />
Julho 2003<br />
33
Os bichos na poesia<br />
A relação entre homem e bicho estreita-se<br />
em Zila Mamede, revelando comunhão,<br />
identificação plena de quem compartilha<br />
uma história de vida, resultado da integração<br />
espacial e temporal, da mesma formação como<br />
ser vivente:<br />
Era o cavalo em pêlo<br />
Em pêlo era o menino, e os dois<br />
- mais sua solidão, mais seu destino.<br />
Ainda em:<br />
Os bois assim dormindo caminhavam<br />
Destino não de bois mas de meninos<br />
Libertos que vadiassem chão de feno.<br />
O menino não é o cavalo, o boi não é o menino,<br />
mas são semelhantes, absolutamente próximos<br />
diante de tão igual existência. Cavalos e bois<br />
pastam na poesia de Zila. Também ocupam<br />
os campos textuais de Dorian Gray e Dailor<br />
Varela:<br />
Pátios com vacas / ruminando o sono/<br />
da terra: o acre-doce/ barro da terra (DG).<br />
Vacas pastam/ preguiçosa paisagem/<br />
branca e preta/ sobre o campo verde (DV).<br />
Outros bichos menores circundam e entram na<br />
paisagem poética. Em Demétrio Vieira Diniz,<br />
a lagartixa: “Melhor que olhar os pássaros/ e<br />
as borboletas/ é fitar a lagartixa/ movendo-se/<br />
entre fendas e heras/ de velhos quintais”. Em<br />
José Bezerra Gomes, os sapos e tanajuras: “Os<br />
34 Julho 2003<br />
sapos/ os cururus/ cantando/ dentro das noites/ empoçados. /As<br />
tanajuras/ Esvoaçando/ na luz/ das lamparinas. “Hamster”, em<br />
Lisbeth Lima de Oliveira: “porque os ratos de minha avó/ vivem<br />
em gaiolas, como os pássaros”.<br />
Essa estreiteza do convívio entre gente e bicho está presente<br />
no livro que encantou os meus alunos, “A Poesia dos Bichos”.<br />
A beleza que colocam no mundo (Os bichos? A poesia?) está<br />
contida no poema, “O Gavião”, de Thiago de Mello, integrante<br />
da obra:<br />
Chegava de tardinha,/ de começo desconfi ado, olhando<br />
oblíquo,/ e pousava, delicado como uma pomba, / no<br />
parapeito largo de itaúba, / ali fi cava me olhando,/ a<br />
grossura das garras me assustando,/ eu estirado na rede de<br />
tucum. [...] uma tarde chegou, fi cou me olhando/ imóvel<br />
largo tempo, depois voou,/ regressou, pousou no parapeito,/<br />
não soube me contar sua tristeza/ que me doía tanto, e então<br />
se foi,/ as asas lentas, desapareceu/ no fi m dos verdes. Nunca<br />
mais voltou.<br />
O gavião taciturno, mesmo assustando o poeta, era bem-vindo.<br />
O olhar do gavião parecia buscar um diálogo, esperado pelo<br />
outro, que não chegou a acontecer. Mas a emoção de estarem<br />
juntos eterniza-se no poema.<br />
Irmãos de reino, nós e os bichos, povoamos as mesmas plagas<br />
discursivas, e reinamos democraticamente. Não reconhecer<br />
essa irmandade implica em ficar carente de um grande prazer,<br />
como revela o espantalho de Iracema Macedo: “Meu corpo de<br />
palha seca/ nunca sentiu a volúpia dos bichos”. Aos bichos<br />
agradecemos, através da perspicácia de Manoel de Barros:<br />
Meu irmão agradeceu a Deus aquela/ permanência em<br />
árvore porque fez amizade com muitas / borboletas.
ESCRITURA POTIGUAR<br />
Alexandre Abrantes de Albuquerque nasceu em<br />
Natal em 26 de junho de 1968. Graduou-se em<br />
Engenharia Civil e Direito pela Universidade<br />
Federal do Rio Grande do Norte, onde<br />
atualmente cursa Letras. Começou a sua aventura<br />
poética em 1978, aos nove anos de idade. É<br />
membro da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins<br />
do Rio Grande do Norte. Em 2002 foi vencedor<br />
do II Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães,<br />
da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>. No mesmo ano,<br />
recebeu Menção Honrosa no Concurso Othoniel<br />
Menezes, promovido pela <strong>Fundação</strong> Capitania das<br />
Artes. Breve estará lançando o seu primeiro livro,<br />
“No coração das palavras”.<br />
Julho 2003<br />
35
Escritura Potiguar<br />
Justaposição<br />
Entre dois corpos,<br />
livros inundados<br />
de suor e metáforas.<br />
As palavras<br />
correm soltas<br />
pelas coxas;<br />
A leveza dos corpos<br />
repele o peso da vida.<br />
Mentes ultrapassam<br />
a esquina banal;<br />
voam sobre curvas,<br />
ruas sem sinal.<br />
Idéias, mundos,<br />
epiderme;<br />
corações narrando<br />
uma epopéia,<br />
ou simplesmente<br />
ouvindo<br />
a lírica do amor.<br />
36 Julho 2003<br />
Reflexos<br />
Espelhos deformam<br />
a face da verdade.<br />
Espelhos quebram<br />
a luz dos olhos<br />
desatentos.<br />
O mundo é um espelho,<br />
refletindo dados<br />
controversos<br />
na face assombrada<br />
do fazedor de castelos.<br />
E a força que ergue<br />
estruturas de concreto<br />
sobre camadas de gelo<br />
treme e não sabe<br />
de que lado penderá<br />
o céu que desaba.<br />
O mundo morre<br />
e só o amigo sobrevive.<br />
O mundo foge<br />
e só o amigo retorna.<br />
O espelho do mundo<br />
se estilhaça<br />
a cada golpe<br />
de fatuidade,<br />
mas a face do amigo<br />
permanece clara<br />
a cada raiar do dia.
Alvorada<br />
Da madrugada só tenho<br />
uma fração delirante.<br />
No resto, me perco<br />
literalmente em sonhos:<br />
nuvens carregadas de livros,<br />
versos e romances<br />
sobre a cabeceira<br />
da alma.<br />
O coração acordado<br />
procura um ninho de sossego<br />
a fim de fazer morada,<br />
mas só encontra uma bacia<br />
para guardar as lágrimas.<br />
Vendados, meus olhos<br />
vagueiam pelas aldeias<br />
dos fantasmas,<br />
poetas misteriosos.<br />
A escuridão é clara<br />
e intensa a luz<br />
dos fatos incertos.<br />
Ainda assim<br />
não tenho pressa<br />
de ver o sol,<br />
com seu primeiro viço,<br />
se enroscar<br />
por entre as frestas.<br />
Se tenho da madrugada<br />
vasta porção intrigante,<br />
a outra parte é amor,<br />
é pura nostalgia.<br />
A tela escrita<br />
Escritura Potiguar<br />
Pintar o amor que vem<br />
e brinca com as cores<br />
e abandona o quadro:<br />
eis as tintas que pincei.<br />
A espuma e a areia<br />
beijam o busto na tarde<br />
de um azul quase céu,<br />
não fosse a tristeza<br />
do despontar do crepúsculo.<br />
Os pomares vermelham<br />
as manhãs de abril<br />
quando as noivas se preparam<br />
para sofrer a parte<br />
não dourada da cumplicidade.<br />
A criança espera a promessa<br />
outra vez adiada<br />
e tão breve é o homem a correr<br />
sobre a rua cinza e áspera.<br />
Talvez nem seja sombra<br />
no próximo pôr-do-sol.<br />
Um bem-te-vi acompanha<br />
com suas retinas livres<br />
o aprisionado olhar da mãe<br />
que perdeu o filho e as noites<br />
de sublime cuidado entre<br />
brancas velas e alvas orações.<br />
O amor partiu para outro porto<br />
deixando águas pra(n)teadas<br />
a rememorar na tela<br />
o que seria desengano.<br />
Mas as cores<br />
ficaram misturadas,<br />
porque a vida<br />
não iria suportar<br />
a monotonia da reta.<br />
A última tinta da saudade<br />
ainda pulsa fresca<br />
e entre o pincel e o papel<br />
vou pintando o verso.<br />
Julho 2003<br />
37
Escritura Potiguar<br />
Estrelas<br />
Estrelas se movem<br />
sem rumo<br />
no coração do infinito.<br />
Estrelas fogem<br />
em segundos<br />
sem dó dos corações aflitos.<br />
Você e eu nada podemos<br />
contra o tempo, esse rio<br />
que nos levará<br />
para bem longe do mundo.<br />
Para onde vão as estrelas<br />
quando morrem?<br />
Não temos nada com isso,<br />
pobres trapezistas sem prumo,<br />
malabaristas desastrados,<br />
de pó correndo nas veias,<br />
riacho de sangue e vaidade.<br />
Onde anda minha estrela<br />
que se despediu à tarde?<br />
Se partiu,<br />
deixou-me a noite sem vida<br />
ou uma vida sem noites.<br />
Mas e daí?<br />
O resto está pulsando<br />
e o mundo não acabou.<br />
38 Julho 2003<br />
Submerso<br />
O meu pânico é suave,<br />
sem grito nem olhar<br />
de histeria.<br />
E essa volta do selvagem<br />
deixa-me ir sem pressa<br />
à cabeceira do rio.<br />
Ao mergulhar profundo<br />
onde só vejo<br />
o repousar das aves,<br />
após labor do dia,<br />
minha memória se deita<br />
no vão do não-pensamento,<br />
no não-compartimento da razão.<br />
E nessa lenta passagem<br />
sem que eu possa perceber<br />
tudo que longe voa,<br />
empreendo cosmo-viagem,<br />
onde figura objeto<br />
aquilo que não vejo.<br />
Esqueço o que é discreto<br />
e me envolvo nas imagens<br />
construídas na vertigem.<br />
Numa delas um ser disforme<br />
me diz que Borges<br />
mais contemplava o Belo<br />
no tempo que já não via.
CAMPO GRANDE<br />
Música de geração a geração<br />
Por Gustavo Porpino<br />
Fotos: Vlademir Alexandre<br />
Campo Grande, principal cidade do Médio Oeste, a 258 km de Natal, tem<br />
tradição musical secular. Já por volta de 1870, a “Bandinha dos Brito<br />
Guerra”, primeira banda de música de que se tem registro no município,<br />
fazia alvoradas na antiga Vila do Triunfo. A iniciação à música, antes<br />
restrita a filhos e filhas dos ilustres coronéis fazendeiros da região, foi<br />
democratizada e passou a ser herança de pai para filho. O músico Zé<br />
Pequeno e o maestro Ranieri são exemplos da cultura musical passada a<br />
cada geração.
Campo Grande<br />
A grandeza de<br />
Zé Pequeno<br />
Zé Pequeno é um homem realizado. Aos 93<br />
anos, o músico mantém a postura de quando<br />
tocava clarinete e acompanha o desempenho de<br />
três bisnetos na “Banda Monsenhor Militão”.<br />
“Trabalhei até o ano passado como barbeiro<br />
e toquei na banda até os 90 anos”, comenta,<br />
para logo a seguir recordar as origens humildes.<br />
“Minha primeira profissão era o rabo da<br />
enxada”.<br />
Zé Pequeno foi também pedreiro, barbeiro e<br />
carpinteiro. Aos 12 anos, começou a trocar o<br />
árduo ofício de cultivar o roçado por batidas no<br />
bombo. A música não demorou a conquistar o<br />
coração do menino. “Achavam que eu tocava<br />
bem”, diz sem soberba alguma. O músico faz<br />
uma pequena pausa e cita o nome de Mestre<br />
Artur e Manuel Mocó, os primeiros a ensinar a<br />
ele a arte musical.<br />
O nome Zé Pequeno, apelido herdado por ser<br />
filho de José Genoíno de Lima, o Dedinho,<br />
também conhecido como Zé Grande, não<br />
condiz com a representatividade do músico<br />
José Severo de Lima para o povo de Campo<br />
40 Julho 2003<br />
Grande. A vida de Zé Pequeno é repleta de superlativos. “Tive<br />
dez filhos, seis ainda vivos, já tenho 16 netos e 20 bisnetos”,<br />
comenta, enquanto pergunta ao filho mais novo se fez a conta<br />
certa.<br />
Antônio Idalécio, o caçula dos dez filhos de Zé Pequeno, mora<br />
com o pai na casa número 115 da rua Antônio Véras, em<br />
Campo Grande. “Ele deixou de tocar, mas continua envolvido<br />
com a banda. Chega a chorar quando a banda passa”, afirma o<br />
filho mais novo.<br />
“Só parei de tocar por ordem médica, mas me sinto bem. Só<br />
estou um pouco môco”, comenta o pai, entre uma e outra risada.<br />
Zé Pequeno não parece gostar de ser tratado como um idoso que<br />
requer cuidado especial. Anda pelas ruas sem ser amparado e não<br />
pede ajuda para dar o nó da gravata.<br />
Participou de dezenas de festas de padroeiras e carnavais, mas<br />
um em especial ele nunca esqueceu. O músico tem a resposta na<br />
ponta da língua quando perguntam sobre sua melhor lembrança<br />
durante os 78 anos que dedicou à vida de instrumentista. “O<br />
carnaval de 1940 em Areia Branca é minha melhor recordação.<br />
Era um cabra novo e namorador”, salienta.<br />
Seguindo o exemplo e a genética<br />
Anaildo da Silva, 14 anos, Anailton de Lima Silva, 17 anos, e<br />
Anailde de Lima Silva, 16 anos, iniciaram a carreira musical<br />
influenciados pelo bisavô. Anailton recebeu de presente de Zé<br />
Pequeno um dos três clarinetes usados por ele durante o tempo<br />
em que tocava na Banda Monsenhor Militão. O clarinete, feito<br />
em ébano, tem quase 60 anos de uso.<br />
Zé Pequeno, enquanto acompanha o ensaio da banda, fixa o<br />
olhar na bisneta sentada na primeira fila como se ali antevisse<br />
a sua dedicação à música sendo herdada por longos anos. O<br />
músico não fica sentado por muito tempo. Irrequieto, se levanta<br />
e observa todos os instrumentistas como se tivesse analisando o<br />
desempenho de cada um.<br />
Conhecimento não falta. Zé Pequeno já foi solista dos maestros<br />
Manuel de Oliveira (Manuel Mocó), José Pereira Jácome (José<br />
de Nataniel) e Antônio Vieira (Antônio de Pastora). Todos<br />
eles ex-regentes da banda de Campo Grande. “Em todos esses<br />
anos, sempre gostei mais de tocar “Royal Cinema” de Tonheca<br />
Dantas”, comenta, fazendo ainda uma referência ao maestro<br />
Vicente Ranieri, atual regente da banda.
“Ranieri é novo, conhece de música e gosta<br />
muito do que faz”, salienta. Zé Pequeno<br />
destaca que quase todos os músicos da cidade<br />
foram formados por Ranieri. “Campo Grande<br />
tem duas bandas, mas os músicos quase todos<br />
foi ele quem fez”.<br />
O maestro também reconhece a grandeza do<br />
legado de Zé Pequeno. Ranieri lembra que,<br />
ainda menino, Zé Pequeno seguia para Paraú<br />
na garupa do cavalo para tocar bombo. “Zé<br />
Pequeno é um patrimônio cultural que temos”,<br />
sintetiza. O interesse dos jovens da cidade em<br />
seguir a carreira de músico continua vivo. Disso<br />
ninguém duvida.<br />
O retorno de um<br />
vencedor<br />
Regente Vicente Raniere<br />
A Serra do Cuó é testemunha do esforço dos<br />
36 músicos da “Banda de Música Monsenhor<br />
Militão Benedito de Mendonça” em manter<br />
viva a tradição musical de Campo Grande.<br />
A banda, vinculada a Associação e Escola de<br />
Música Francisco Soares Filho, poderia ter<br />
sido extinta não fosse a dedicação do maestro<br />
Vicente Ranieri de Aquino Soares, 38 anos,<br />
neto de Laudemiro Soares, o Birico, ex-músico<br />
e compositor. Os instrumentistas chegaram a<br />
atravessar uma fase crítica de 1983 a setembro<br />
de 1989 por não terem regente para assumir<br />
sua direção.<br />
Vicente Ranieri, regente formado pela escola<br />
de música da UFRN, não só aceitou o desafio<br />
como iniciou a formação de uma nova safra de<br />
solistas. “A procura hoje é sempre maior que a oferta de vagas na<br />
banda”, atesta. O filho do maestro, Mateus Daniel, 7 anos, já<br />
ensaia os primeiros acordes com a flauta doce e o trumpete.<br />
O maestro estudou muito antes de voltar a Campo Grande para<br />
assumir a regência da banda. Aos 14 anos já era aluno da antiga<br />
Escola de Música da UFRN, ainda instalada na Praça Cívica,<br />
e tocava clarinete na banda de música do colégio Winston<br />
Churchill. “Comecei a tocar clarinete na 7ª série, aprendendo<br />
com major Lourival Cavalcanti”, recorda.<br />
“Também fiz muitos cursos de teoria musical, regência e harmonia<br />
pela <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>”, diz, destacando a oportunidade<br />
em ter participado do 1º Painel para Instrumentistas e Mestres<br />
de Bandas de Música, ministrado em novembro de 2000 por<br />
Roberto Farias, mestre da Banda Sinfônica do Estado de São<br />
Paulo.<br />
O maestro também não esconde a gratidão com o empresário<br />
Antônio Gentil de Souza, natural de Campo Grande e patrono<br />
da banda Monsenhor Militão. “O baluarte maior é Antônio<br />
Gentil. Ele é o nosso braço forte, sem ele a banda já tinha<br />
fechado”, salienta. A banda conta ainda com o apoio de 25<br />
associados. “Cada associado paga uma mensalidade de 10<br />
reais, mas é um sufoco grande. Começamos com mais de 70<br />
associados”, ressalta.<br />
“Saudades de minha terra”<br />
Campo Grande<br />
Vicente Ranieri já compôs onze dobrados, cinco valsas<br />
instrumentadas e também marchas solenes, frevos e maxixes.<br />
“Podemos tocar uma festa de padroeira só com composições<br />
minhas”, diz, salientando que o dobrado mais tocado pela banda<br />
é “Saudades de Minha Terra”, obra do maestro Estevam Guerra,<br />
composta em 1907.<br />
“Quase toda banda no país toca o dobrado do maestro Estevam<br />
Guerra. Existe até uma polêmica. Alguns dizem que “Saudades<br />
de Minha Terra” é de Isidoro de Castro ou de Tonheca Dantas,<br />
mas temos comprovação que este dobrado foi enviado do Pará<br />
por Estevam como despedida de sua terra natal”, explica.<br />
Documentos do Centro Cultural Cleto de Souza contam que<br />
Estevam Protomarte de Brito Guerra, filho do maestro Basílio<br />
de Brito Guerra, foi regente da banda de Campo Grande entre<br />
1904 e 1906, quando foi morar no Pará fugindo de uma grande<br />
seca que atingiu o município. Estevam ao saber que estava com<br />
tuberculose, na época uma doença sem cura, teria composto<br />
“Saudades de Minha Terra” em homenagem a Campo Grande.<br />
Um tributo perpetuado pela música.<br />
Julho 2003<br />
41
Campo Grande<br />
Do erudito ao popular<br />
A profusão de músicos em Campo Grande<br />
é tanta que fez surgir a Filarmônica Maestro<br />
Antonio da Pastôra, fundada em 26 de julho<br />
de 2000, em homenagem ao maestro Antonio<br />
Vieira, regente da banda de Campo Grande<br />
entre 1966 e 1982. O regente Francisco Vieira<br />
Fernandes, o Chico Vieira, 33 anos, é segundo<br />
sargento da polícia militar em Natal, mas vai a<br />
Campo Grande duas vezes por mês para ensaiar<br />
a Filarmônica.<br />
O filho de Chico Vieira, Fernando Carlos<br />
Moura Vieira, 7 anos, acompanha as<br />
apresentações da banda e faz valer a tradição<br />
de fazer a paixão pela música uma herança.<br />
“Meu filho já é doidinho por música”, destaca<br />
o regente.<br />
Campo Grande já chegou a ter uma terceira<br />
banda, a Filarmônica Manuel de Oliveira,<br />
em homenagem ao maestro Manuel Mocó,<br />
mas a banda foi desativada por dificuldades<br />
financeiras. “A Banda Monsenhor Militão não<br />
comporta todos os músicos”, salienta Chico<br />
Vieira.<br />
A Filarmônica Antonio da Pastôra tem 30<br />
instrumentistas, quase todos ex-alunos do<br />
maestro Vicente Ranieri. O repertório da<br />
banda vai do erudito ao popular. “Tocamos<br />
jazz, blues e também forró. Fazemos um estilo<br />
mais popular, mas não deixamos de tocar os<br />
dobrados e valsas de Felinto Lúcio Dantas,<br />
Tonheca Dantas, Antonio da Pastora e Manoel<br />
Mocó”.<br />
42 Julho 2003<br />
As duas bandas de Campo Grande desfilam nas alvoradas festivas<br />
pelas ruas da cidade. Chico Vieira, aluno do 2º período do curso<br />
de regência do Instituto de Música Waldemar de Almeida, não<br />
nega a necessidade de agradar o público com músicas mais<br />
populares. “Sempre abrimos com valsas e dobrados e depois vem<br />
o repertório mais popular”, comenta.<br />
A união das duas bandas fortalece a cultura de Campo Grande e<br />
oferece mais oportunidades aos músicos do médio oeste. Chico<br />
Vieira enfatiza que “a origem de 80% dos instrumentistas é da<br />
banda Monsenhor Militão” e destaca a importância do apoio<br />
mútuo. “Nunca deixamos de prestigiar a outra banda”. E assim,<br />
unidas, as bandas Monsenhor Militão e Antônio da Pastora<br />
seguem em frente, perpetuando a tradição musical de Campo<br />
Grande.<br />
Empresário dá o exemplo<br />
A Associação e Espaço Cultural Cleto Souza, criada em julho<br />
de 1996, é um convite ao saber. Logo na entrada, o visitante<br />
depara com um livrinho com os dizeres - “Queremos lembrar<br />
aos nossos visitantes, que o importante não é a sua assinatura no<br />
livro de visitas e sim a leitura que você faz em uma das obras que<br />
temos. Portanto leia, leitura é cultura”.<br />
Neuraci Vieira Albuquerque<br />
Livros para enriquecer o conhecimento dos visitantes não<br />
faltam. O acervo inicial de 350 volumes evoluiu para 4700 obras<br />
entre clássicos da literatura, enciclopédias e livros didáticos. O<br />
espaço cultural funciona no antigo escritório de Cleto de Souza,<br />
tabelião, músico e poeta natural de Campo Grande. O ambiente<br />
abriga também três computadores utilizados em aulas de<br />
iniciação à informática.
A vice-presidente do Espaço Cultural Cleto<br />
de Souza, a professora aposentada Neuraci<br />
Vieira Albuquerque, explica que o trabalho<br />
na Associação não está restrito à administração<br />
da biblioteca. “Ajudamos pessoas que querem<br />
aprender a trabalhar através de cursos de<br />
bordado, ponto de cruz e outros”, destaca.<br />
“A entidade tem por objetivo promover a arte<br />
e a cultura e fomentar novas oportunidades de<br />
desenvolvimento local”, acrescenta o empresário<br />
Antônio Gentil de Souza, presidente de honra<br />
da Associação. Gentil lembra ainda o objetivo<br />
de manter um acervo com um livro para cada<br />
habitante.<br />
Os estudantes da Escola Estadual Adrião<br />
Melo estão entre os principais freqüentadores<br />
do espaço cultural. Agnaldo Nogueira de<br />
Paula Oliveira, 20 anos, estudante do 3º ano,<br />
freqüenta a biblioteca desde que deixou há dois<br />
anos o sítio Caiana, na área rural de Campo<br />
Grande, e foi morar na cidade. “É um espaço<br />
de estudo e lazer. Temos acesso às revistas e<br />
jornais para nos atualizarmos com o mundo”,<br />
destaca. Agnaldo tem vontade de fazer o curso<br />
de informática oferecido pela Associação, mas<br />
não tem condições de arcar com a mensalidade<br />
de R$ 25,00.<br />
O Museu Donatila Jácome, esposa de Cleto<br />
Souza, também faz parte da Associação e<br />
Espaço Cultural Cleto Souza. O destaque do<br />
acervo são os móveis antigos e um oratório<br />
que pertenceu a Dona Miliana, esposa de Zé<br />
Pequeno. Os prédios do espaço cultural e do<br />
museu são anexos, localizados em frente ao<br />
largo da matriz de Nossa Senhora Sant’ana,<br />
construída em 1756.<br />
Espaço Cultural Cleto de Souza<br />
Praça João do Vale<br />
Rua João Roberto, 364<br />
Campo Grande (RN)<br />
A igreja de Campo Grande é<br />
apontada como a segunda maior<br />
do interior do Estado e abriga<br />
uma imagem centenária de Nossa<br />
Senhora de Sant’ana, restaurada<br />
pela <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>.<br />
O padre holandês Pedro Neefs,<br />
pároco em Campo Grande desde<br />
1979, tem feito um trabalho<br />
paroquial voltado para o trabalho<br />
e a educação política. “Envolver o<br />
povo em seu próprio destino” tem<br />
sido uma das missões do vigário.<br />
Padre Pedro conseguiu verba da Holanda para construir o<br />
prédio da Cooperativa Sertão Verde de Apoio a Agricultura<br />
Familiar, sede da Associação Comunitária dos Artesãos de<br />
<strong>Augusto</strong> Severo, antigo nome da cidade de Campo Grande. O<br />
surgimento da Associação beneficiou o trabalho das rendeiras e<br />
pequenos artesãos.<br />
Pelas mãos de Dona<br />
Tiquinha, a Tiquinha<br />
de Zé do Gato, nascem<br />
rendas de formas perfeitas.<br />
Um pano de bandeja da<br />
renda renascença, também<br />
conhecida como irlandesa,<br />
chega a levar mais de um<br />
dia para ser feito.<br />
Campo Grande<br />
Julho 2003<br />
43
Campo Grande<br />
Um poeta nas<br />
ondas do rádio<br />
Teatro, música e poesia fazem parte da vida de<br />
José Régis de Melo, o Zé Régis, 47 anos, desde<br />
o tempo em que morava na Fazenda Recreio,<br />
na zona rural de Campo Grande. Apaixonado<br />
por sua terra natal, o poeta, escritor e radialista<br />
divide seu tempo entre o estúdio da FM<br />
Independência, dirigida por ele, e a redação de<br />
textos para peças de teatro.<br />
A literatura de cordel está presente nas 13<br />
representações teatrais escritas por ele. “A<br />
donzela proibida” e “O casamento da inflação”,<br />
apresentadas no “Movimento Escambo”, estão<br />
entre as de maior destaque. A curiosidade<br />
e o espírito de comunicador sempre o<br />
acompanharam.<br />
O radialista conta das vezes em que “procurava<br />
as pessoas mais idosas para buscar histórias,<br />
sempre anotando o que elas falavam”. Zé Régis<br />
chegou a escrever um livro de 120 páginas<br />
sobre a história de Campo Grande, mas nunca<br />
conseguiu a publicação.<br />
“Já publiquei um livro de poesias, “Registro de<br />
um tempo”, mas a história de Campo Grande<br />
há três anos tento publicar”, comenta. Zé Régis<br />
acredita que a interiorização dos investimentos<br />
com a cultura irá possibilitar a edição do livro.<br />
A história do município não é o único trabalho<br />
de resgate cultural desenvolvido por ele.<br />
O comunicador comanda na Rádio<br />
Independência um programa de serestas<br />
relembrando as músicas antigas de artistas<br />
esquecidos pelas gravadoras. “Toco Nelson<br />
Gonçalves, Agnaldo Timóteo e outros. Quase<br />
não consigo fazer o programa de tantos<br />
telefonemas”.<br />
44 Julho 2003<br />
A Vida do Sertanejo<br />
A alegria do sertanejo<br />
É quando a chuva cai no chão<br />
Pra cuidar da plantação<br />
E tomar banho de riacho<br />
Colher dos braços<br />
O milho e o feijão<br />
Sua mulher Filomena<br />
De vestido cheio de renda<br />
Lhe espera ao anoitecer<br />
Vendo o marido correr<br />
Cansado e suado<br />
Fazendo o que comer<br />
Alimenta a família<br />
De muitos filhinhos<br />
Uns mais gordos<br />
Outros magrinhos<br />
Uns cheio de lombrigas<br />
Mas muito feliz da vida<br />
Ainda acha que são pouquinhos<br />
Quando a noite chega<br />
Chama a muié pra dormir<br />
Dizendo ô qui beleza<br />
Minha quirida Fí Fí<br />
Ta fazendo um frio danado<br />
Tire o vistido rendado<br />
Prumode nóis ir<br />
E assim o tempo passa<br />
Naquela brincadeira<br />
A casa não tem espaço<br />
Nas noites sertanejas<br />
Dorme na sala dorme no quarto<br />
Dorme em cima dorme embaixo<br />
Dorme até na cumieira<br />
Zé Régis<br />
Música ruim não toca<br />
O Canal Cultural é uma rádio diferente. “Priorizamos a música<br />
de qualidade e promover a cultura. São proibidas músicas que<br />
têm conteúdo banal ou pornográfico”, garante Fábio Fernandes,<br />
21 anos, diretor de programação da emissora. Fábio é artista<br />
circense há oito anos e planeja reativar o grupo de teatro de rua<br />
“Big Show”. “Pretendemos participar do Movimento Escambo<br />
em <strong>Janduís</strong>, vamos reativar o grupo”, confirma Francisco<br />
Antônio da Silva, diretor da rádio.
<strong>Janduís</strong><br />
O palco é a rua<br />
Por Gustavo Porpino<br />
Fotos: Vlademir Alexandre<br />
<strong>Janduís</strong>: Município, 1963,<br />
desmembrado de Caraúbas. De<br />
nhandu-i, a ema pequena, o<br />
corredor, o veloz. Os indígenas<br />
<strong>Janduís</strong>, da raça Tarairiú,<br />
tomaram essa denominação<br />
do nome do chefe, guerreiro<br />
poderoso, aliado aos holandeses,<br />
Janduí, Janduim, Jandovius,<br />
Jan du wy. A ema seria o totem<br />
da tribo. No escudo holandês do<br />
Rio Grande do Norte, concedido<br />
em 1639 pelo Conde de Nassau,<br />
figura uma ema, com o dístico<br />
Velociter, suficientemente<br />
esclarecedor. (Luís da Câmara<br />
Cascudo, em “Nomes da Terra”)
<strong>Janduís</strong><br />
<strong>Janduís</strong> à luz do dia<br />
É verde sempre verde<br />
O sol não rouba a paz de ninguém<br />
O sol não sabe quem é quem<br />
Além do mais ou do nada<br />
Todos merecem raios e trovoadas<br />
<strong>Janduís</strong> <strong>Janduís</strong><br />
Esta cidade tão pequena<br />
Com problemas de um país<br />
Iluminada pela luz das algarobas<br />
Verdes sempre verdes<br />
Resta agora decidir<br />
Matar a sede que nos mata<br />
E nos arrasta<br />
Para uma arena desigual<br />
Onde o boi é o bandido<br />
E a platéia o oprimido<br />
No varal.<br />
Ray Lima, poeta paraibano, autor de<br />
“Nhandupoiema”<br />
46 Julho 2003<br />
Heróis da resistência<br />
“Alecrim, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser<br />
semeado. Foi meu amor que me disse assim, que a flor do campo<br />
é o alecrim”. A cantiga popular anuncia a chegada da Ciranduís<br />
pelas ruas de <strong>Janduís</strong>. O palhaço Berg comanda o cortejo<br />
fazendo a alegria de dezenas de crianças. O Grupo Ciranduís,<br />
fundado pelo professor e<br />
poeta Josivan Melo da Silva<br />
em 21 de abril de 1993, é o<br />
único sobrevivente dentre os<br />
vários grupos de artes cênicas<br />
que um dia fizeram a cidade<br />
ser a capital potiguar do teatro<br />
de rua. Se sobreviver fazendo<br />
teatro na capital já é difícil,<br />
imaginem em <strong>Janduís</strong>, no<br />
médio oeste potiguar, a 270<br />
km de Natal.<br />
Palhaço Berg comanda o espetáculo;<br />
embaixo, Berg na torre da Matriz<br />
O grupo Ciranduís, junção das palavras Ciranda e <strong>Janduís</strong>,<br />
evoluiu para Companhia Cultural <strong>Janduís</strong> em 1999, passando de<br />
oito a quatorze componentes<br />
em menos de dois anos. O<br />
coordenador do movimento,<br />
o poeta e ator Lindemberg da<br />
Silva Bezerra (Berg), 21 anos,<br />
explica que a intenção foi<br />
criar uma ONG para “levar<br />
cultura e educação à grande<br />
massa que não tem acesso<br />
aos teatros”. O trabalho<br />
voluntário do grupo tem<br />
agradado, principalmente,<br />
às crianças e adolescentes de<br />
<strong>Janduís</strong>.
As crianças são a razão da existência da<br />
companhia. Sem elas, o grupo provavelmente<br />
teria sucumbido por falta de apoio. “Ema<br />
Ligeira”, “Nhanduí”, “Emanduís” e o “Grupo<br />
de Palhaços Filhos do Sol” também já tentaram<br />
levar um pouco de alegria para as crianças<br />
da comunidade. Não resistiram ao tempo. A<br />
Ciranduís herdou alguns membros dos antigos<br />
grupos de teatro e segue em frente convivendo<br />
com as dificuldades. “Só resta a Ciranduís, mas<br />
artistas temos muitos”, destaca Lindemberg.<br />
A disciplina da Ciranduís é rígida. A rotina do<br />
grupo lembra a de soldados de um quartel. A<br />
maioria já está de pé às 5h30 da manhã para<br />
fazer exercícios físicos. Novos componentes<br />
são aceitos, mas precisam ter comportamento<br />
exemplar e compromisso com a comunidade.<br />
“Preparo físico é importante para enfrentarmos<br />
um cortejo”, explica Lindemberg.<br />
O cortejo inicia na sede provisória da<br />
companhia, na rua Adrião Fernandes, passando<br />
em frente à Escola Estadual Vicente Gurgel,<br />
à praça e igreja Santa Terezinha. O trajeto<br />
contempla também as ruas com casas mais<br />
humildes de <strong>Janduís</strong> até chegar no “Vaporzão”,<br />
prédio que recebeu este nome por soltar a<br />
fumaça de uma antiga usina de beneficiamento de algodão. O<br />
Vaporzão foi a primeira sede da Ciranduís.<br />
“Iniciamos no Vaporzão e temos planos de ter uma sede própria.<br />
Já temos um terreno de 35 por 20 metros”, conta Lindemberg. A<br />
sede provisória da Companhia Ciranduís, uma casa com apenas<br />
um cômodo, é alugada pela Prefeitura.<br />
A simplicidade das instalações da sede não preocupa os atores.<br />
A Companhia prefere seguir o estilo de teatro da Idade Média,<br />
quando as trupes mambembes percorriam a Europa fazendo<br />
apresentações de artes cênicas. “Buscamos levar ao público a<br />
conscientização política utilizando trechos da poesia matuta de<br />
Patativa do Assaré e outros”.<br />
A preocupação em manter a população consciente sobre o<br />
que está acontecendo na região levou o grupo a criar também<br />
o programa “Recordes Culturais”. Todas as manhãs de sábado<br />
das 8h às 10h, os quatro alto-falantes da igreja Santa Terezinha<br />
transmitem o informativo com as notícias de interesse da<br />
comunidade. “A rádio mais próxima fica em Caraúbas”, salienta<br />
Lindemberg, justificando a importância do noticiário para a<br />
população.<br />
A atuação da Companhia Ciranduís não está restrita a <strong>Janduís</strong>.<br />
O grupo já desenvolveu oficinas de teatro, dança e capoeira em<br />
Messias Targino e diversas campanhas na zona rural de <strong>Janduís</strong> e<br />
Campo Grande. As campanhas levam às comunidades carentes<br />
informações, em linguajar simples e utilizando representações<br />
dramáticas, sobre prevenção a AIDS, higiene<br />
bucal, combate ao fumo e ao mosquito da<br />
dengue.<br />
Os textos teatrais montados são simples e vão<br />
sempre ao encontro dos problemas enfrentados<br />
pela população. “O Bode que pegou AIDS” e<br />
“As aventuras de Billy The Kid”, apresentados<br />
entre 1996 e 1999, até hoje são lembrados<br />
pela comunidade. “O texto de Billy The Kid<br />
não tinha pra ninguém, foi apresentado até<br />
em Upanema, Alexandria, Catolé do Rocha,<br />
Iracema e Aracati”, recorda.<br />
Julho 2003<br />
<strong>Janduís</strong><br />
47
<strong>Janduís</strong><br />
A Companhia Ciranduís vai além da arte de<br />
representar na rua. O teatro democrático do<br />
grupo educa, conscientiza e faz acreditar numa<br />
<strong>Janduís</strong> tão irrequieta quanto aquela que um<br />
dia acolheu vários grupos teatrais. Atores e<br />
poetas não hão de faltar.<br />
Apresentação em frente ao “Vaporzão”<br />
O moleque-palhaço-poeta<br />
O professor Valdécio Fernandes Rocha conhece<br />
Lindemberg da Silva Bezerra como ninguém.<br />
“Berg é acima de tudo o moleque-palhaçopoeta<br />
que tem as mesmas características do<br />
“Severino Retirante” descrito por João Cabral<br />
de Melo Neto em “Morte e Vida Severina”,<br />
descreve na página final do livro “Meu Lugar”,<br />
primeira obra poética de Lindemberg.<br />
De sua formosura<br />
Já venho dizer<br />
És um menino magro<br />
De muito peso não é<br />
Mas tem o peso do homem<br />
De obra de ventre de mulher<br />
48 Julho 2003<br />
“Minha poesia vem do Maracanaú”, diz o coordenador da<br />
Companhia Ciranduís, fazendo uma referência ao sítio,<br />
em Campo Grande, onde nasceu. Os poemas escritos por<br />
Lindemberg expressam romantismo e paixão, mas também<br />
guardam lugar para a revolta com a corrupção e o sofrimento do<br />
homem do campo. Berg já faz planos para publicar um segundo<br />
livro. “Desta vez quero escrever um livro de contos. Já estou<br />
preparando”, avisa.<br />
A Seca<br />
A Seca do Nordeste<br />
Maltrata o agricultor<br />
Já o clima do Agreste é<br />
A favor da agricultura<br />
A Seca do Nordeste<br />
Traz desespero e dor<br />
Faz a migração de conterrâneos<br />
Fugindo do grande calor<br />
No meio da grande seca<br />
Atravessamos fugindo da fome<br />
Com poesias, versos e alegria<br />
Despertando a fome de quem come<br />
Meu método da seca<br />
É viver na poeira<br />
Incentivando e ajudando<br />
A quem segue essa carreira<br />
Lindemberg Bezerra
“Precisamos ter mais chances”<br />
Atriz e dançarina Ivaneide Gurgel (ao centro)<br />
Ivaneide Gurgel, 18 anos, tem o semblante da esperança.<br />
A atriz e dançarina da Companhia Ciranduís exemplifica o<br />
esforço dos jovens de <strong>Janduís</strong> em ver seu talento reconhecido.<br />
“A sociedade ainda vê o teatro de forma diferente. Parte<br />
da população reconhece, mas é discriminado por outros”,<br />
comenta, deixando escapar um ar de tristeza com aqueles<br />
que consideram o teatro uma atividade supérflua.<br />
“Buscamos a mudança de consciência da comunidade através de<br />
nosso trabalho”, destaca. Ivaneide pensa em seguir carreira como<br />
atriz e lamenta a falta de oportunidades de estudo. “Sou muito<br />
realista, mas o meu sonho é fazer uma universidade de teatro”.<br />
A dançarina da Ciranduís faz apresentações de bolero e forró<br />
tradicional. A única oportunidade que teve de estudar artes<br />
cênicas foi há quatro anos, em Mossoró, como participante<br />
de uma oficina do “Auto da Liberdade”. “Precisamos ter mais<br />
chances”, diz, lembrando que a Companhia Ciranduís reivindica<br />
um intercâmbio entre grupos de teatro do interior e Natal.<br />
O sertão quer chegar ao mar<br />
Os poetas Josivan Melo da Silva, 35 anos, fundador do Grupo<br />
Ciranduís, e Daniel Joaquim Roberto, 37 anos, têm em comum<br />
o sentimento de revolta com a desigualdade social e a preferência<br />
por poemas críticos.<br />
Josivan Silva, conhecido em <strong>Janduís</strong> pelo pseudônimo de<br />
J. Rhuann, publicou “Do Sertão ao Mar”, livro de poemas<br />
que segundo o autor reflete a necessidade de levar a cultura<br />
popular à capital. Daniel Roberto, vencedor do concurso<br />
nacional de poesia da revista Brasília, em<br />
2000, escreveu “Alento a um Povo”, mas<br />
está em busca de apoio para publicação.<br />
“A minha poesia busca retratar as questões<br />
sociais e a realidade do nosso povo sertanejo,<br />
que ainda hoje, sofre discriminação, vive<br />
humilhado e explorado pelo poder dominante<br />
da burguesia”, costuma dizer J. Rhuann. O<br />
professor e poeta já tem um segundo livro para<br />
publicação, “Ironia de Poesia”, uma série de<br />
poemas críticos sobre questões sociais.<br />
“A poesia sou eu, é você, são aqueles que lutam<br />
por uma sociedade mais justa, onde a poesia<br />
não chegar vai restar a ironia”, diz, justificando<br />
a escolha do título. J.Rhuann também<br />
dedica parte do seu tempo ao “Movimento<br />
Escambo”.<br />
O poeta lembra a importância do “Escambo”,<br />
encontro de grupos de teatro de rua, idealizado<br />
em <strong>Janduís</strong>. “Os grupos “Alegria Alegria”<br />
e “Escarcéu de Mossoró” já tiveram aqui<br />
no Escambo, é bom para ganharmos mais<br />
experiência”.<br />
O próximo “Movimento Escambo” será<br />
realizado em <strong>Janduís</strong> de 8 a 11 de agosto.<br />
“Minha formação vem da vivência do cotidiano<br />
e do Movimento Escambo”, lembra. “Cultura<br />
transforma, mas não é prioridade. Sem cultura<br />
não há memória e amanhã o próprio gestor será<br />
esquecido”.<br />
Poeta J. Rhuann<br />
Julho 2003<br />
<strong>Janduís</strong><br />
49
<strong>Janduís</strong><br />
O poeta Daniel Roberto é ainda mais envolvido<br />
com temas sociais. “Prefiro escrever poemas<br />
críticos mostrando a realidade social e metendo<br />
o pau na burguesia”, comenta, sem esconder<br />
a falta de interesse pela poesia romântica.<br />
“Nada de poemas de amor”, sentencia em tom<br />
ríspido.<br />
Independentes ou<br />
sobreviventes?<br />
Somos<br />
Pobres diabos bonecos<br />
Jogados iludidos patéticos<br />
Caretas simplórios ingênuos<br />
Brasileiros.<br />
Final de século<br />
Final de milênio.<br />
50 Julho 2003<br />
Muro de Berlim<br />
Muro decadente.<br />
Será que somos independentes ou<br />
Na verdade, sobreviventes?<br />
J.Rhuann<br />
BRASIL...<br />
De tédios e manias<br />
fraudes, fome e fantasias<br />
de moda, melodrama<br />
medo e melancolia.<br />
Brasil de sem teto<br />
dos sem terra<br />
de omissos e espertos.<br />
Brasil que amo<br />
que muitos desamam<br />
de políticos que enganam.<br />
Brasil de discursos e teoria.<br />
Fome e agonia.<br />
Daniel Roberto
Esculpindo a fé<br />
Hamilton Ferreira de Lima, 19 anos, estudante<br />
e devoto de Nossa Senhora da Conceição,<br />
busca inspiração para suas esculturas lendo<br />
livros de história geral e a Bíblia. O gosto pelas<br />
artes plásticas começou aos 10 anos, quando<br />
aprendeu a ler na escola Daniel Gurgel. “A<br />
primeira escultura que fiz era uma mulher com<br />
trajes da década de 20”, recorda.<br />
A família de Hamilton tem dotes artísticos. O<br />
irmão Aldair faz parte do grupo de capoeira<br />
da Ciranduís e o outro irmão, Marcos Lima, é<br />
cantor. “Meu interesse maior é pela arte sacra,<br />
estou pensando em fazer um presépio para a<br />
igreja este ano”, destaca.<br />
O paraíso dos mocós<br />
Julho 2003<br />
<strong>Janduís</strong><br />
O nome é fazenda Cangaíra, lugar de sombras, mas poderia<br />
se chamar museu tamanho é o valor histórico dos objetos e<br />
mobília do casarão do início do século passado. Paulo Targino,<br />
proprietário, gosta mesmo é de mostrar a abundância de mocós<br />
correndo entre as caraíbas e subindo os rochedos.<br />
A fazenda, antiga morada de João Praxedes, foi adquirida por<br />
Messias Targino da Cruz em 1934. Pelos cômodos espaçosos<br />
do casarão já passaram os ex-governadores José Varela, Sílvio<br />
Pedrosa, Dix-Sept Rosado e Aluízio Alves.<br />
“Temos entre 8 a 10 mil mocós por aqui, sem exagero”,<br />
destaca Targino. “É um bicho em extinção”, salienta. O mocó<br />
assemelha-se com o preá, mas é maior e possui a cabeça mais<br />
comprida. O sertanejo considera a carne do mocó mais nobre<br />
que a do preá. O queijo de coalho, seguindo sua receita original,<br />
era feito com o coalho do mocó. Os principais predadores do<br />
animal são raposa, águia, teju e cobras.<br />
51
Esse estranho<br />
“Beijo” (Mármore - 1932). Victor Brecheret.
magnetismo<br />
Gustavo de Castro (jornalista)<br />
“O amor é um nó no qual se amarram,<br />
indissoluvelmente, destino e liberdade”.<br />
Quando o destino, os deuses ou a liberdade<br />
unem duas pessoas, eis aí o que poderíamos<br />
chamar de “estranho magnetismo”, essa feliz<br />
expressão usada pelo poeta mexicano Octávio<br />
Paz para sugerir que o encontro amoroso não<br />
é apenas um mero encontro, mas uma trama<br />
secreta do destino, do tempo e do próprio<br />
coração. Quando duas pessoas começam a se<br />
aproximar sem saber ao certo por que isso está<br />
acontecendo, motivadas talvez por uma força<br />
ainda incompreendida, uma força, quem sabe,<br />
radicada nos limites do desconhecido, que<br />
nome, rótulo ou classificação poderíamos dar<br />
ao que move esse encontro? Talvez, no amor,<br />
devemos deixar um espaço reservado para o que<br />
excede os limites da lógica. Aquela dimensão<br />
das ações e das decisões humanas que tomamos<br />
sem saber. Talvez o amor devesse ser explicado<br />
também a partir dos limites do sobrenatural,<br />
afinal, como dizem os místicos, o sobrenatural<br />
é apenas o natural não explicado.<br />
Será que podemos explicar racionalmente tudo o que nos<br />
acontece a nível sentimental? Em busca desta resposta, o poeta<br />
mexicano percorreu boa parte da literatura ocidental sobre o<br />
assunto (Apuleio que narra a história de Eros e Psiqué, os poemas<br />
de Safo, Denis de Rougemount e seu “L’amour et l’Occident”, o<br />
amor provençal, o amor cortês, Tristão e Isolda, Ovídio, Virgílio,<br />
Platão, Dante, Petrarca, entre outros) e também alguns livros da<br />
literatura oriental (o chinês Tsao Tchan e seu “Hung lou meng”<br />
ou o “Sonho do pavilhão vermelho” e o japonês Murasaki<br />
Shikibu que escreveu “História de Genji”, entre outros). Na<br />
sua busca, Paz encontrou uma diferença marcante na concepção<br />
literária de amor entre o Oriente e o Ocidente. No Ocidente,<br />
diz ele, o amor é filho do sentimento poético e da filosofia, é<br />
pensado primeiramente por Homero, Empédocles e Platão,<br />
enquanto que no Oriente o amor foi vivido e pensado dentro dos<br />
limites da religião, sendo uma confirmação dos ensinamentos do<br />
taoísmo e do budismo.<br />
No Oriente, o amor é um destino imposto desde o passado.<br />
Mais exatamente, é um karma ou o resultado de nossas vidas<br />
anteriores que, no presente, visam de alguma forma ajustaremse.<br />
No Ocidente, o amor é um destino livremente escolhido<br />
e, por mais que haja a influência da predestinação, há, na<br />
concepção ocidental de amor, a idéia de autonomia e escolha.<br />
Nas duas tradições, contudo, o amor possui valor de culto,<br />
sendo que tanto a literatura ocidental quanto a oriental narram<br />
Julho 2003<br />
53
Esse estranho magnetismo<br />
o amor como uma “escola de desenganos”, destino, “busca da<br />
felicidade” e como “caminho de ascensão até a beleza”. O ponto<br />
de interseção na noção de amor no Oriente e no Ocidente<br />
aparece então neste nó entre destino e liberdade.<br />
Esse nó magnético que arrebanha corações ocidentais e orientais,<br />
possui em sua natureza raios sinergéticos que ampliam-se em<br />
todas as direções. Na poesia e na literatura, a meu ver, esses raios<br />
parecem ganhar um valor complementar, pois testemunham<br />
a capacidade humana de relatar a experiência, a sabedoria e a<br />
força desse magnetismo às vezes em poucas linhas. Um exemplo<br />
singular do que falo está no conto “Uma segunda oportunidade”,<br />
do jornalista José Eduardo Agualusa. Em seis parágrafos, ele<br />
narra uma fascinante história de amor de um colega seu do<br />
Instituto Superior de Agronomia. Essa capacidade de síntese em<br />
literatura pode ser responsável às vezes pela ampliação de noções<br />
e conceitos, justamente por trabalhar ao nível da metáfora.<br />
Vejamos então se isso se aplica na metáfora de amor como ‘raio’,<br />
utilizada pelo jornalista. A história contada por ele é a seguinte:<br />
Li recentemente, num jornal brasileiro, a história de um homem<br />
que foi atingido por um raio durante uma tempestade tropical.<br />
Um médico que passava pelo local, socorreu-o. Verificando que<br />
não era capaz de reanimar (o infeliz sofrera paragem cardíaca),<br />
afastou-se para pedir ajuda. Nesse momento o homem foi<br />
atingido por um segundo raio, e com isso, espantosamente,<br />
recuperou a consciência. Morto por um raio, ressuscitado por<br />
outro, aquele homem está certamente convencido que Deus lhe<br />
deu uma segunda oportunidade.<br />
Lembro-me disto a propósito do amor. Pode haver, no amor,<br />
uma segunda oportunidade?<br />
Fui colega, no Instituto Superior de Agronomia, de um<br />
guineense, vou chamar-lhe Mariano, que tendo sido oficial do<br />
exército português em Dili, ali conheceu e se apaixonou por uma<br />
jovem menina da aristocracia timorense. Os pais da menina,<br />
descontentes com o namoro, acusaram Mariano de estar ligado<br />
ao movimento nacionalista guineense e ele foi preso e deportado<br />
para Cabo Verde. Poucas semanas depois aconteceu o 25 de<br />
Abril, e Mariano regressou a Bissau, onde o receberam como<br />
herói. A namorada de Mariano, entretanto, descobrira que estava<br />
grávida, sendo forçada pelos pais a casar com outro homem. Na<br />
seqüência da invasão de Timor pelas tropas indonésias fugiu para<br />
a Austrália com o marido e o filho pequeno. Não conseguiu,<br />
porém, esquecer-se de Mariano. Alguns anos depois separouse<br />
do marido e foi à procura do grande amor de sua vida. Em<br />
54 Julho 2003<br />
Bissau disseram-lhe que Mariano havia partido<br />
para o Rio de Janeiro. No Brasil informaramna<br />
que estava em Portugal. Em Lisboa, quando<br />
já pensava em desistir, encontrou na rua um<br />
antigo soldado português que também servira<br />
em Timor. Soube através dele que Mariano<br />
estudava agronomia – e encontrou-o.<br />
Conheci-a numa tarde de chuva. Era uma<br />
mulher de uma beleza sem exemplo, com uma<br />
cabeleira forte e negra, e uns olhos orientais<br />
que a dor tornara mais fundos. Aquela teimosia<br />
de amor deixou-me sem fôlego. “Se eu tivesse<br />
talento”, disse ao meu colega, “escreveria um<br />
romance com a vossa história”. Mariano riu-se:<br />
“eu escrevo”.<br />
Alguns meses depois voltei a encontra-lo. Estava<br />
sozinho. Perguntei pela mulher. Mariano ficou<br />
aflito. “Voltou para a Austrália”, disse-me:<br />
“Não deu certo. Sabes, no amor não há duas<br />
oportunidades”.<br />
“Toda repetição é uma ofensa”, canta a<br />
mexicana Lhasa num disco de uma beleza<br />
assombrada pela melancolia, “La Llorona”, que<br />
gosto de ouvir quando estou sozinho. “Não<br />
necessito amar, tenho vergonha”, explica Lhasa,<br />
“de voltar a desejar o que já tive”.<br />
Eu entendo o que ela quer dizer. Mas acho que<br />
o meu coração duvida. Um raio mata, outro<br />
ressuscita. Não pode ser assim no amor?<br />
O conto/crônica do jornalista angolano nos<br />
lembra o que Octávio Paz diz sobre a literatura:<br />
que ela é uma forma de “erotização da<br />
linguagem”. A palavra, de certo modo, é uma<br />
maneira de fazer amor com o mundo e com a<br />
vida, por isso a relação entre amor e literatura<br />
nunca deixará de ser íntima. “O que nos têm<br />
dito os poetas, os dramaturgos e os romancistas<br />
sobre o amor, não é menos precioso e profundo<br />
que as meditações dos filósofos. E com<br />
freqüência é mais certo, mais de acordo com<br />
a realidade humana e psicológica”. Poderíamos<br />
então seguramente dizer à luz deste conto<br />
que um amor mata, outro ressuscita... Não
poderá ser assim na vida real? Quando somos<br />
aplacados pelo raio do amor, caímos como que<br />
desfalecidos para a vida, temos uma segunda<br />
chance de acertar, de tomar consciência do que<br />
realmente importa. Assim, encontrar o amor<br />
de sua vida eqüivale no conto de Agualusa<br />
a renascer para si mesmo, ressuscitar para o<br />
mundo, despertar!...<br />
Lembro agora de uma mulher que conheci<br />
casada havia quase duas décadas que, diziame<br />
ela, nunca havia experimentado o amor.<br />
Perguntei-lhe então o que era “experimentar<br />
o amor” e ela me respondeu que mesmo<br />
sem jamais ter amado ninguém, sentia que<br />
o amor verdadeiro existia, pois o encontrava<br />
constantemente em filmes e romances.<br />
“E se existe lá é por que existe de fato!”.<br />
Sinceramente, gostaria que ela estivesse certa!<br />
Infelizmente, vivemos a cultura das sensações<br />
e não mais a dos sentimentos, como define o<br />
psicanalista Jurandir Freire Costa. A cultura<br />
dos sentimentos foi sufocada pela cultura<br />
das sensações, que promete felicidade rápida<br />
através das sensações corporais, da boa forma,<br />
do estímulo sensual, do sexo fácil, do êxtase...<br />
Amar de verdade parece agora algo limitado<br />
ao mundo da ficção, quando não o é. Nunca<br />
é tarde para descobrir o amor, muito embora<br />
seja difícil, mas não impossível, encontrá-lo.<br />
Encontramos parceiros para nos acompanhar<br />
ao longo da vida, encontramos pais para<br />
nossos filhos, projetos comuns, mas o amor<br />
verdadeiro, como encontrar?<br />
“Como encontrar?” Esta é a pergunta que Boris<br />
Cyrulnik faz no seu livro “Nutrir os afetos”,<br />
ainda inédito em português. Ele notou um<br />
padrão de interações recorrentes entre pessoas<br />
que buscam um amor. Em primeiro lugar,<br />
diz ele, para haver encontro é preciso estar<br />
ou ter estado separado, de modo que cada<br />
um manifeste, por sinais, suas sensibilidades.<br />
Isso torna o encontro um diálogo emocional.<br />
“Quando os casamentos eram arranjados pelos<br />
pais, as mímicas, os gestos e os vestuários<br />
tinham por função assinalar a pertença a uma<br />
categoria social. No casamento por amor é a<br />
Esse estranho magnetismo<br />
intimidade da pessoa que se exprime prioritariamente. É por isso<br />
que, hoje, os encontros se dão muito mais entre inconscientes do<br />
que entre famílias”.<br />
Encontramos o que procuramos? Ele ouviu de uma mulher que<br />
ela procurava um “príncipe encantado cego ou deficiente” e de<br />
uma senhora idosa que sempre fora atraída pelos escorraçados,<br />
a revelação de que encontraram, sim, os seus amados, do modo<br />
que procuravam. A primeira encontrou o seu príncipe encantado<br />
deficiente mental, a segunda, num baile, notou um homem com<br />
as mãos entre as pernas, acabrunhado. Ele convidou-a para<br />
dançar...casaram-se e ela passou o resto de sua vida ao lado de um<br />
homem com depressão crônica. “O encontro neurótico provoca<br />
casamentos entre estruturas opostas mas complementares: um<br />
homem que deseja dar, tem fortes probabilidades de encontrar<br />
uma mulher que deseja receber”.<br />
O encontro é necessário para criar um campo sensorial, diz ele,<br />
que permita às nossas competências realizarem-se, deixarem de<br />
ser latentes e passarem a ser reais, atuando concretamente no<br />
mundo. Creio por isso que encontramos o que procuramos.<br />
Mais cedo ou mais tarde, ele se manifesta aos nossos olhos. E<br />
isso aqui não se trata de uma visão idealista tirada dos contos de<br />
fadas, mas de uma perspectiva cotidiana, extraída dos encontros<br />
rotineiros do dia-a-dia, e da capacidade de engendramento<br />
inconsciente da nossa psiqué em realizar um desejo. De<br />
idealismos, o amor nunca esteve nem estará livre, mas é de<br />
encontros e histórias reais, surpreendentes e inusitadas que ele<br />
é, em parte, feito. Podemos dizer sem medo de errar, que esse<br />
“estranho magnetismo” relacional que faz do amor encontro,<br />
simpatia e abertura para o outro pode mesmo nos fazer acordar<br />
para a vida, renascer, como se fôssemos, de repente, fulminados<br />
por um raio, esgarçados de força e de luz.<br />
“Amantes Tropicais” (Óleo sobre tela - 1983). Siron Franco<br />
Julho 2003<br />
55
A biografia<br />
que falta<br />
Rubens Lemos Filho (jornalista)<br />
A<br />
humanidade tolera uma categoria de<br />
ser humano perversa e persistente: a<br />
dos que não fazem nada e reclamam de<br />
quem toma alguma iniciativa. São eles, talvez,<br />
os invejosos. Mas não vou batizá-los assim. Vou<br />
chamá-los de pentelhos, pronto.<br />
Há dois anos, consegui publicar em livro a<br />
biografia do meu maior ídolo futebolístico: o<br />
uruguaio Danilo Menezes, que disputou pela<br />
Celeste Olímpica a Copa do Mundo de 1966,<br />
foi titular do Vasco na segunda metade da<br />
década de 60 e brilhou como um regente no<br />
ABC glorioso dos belos anos 70.<br />
Tão logo o livro saiu – e eu já reclamei na<br />
época -, uma procissão de sábios protestou:<br />
Por que Danilo virou livro e não Alberi, o<br />
maior jogador do futebol potiguar em todos os<br />
tempos, o craque da Bola de Prata em 1972. A<br />
Bola de Prata é o Oscar do futebol brasileiro,<br />
entregue pela Revista Placar a cada final de<br />
campeonato.<br />
Expliquei – nem me interessava se convenceria -<br />
, que Danilo havia sido o primeiro jogador<br />
56 Julho 2003<br />
de categoria internacional a atuar no Rio Grande do Norte,<br />
o craque - alvinegro-ortodoxo (Alberi perdeu pontos com a<br />
“frasqueira” por haver jogado no América). E, sem a menor<br />
cerimônia, admiti que Danilo sempre foi o meu ídolo e é missão<br />
de todo fã eternizar seu objeto de adoração.<br />
Revendo revistas de dois, três anos atrás, encontrei o argumento<br />
que me faltou naquela época da polêmica (soberba minha?).<br />
Em pelo menos duas, havia referências a Francisco das Chagas<br />
Marinho, a Bruxa, ele sim, o maior orgulho nativo da bola<br />
potiguar.<br />
Marinho é uma entidade que só nós não reverenciamos. Foi o<br />
melhor lateral-esquerdo do mundo na Copa de 74, isso todo o<br />
planeta, até as gordas patuscas e fofoqueiras sabem de cor. Jogou<br />
dois anos pelo São Paulo. Um futebol tão deslumbrante que<br />
lhe rendeu a camisa 6 da hipotética seleção paulista de todos os<br />
tempos. Tem Marinho, tem Zizinho, Ademir da Guia, Julinho.<br />
Só não há Pelé porque ele é hour concours. Marinho, quando<br />
deixou o ABC em 1970 foi para o Náutico. Lá, jogou apenas um<br />
ano. Está no melhor Náutico e na melhor seleção pernambucana<br />
da história.<br />
Marinho é um tema para os sociólogos. Ele que figura entre os<br />
50 melhores de todos os tempos do São Paulo, do Fluminense<br />
e do Botafogo. Jogou no Cosmos (EUA), com Beckenbauer.<br />
Marinho Chagas é uma alma de criança, uma dádiva de talento<br />
que nasceu num campo de várzea, quando ainda havia deles em<br />
Natal.<br />
Eles, os tais pentelhos, adoram uma notícia ruim sobre a vida<br />
particular de Marinho, que é só dele, ainda que seja o mais<br />
público desportista do nosso tempo. Ninguém traz no sorriso<br />
a simpatia cativante do lateral-esquerdo que batia com a perna<br />
direita e arrancava ao ataque na passada de uma gazela.<br />
Marinho, sim, daria outra bela biografia. Se eu tivesse a ousadia<br />
de escrevê-la, começaria com um depoimento de Nilton Santos,<br />
o precursor: - Ah, Marinho, como jogava bonito. Se eu pudesse<br />
jogar com ele, eu me improvisava na quarta-zaga. Ele jogaria na<br />
minha.<br />
Palavra de Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol. O pai da<br />
bola de Marinho.
O Pai Bastião e a Casa de Usher<br />
José Antônio Pereira Rodrigues<br />
(Procurador do Estado e Professor de Direito)<br />
Para Olívia Pereira Rodrigues<br />
São duas casas. Uma, a da Fazenda Pai Bastião, quase ao<br />
sopé da Serra de São Bernardo, onde nasceu minha mãe;<br />
outra, a do conto de Edgar Alan Poe. Na verdade, uma<br />
não teria nada a ver com a outra se não fosse o episódio da queda<br />
em si. A primeira, enleada nos meandros de um bucolismo real,<br />
mesmo na visão de terra arrasada, terra ressequida, sem inverno,<br />
sem algodão e sem gado; a queda da outra, tecida no imaginário<br />
de espanto e terror. Ficção como contra-ponto da realidade,<br />
formando paralelos. Devaneios do espírito em diferentes esferas<br />
do sentimento humano. Ora, um autor atormentado pela<br />
vulnerabilidade da condição humana e pelo delírio do gênio.<br />
Ora, a perplexidade do outro ante a ruptura dos laços que une o<br />
homem ao seu passado - uma casa derrubada deliberadamente.<br />
Ilustração: Sayonara Pinheiro<br />
Fotos: Candinha Bezerra<br />
Se, num momento, a queda é real, noutro é puro<br />
intelecto em suas formas de expressionismo e<br />
êxtase - uma casa que rui num contexto onírico<br />
de criatividade artística. Narrativa do irreal nas<br />
construções da mente, apenas possível como<br />
retrato de um estado da alma.<br />
O Pai Bastião, portanto, é essa outra casa, tão<br />
plantada nos meus sonhos quanto o fora nos<br />
lajedos de Caicó. Dela, às vezes eu penso que<br />
teria sido minha, talvez, na sucessão hereditária<br />
dos homens, se estivesse intacta, de pé, e os<br />
ventos contrários da viuvez, junto com a seca<br />
Julho 2003<br />
57
O Pai Bastião e a Casa de Usher<br />
braba, não tivessem feito minha avó - Ubaldina<br />
de Medeiros Pereira - perder o gado e vender a<br />
terra. Quanto à casa de Usher, trata-se apenas<br />
de um pretexto comparativo, que poderia se dar<br />
com outra, de nosso universo literário. Como,<br />
por assim dizer, com a casa do engenho de fogo<br />
morto, do avô de José Lins; a casa da infância<br />
de Drummond, na sua Itabira hoje apenas um<br />
retrato na parede; ou a casa da Rua da União, do<br />
avô de Bandeira, na sua “Evocação do Recife”.<br />
Casas que desapareceram não para sempre,<br />
porque, se não mais existem em sua forma<br />
material e na forte presença da espiritualidade<br />
humana de seus remotos habitantes, persistem,<br />
entretanto, no esboço lírico-fisionômico da<br />
memória literária:<br />
“Vão demolir esta casa.<br />
Mas meu quarto vai ficar,<br />
Não como forma imperfeita<br />
Neste mundo de aparências:<br />
Vai ficar na eternidade,<br />
Com seus livros, com seus quadros,<br />
Intacto, suspenso no ar!”<br />
(Bandeira, em “A Última Canção do Beco”)<br />
Este, o prelúdio de um enfoque sobre uma<br />
recente experiência pessoal, numa viagem de<br />
retorno ao espaço das minhas origens, em<br />
busca de um tempo não reencontrado. A<br />
história não é sombria como a de Usher, pois,<br />
no Seridó, o sol que bate na rocha descoberta,<br />
e agora redescoberta, refletindo calor e luz,<br />
não compadece com os estados de languidez<br />
invernal.<br />
Deu-se que era o mês de festa da Santa, tempo<br />
de reencontro entre os homens e dos homens<br />
com Deus. Tempo, ainda, de se reverenciar<br />
58 Julho 2003<br />
raízes familiares incrustadas no alto ondular das serras, em<br />
terrenos feitos da mesma pedra fundamental da Igreja Catedral,<br />
um dia consagrada como altar de holocausto e penitência dos<br />
homens e de seus louvores a Deus. Sendo assim, e estando o sol a<br />
pino, dirigi-me pelas brenhas daquelas veredas tórridas, abrindo<br />
trilhas entre galhos ressequidos da vegetação arbústea, em busca<br />
da casa do meu avô. Levava minha mãe quase centenária, que<br />
também ia ao reencontro com o chão de pedra exposta, terra<br />
batida e tijolo branco que a viu nascer, ali de onde se avista a<br />
Serra de São Bernardo, que é como avistar o paraíso. Serra cuja<br />
contemplação supera em séculos a das pirâmides na retórica de<br />
Bonaparte. Protuberância rochosa a imprimir um ar tão solene<br />
quanto o “Cântico do Magnificat”, tão grave quanto o olhar do<br />
Cristo encarando o Gólgota, só poderia esse pedaço do mundo<br />
vir a ser escolhido pelos desbravadores daqueles rincões como<br />
marco fundacional de uma nova civilização nos sertões do<br />
Brasil.<br />
Uns primos também compunham o séqüito, servindo seus<br />
préstimos como guias na garimpagem de sentimentais vestígios<br />
arqueológicos. Caicó ia se distanciando a passos largos, à medida<br />
que as porteiras iam sendo abertas e, uma após a outra, as antigas<br />
casas das tias velhas iam despontando no caminho de volta da<br />
história. Ali, morava Tia Dalila, a mais bonita, que enviuvou<br />
muito nova, e nunca mais casou. Mais adiante, Tia Joaquina<br />
do velho Bedé, o legendário maestro da Banda de Música, com<br />
suas evoluções em meio ao foguetório, nas alvoradas de hinos e<br />
sinos, com suas performances nas retretas, no coreto da Praça da<br />
Liberdade, que se seguiam às louvações fervorosas e emotivas nos<br />
terços de Santana. Manoel Vitoriano Fontes, nome de dobrado,<br />
inconfundível com o seu gorro estilo francês e a piteira no canto<br />
da boca, vermelho como Churchill, inesquecível na sua figura de<br />
homem pacato e bom.<br />
O lugar permanece com as mesmas características de ambiência<br />
mística, como se fosse um espelho a refletir a imagem do<br />
homem, em sua relação com os fatores telúricos que o<br />
acompanham desde a origem, fazendo-se projetar como marca<br />
indelével do seu destino. O meio ambiente é o de uma natureza<br />
viva assumindo a forma de um ilusório quadro animado em<br />
sons, cores e brilhos, ainda que na disposição aparentemente<br />
estática dos objetos, sugerindo ausências redivivas, mágoas de<br />
abandono e irreversibilidade do tempo - debalde, pois nada<br />
disso consegue abater a têmpera do sertanejo indormido. Lá, o<br />
silêncio não se faz, nem a solidão se impõe, apesar da sensação de<br />
infinito, ao se fitar a paisagem, e da lentidão com que perpassa o
tempo. Se o silêncio existe, e quando existe, é lá pelos costados<br />
da noite, mesmo assim, cortado pelo canto da ave agourenta,<br />
pelo bater de asas do vôo rasante das marrecas, sobre o espelho<br />
d’água dos açudes, ou pela gritaria das gaivotas rasgando a<br />
escuridão. Nos meus sertões, o silêncio é apenas uma forma de<br />
serena contemplação das vicissitudes do tempo e das coisas, no<br />
aprendizado da vida. No silêncio, a palavra do homem é como<br />
um grito a ecoar ao longe, fazendo tinir na consistência metálica<br />
do horizonte rochoso a fibra do valoroso seridoense.<br />
Tudo isto para dizer que, malgrado a ausência e silêncio à parte,<br />
o mundo de tio Bedé permanece intacto, na aura que envolve<br />
e sustenta o tempo revisitado, trazendo de volta a partitura<br />
inapagável de seu dobrado, na hora do alpendre de sua casa,<br />
no lugar outrora cativo do armador de sua rede e ante a visão<br />
maravilhosa do seu pequeno açude, com águas que teimam em<br />
não evaporar, nem à força do sol abrasador. É julho, mas verde<br />
de todo só a algarobeira, resistente como o jumento. Supondo-se<br />
existir uma mitologia seridoense, seria a algarobeira um jumento<br />
plantado - não anda, mas dá sombra para o gado e também<br />
alimento. Dádivas do Deus Sol, rei da luz, da liberdade, da<br />
vida.<br />
Sôfrego, fui seguindo viagem, abrindo porteiras e transpondo<br />
mourões, em busca de um espaço perdido no tempo. Não<br />
somente o espaço, mas a própria casa do meu avô, edificada,<br />
quem sabe, pelas mãos calejadas de escravos alforriados, ou<br />
de índios remanescentes das barbaridades perpetradas pela<br />
infantaria do extermínio, possíveis descendentes, numa ou<br />
noutra linhagem, de um certo Pai Bastião. No compasso<br />
da caminhada, fazia conjecturas sobre o que ainda poderia<br />
restar da velha Casa Grande: a cobertura, de duas águas, e a<br />
fachada, alpendrada; suas salas, uma com o oratório da rezaria;<br />
os quartos, com os baús da roupa da família, voltados para o<br />
nascente; a parte frontal descortinando a majestade da serra com<br />
nome de santo - São Bernardo, na sua opulência resultante de<br />
convulsões sísmicas, numa perspectiva iluminada pela luz dos<br />
astros e a servir de norte à figura singela do incansável peregrino.<br />
Serra que oculta insondáveis mistérios divinos, fazendo às vezes<br />
do Arcanjo Gabriel, dessa feita anunciando o encantamento<br />
de Santana como a gloriosa padroeira da cidade com nome de<br />
índio.<br />
O açudeco foi se apequenando, ainda mais, na distância, se<br />
escondendo por entre ramagens verdes dos pés de algaroba.<br />
Tudo plantado pelo seu antigo dono, dizia um dos guias,<br />
enquanto o grupo ia desbravando a caatinga, margeando cercas<br />
O Pai Bastião e a Casa de Usher<br />
Julho 2003<br />
59
O Pai Bastião e a Casa de Usher<br />
de pedras sobrepostas, em cujas brechas se<br />
acoitavam as cobras. De repente, eis que surge<br />
a terra da promissão - o Pai Bastião, com toda<br />
a força mítica de um simbolismo familiar, de<br />
uma energia a impregnar em mim e nos meus<br />
irmãos, através dos anos, a idéia ou o sonho do<br />
sublime retorno ao chão sagrado das origens.<br />
Terra marcada com o ferro da raça, nas pegadas<br />
sobre o solo em brasa, nos tempos de bonança<br />
ou de apertura, na travessia do futuro. Terra<br />
que, com a morte do patriarca José Antônio<br />
Pereira, meu avô e homônimo, foi vendida, lá<br />
pelos idos de quinze, ao então Juiz de Direito da<br />
Comarca, o inolvidável Dr. Janúncio Nóbrega,<br />
filho do Cel. Gorgônio, da Fazenda Dominga,<br />
amigo e compadre do meu avô.<br />
O mesmo torrão onde minha mãe, então<br />
menina, correu de cobras jararaca e de veado,<br />
indo ou vindo de banhos no açude grande da<br />
Fazenda, e em cujas paragens, de outra feita,<br />
foi lançada à distância pelos chifres temíveis do<br />
touro brabo. Chão encharcado de bosta com<br />
urina de gado. Chão em que o índio enterrava<br />
seus utensílios, como preservação inconsciente<br />
de sua própria civilização e no qual, quantas<br />
vezes, fez colar o ouvido, a escutar o rufo dos<br />
tambores das tribos inimigas em pé de guerra.<br />
Chão pisoteado pelos cascos de reses, cavalos<br />
e jumentos do meu avô plantador, criador e<br />
tropeiro. Chão que ele fazia de escondedouro<br />
para suas patacas, como que as resguardando<br />
da sanha dos cangaceiros do bando de Antônio<br />
Silvino, tesouro enterrado só devassável no<br />
sonho dos pósteros, com as botijas da fala do<br />
60 Julho 2003<br />
povo e das histórias de antigamente, repetidas por Da. Olívia<br />
Pereira Rodrigues, minha mãe, antiga professora do Senador<br />
Guerra, pré-centenária e lúcida, legítima Comendadora da Vila<br />
do Príncipe da Freguesia de Santana do Caicó.<br />
O cenário geográfico e humano, como se vê, difere totalmente<br />
das brumosas nuvens, do lago gélido, da sensação de abandono<br />
e solidão ferindo a alma, que permeiam o clima do conto de<br />
Poe, fazendo implodir a casa de Usher. Aqui, já não mais existe<br />
a casa do meu avô, com seus habitantes, seus personagens.<br />
Minha mãe, já em idade provecta, de sua antiga e numerosa<br />
estirpe, resta só no mundo, mas nem por isto a casa velha da<br />
Fazenda se fez ruir, espontaneamente, como a outra, com suas<br />
estruturas impregnadas de melancolia. A casa do meu avô não<br />
teve sua queda provocada por ação corrosiva do tempo, nem<br />
por fadiga dos materiais; ela caiu por ação do homem, que não<br />
soube preservar um templo histórico do lugar, habitat de deuses<br />
familiares. A misteriosa casa de Usher desmoronou ecoando um<br />
estrondo, tal um toque de partida que se retardou, para que<br />
houvesse tempo de se revê-la. Mesmo num imaginário quase<br />
real. A casa do Pai Bastião foi o que eu vi, junto com minha mãe<br />
- um desrespeito a cento e cinqüenta anos de eternidade. Pois a<br />
ordem de quem sucedeu ao Juiz, no latifúndio - disse o capataz<br />
-, foi derrubar a casa, sem deixar pedra sobre pedra. Deitar tudo<br />
por terra, sem rufar de tambores, para não despertar a cobiça<br />
de eventuais posseiros. Quanto equívoco! Quanta insensatez!<br />
Antes, os posseiros, que receberiam aquela morada em usufruto,<br />
como depositários fiéis da história.<br />
O que para mim, então, foi outrora um acalentado sonho, já<br />
havia se transformado num amontoado de escombros, desde a<br />
remota antevéspera da chegada. Não à maneira de Poe, pois,<br />
sem tempestades, sem relâmpagos, ali tão raros... Sem delírios<br />
ou assombrações - nem ao menos, que fosse, uma recorrente<br />
assombração da infância...
A travessia do<br />
“nonada”<br />
pelo Grande Sertão<br />
Rejane de Souza (mestranda em Literatura Comparada)<br />
Ao narrar sua experiência em “Grande Sertão: veredas”,<br />
Riobaldo rememora a paixão transgressora por<br />
Diadorim, mas submete ao crivo da razão o encontro<br />
com o Demo. Fazendo a travessia do sertão e de si mesmo,<br />
à procura de esclarecimento, Riobaldo empreende a busca<br />
incessante do aprender a viver que imprime a real dimensão<br />
moderna da obra-prima de Guimarães Rosa. Riobaldo é o<br />
sertão feito homem e é meu irmão, diz o autor.<br />
Nesse sertão, as várias vertentes do homem se apresentam nos<br />
caminhos e descaminhos da personagem principal, Riobaldo<br />
e seu (sua) companheira (a) Diadorim. Através do desejo de<br />
conhecer o início e o fim das coisas são guiados pelas veredas<br />
do “Nonada” e “Travessia” que formam a estrutura circular da<br />
narrativa.<br />
A construção dessa linguagem interage divinamente com a<br />
criação e formação dos personagens. Não há linha divisória entre<br />
fala, pessoas, os sons e as imagens. O conjunto compõe o todo e<br />
ajuda na compreensão dos fatos.<br />
Julho 2003<br />
61
A travessia do “nonada” pelo Grande Sertão<br />
Na escrita roseana, é na força das palavras<br />
que está contida toda uma sabedoria, que<br />
o poeta põe em prática, em verso ou em<br />
prosa, tentando, buscando dizer o indizível, o<br />
indecifrável, revelando um novo aspecto e uso<br />
para aquela palavra... reinventando a verdade...<br />
O sertão é reinventado pela linguagem criadora.<br />
Nele, Rosa associa as indagações metafísicas<br />
do sertanejo, preocupado com o sentido<br />
do existir, da realidade além das aparências,<br />
ao questionamento presente no homem de<br />
qualquer tempo ou lugar conferindo ao texto<br />
um sentido de universalidade: O sertão é o<br />
mundo...<br />
A passagem pelo sertão é a travessia de todos os<br />
perigos do mundo, por que aí a vida é muito<br />
discordada. Tem neblinas de Siruiz. Tem cara<br />
de todos os cãos e as vertentes do viver. Enfim,<br />
viver é muito perigoso.<br />
Chegamos à personagem Riobaldo, em ‘Grande<br />
Sertão: veredas’ pensando: já que a alma tem de<br />
animar vários corpos e sendo Riobaldo vários<br />
em um, sua alma evoluiu de forma rica e plena.<br />
Ou nas palavras de Guimarães Rosa: Imortal é<br />
o que é do sofrido; tudo abaixo daí, é póstumo.<br />
Riobaldo era todos e nenhum deles. É um<br />
outro.<br />
Esse outro nos ensina a apreciar o mundo, ora<br />
como menino, ora como professor, ora como<br />
jagunço, ora como Tatarana, ora como Urutu-<br />
Branco... As veredas são diversas. O homem,<br />
na sua eterna busca de si mesmo, atravessa<br />
caminhos tão paradoxais quanto a sua própria<br />
existência.<br />
A travessia de Riobaldo pelo Grande Sertão<br />
reflete a visão do homem humano que se vê<br />
nesse mundo fragmentado como um recém-<br />
62 Julho 2003<br />
nascido que aprende e apreende informações e conhecimentos<br />
no decorrer da vida. O saber e o não saber demarcam a<br />
caminhada do personagem que narra a sua vida que não chega<br />
a entender:<br />
Mas naquele tempo, eu não sabia.<br />
O que não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia.<br />
Hoje sei.<br />
No não saber está o perigo de viver: Viver não é?<br />
Muito perigoso. Porque ainda não se sabe.<br />
O Grande Sertão que Rosa idealizou e que o personagem<br />
principal nos narra é a travessia do homem através de si<br />
mesmo, descobrindo suas veredas e verdades, e crescendo em<br />
dimensão espiritual, na medida em que se autoconhece. É nessa<br />
caminhada Riobaldo de que vai se estruturando a travessia pelo
um território vazio, onde os valores surgem pelo preenchimento<br />
dos espaços que ele se apropria, assinalando-os com a marca<br />
de sua passagem. É como no dizer de Benedito Nunes: “Para<br />
Guimarães Rosa, não há de um lado um mundo e, de outro, o<br />
homem que o atravessa. Além de viajante o homem é a viagemobjeto<br />
e sujeito da travessia, em cujo processo o homem se faz”.<br />
Na verdade, a interpretação de Riobaldo desse mundo só pode<br />
se processar a partir da condição de viajante, que é para ele e<br />
nós, leitores, uma continuada descoberta. Nesse sentido, as<br />
veredas desconhecidas, as decisões de amor e morte se diluem na<br />
travessia para constituir a experiência da personagem.<br />
Em sua multiplicidade, no caminho da descoberta e experiência,<br />
ele recompõe os pontos essenciais de uma circularidade que se<br />
fecha sobre si mesma: seu encontro com os jagunços e a aceitação<br />
da vida guerreira, sertão adentro; a convivência com Reinaldo/<br />
Diadorim - o sofrido amor; e, finalmente, sua tomada de mando<br />
sobre o sertão, quando passa a chamar-se Urutu-Branco, chefe<br />
de jagunço na imposição de suas leis.<br />
No primeiro ponto, o destino guerreiro que corresponde a uma<br />
permanente expectativa oscilando entre a surpresa e o medo,<br />
à frente de um mundo que ainda não conhece. No início da<br />
narrativa, Riobaldo diz:<br />
Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não<br />
ninguém ainda não sabe.<br />
Embora diga que o sertão é o que não sei, dirá também que o<br />
sertão é dentro da gente, revelando a descoberta primeira das<br />
coisas do mundo que o leva à atitude admirativa onde o homem<br />
e o mundo não se distinguem.<br />
Esse primeiro momento da experiência dá lugar a uma intuição<br />
poética de uma realidade mutável que traz outro elemento<br />
fundamental na trajetória de Riobaldo: Diadorim.<br />
É Diadorim menino quem introduz Riobaldo ao mundo<br />
maravilhoso e áspero do sertão. Menino diferente, tem estatura<br />
de um ser mítico, fabuloso, parecendo igualar-se ao próprio rio<br />
em sua força e em segredos. Possui o conhecimento das coisas e<br />
mostra a Riobaldo a beleza das flores e dos pássaros:<br />
“Foi o menino quem me mostrou. E chamou a minha<br />
atenção para o mato da beira em pé, paredão, feito a régua<br />
regulado. - as flores. Não me esqueci de nada, o senhor vê.<br />
A travessia do “nonada” pelo Grande Sertão<br />
Aquele menino como eu podia deslembrar?...<br />
Ele o menino dessemelhante, já disse não<br />
dava minúcia de pessoa outra nenhuma”.<br />
Diadorim é a presença do amor. É nesse<br />
ponto que se alcança a experiência central de<br />
Riobaldo, quando ele mesmo diz que foi nesse<br />
lugar, no tempo dito, que meus destinos foram<br />
fechados.<br />
O senhor... Mire veja: o mais importante e<br />
bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não<br />
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas<br />
- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou<br />
desafinam. Verdade maior.<br />
À constatação primeira de que as pessoas ainda<br />
não foram terminadas, sucede a descoberta<br />
de Diadorim, desafio no mistério do amor:<br />
a vida não é luta com o sertão por fora, mas<br />
luta com o sertão por dentro: é um encontro/<br />
desencontro com as pessoas que estão sempre<br />
por se fazerem. Assim Diadorim aparece como<br />
núcleo circular da viagem de Riobaldo que faz a<br />
travessia para dentro de si em busca do eu.<br />
Nesse momento, o personagem debate-se numa<br />
luta dividida entre a busca do amor que não<br />
conhecerá e a tentativa de compreender um<br />
mundo regado por veredas onde se faz presente<br />
o oculto, impalpável, mas sempre assustador.<br />
Nessa hora, no meio dessa contradição, ele<br />
conclui: o sertão é o sozinho.<br />
A partir da constatação da quebra do estado<br />
de inocência, tudo se reduz à solidão e aí se<br />
delineiam as decisões. Riobaldo agora é o Urutu-<br />
Branco, no centro da guerra que o leva para as<br />
veredas do Demo a qual deve empreender<br />
solitariamente. Tem início a travessia... Essa<br />
travessia do deserto vazio, decidida na solidão<br />
mais radical, traz para a estória a figura de<br />
Riobaldo, agora, transformado em chefe de<br />
jagunço que recompõe e domina o mundo a<br />
partir do nada.<br />
Julho 2003<br />
63
A travessia do “nonada” pelo Grande Sertão<br />
Tendo a solidão e o nada como pontos de partida do agir, a<br />
personagem se constrói ou reconstrói pelas próprias forças e<br />
ergue os próprios valores. No ‘Grande Sertão: veredas’, esse gesto<br />
essencial de preencher com os próprios valores os espaços vazios<br />
faz a personagem atravessar a realidade conhecendo-a, e conhece<br />
mediante este fazer poético, que nasce do ato da nomeação. A<br />
travessia é, enfim, a busca de valores a que todo homem procede<br />
a partir do estado de solidão.<br />
E é, portanto, no meio desse universo insondável, abrindo<br />
trilhas, tentando caminhos, descobrindo roteiros, que Riobaldo<br />
terá o encontro com a Verdade. Da primeira palavra “Nonada”<br />
do livro ao símbolo final ¥, o que se acompanha é a trajetória<br />
do nada ao infinito, do caos ao cosmos, das trevas à luz. No<br />
romance, os rios correm do poente para o nascente.<br />
Ele descobre, através de sua iniciação pelo sertão, que a vida é um<br />
eterno recomeço, um ciclo vital em que o homem, em constante<br />
aprendizagem, mesmo após suas experiências, não sabe nada.<br />
Volta ao início, pois como está “nonada”, sabe que certezas não<br />
há, exceto que diabo não há, existe é o homem humano.<br />
Demais é que se está: muito no meio do nada.<br />
Donde nada eu não disse.<br />
No nada disso não pensei.<br />
O homem precisa fazer essa caminhada que começa “Nonada”<br />
e termina na “Travessia”. Essa última fronteira que nos leva ao<br />
estado da alma mais singelo, místico e físico. O homem tem<br />
de descobrir, na sua solidão diária, a solidão dele próprio e dos<br />
outros.<br />
Em Riobaldo, encontramos todas as paixões humanas o mítico<br />
e o real, o sonho e a verdade. Este magnífico e ao mesmo tempo<br />
tão insignificante destino, perante a sua complexidade.<br />
Por isso viver é muito perigoso, e não temos como fugir dele.<br />
Essa é a travessia que nunca tem fim, pois enquanto existir o<br />
homem, existirá sempre o caminhar para frente, em um eterno<br />
círculo.<br />
64 Julho 2003
O senhor<br />
do futuro<br />
Pablo Capistrano (escritor e filósofo)<br />
Mais uma vez me dirijo a estante<br />
de meu escritório para consultar<br />
a lista de escritores compilada<br />
por Harold Bloom no seu livro “O Cânone<br />
Ocidental”. Lançado em 1996 pela Objetiva,<br />
o livro de Bloom, como qualquer outra lista,<br />
é polêmico. Alguns afirmam que o livro<br />
reflete mais as opções culturais do autor,<br />
limitado lingüisticamente ao inglês, do que<br />
propriamente um traçado correto das principais<br />
obras do Ocidente.<br />
Nunca é bom esquecer que listas são sempre<br />
problemáticas. Toda vez que alguém faz uma<br />
antologia de poetas aqui no Rio Grande do<br />
Norte o mundo quase vem abaixo. A de Harold<br />
Bloom, no entanto, é especialmente polêmica<br />
porque revela, não apenas um simples gosto<br />
pessoal, mas um enfoque, uma angulação em<br />
direção a um modo de como a literatura deveria<br />
ser. Temos onze capítulos dedicados a autores<br />
de língua inglesa, um capítulo para Proust e<br />
um para Montaigne e Molière, um para Dante,<br />
um para Tolstoi e a língua russa, três autores<br />
de língua alemã (Goethe, Kafka e Freud),<br />
três autores de língua hispânica (Borges,<br />
Neruda e Cervantes), um capítulo para Ibsen<br />
Julho 2003<br />
65
O senhor do futuro<br />
e os Trolls da Escandinávia e uma citação, no<br />
meio do capítulo que fala de Borges e Neruda<br />
a Fernando Pessoa, chamado de Whitman<br />
português.<br />
Anglocentrismos à parte, no final do livro,<br />
Bloom põe uma lista mais extensa de obras.<br />
Inspirada em Vico e Spengler a lista é dividida<br />
em varias eras: a era Teocrática de Homero e da<br />
Bíblia hebraica; a era Aristocrática de Dante,<br />
Shakespeare e Cervantes; a era Democrática de<br />
Willian Blake, Novalis e Baudelaire e por fim a<br />
era do Caos.<br />
O Caos é a antevisão do cânone do futuro. Não<br />
é uma lista definitiva, mas uma possibilidade<br />
de lista, uma aposta que tenta equacionar o<br />
seguinte problema: quem vai indicar o caminho<br />
da literatura no terceiro milênio?<br />
Os candidatos mais fortes, de acordo com<br />
Bloom são: Kafka, Joyce, Becket, Proust.<br />
Quando eu li esse livro em 1996 estava muito<br />
ansioso para pensar como gente grande e nem<br />
me dei conta que o futuro de Bloom está no<br />
século XX. Um futuro tomando pelo espectro<br />
desconstrutivo que marcou toda a estética<br />
do século passado. O anseio de desmontar<br />
a própria civilização ocidental a quem o<br />
próprio Bloom busca filiar-se de modo tão<br />
apaixonado. Kafka, Becket, Proust e Joyce<br />
(bem particularmente Joyce) fazem parte dessa<br />
grande expansão rumo ao esgotamento da<br />
narrativa clássica, a sublevação do épico, ao<br />
mergulho na impressão do tempo cotidiano<br />
distendido, da linguagem nua, do pensamento<br />
acuado, do imenso e ansioso pesadelo de nossa<br />
vida moderna. Bloom só conseguiu chegar ao<br />
Caos e sua visão apaixonada da literatura pura<br />
passou batida por um nome que se projeta<br />
rumo ao verdadeiro futuro.<br />
66 Julho 2003<br />
Não falo dos beatniks (com exceção do Gary Snyder) totalmente<br />
excluídos da listinha da era do Caos, falo de J.R.R. Tolkien.<br />
Quando eu tinha 14 anos li o “Hobbit” e posteriormente uma<br />
grande parte do livro “A Sociedade do Anel” (primeira parte da<br />
trilogia “O Senhor dos Anéis”, e que agora virou filme). Achei a<br />
narrativa estranha, talvez porque na época só tínhamos edições<br />
vindas de Portugal, fato que, para um garoto da minha idade<br />
dificultava um tanto a fluência da leitura.<br />
Muita literatura depois acabei por me desfazer dos livros,<br />
acreditando que aquele tipo de texto (convencional) não teria<br />
futuro e que eu, como candidato a escritor, sonhando com uma<br />
vaguinha no cânone de Bloom, teria que concentrar minhas<br />
energias na alta literatura. A literatura do futuro. Comecei<br />
então a escrever um livro que se Deus quiser nunca vai ser<br />
publicado, chamado pomposamente de “A Metafísica do Sol”.<br />
Com o tempo eu percebi que o tipo de experiência que o livro<br />
se prestava havia sido esgotada em língua portuguesa, já em<br />
1974, com a publicação de “O Catatau” do Paulo Leminski.<br />
Não haveria como se opor ao “Catatau” e tentar enveredar pela<br />
desconstrução que o livro do poeta curitibano havia enveredado.<br />
No livro “Galáxias” do Haroldo de Campos tem o seguinte:<br />
(...)começo escrever mil páginas escrever milumapáginas para<br />
acabar com a escritura para começar com a escritura para<br />
acabarcomeçar com a escritura(...). De Joyce a Leminski o<br />
movimento foi esse, acabarcomeçar com a escritura. Fora o<br />
poeta de Curitiba, que depois do “Catatau” mergulhou fundo<br />
na poesia e juntou Drummond e João Cabral numa síntese<br />
espantosa, muita gente foi tragada pelo acabarcomeçar da<br />
escritura. Eu seria provavelmente mais um se não tivesse me<br />
lembrado do Tolkien.<br />
A obra desse professor de filologia é espantosa. A construção de<br />
um mundo não é tarefa para uma vida, mas Tolkien construiu<br />
um mundo. Escreveu longamente acerca da geografia, história,<br />
sociologia da Terra Média, compôs um universo paralelo<br />
encharcado de uma riqueza pouco vista na história da prosa. Todo<br />
esse esforço, como está atestado no prefácio da edição de 1954 do<br />
“Senhor dos Anéis”, se deu motivado por uma paixão lingüística.
A necessidade de se criar um suporte vivo para um idioma que<br />
ele mesmo inventou, o idioma Elfico. Inspirado nas línguas<br />
celtas antigas Tolkien construiu um idioma que hoje é falado e<br />
estudado por um grande número de pessoas. Mas como construir<br />
uma língua sem o suporte histórico, social e antropológico que<br />
lhe dê sentido? O caminho seria então o de inventar uma cultura.<br />
Uma forma de vida, ou várias formas de vida. Hobbits, Anões,<br />
Elfos, Orcs, Trolls. Criaturas retiradas da mitologia nórdica que<br />
povoariam a Terra Média com suas peculiaridades culturais,<br />
seus sotaques, seus trajes, hábitos e características próprias. Mas<br />
uma cultura não poderia ser construída apenas com criaturas.<br />
Seria necessário um mito fundador, uma cosmogonia, uma<br />
teogonia que seria síntese de uma grande diversidade de mitos<br />
e histórias recolhidas minuciosamente e compiladas numa obra<br />
de extensão monumental da qual o “Senhor dos Anéis”, com<br />
seus três livros, é apenas a parte mais famosa. Tolkien começou<br />
querendo construir uma língua, acabou acreditando que estava<br />
construindo uma mitologia para a Inglaterra e terminou por<br />
deixar o caminho aberto para a literatura do futuro.<br />
Joyce capturou Ulisses de Homero e o jogou nas ruas de Dublin<br />
fazendo o percurso de uma odisséia cotidiana, transformando<br />
em arte o pequeno da vida e tentando desmontar uma língua. A<br />
relação de Joyce com a linguagem é uma relação de ansiedade.<br />
A prisão da palavra virou lugar comum na literatura do século<br />
XX. A busca por ultrapassar a palavra, por sublevar a sintaxe, por<br />
fazer ruir sobre suas bases a escritura se tornou a pedra de toque<br />
da produção literária no século XX.<br />
Tolkien passou completamente alheio a essa ansiedade. Talvez<br />
por ser filólogo não tivesse grandes problemas com esse monstro<br />
implacável chamado língua, que imortaliza e destroça poetas<br />
com a mesma falta de cerimônia com que inventa problemas<br />
metafísicos. A compreensão das regras que constituí o solo da<br />
língua fez com que Tolkien ultrapassasse o estado de tensão<br />
adolescente em que muitos escritores acabam se perdendo.<br />
Adotando a idéia grega de criação, que empurra o escritor no<br />
caminho de modelar a massa amorfa da tradição mitológica de<br />
O senhor do futuro<br />
sua terra para fazer surgir um grande mito, um<br />
mito do futuro, Tolkien escreveu uma epopéia<br />
sem culpa ou vergonha. Não ficou perdido<br />
tentando fazer uma criação ex-nihilo como<br />
muitos escritores durante o século XX tentaram<br />
fazer. Acabarcomeçar para fazer surgir do nada<br />
uma nova linguagem, um novo mundo, uma<br />
nova forma de vida, um novo paradigma, uma<br />
nova novidade. O autor do “Senhor dos Anéis”<br />
reviveu a epopéia na era do Caos. Uma semente<br />
do verdadeiro futuro que é cíclico e não linear.<br />
Talvez por isso Bloom não tenha visto ou<br />
não tenha querido ver a força de Tolkien. O<br />
Cânone Ocidental de 1996 está imbuído de<br />
um profetismo apocalíptico. Ele olha para o<br />
fim, para o término da experiência humana.<br />
Bloom parece perdido em meio a velha e<br />
tediosa idéia de que o tempo é linear. Mas Vico<br />
e Spengler nos mostram que o tempo gira e<br />
que, nas eras atuais, se esconde a semente das<br />
eras que passaram e que um dia voltarão. Num<br />
século de coisas pequenas (caixas, flats, chips e<br />
automóveis) surge desatento numa poesia de<br />
Leminski o sentido do futuro:<br />
e no interior do mais pequeno / abre-se profundo<br />
/ a flor do espaço mais imenso.<br />
Estou livre da ansiedade de enfrentar Joyce,<br />
inimigo invisível que apresenta o vazio como<br />
campo de combate. Temos um verdadeiro<br />
construtor de mundos para destronar. J.R.R<br />
Tolkien não entrou no cânone do século XX<br />
porque, muito provavelmente, sua prosa é para<br />
o futuro. Para os 150 milhões de leitores de<br />
seus livros e os filhos desses leitores. Talvez não<br />
tenha havido espaço para o “Senhor dos Anéis”<br />
na listinha do Bloom pelo motivo que o próprio<br />
Tolkien gostava de ressaltar: meu problema é<br />
que eu sou um autor de espírito épico, numa<br />
época fascinada por coisas menores.<br />
Julho 2003<br />
67
“Estudo para o sepultamento” (Bronze - 1923). Victor Brecheret<br />
Bené Chaves (escritor)<br />
Diziam os estudiosos de Voltaire (1694-<br />
1778) - cujo verdadeiro nome era<br />
François Marie Arouet - que ele era<br />
uma pessoa paradoxal ao extremo. Foi preciso a<br />
parteira dar-lhe palmadas para que sobrevivesse.<br />
Os médicos não lhe deram mais do que quatro<br />
dias, mas ele enganou a todos e viveu 84 anos.<br />
Desprezava a humanidade, embora gostasse dos<br />
homens. Ridicularizava o clero, porém dedicou<br />
um de seus livros ao Papa. Falaram também<br />
que odiava a hipocrisia, empenhando-se com o<br />
riso na tarefa de afligir seus mentores. Todavia,<br />
era um hipócrita na atitude com os judeus.<br />
Não acreditava em Deus, mas sempre procurou<br />
encontrá-lo.<br />
No entanto, tinha um discernimento incomum<br />
em relação às instituições políticas e sociais de seu<br />
tempo. E numa profunda verdade sentenciava:<br />
rio-me, para não enlouquecer.<br />
E o que diremos nós, caro Voltaire, já tão<br />
calejados, hoje em dia, dessas malfadadas<br />
instituições? O jeito mesmo é rir, amargamente<br />
rir, senão enlouqueceremos todos.<br />
68 Julho 2003<br />
Sobre a<br />
vida e<br />
Mais adiante, bem mais adiante, aparece o poeta e escritor<br />
austríaco Ernst Fischer, nascido em 1899. Dizia ele que em um<br />
mundo alienado, no qual unicamente as “coisas” possuem valor, o<br />
homem se torna um objeto entre objetos: o mais impotente, o mais<br />
desprezível dos objetos. Eles têm mais força do que os homens.<br />
Em razão disso acrescenta com lucidez: a arte é necessária para que<br />
ele, o homem, se torne capaz de conhecer e mudar o mundo.<br />
E eis que chega uma mulher para nos auxiliar. É a chinesa Chiang<br />
Kai–shek, que nasceu em Xangai também no ano de 1899. Dizia<br />
lá nos seus ensinamentos que o excesso de riqueza devia pertencer<br />
à humanidade... deve haver igualdade entre os povos e as classes...<br />
paz e harmonia entre as nações ; roupa, alimento e habitação para<br />
os indivíduos.<br />
Mas, o que vemos depois de quase um século de vida? Que seu<br />
discurso tão apregoado com louvor, parece ter desfalecido na<br />
ganância insaciável e na insensatez dos homens. Afinal, concluía:<br />
não sou mística, não sou visionária. Acredito no mundo visto, não<br />
no mundo não visto.<br />
Grande mulher, hein? essa madame Kai–shek
e a morte<br />
Sobre a morte, esse fantasma que ronda nossas<br />
vidas e nos pega de surpresa, já comentava o<br />
célebre escritor argelino Albert Camus: “o que<br />
me espanta sempre, quando sempre estamos tão<br />
dispostos a sutilizar noutros assuntos, é a pobreza<br />
de nossas idéias acerca da morte”. E acrescenta<br />
adiante que “terei de morrer, mas isso nada quer<br />
dizer, porquanto não chego a acreditar e só posso<br />
ter a experiência da morte dos outros”. Todavia,<br />
diz ele... “penso então: flores, sorrisos, desejos de<br />
mulheres, e compreendo que todo o meu horror<br />
de morrer está contido em meu ciúme de viver”.<br />
Apenas como ilustração: no excelente filme “O<br />
sétimo selo”, de Ingmar Bergman, o assunto<br />
é focalizado, e na sua seqüência final mostra a<br />
sempre temível Morte carregando enfileirados<br />
todos os personagens da trama.<br />
Mas, vamos falar da vida... E sobre ela temos o<br />
depoimento realista do escritor americano Henry<br />
Miller, quando diz, entre outras coisas, que “a meu<br />
ver o mundo caminha para a ruína. Não é preciso muita inteligência<br />
para ir vivendo, do modo que as coisas andam. Na verdade, quanto<br />
menos inteligência se tem, mais se progride, arrebatando depois<br />
que eu queria encantar, mas não escravizar; queria uma vida mais<br />
ampla, mais rica, porém não à custa dos outros; eu queria libertar a<br />
imaginação de todos os homens...”<br />
E diante dos questionamentos da morte ou da vida, apelamos<br />
para o filósofo Confúcio, que viveu lá nos idos dos anos 531-478<br />
a.C. Dizia ele, com a sabedoria que lhe foi peculiar: como hei de<br />
compreender a morte, se ainda não compreendo a vida?<br />
Mas, quanto aos caminhos e descaminhos obscuros de uma<br />
vivência justa, declarava: se a humanidade fosse governada com<br />
justiça durante apenas um século, toda violência desapareceria da<br />
terra. Procurava compreender o ser humano, porém batia na tecla<br />
de que “não me preocupa muito que os homens não me entendam.<br />
O que me aflige é não os entender”.<br />
Vejam como naquele tempo as pessoas já eram complicadas e<br />
difíceis. Avaliem vocês se Confúcio vivesse no mundo atual,<br />
com um elo forte de corrupção atiçando as falsas probidades<br />
humanas.<br />
Julho 2003<br />
69
A tarrafa de Deífilo<br />
Luiz Cláudio Penha da Silva (estudante de<br />
Comunicação Social da UFRN)<br />
O tempo, ah, o tempo...<br />
Nos faz adiar tantos projetos<br />
nesse curto espaço da existência humana.<br />
Nesse momento sinto-me com a consciência<br />
do dever cumprido.<br />
Por volta da década de 80, quando aluno do<br />
Colégio Nossa Senhora das Neves, produzindo<br />
canções, com o meu amigo e parceiro musical,<br />
Iúri de Andrade (in memorian), ouvi uma das<br />
melodias mais doces e belas, produzida por ele<br />
para o poema “tarrafas” do professor Deífilo<br />
Gurgel.<br />
De lá, até os nossos dias, fui depositário desse<br />
encontro entre a poesia e as notas musicais,<br />
em que me sentia no dever de transmití-lo ao<br />
autor do poema. O ideal era que Iúri e Deífilo<br />
partilhassem o momento de fusão entre verso<br />
e canto. O “terceiro estágio” não permitiu que<br />
Iúri socializasse com o parceiro, o seu fazer<br />
criador.<br />
Cantava o poeta Nelson Cavaquinho: “...<br />
depois que eu me chamar saudade não preciso<br />
de vaidades, quero preces e nada mais”. As boas<br />
ações e criações de um ser humano devem ser<br />
ditas e lembradas em vida e após a morte.<br />
Nos versos que seguem, Deífilo expressou<br />
muito bem a vida paciente e laborativa do<br />
pescador em prol do seu sustento diário:<br />
70 Julho 2003<br />
Tarrafas<br />
A sombra do cajueiro que floresce junto ao mar<br />
Paciente o pescador tece a rede de pescar<br />
Enquanto a mão se entretece nesse mister singular<br />
Outra mão por trás do tempo vai tecendo sem cessar<br />
A tarrafa que algum dia, vai pescar o pescador<br />
Juntamente com seu tédio, seu sorriso e sua dor.<br />
E tece com tal mestria essa tarrafa de vento<br />
Que o pescador nunca pensa, quando pesca o seu sustento<br />
Que a morte o está pescando, lentamente, dia a dia<br />
Nessa embora inevitável, invisível pescaria.<br />
Na dialética da existência humana (“...outra mão por trás do<br />
tempo vai tecendo sem cessar...”) vivemos cercados de incertezas.<br />
Neste momento me bate uma saudade...Mas também, a<br />
felicidade de saber que a “tarrafa de Deífilo”, encanta por falar<br />
de coisas tão deliciosas e maravilhosas como a sombra, o mar,<br />
o pescador, a rede, juntamente com a melodia que, somada aos<br />
versos, nos deixam de alma calma e tranqüila.<br />
É assim que se solidifica o processo de construção: da poesia, da<br />
melodia, do labor, do cair, do levantar, do aprender, do lutar e<br />
sonhar com a certeza de que o fazer diário nos torna aprendizes<br />
da lição chamada vida.
O Beco da Lama, das<br />
artes e dos orixás<br />
Por Moura Neto<br />
Fotos: João Maria Alves<br />
Um dos últimos redutos dos artistas e boêmios no centro de<br />
Natal, o Beco da Lama vem se tornando palco de manifestações<br />
culturais prestigiadas não somente pela fauna humana que o<br />
freqüenta com pontualidade. Alguns dos eventos realizados na<br />
rua Dr. José Ivo, nome oficial do logradouro que se estende entre<br />
a Ulisses Caldas e Heitor Carrilho, cortando a João Pessoa, na<br />
Cidade Alta, têm atraído até mesmo parcela da sociedade chique<br />
tradicionalmente avessa aos botecos modestos e restaurantes<br />
populares que ali proliferam. A idéia é que isto aconteça com<br />
mais regularidade, segundo os membros da Sociedade dos<br />
Amigos e Moradores do Beco da Lama e Adjacências (Samba),<br />
entidade que há quatro anos levanta a bandeira da preservação<br />
do patrimônio histórico que o local abriga.<br />
Se depender da nova diretoria da Samba, que tomou posse em<br />
meio a ambiente festivo no mês de maio, com apresentações<br />
de bandas e performances dos remanescentes das tribos<br />
undergrounds, o Beco da Lama e adjacências irão ganhar um<br />
calendário de eventos que ajudará a resgatar sua história e ampliar<br />
seu acesso a todas as classes sociais. “Queremos promover pelo<br />
menos um evento por mês”, afirma o poeta Plínio Sanderson,<br />
40 anos, laureado com o prêmio Otoniel Menezes 2002, diretor<br />
cultural da entidade.<br />
O carro-chefe desta programação, segundo ele, será um<br />
evento que prestará homenagem póstuma a todos os grandes<br />
“habitues” da área, famosos e anônimos, talentosos ou não, que<br />
contribuíram para que o lugar ganhasse uma áurea pitoresca e<br />
Julho 2003<br />
71
Beco da Lama, das artes e dos orixás<br />
se consolidasse, ao longo de tantas décadas,<br />
como ponto de encontro de artistas plásticos,<br />
músicos, poetas, escritores, cultuadores e<br />
apreciadores das artes em geral. Enquanto a<br />
grande maioria dos mortais estiver chorando<br />
seus mortos nos cemitérios, no feriado do Dia<br />
de Finados, em novembro, a Samba garante que<br />
estará promovendo uma animada festa, que se<br />
repetirá nos anos seguintes, com exposição<br />
de fotos, recital de poesia e apresentação de<br />
músicas que lembrem os baluartes do Beco<br />
da Lama e adjacências, como o foram, por<br />
exemplo, o artista plástico e escritor Newton<br />
Navarro, o poeta Bosco Lopes e o cantor<br />
pau-de-arara Odair Soares, todos de saudosa<br />
memória.<br />
Se os mortos merecem loas, os vivos mais ainda,<br />
com o projeto “Calçada da fama”, idealizado no<br />
molde hollywoodiano para render homenagens<br />
aos que ainda estão entre nós. Outra meta da<br />
nova diretoria da Samba é popularizar a lavagem<br />
do beco, ao estilo baiano, com a participação<br />
das entidades de Umbanda e dos comerciantes<br />
que, alojados naquela área, vendem artigos para<br />
adeptos das religiões afro-brasileiras. Além do<br />
marketing que a realização invoca, conforme<br />
ficou comprovado nas duas edições anteriores,<br />
o objetivo é “limpar as energias” que confluem<br />
para aquele refúgio natural de boêmios,<br />
jogadores inveterados e “malucos” em geral.<br />
“Enfim, queremos transformar o beco num<br />
corredor cultural”, revela Plínio Sanderson.<br />
O médico e sindicalista João Batista de Lima, o<br />
Zizinho, que passou o cargo de diretor executivo<br />
da Sociedade dos Amigos e Moradores do Beco<br />
da Lama e Adjacências para o produtor cultural<br />
e poeta Eduardo Alexandre, o Dunga, conta<br />
que a idéia de fundar a entidade nasceu entre<br />
aqueles que alimentam “um certo amor pelo<br />
centro da cidade e sua parte mais antiga”. A<br />
fonte de inspiração, segundo ele, brotou das<br />
inúmeras iniciativas semelhantes ocorridas<br />
em cidades onde a população despertou para<br />
a necessidade de prezar seus sítios históricos,<br />
como a do Rio de Janeiro. “Nosso objetivo foi<br />
o de alertar a comunidade e o poder público<br />
para a importância de tombar e preservar um<br />
patrimônio histórico como esse”, disse Zizinho,<br />
72 Julho 2003<br />
53 anos recém-comemorados, claro, num dos botecos do bunker<br />
da boemia natalense que ajuda a manter ativo.<br />
Foi na sua gestão que o Beco da Lama, com suas casas e casarões<br />
antigos, abriu suas fronteiras para a penetração de notívagos e<br />
foliões acostumados aos cenários modernos da capital. Além da<br />
lavagem do beco, a Samba promoveu, nos anos anteriores, festas<br />
como as dos tributos a Chico Science e Noel Rosa, carnaval<br />
com banda de frevo e marchinha e um grande mutirão entre<br />
artistas plásticos para a pintura do seu calçamento, entre outras<br />
realizações.<br />
Novas gerações mantêm a<br />
tradição e o folclore do lugar<br />
Adoniram Fernandes Canan, do Bar do Nasi<br />
Várias gerações de biriteiros já se aposentaram ou se<br />
“encantaram”, mas o Bar do Nasi, na esquina da rua Dr. José Ivo<br />
com a Coronel Cascudo, no coração do Beco da Lama, continua<br />
com suas portas abertas aos profissionais do copo e amadores<br />
da conversa solta, possivelmente sem o mesmo glamour de<br />
décadas atrás, quando o velho Nasi Miguel Canan (Nasi, como<br />
era conhecido) descendente de libaneses, adotou uma clientela<br />
fiel ao aperitivo que ainda hoje dá fama ao estabelecimento: a<br />
meladinha, feita com cachaça, mel e limão.<br />
O patrono da casa faleceu em dezembro de 2001, aos 76 anos,<br />
mas deixou descendentes para cultuar sua memória e a do bar ao<br />
qual dedicou 40 anos de sua existência, de 1955 a 1995, quando<br />
adoeceu de diabetes e transferiu a administração do negócio para<br />
o filho Nasi Adoniram Fernandes Canan, hoje com 34 anos.<br />
“Mesmo doente ele vinha aqui todos os dias”, conta Adoniram,
herdeiro que não esconde orgulho por manter acesa a tradição do<br />
boteco. Na época do seu pai, não era difícil surpreender naquele<br />
recanto simplório do Beco da Lama algumas das expressões das<br />
artes e das letras potiguares, como os já mencionados Newton<br />
Navarro e Bosco Lopes, o jornalista e poeta Celso da Silveira e<br />
o escritor Bob Mota, que suspenderam suas atividades etílicas,<br />
pelo que se sabe. No desabrochar do terceiro milênio, o bar<br />
continua sendo freqüentado pelas novas gerações dos artistas<br />
natalenses.<br />
O carisma do velho Nasi, no entanto, se irradiava também pelos<br />
territórios mais conservadores da sociedade natalense. Compadre<br />
do ex-secretário de Justiça do governo de José Agripino, Manoel<br />
de Brito, foi por meio deste que o comerciante recebeu, em seu<br />
estabelecimento, aquele que hoje é o líder do PFL no Senado.<br />
A visita mais enaltecedora e marco maior dos áureos tempos do<br />
bar, porém, ficou registrada para a posteridade em placa afixada<br />
na parede, onde se lê: “Aqui Pixinguinha recebeu o abraço<br />
carinhoso desta Natal boêmia”. Foi ele mesmo, sim, o grande<br />
mestre da MPB, que ali esteve em 21 de abril de 1969.<br />
Como a maior parte dos fregueses que atendia, Nasi tinha<br />
características singularíssimas. Não anotava os pedidos que<br />
despachava, guardando tudo na memória. Isto fez com que<br />
ocupasse lugar de honra no anedotário folclórico que exalta os<br />
personagens típicos do beco e adjacências. Dizem uns e outros<br />
que Nasi passava a conta do freguês após observar seu estado - e<br />
jamais errava no cálculo. “Bastava olhar para ele saber quantas<br />
doses o cliente havia tomado”, atesta Dorian Lima, produtor<br />
cultural, 40 anos, uns 19 vividos naquelas redondezas. Outra<br />
faceta deste personagem: não limpava as prateleiras onde se<br />
enfileiravam as garrafas de pinga, deixando que de lá saltassem<br />
enormes teias de aranha, sinal de sorte, conforme crença árabe.<br />
O dono do bar e o padre<br />
Nascido na rua Gonçalves Ledo, 671, prolongamento da Vigário<br />
Bartolomeu, numa casa cujos fundos dá para o Beco da Lama, o<br />
músico e comerciante Pedro Abech (Pedrinho), descendente de<br />
turco, árabe e judeu, passou a infância, cresceu e tornou-se adulto<br />
em contato permanente com aquele setor da cidade, onde hoje,<br />
aos 44 anos, mantém um pub (bar) no mesmo endereço citado<br />
acima. Abech conhece como ninguém os tipos que transitam por<br />
ali. Antes de abrir o bar, em 1985, foi dono de uma casa de jogo<br />
por dez anos, freqüentada também pela fina flor da sociedade.<br />
Viu de tudo, mas conserva a discrição. Faz parte de seus planos<br />
Beco da Lama, das artes e dos orixás<br />
atuais expandir os negócios. Ele pretende<br />
ampliar a estrutura do bar para a realização de<br />
eventos culturais, oferecendo dois ambientes<br />
distintos, um clássico e outro popular, para a<br />
clientela composta principalmente de artistas<br />
que, como ele, se mantém fiel à tradição do<br />
beco.<br />
Vizinho a Abech reside o padre espanhol<br />
Agustin Juan Calatayud y Salom, que jamais se<br />
aborreceu com o barulho da música e das vozes<br />
que se exaltam em discussões acaloradas. Ao<br />
contrário, em artigo publicado no livro Cantões,<br />
Cocadas - uma antologia sobre o Grande Ponto<br />
Djalma Maranhão, coordenada por Eduardo<br />
Alexandre - ele descreve a satisfação com que<br />
às vezes conversa, no bar do Pedrinho, com os<br />
artistas, intelectuais e comunistas (a sede do PC<br />
do B fica ali perto) que “procuram no luar, na<br />
cerveja e na camaradagem desafogar as pressões<br />
do dia e da vida”. O Beco da Lama, aliás, tem<br />
sido cantado em verso e prosa não só por<br />
poetas e músicos, mas por cronistas de todas as<br />
estirpes, incluindo os de alta plumagem como<br />
Berilo Wanderley.<br />
Pedro Abech, dono de bar<br />
Julho 2003<br />
73
Beco da Lama, das artes e dos orixás<br />
Ali morreu Jorge Fernandes<br />
segurando a mão de Bibita<br />
Moura Júnior (Bibita)<br />
As casas que antigamente se situavam na avenida<br />
Rio Branco e nas ruas Vigário Bartolomeu e<br />
Gonçalves Ledo tomavam todo o quarteirão. A<br />
água da roupa lavada, conduzindo os dejetos e<br />
outras impurezas dos bichos soltos nos quintais,<br />
escorria para o beco dos fundos, dando origem<br />
ao nome do gueto que, tempos depois, passou a<br />
ser sinônimo de boemia e vagabundagem. Isto<br />
aconteceu depois da segunda metade da década<br />
de 40, segundo o procurador aposentado da<br />
Assembléia Legislativa, Manoel Procópio de<br />
Moura Júnior, 63 anos.<br />
Segundo ele, no final do século XIX e primeira<br />
metade do século XX, a rua Voluntários da<br />
Pátria, no trecho entre a Ulisses Caldas e<br />
Coronel Cascudo, também na Cidade Alta, era<br />
conhecida como Beco da Lama por causa do<br />
que nela havia de sobra. Este trecho foi fechado,<br />
entre 1937 e 1945, passando o acesso a fazer<br />
parte dos quintais das casas localizadas nas ruas<br />
da Conceição e Vigário Bartolomeu. Com isso,<br />
afirma Moura Júnior, a denominação de Beco<br />
da Lama foi transferida para a rua Dr. José Ivo,<br />
que durante muito tempo foi conhecida como<br />
rua do Meio, por se localizar entre a avenida<br />
Rio Branco e Vigário Bartolomeu.<br />
Moura Júnior viveu 30 anos de sua vida nas<br />
proximidades do atual Beco da Lama. A casa<br />
onde nasceu pelas mãos da parteira Salomé<br />
Carvalho de Albuquerque Maranhão, mãe<br />
do ex-prefeito de Natal Djalma Maranhão,<br />
ficava entre a casa do poeta vanguardista Jorge<br />
74 Julho 2003<br />
Fernandes, na Vigário Bartolomeu com fundos para a Dr. José<br />
Ivo, e a de Bartolomeu Fagundes, dono do cartório herdado pelo<br />
filho Armando, na rua da Conceição. Foi ali que começou sua<br />
carreira de boêmio, encerrada há alguns anos. Foi dali, também,<br />
que guardou sua recordação mais preciosa: a amizade com o<br />
poeta precursor do modernismo. Quando Jorge Fernandes<br />
morreu em julho de 1953, aos 66 anos, ele tinha apenas 13. A<br />
diferença de idade, porém, não foi empecilho para que os dois<br />
se tornassem íntimos.<br />
Moura Júnior tinha um apelido, Bibita. Na noite em que o poeta<br />
fechou os olhos para este mundo, a filha Alice invadiu correndo<br />
a casa de seu Nezinho (pai de Moura), para levar Bibita até à<br />
cama do moribundo, que queria vê-lo. “Ele morreu segurando<br />
minha mão”, lembra. Muito tempo - antes desta hora final - os<br />
dois passaram juntos. Jorge costumava chamar Bibita para tomar<br />
suco de limão, fruto que o garoto colhia da árvore do vizinho. Só<br />
depois Moura Júnior descobriu que a limonada trazida para ele<br />
por dona Alice (esposa do poeta e que tinha o mesmo nome da<br />
filha) não era a mesma oferecida ao poeta, que naquelas ocasiões<br />
tomava batida de limão.<br />
Rezando em cartilha diferente<br />
Os botecos do Beco do Lama sempre foram ocupados pelos<br />
boêmios que não rezavam - e o verbo também pode ser conjugado<br />
no presente - pela cartilha da sociedade bem comportada. Na<br />
época em que os holofotes pipocavam na direção da Confeitaria<br />
Cisne, Acácia Bar e Sorveteria Aracati, nas imediações do Grande<br />
Ponto, locais freqüentados por figuras ilustres como o mestre<br />
Câmara Cascudo e o dr. João Medeiros Filho, alguns preferiam o<br />
beco e adjacências, onde pontificavam, por exemplo, o Granada<br />
Bar e Oásis. Depois se instalaram por ali comerciantes como<br />
Nasi, Odete e Chico, cujas casas continuam abertas ao público,<br />
sempre renovado ao sabor das estações dos anos.<br />
Entre os anos 90 e 91, há quem lembre, fez sucesso o Balalaika,<br />
um espaço cultural alternativo e independente, sem vínculo<br />
com instituições oficiais, onde se realizavam lançamentos de<br />
livros e exposição de artes plásticas. Também havia sala para a<br />
comercialização de livros usados e de artigos do sertão, mas o<br />
movimento maior, sem dúvida, era no bar onde loucos e sãos se<br />
confundiam como gatos pardos na noite. Um dos proprietários<br />
do lugar, o livreiro e editor Abimael Silva, 40 anos, conta que a<br />
derrocada do Balalaika foi durante o Plano Collor, que confiscou<br />
a poupança dos brasileiros. A deles também.