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Janduís - Fundação Jose Augusto

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Natal, RN - N° 2, Julho, 2003<br />

<strong>Janduís</strong><br />

Arte à luz do dia<br />

Entrevista: Abimael Silva, do Sebo Vermelho<br />

A universalidade de Zila Mamede<br />

Campo Grande - Música de geração a geração<br />

O Beco da Lama, das artes e dos orixás


A Preá está na Internet: www.fja.rn.gov.br<br />

“Vocês da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> estão de<br />

parabéns. E a nossa Orquestra Sinfônica<br />

não deve nada, em qualidade, às grandes<br />

orquestras do Brasil”. (Senador José<br />

Agripino, durante o concerto<br />

da OSRN em Caicó).<br />

FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO<br />

Rua Jundiaí, 641 - Tirol - CEP 59020-120<br />

Fone/fax: (84) 221.0342<br />

Governadora:<br />

Wilma Maria de Faria<br />

Presidente:<br />

François Silvestre de Alencar<br />

Diretor:<br />

Laércio Bezerra de Melo<br />

Assessor Cultural:<br />

Nei Leandro de Castro<br />

PREÁ - REVISTA DE CULTURA DO<br />

RIO GRANDE DO NORTE<br />

ANO I Nº 2<br />

JULHO/2003<br />

EDITOR: TÁCITO COSTA<br />

tacito@fi ern.org.br<br />

EDITOR ASSISTENTE: GUSTAVO PORPINO<br />

gporpino@hotmail.com<br />

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:<br />

LUCIO MASAAKI<br />

FOTOS:<br />

JOÃO MARIA ALVES<br />

CANDINHA BEZERRA<br />

VLADEMIR ALEXANDRE<br />

Expediente/Índice<br />

- Palavra da casa 04<br />

- Cartas 05<br />

- Canudos pelas lentes de<br />

Evandro Teixeira 06<br />

- Canudos, tragédia, ficção 07<br />

- Algumas marcas de<br />

cachaça do RN 09<br />

- É o seguinte 11<br />

- Entrevista: Abimael Silva 13<br />

- 13 por 1 22<br />

- A universalidade de Zila 23<br />

- Os bichos na poesia 30<br />

- Escritura Potiguar 35<br />

- Campo Grande 39<br />

- <strong>Janduís</strong> 45<br />

- Esse estranho<br />

magnetismo 52<br />

- A biografia que falta 56<br />

- Pai Bastião<br />

e a Casa de Usher 57<br />

- A travessia do “nonada”<br />

pelo Grande Sertão 61<br />

- O senhor do futuro 65<br />

- Sobre a vida e a morte 68<br />

- A tarrafa de Deífilo 70<br />

- O Beco da Lama, das<br />

artes e dos orixás 71<br />

Julho 2003<br />

3


Editorial<br />

4 Julho 2003<br />

A palavra da casa<br />

François Silvestre<br />

Preá no segundo número. O que a segunda filha perde no<br />

alvoroço da espera ganha na serenidade da experiência.<br />

Agradeço aos colaboradores. Agradeço aos editores Tácito<br />

Costa e Gustavo Porpino. Por fim, a colaboração inescondível de<br />

Nei Leandro de Castro. Agradeço aos críticos. Todos eles. Os que<br />

gostaram e tornaram público o aplauso. Os que não gostaram e<br />

tornaram público o desgosto.<br />

Há uma confusão, na crítica, de que a Préa é substituta de<br />

O Galo. Não é verdade. O Galo não foi editado porque não<br />

tivemos condições de cuidar de dois veículos. E dei prioridade<br />

à revista.<br />

A diferença da revista para o jornal, além de outras, é a<br />

durabilidade. O jornal tem o condão da notícia e a fragilidade<br />

do material. No interior, ele não teria vida longa. A não ser<br />

nos colecionadores ou arquivistas. Até a sua distribuição para<br />

o interior é difícil. Veja o caso dos jornais de Natal, todos com<br />

distribuição precária no interior.<br />

Uma revista cultural, além da informação, ou até mais que ela,<br />

há de ser um veículo de formação. Que sirva para pesquisas e<br />

discussão. Coisa de que o jornal carece, por conta de seu material<br />

de feitura.<br />

Préa não é um boletim das Casas de Cultura. Será um elo<br />

informativo entre elas. Mas Préa irá a todos lugares, onde haja<br />

ou não Casas de Cultura.<br />

No geral é isso aí. Mas uma vez a minha gratidão aos<br />

colaboradores. Sem eles não haveria revista.<br />

Toda crítica será recebida com serenidade. Poderá ser acatada ou<br />

não. Todo aplauso será recebido com a mesma serenidade. E será<br />

guardado em um envelope de gratidão.


Cartas<br />

Tácito Costa<br />

Parabéns pela bonita edição da revista. Sou de Fortaleza. Vi<br />

a revista na casa de um amigo. Espero que os números que<br />

virão tenham o mesmo cuidado gráfico e editorial da primeira.<br />

Um abraço.<br />

Evandro Abreu (evabreu@globo.com).<br />

.................................................................<br />

Digaí, Tácito!<br />

Rapaz, parabéns pela revista Preá. Muito legal. Bem<br />

diagramada, os textos interessantes e bem escritos. Peguei-a<br />

na Cooperativa Cultural, da UFRN, há uma semana.<br />

Espero que continue a publicação: a nossa cultura agradece.<br />

Forte abraço do amigo.<br />

Francisco Duarte Guimarães (jornalista].<br />

.................................................................<br />

Tácito,<br />

Gostei muito do seu artigo sobre meu livro, não apenas porque<br />

você compreendeu perfeitamente a idéia dele, mas porque<br />

também o seu texto está belíssimo. Envio este e-mail também<br />

para dizer que enviarei em breve o texto que vc me pediu<br />

para ser publicado na Preá nº 3 (e por falar na Preá, ela está<br />

excelente, com um projeto gráfico muito bonito). A cultura<br />

de Natal precisava de uma revista cultural dessa qualidade.<br />

Até mais,<br />

Mário César Rasec (poeta)<br />

.................................................................<br />

Tácito Costa<br />

Ano passado, finzinho de ano, provei o primeiro preá de minha<br />

vida, caçado por Seu Chagas, cozido por Dona Alzira, trazido<br />

à mesa com as pompas e circunstâncias de estilo e, ali mesmo,<br />

saboreando o bicho, sou doutrinado e conduzido através dos<br />

meandros intricados de uma ciência complexa e insuspeita que<br />

define e classifica tatus e preás. Tatus, conheço-os só de vista.<br />

Mas, se o assunto é preá, já me atrevo a botar banca.<br />

Correspondência<br />

Pra melhor dizer, o caso é que, mal refeito da<br />

surpresa e do resgate gastronômico de ignoradas<br />

raízes culturais, me vem este Preá, caçado por<br />

François Silvestre nas pradarias de sua memória<br />

afetiva e cultural de humanista e escritor<br />

inteligente e sensível; servido pela <strong>Fundação</strong><br />

José <strong>Augusto</strong> na forma de uma gostosa revista<br />

de cultura, eclética e provocativa, leve e<br />

instigante, séria e bem humorada, corajosa e<br />

criativa.<br />

E aí só me resta louvar este Rio Grande do Norte<br />

que me inicia na heráldica e na hermenêutica<br />

dos preás, esses bichos encourados como<br />

vaqueiros de duras pradarias, que agora, além<br />

de se embiocarem nos desvãos das tripas, me<br />

alimentam a alma de sortilégios e enlevos.<br />

Jairo Lima (escritor e livreiro do Recife)<br />

.................................................................<br />

Meu amigo Gustavo,<br />

Parabéns pala revista! Ficou muito legal. Pra ser<br />

a número um, então, tá mais do que perfeita.<br />

Foi um grande primeiro passo. Gostei da cara,<br />

do nome, da diagramação, dos textos. Acho que<br />

ficou bem potiguar. E adorei sua matéria de<br />

Martins. Que personagens!!! O Dinho é digno<br />

de cinema. Que bom registrar a existência deste<br />

homem.<br />

Parabéns a todos.<br />

Espero continuar recebendo a revista.<br />

E quero fazer apenas uma pequena sugestão.<br />

Pra publicação ficar menos elitista, que<br />

tal grafar as palavras estrangeiras de forma<br />

aportuguesada, como “Lucerna” e “Zurique”?<br />

É só uma sugestão.<br />

Grande abraço!<br />

Alan Severiano (jornalista - TV Globo-SP)<br />

Julho 2003<br />

5


Canudos<br />

pelas<br />

lentes de<br />

Evandro<br />

Teixeira


Canudos, tragédia, ficção<br />

“Escondida pela caatinga, ainda restam antigas trincheiras feitas pelos soldados no alto do<br />

Mário”(Livro “Canudos 100 Anos”, de Evandro Teixeira)<br />

Nei Leandro de Castro (poeta e escritor)<br />

campanha de Canudos foi uma grande farsa que o gênio de<br />

A Euclides da Cunha transformou em brutal realidade.<br />

De mentira era o exército republicano feito de soldadinhos de<br />

chumbo, oficiais malucos, epilépticos, acovardados, sanguinários<br />

todos. Delírio seria supor que um grupo de famintos e fanáticos<br />

– perto de Uauá e pra lá de onde Judas perdeu as alpercatas –<br />

pudesse ameaçar a recém-nascida República. Aliás, a República<br />

era uma abstração ao alcance de muito poucos. Os romeiros,<br />

viajando no ópio da pregação do Conselheiro, só queriam as<br />

benesses da vida eterna, nem que tivessem de deixar a sola dos<br />

pés no chão de pedra e espinhos, ou passar mais fome do que já<br />

passavam. O sertanejo é antes de tudo um crédulo.<br />

Sem a testemunha ocular de jornalistas, sem a onipresença<br />

de Euclides da Cunha, como chegaria à história oficial a<br />

campanha de Canudos? Talvez tudo estivesse sob a poeira do<br />

esquecimento, como o arraial está hoje sob as águas do açude<br />

Cocorobó. O Exército, que levou surras homéricas dos caboclos<br />

armados de peixeira e espingarda de matar arribaçã, iria soterrar<br />

qualquer vestígio de vergonha. Todas as testemunhas, mesmo<br />

aquele velho, os dois homens e a criança, “na frente dos quais<br />

rugiam raivosamente 5.000 soldados”, seriam mortas depois de<br />

obrigadas a gritar vivas à República.<br />

Sempre vi Canudos não como fato histórico,<br />

mas como o grande marco da ficção brasileira.<br />

Lido há mais de 30 anos, relido algumas vezes,<br />

o livro de Euclides da Cunha me causou um<br />

impacto que perdura até hoje. Em suas páginas,<br />

Moreira César (nome de rua em várias cidades<br />

importantes, mas um engodo histórico) é<br />

fascinante como vilão. Foi um trapalhão<br />

sanguinário e folhetinesco, que chegou a<br />

Canudos com fama de Corta-Cabeças, Belzebu,<br />

Treme-Terra, e acabou derrotado pela epilepsia.<br />

No campo de batalha, justificou a fama que<br />

inspirou a quadrinha:<br />

Moreira foi ao inferno<br />

Com seu trabuco de lado.<br />

O Cão viu e disse vixe<br />

Eita que cabra malvado.<br />

Julho 2003<br />

7


Canudos, tragédia, fi cção<br />

Moreira, Tamarindo, Febrônio e os milhares de<br />

coadjuvantes das quatro expedições a Canudos<br />

sempre foram vilões para mim na leitura de<br />

“Os sertõe”s. Meus heróis foram e continuam<br />

sendo Pajeú, João Abade, o sineiro Timoninho<br />

e aqueles figurantes que partiam de faca na<br />

mão para cima da “Matadeira”, o canhão que<br />

reduzia a pó os seus casebres, a sua igreja, as<br />

suas vidas, mas os transportavam para o reino<br />

celestial prometido pelo demiurgo cearense.<br />

Quinze mil sertanejos morreram em Canudos.<br />

Junto com eles, o vilarejo bombardeado até o<br />

último cartucho, a miséria em sépia incendiada<br />

pelos soldados do marechal Bittencourt.<br />

Antônio Mendes Maciel, o Conselheiro, já<br />

estava morto, morte inglória, disenteria. Foi<br />

desenterrado, fotografado, execrado, sendo<br />

incerto e não sabido se teria subido aos céus. Lá<br />

nas alturas, muito acima dos nimbos e cúmulos,<br />

está o livro de Euclides da Cunha, com a<br />

eternidade que marca as obras definitivas.<br />

Ler “Os sertões” não é tarefa fácil. Mas o leitor<br />

não precisa atravessar a aridez da primeira parte<br />

do livro, “A terra”, nem a segunda parte, “O<br />

homem” – travessia difícil como uma caatinga<br />

de facheiros e xiquexiques. Convém passar ao<br />

largo desses episódios e começar a viver a luta<br />

de Canudos, um épico do subdesenvolvimento,<br />

da miséria, do fanatismo, do embuste oficial,<br />

de um exército de soldadinhos de chumbo e de<br />

generais sanguinários.<br />

Os mortos de Canudos têm nas águas tranqüilas do Cocorobó uma majestosa lápide<br />

8(Livro “Canudos Julho 2003 100 Anos”, de Evandro Teixeira)<br />

Há 106 anos, nos sertões da Bahia, o Exército concluiu a ferro e<br />

fogo um dos episódios mais sombrios de sua história. Tropas de<br />

elite destruíram famintos desarmados, degolaram suas mulheres,<br />

transformaram em pó suas taperas. O gênio de um escritor<br />

atormentado testemunhou: “Canudos não se rendeu. Exemplo<br />

único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo.<br />

Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu<br />

no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores,<br />

que todos morreram.”<br />

A campanha de Canudos foi uma mentira. Viva a ficção de<br />

Euclides da Cunha.


de cachaças do RN<br />

Algumas marcas<br />

Ilustração de Flávio Freitas (livro: “Encantaria da Pedra”)<br />

Gutenberg Costa (pesquisador e escritor)<br />

Muitos estudiosos escreveram sobre a cachaça brasileira,<br />

entre eles, Câmara Cascudo, José Calasans e Mário<br />

Souto Maior. Na qualidade de um vagaroso e<br />

indisciplinado colecionador de marcas brasileiras de aguardentes,<br />

pude acompanhar tanto degustando, quanto testemunhando o<br />

surgimento de outras ao longo da coleta colecionadora. A bem<br />

da verdade cheguei a vender o primeiro ajuntamento, devido a<br />

falta de espaço em minha casa e um quase acidente com a minha<br />

filha mais nova, que muito sapeca derrubou em direção aos seus<br />

pés algumas garrafas do alto da estante. Não só bêbado como<br />

colecionador tem santo forte, pois nada de grave aconteceu com<br />

a pequena Sarah. Desgostoso com este quase acidente, certa feita<br />

estando bebendo e proseando na churrascaria “Gauchinha” do<br />

país de Mossoró, ao lado dos amigos Paulo Gastão e Kydelmir<br />

Dantas, eis que em meio ao nosso bate papo, um sujeito de<br />

“ouvido de tuberculoso” e como eu, também<br />

colecionador de aguardentes, que na ocasião<br />

encontrava-se numa mesa ao lado, ouvindo<br />

a minha pretensão de vender todas as marcas<br />

que dispunha em minha coleção, rapidamente<br />

pediu-me o endereço e no primeiro fim de<br />

semana correu de Mossoró para Natal com<br />

o intuito de levá-la. Como não pude fugir da<br />

palavra, meio chateado recebi o tal pagamento<br />

e nem tomei nota do nome do comprador. O<br />

que é certo, é que este esperto colecionador<br />

ampliou e muito o seu acervo de marcas de<br />

cachaças, com as mais de trezentas garrafas de<br />

minha residência.<br />

Julho 2003<br />

9


Algumas marcas de cachaças do RN<br />

Comecei a partir daí a segunda coleção, pois<br />

muitos amigos que não tomaram conhecimento<br />

deste fato lamentável, continuaram a presentearme<br />

com outras marcas de cachaça, oriundas<br />

de suas viagens e outras eu as<br />

compro quando vejo à venda,<br />

principalmente em velhas<br />

bodegas interioranas. O ruim<br />

de tudo é que desde algum<br />

tempo esta segunda coleção<br />

vem crescendo e pleiteando um<br />

lugar com mais espaço, numa<br />

tremenda briga com os livros.<br />

O certo é que esta não mais<br />

será vendida de jeito nenhum.<br />

Nem que galo deixe de cantar<br />

ou preá deixe de cair em quixó!<br />

Uma das grandes coleções que vi em minha<br />

vida, foi a de “seu” Paulo da cidade de Triunfo/<br />

PE, que toma conta de duas grandes salas. Em<br />

Natal, a primeira coleção que observei foi a de<br />

Nazi da Meladinha. Miranda Sá, outro amigo<br />

colecionador, foi o primeiro político a lançar a<br />

sua campanha num rótulo de cachaça no RN.<br />

Aliado a mania de colecionar, me veio a idéia de<br />

pesquisar as nossas marcas potiguares, que no<br />

passado fizeram tanto sucesso de venda entre<br />

10 Julho 2003<br />

os degustadores da boa aguardente brasileira. Tínhamos orgulho<br />

de nossas marcas. Quando travei conhecimento com o saudoso<br />

mestre folclorista Mário Souto Maior (1820–2001), que além de<br />

autor do “Dicionário da Cachaça”, era um grande colecionador<br />

etílico e bem antes de seu encantamento, num<br />

gesto louvável para a nossa memória, doou toda<br />

a sua valiosa coleção de aguardentes a <strong>Fundação</strong><br />

Joaquim Nabuco, de Recife/PE, que reservou um<br />

espaço digno para os visitantes, colecionadores e<br />

principalmente os pesquisadores poderem apreciála.<br />

Se no futuro, alguém se interessar em publicar<br />

a história das marcas das aguardentes brasileiras,<br />

o nosso pequeno Rio Grande do Norte terá a sua<br />

participação histórica. O desconhecimento com<br />

nossas marcas é muito visível além fronteiras,<br />

posto que a editora Escala publicou recentemente<br />

uma revista dedicada aos colecionadores de<br />

aguardente do País, aonde a única marca potiguar<br />

relacionada na citada publicação, foi a “Olho D’água”, que<br />

inclusive faz muito tempo que está fora de mercado e a edição<br />

211 de maio de 2003, da Revista Globo Rural, com dez páginas<br />

dedicadas a nossa pinga brasileira, deixou o RN de fora.<br />

No RN ainda não tem, mas em vários Estados já existem os seus<br />

museus dedicados a cachaça, entre eles, os de Maranguape/CE<br />

e o de Lagoa do Carmo/PE, de propriedade do empresário<br />

José Matias de Moura, hoje, o maior colecionador do mundo,<br />

possuidor de 4.141 marcas, expostas em seu museu particular.<br />

Aqui estão as marcas do RN, que até o momento pude anotar, num futuro primeiro inventário da<br />

cachaça potiguar. Algumas marcas são comerciais, enquanto outras são criações particulares, sem fins<br />

de venda e lucro. Sabendo perfeitamente que, nem tudo chegou ao nosso pouco conhecimento, acredito<br />

perfeitamente que esta poderá ser acrescida desde já.<br />

- CRISTAL – Ceará-Mirim – Fora de Mercado - Coleção Mário Souto Maior - EXTRA – São José de Mipibu – Fora de Mercado - Coleção MSM - FASCINAÇÃO<br />

Natal – Fora de Mercado - CMSM - GATO – Natal – Fora de Mercado - CMSM - MARIA BOA – Natal – Fora de Mercado - CMSM. - MUCURIPE – Ceará-<br />

Mirim – Fora de Mercado- CMSM - MURIM – Canguaretama – Fora de Mercado - Coleção Gutenberg Costa/Mário Souto Maior - OLHO D´ÁGUA – São<br />

José de Mipibu – Fora de Mercado - CMSM/CGC - PODE ENCHER – Natal – Fora de Mercado - CMSM - QUERIDINHA – Natal – Fora de Mercado<br />

- CMSM - RAINHA DA GUANABARA – Natal – Fora de Mercado - CMSM - SABOROSA– Mossoró – Fora de Mercado - CMSM - SENTINELA – Natal<br />

– Fora de Mercado - CMSM - TOME JUÍZO – Ceará-Mirim – Fora de Mercado - CMSM - KANGURU – Natal – Fora de Mercado - CMSM - BALALAICA<br />

– Nova Cruz – Engarrafamento de “seu” Reginaldo, pai do jornalista Flamínio Oliveira – Fora de Mercado - ARATÚ – Natal - Engarrafamento de Clóvis<br />

Galvão – Fora de Mercado- CGC - MALHADA VERMELHA – Severiano Melo – Encontra-se à venda e é considerada uma das melhores do RN - CGC<br />

- MEL BORGES – Macaíba – Fora de Mercado- CGC - ALEGRIA DE POBRE – Macaíba – Fora de Mercado - CGC - MACAIBA – Macaíba – Encontra-se<br />

a venda - CGC - PAPA- JERIMUM – Natal – ( Criação de Gutenberg Costa para presentear os amigos) - PAPARY – Nisía Floresta – Encontra-se à venda e<br />

é considerada uma das melhores cachaças atualmente do RN - CGC - MURIM – MIRIM – da mesma Murim – fora de mercado - Canguaretama – CGC<br />

- ENGENHO DAS MANGABEIRAS – Macaíba – Encontra-se à venda e é uma das melhores cachaças atualmente do RN - CGC - ZEFA DOIDA – Lagoa do<br />

Bonfim – Engarrafamento de Marcos Lopes – à venda – CGC - FARRA NA PRAIA – Engarrafamento do poeta Zé Saldanha – Fora de Mercado - Natal -<br />

GUAIAMUM – Tangará – Cachaça encontrada à venda atualmente - CGC - MIRANDA SÁ – Criação de Miranda Sá – Produto fora de Mercado- Natal - BOM<br />

JARDIM - Goianinha - Fazenda Bom Jardim – Produto fora de mercado - SUCURÚ – Goianinha – Fazenda Bom Jardim – Produto fora de Mercado - SUMARÉ<br />

– Goianinha – Produto fora de Mercado - TARUMÃ – Goianinha – Produto fora de Mercado - BOHÊMIA – Goianinha – Cachaça fora de Mercado.


Afrânio Pires Lemos (escritor)<br />

É o seguinte<br />

É o seguinte Seguinte seguinte<br />

- Ou você vai pra o Sul ou morre sem ser lido<br />

pela metade do povo que lhe ajuda. E se você<br />

se ajuda, trate de ver isso. Não há chances. É<br />

ir ou largar. Ou viver escrevendo laudas que<br />

os críticos lhe dizem estarem longas e pesadas<br />

ou os não críticos tacharem de desenxabidas.<br />

Olhares atravessados, caras feias, rostos duros<br />

que não lhe transmitem impressão qualquer de<br />

simpatia ou de perdão pelas suas dívidas. Assim<br />

assuma a sua condição de escritor medíocre ou<br />

parta em direção ao Sul. Lá você será homem<br />

de letras que incluirá o Brasil na lista de nações<br />

que têm gente que sabe manejar uma pena.<br />

Não há como se manter escritor aqui, com<br />

possibilidade de viver da arte, pela arte, e com<br />

arte. Arrebente-se todo e vá para o Sul. Saia<br />

daqui de Natal.<br />

- Não se deve olhar assim. Há esperança, mesmo<br />

remota, sei, que algo vai acontecer. E algo está<br />

acontecendo. Repare que o azul fica verde, o<br />

amarelo embranquece e o verde vira cor de<br />

burro-quando-foge. Segundo opinião de altas<br />

personalidades o Lula disse que reparassem bem nele e vissem<br />

que algo no país muda. E se você for sincero há de combinar<br />

comigo. Algo está acontecendo, a partir dessas reuniões com<br />

prefeitos, com ministros, com juízes. Essas passeatas a pé, verbas<br />

para a cultura, amparo pras ferrovias, labuta pelos juros. Repare<br />

que algo muda. E pra melhor e com o apoio dos que ajudam.<br />

Se do Governo se quer posições ortodoxas, heterodoxos não nos<br />

comportemos. O Brasil está mudando.<br />

- Sei. Mas não misturando alhos com bugalhos, essa história<br />

de você morar aqui e ser um autor nacional é completamente<br />

impossível. Ilusória. Não tem solução, não tem como se realizar.<br />

Ou você vai ou então não será conhecido nem aqui nem acolá.<br />

E vai tudo pro raio que o parta. Por exemplo: você tem quantos<br />

livros publicados?<br />

- É lamentável lhe dizer que quatorze. E a propósito: como é que<br />

se escreve quatorze? Tem gente que escreve assim e gente que<br />

não. Mas bem: tenho l4. E sei. Não há possibilidade de se sair do<br />

ostracismo, sem a ajuda oficial de algum mecenas ou de alguma<br />

empresa que, geralmente luta muito pra se manter à tona. Olhe:<br />

nós somos inclinados a ser bons, com a capacidade de ser maus.<br />

E variamos. A harmonia do mundo, dentro da ordem, é relativa.<br />

Valoriza-se o gasto por obras suntuosas e não se olha um moço<br />

Julho 2003<br />

11


É o seguinte<br />

triste que apregoa a publicação de um livro como fonte de apoio<br />

para um obelisco em construção na Praça da Liberdade. Seriam<br />

obras de curto alcance. São armas de pouco calibre, que não<br />

vale a pena testar. Você é, portanto, uma arma branca de pouca<br />

utilidade.<br />

- Chego a uma conclusão arrepiante. Não há chance então de<br />

me tornar um escritor nem no âmbito estadual. Um escritor<br />

que tenha força assim como uns meninos que andam por ai<br />

escrevendo páginas de condoreiras paixões e emocionadas<br />

belezas risíveis. Causos e reparações. Lutas e amores. E se<br />

assanham, apresentam-se na imprensa reduzida da localidade,<br />

tentando a todo custo, como heróis que são, se manter heróis e<br />

respeitados como um anjo do Bem. E viva a literatura potiguar.<br />

Amor reinando enquanto se chora por um leite derramado,<br />

existindo só remota possibilidade de se recuperá-lo, através de<br />

pano úmido de bondade e esperança, também no amanhã.<br />

- Não digo assim. E lute sua luta. Faça como eu que já fui pro<br />

Rio e lancei um livro lá. E o que aconteceu? Nada. Mas, lancei o<br />

danado lá. E voltei, porque aqui é o meu lugar e o meu lugar éme<br />

prezado e tenho esperanças remotas de voltar, e no Rio lançar<br />

outro livro de contos.<br />

- Não se iluda. Não há mais muitas chances para se ir em frente.<br />

No Brasil, desde os tempos de Castro Alves, o moço que não<br />

andasse nos trilhos, não brilhava jamais, e não subia. Então ande<br />

em direção ao sol. Seja um condoreiro. Seja um lutador. Vá em<br />

frente.<br />

- Não. Eu vou. Quero lhe dizer que você é quem deve lutar.<br />

Brigar, pedir para que se acabem com a burocracia nos incentivos.<br />

Penduricalhos legais. Novas leis cheias de leis anteriores. Se faça<br />

por menos. Hoje se lute pelo interior, se traga produção do<br />

homem que pontua nas cidadezinhas para que seja visto aqui. E<br />

possa numa sorte, bater no Sul. Por exemplo, você já lançou um<br />

livro de contos e até um romance. Quem sabe disso?<br />

- Olhe: tenho um livro de contos publicado em 1957, e que além<br />

de esquecido, não se insere em qualquer compêndio estadual.<br />

Não há em qualquer antologia, um conto meu, Não se inscreve.<br />

Lógico que foi um livro de estréia. Tem seus pontos fracos. É<br />

quase todo fraco. Mas, tá lá. E quantos contos tenho publicados?<br />

Dezenas. E não se vê e não se cheira e não se pede desculpas. E<br />

seguem em frente como se lá na frente estivesse a mulher dos<br />

ovos de ouro que nos consagrasse e nos embalasse com um véu<br />

de simpatia e nos desse um copo d´água e nos fizesse afagos e<br />

nos prometesse carinhos profissionais e nos deixasse conhecido<br />

no mundo literário. Valer o que peso, maduro e esperto. Mas<br />

não é assim. Há a cortina churchiana, das pesadas, em redor.<br />

E sem recursos, pedimos água, pedimos sal, e não nos dão<br />

absolutamente nada,<br />

- E cê acha que um livro seu, publicado aqui ou no Rio, teria<br />

algum valor maior, algum peso na literatura potiguar?<br />

12 Julho 2003<br />

- O livro, não. E eu, muito menos. Levaramme<br />

as gorduras todas. Por permanecer<br />

morando em Natal, nascido no sertão brabo<br />

do Rio Grande, não tenho peso de nada em<br />

nenhuma sala de livros do país. Este Brasil de<br />

solavancos, que ouve apenas a quem deseja e<br />

canta apenas os que encontraram um amigo<br />

que os ajudou e publicou todos os seus livros.<br />

Assim forçosamente se aparece. No Estado e no<br />

país. Mas, cadê este programa, este amigo, esta<br />

editoracão? O galo comeu.<br />

- Olhe, cuidado. Você parece só querer a<br />

glória.<br />

- Não. A Glória anda arisca, exibida,<br />

interesseira. Prefiro a Vitória. A Vitória é boa,<br />

mansa, bonita, balzaquiana. E rende.<br />

- Certo. Vejo que o seu mal é permanecer<br />

chorando como sertanejo que é. Não há mais a<br />

Emergência. Creio que agora, com a idade que<br />

você tem lá lascadim, lascadim... E ninguém vai<br />

chorar. Não há o que se fazer por você.<br />

E por que eu lhe digo isso? Porque você jamais<br />

quis ir pro Rio ou para São Paulo. Pra lá se<br />

encontrar com esse amigo que lhe falei e lhe<br />

desse a mão. E com a capacidade que tem de<br />

arrumar as histórias que ouve, na certa seria<br />

igual a alguns cabras bons que enfeitam as<br />

prateleiras de nossa literatura.<br />

- Isso é um elogio ou uma traição? Não sei o<br />

que faça, tampouco vou lhe dar mais atenção<br />

neste mato sem cachorro. Como a roda da<br />

vida gira, as normas mudam e o tempo corre,<br />

eu chegarei lá, sem sair daqui. Continuarei na<br />

pisada de alpercatas-de-rabicho, pois sei que<br />

algo está mudando e há animais de estimação<br />

soltos pelo arvoredo. E algum irá nos socorrer<br />

qual são-bernardo das neves lá de cima.<br />

- Tá.


Foto: Eduardo Felipe<br />

Fome de livros<br />

Por Tácito Costa e Carlos Magno Araújo<br />

Abimael Silva, 40 anos, dono do Sebo Vermelho, tornouse<br />

um fenômeno editorial nacional. Sem praticamente<br />

nenhum apoio conseguiu em 12 anos editar mais de cem<br />

livros de autores potiguares. Tanto obras de autores novos, como<br />

Cleudo Freire e Mário Rasec, como de autores consagrados<br />

como Eloy de Souza e Câmara Cascudo. Um trabalho que vem<br />

tendo reconhecimento local e nacional. Em maio, a Câmara<br />

Municipal de Natal entregou-lhe o título de Cidadão Natalense<br />

e em julho ele foi entrevistado no programa de televisão de Jô<br />

Soares. Durante a solenidade na Câmara ele lançou o centésimo<br />

livro, “Contistas Potiguares”, de Manoel Onofre Jr. O que<br />

distingue Abimael de outros sebistas de Natal é que ele é um<br />

grande leitor, conhece bem a Literatura norte-rio-grandense<br />

e possui uma biblioteca “interessante”, segundo suas próprias<br />

palavras. De temperamento afável, bem humorado e boêmio<br />

empedernido, é também um hábil negociante. Nessa entrevista,<br />

Abimael Silva conta como surgiu o Sebo Vermelho, fala sobre<br />

a sua saga de editor “liso”, sua relação com os escritores e,<br />

principalmente, revela qual é a “mágica” para editar tantos livros<br />

com tão poucos recursos.<br />

Julho 2003<br />

Entrevista<br />

13


Entrevista<br />

Abimael Silva Silva<br />

Abimael Silva<br />

PREÁ – Quem o conhece sabe que você tem uma relação de<br />

amor com os livros. Como isso surgiu?<br />

ABIMAEL SILVA - Desde menino, com 14, 15 anos eu já<br />

comprava livros. Ia nas livrarias, no final dos anos 70, e procurava<br />

livros. Na época, eu trabalhava numa loja de comércio, ganhava<br />

um salário mínimo e comprava os livros de acordo com o<br />

preço. Olhava os preços dos exemplares, separava, dava uma<br />

lida, comparava e, muitas vezes nem conhecia o autor, mas aí<br />

eu dizia: - esse aqui eu gostei, vou levá-lo. E assim comecei.<br />

Toda semana, todo mês, eu comprava um livro. Isso era possível<br />

porque eles ficavam até dois anos sem ter os preços remarcados.<br />

Então eu ia comprando livros de Zila Mamede, Cascudo, Nei<br />

Leandro, Luís Carlos Guimarães. De repente, sem nenhuma<br />

pretensão, já estava com um acervo de mais de 500 títulos.<br />

PREÁ - Que autores mais o marcaram nesse seu primeiro<br />

contato com os livros?<br />

ABIMAEL SILVA - O primeiro autor que eu tive prazer em ler<br />

foi José Lins do Rego. Cheguei até Zé Lins através de um exprofessor<br />

meu, Antenor Laurentino Ramos, irmão de Afonso<br />

Laurentino Ramos, que dava aulas de português e sempre<br />

indicava alguns livros. Ele pedia à turma resumos das obras<br />

que passava para a gente ler e a metade da turma que fizesse<br />

as melhores sínteses era convocada para conhecer a cidade de<br />

origem do autor. Li “Menino de Engenho” em 1976 ou 1977,<br />

fiz um resumo, o professor gostou e eu fui um dos escolhidos<br />

para conhecer Pilar, na Paraíba, a terra de José Lins. Exatamente<br />

onde se passava a história de “Menino de Engenho”. Vi o<br />

engenho, as caldeiras em ruínas, conheci inclusive uma filha<br />

de José Lins. Foi uma viagem inesquecível. Esse professor foi<br />

uma pessoa muito importante neste ponto. Tanto que, depois<br />

de “Menino de Engenho”, li toda a obra de José Lins. Em 1980,<br />

quando meu pai faleceu, eu estava lendo “Fogo Morto”. Só que<br />

eu estava tão empolgado com a leitura que, de repente, meu pai<br />

morreu num acidente de trânsito e, apesar de toda a comoção,<br />

não parei a leitura. No outro dia, quando minha mãe viu o livro<br />

perto de minha cama, disse: - É assim que você sente amor por<br />

14 Julho 2003<br />

Foto: Alexandro Gurgel<br />

seu pai? Depois, para ela entender isso foi uma<br />

dificuldade. Hoje ela já entendeu, mas na época<br />

foi uma confusão.<br />

PREÁ – Você nasceu no interior, em Várzea...<br />

ABIMAEL SILVA – Nasci na cidade de Várzea<br />

num lugarejo chamado ‘Tanque do Boi’. Meu<br />

avô tinha uma propriedade razoavelmente<br />

grande e meu pai era o filho mais velho. Cada<br />

filho morava numa casa dentro da propriedade.<br />

No final dos anos 60, ele vendeu tudo, sem<br />

chegar a um acordo com os filhos e, de<br />

repente, todos tiveram que se mudar. Fomos<br />

morar em Canguaretama, na Penha. Nós o<br />

acompanhamos por um tempo e depois meu<br />

avô ficou lá e meu pai foi morar em Tibau<br />

do Sul. Ele era carpinteiro e foi trabalhar no<br />

porto, construindo barcos e fazendo consertos<br />

em embarcações. Morei lá até 1971. Vivia<br />

exclusivamente de comer – durante o dia -<br />

batata, macaxeira e peixe. Isso diariamente. À<br />

noite, acompanhados de cabeça de lagosta. Era<br />

uma vida em que se misturavam os aspectos<br />

rurais e litorâneos. Eu estudava, pois minha<br />

mãe sempre teve essa preocupação com os<br />

estudos. Todos os dias de manhã eu ia para<br />

o porto buscar um saco de<br />

Com o poeta Falves Silva


Foto: Clóvis Tinoco<br />

cabeça de lagosta que meu pai recolhia porque<br />

nesse tempo tinha tanta lagosta naquele litoral<br />

que a cabeça era desprezada. Trazia e minha<br />

mãe cozinhava. A gente morava em Tibau mais<br />

por necessidade mesmo, tanto que eu e duas<br />

irmãs viemos morar em Natal para estudar no<br />

Isabel Gondim. Só depois de quatro anos foi<br />

que meus pais vieram.<br />

PREÁ - Como surgiu a idéia do sebo?<br />

ABIMAEL SILVA - Fui motivado pela<br />

dificuldade. Já estava de ‘saco cheio’ do banco.<br />

Antes, trabalhei numa padaria por um tempo.<br />

Acordava logo cedo, às 5 da manhã, para<br />

embalar aqueles sacos de bolacha e de biscoito,<br />

ficava a manhã toda e estudava à tarde. Depois<br />

trabalhei na Discol, uma loja de discos no<br />

Centro, que ainda hoje existe. Por volta de<br />

81, 82, fui trabalhar no Unibanco. De repente<br />

enchi o saco, porque trabalhar em banco é<br />

uma profissão para quem não tem profissão.<br />

Trabalhava como contínuo. Até aí tudo bem,<br />

mas um ano depois fui promovido para o setor<br />

de contas correntes, aí era bronca mesmo.<br />

Todos os dias você mexer com milhares e<br />

milhares de cheques das outras pessoas, somar,<br />

dar o valor como correto, não poder ter uma<br />

diferença sequer... Era um horror. Trabalhei até<br />

1985, mas fui para lá por pressões familiares.<br />

Minha mãe queria que eu fosse porque foi um<br />

cunhado meu que conseguiu esse emprego. E<br />

eu já tinha, inclusive, falado com Carlos Lima<br />

para trabalhar na livraria Clima.<br />

Com o fotógrafo Carlos Lira<br />

E acabou não tendo jeito, tive que trabalhar no banco mesmo,<br />

pois coincidiu com o período em que meu pai tinha morrido.<br />

Eu ainda era muito novo. Considero esse o tempo mais inútil da<br />

minha vida.<br />

PREÁ - Você chegou a trabalhar em alguma livraria?<br />

ABIMAEL SILVA - Não. Estava de ‘saco cheio’ do banco e disse:<br />

- Vou ter que sair. Então inventei o sebo. Pensei: - Vou botar<br />

um sebo, pois se eu for vender os meus livros em um outro,<br />

no de Jácio {Jácio Torres, dono do Cata Livros}, por exemplo,<br />

para depois pegar o dinheiro e fazer alguma coisa, não terei<br />

muita vantagem. Portanto, a idéia do sebo surgiu meio que<br />

por acaso. Se não tivesse dado certo, eu teria ido embora para<br />

Maceió passar um tempo e tentar a sorte. Eu tinha visto o filme<br />

“Memórias do Cárcere” e tinha ficado bem impressionado. Mas<br />

depois de muita luta o sebo foi começando a dar certo.<br />

PREÁ – Onde o sebo funcionou inicialmente?<br />

ABIMAEL SILVA - O primeiro local foi na rua Vigário<br />

Bartolomeu, vizinho ao edifício 21 de Março. Quando saí<br />

do Unibanco, peguei a indenização e comprei uma cigarreira.<br />

Resolvi pintá-la, mas fiquei em dúvida com relação à cor. Pensei:<br />

se pintar de azul não vai dar nenhum impacto, de amarelo<br />

também. Só tinha duas opções: ou branco ou vermelho. Então<br />

decidi pintar de vermelho, uma cor bem chocante, muito viva.<br />

Pintei, e foi um choque danado!<br />

PREÁ – Até então o sebo não tinha nome.<br />

Abimael Silva<br />

ABIMAEL SILVA – Exatamente. Logo nas primeiras semanas,<br />

algumas pessoas do movimento de esquerda começaram a<br />

freqüentar e logo passaram a chamar de “Sebo Vermelho”.<br />

Eu gostei do nome e resolvi adotá-lo. Mandei colocar o nome<br />

na frente e comecei a fazer umas pichações pela cidade. Nessa<br />

época, eu andava muito de bicicleta e gostava de fazer pichações.<br />

Comprava alguns sprays e saía pichando tudo que era muro com<br />

o nome Sebo Vermelho. Mas era o período da Nova República e<br />

eu comecei a ter medo que houvesse um retrocesso político, um<br />

golpe, e todo mundo pensando que eu era um cara de esquerda,<br />

um radical. Ainda hoje tem muita gente que pensa que faço parte<br />

de algum grupo de esquerda, de algum partido. Um dia, minha<br />

Julho 2003<br />

15


Entrevista<br />

mãe passou no sebo, viu o nome e ficou horrorizada. Chegou em<br />

casa e me disse: - mas meu filho, você sabe o significado dessa<br />

palavra? Aí eu peguei o Aurélio e li o verbete ‘sebo’ para ela: -<br />

Sebo é livraria onde se comercializam livros usados. Aí ela disse: -<br />

Não é nada disso. Essa é uma palavra horrorosa. Parte da minha<br />

família também implicava com a minha nova profissão. Dizia:<br />

- como é que você sai do banco para botar uma coisa dessas?<br />

PREÁ – Como foram os primeiros dias de negócios?<br />

ABIMAEL SILVA - Só depois de uns três meses é que a coisa<br />

começou a funcionar. Nos primeiros dias não vendia nada, mas<br />

fui levando, levando até começar a dar certo.<br />

PREÁ – Onde você adquiriu o acervo para comercializar?<br />

ABIMAEL SILVA – Comecei com a minha biblioteca.<br />

Sacrifiquei todos os meus livros, sem nenhuma exceção. Alguns<br />

eu vendia com a maior pena. Posteriormente fui comprando<br />

alguns dos livros dos quais eu tinha me desfeito. Hoje, tenho no<br />

sebo um acervo de cerca de 25 mil livros.<br />

PREÁ – Depois da Vigário Bartolomeu, você mudou-se para<br />

que local?<br />

ABIMAEL SILVA – Quando deixei a Vigário Bartolomeu, me<br />

instalei numa outra cigarreira, na parada Metropolitana. Fiquei<br />

lá uns dois anos. Depois passou a ser na rua Princesa Isabel, num<br />

1º andar, em cima do Gimmy Lanches. Era um ponto pequeno,<br />

mas muito freqüentado. Posteriormente, me transferi para um<br />

local vizinho ao Memorial Câmara Cascudo, na rua Santo<br />

Antônio. De lá vim para a Avenida Rio Branco, onde estou até<br />

hoje.<br />

PREÁ – Quem foram os primeiros freqüentadores do Sebo?<br />

ABIMAEL SILVA – Nelson Patriota foi um dos primeiros a<br />

freqüentar, Luís Carlos Guimarães, Gutemberg Costa, que<br />

era funcionário público da Caern e comprou muitos livros,<br />

Diógenes da Cunha Lima, Dom Inácio, principalmente,<br />

considero-o como um guru, um pai, um amigo, um irmão. No<br />

momento lembro destas pessoas, mas sei que foram muitas outras.<br />

16 Julho 2003<br />

PREÁ – Dos grandes nomes da Literatura<br />

Brasileira de outros Estados, quem você lembra<br />

que esteve no seu sebo?<br />

ABIMAEL SILVA – Gilberto de Mendonça<br />

Teles, Francisco Dantas, o grande romancista<br />

sergipano, o crítico literário João Alexandre<br />

Barbosa; o doutor José Mindlin apareceu<br />

certa vez, mas lamentavelmente o Sebo estava<br />

fechado. Foi durante a SBPC. Alguns nomes<br />

da música também apareceram por lá, como<br />

Sérgio Sampaio, o grande compositor do<br />

sucesso “Eu quero botar meu bloco na rua”,<br />

o cantor e compositor Belchior, que inclusive<br />

recebe nossas edições.<br />

PREÁ – Que bibliotecas importantes você já<br />

adquiriu?<br />

ABIMAEL SILVA – “N” bibliotecas eu já<br />

comprei. A do doutor Esmeraldo Siqueira<br />

{poeta}, foi a primeira biblioteca que comprei,<br />

com cerca de 3 mil livros, boa parte em francês,<br />

em alemão, espanhol, ou edições brasileiras da<br />

maior importância. Muitos livros raros. Foi o<br />

filho dele, Mano, que me ofereceu. Essa foi<br />

adquirida nos primeiros meses do Sebo. Muitos<br />

desses livros eu levei para casa. Outros foram<br />

comprados por Sanderson Negreiros, Inácio<br />

Magalhães, Leonardo Barata... Mas enfrentei<br />

negócios complicadíssimos com aquisição de<br />

bibliotecas, como com a de Manoel Rodrigues<br />

de Melo, que<br />

Com o escritor Roberto da Silva


Foto: João Maria Alves<br />

comprei em 96. Um filho dele esteve aqui<br />

oferecendo. Só depois que tinha acertado<br />

tudo é que percebi que os livros pertenciam<br />

a Manoel Rodrigues. Mas como o filho dele,<br />

com 50 anos, não era nenhum menino, nem<br />

débil mental, os livros estavam na casa dele e<br />

foi ele quem me procurou no meu local de<br />

trabalho, eu acabei comprando. Essa biblioteca<br />

deu uma confusão tão danada. Diógenes<br />

da Cunha Lima foi o advogado da família,<br />

Garibaldi era o governador na época, deu<br />

declarações, dizendo que a biblioteca tinha de<br />

ficar com a família. Foi uma novela... Tive que<br />

devolver, mas lamentavelmente alguns poucos<br />

livros foram vendidos.<br />

PREÁ – Tem alguma biblioteca hoje no Estado<br />

que você gostaria de ter?<br />

ABIMAEL SILVA – Não é que eu gostaria<br />

de ter, mas um dia pretendo pelo menos ter<br />

um contato com a biblioteca de Antônio<br />

Soares de Araújo. A biblioteca desse homem é<br />

simplesmente considerada a melhor em termos<br />

de autores do Rio Grande do Norte. Ele fez a<br />

doação de seus livros para o Instituto Histórico<br />

e Geográfico. Do acervo dele, catalogado, fazem<br />

parte mais de três mil títulos só de autores<br />

potiguares. Todos os livros importantes do Rio<br />

Grande do Norte estão nessa biblioteca. Essa<br />

biblioteca, segundo o presidente do IHGRN,<br />

está sendo organizada para depois ser reaberta<br />

ao público.<br />

Com um grupo de amigos<br />

Abimael Silva<br />

PREÁ – De que outras bibliotecas importantes você tem<br />

conhecimento?<br />

ABIMAEL SILVA – O embaixador Fernando Abbot Galvão tem<br />

uma grande biblioteca. Acredito que ele seja o maior bibliófilo<br />

do Estado. Vicente Serejo não fica atrás do embaixador. Inácio<br />

Magalhães de Sena tem também uma senhora biblioteca.<br />

Mas acho que a do embaixador e a de Serejo são as mais<br />

conceituadas.<br />

PREÁ – Hoje você coloca à venda todos os livros que compra ou<br />

têm aqueles que você seleciona para sua biblioteca particular?<br />

ABIMAEL SILVA – Na verdade, modéstia à parte, eu tenho<br />

uma biblioteca razoavelmente interessante, mas totalmente<br />

desorganizada. É tanto que misturo autores do Rio Grande<br />

do Norte com autores nacionais, estrangeiros... é uma mistura!<br />

Desde o início do Sebo eu tinha essa prioridade: - Se o sebo der<br />

apenas para eu viver, pagar os custos mensais, e eu tendo como<br />

lucro esses livros que vão chegando e vou guardando para a<br />

minha biblioteca, para mim isso já era um ‘Negoção’. A minha<br />

biblioteca, que fica em minha casa, tem aproximadamente 2.000<br />

exemplares.<br />

PREÁ – Você tem uma identificação grande com os autores<br />

potiguares. Como você explica isso?<br />

ABIMAEL SILVA – Indiscutivelmente, a Literatura do Rio<br />

Grande do Norte é de alto nível. O que falta é um trabalho de<br />

seleção, que separe o joio do trigo. Temos autores de altíssimo<br />

nível, autores que fizeram sucesso, inclusive, no Rio e em São<br />

Paulo.<br />

PREÁ – Quais são os livros potiguares que não podem faltar<br />

numa biblioteca?<br />

ABIMAEL SILVA - São tantos livros...”História da Cidade do<br />

Natal”, “Nomes da Terra” e “História do Rio Grande do Norte”,<br />

de Cascudo, todos os livros relatando a presença dos americanos<br />

em Natal e a cidade durante a 2ª Guerra. As poesias completas<br />

de Ferreira Itajubá, o “Livro de Poemas”, de Jorge Fernandes.<br />

Julho 2003<br />

17


Entrevista<br />

PREÁ – E que autores norte-rio-grandenses você destacaria?<br />

ABIMAEL SILVA – Othoniel Menezes, Câmara Cascudo,<br />

Manoel Rodrigues de Melo, Newton Navarro, Nei Leandro,<br />

Luís Carlos Guimarães, Anchieta Fernandes, Carlos de Souza,<br />

Eloy de Souza, Henrique Castriciano, Hélio Galvão, Carlos<br />

Lyra, Manoel Dantas, Miguel Cirilo, Lenine Pinto, Moysés<br />

Sesyom, Manoel Onofre Júnior, Moacy Cirne, Renato Caldas,<br />

Olavo de Medeiros Filho, François Silvestre.<br />

PREÁ – Como começou sua carreira de editor?<br />

ABIMAEL SILVA - Por acaso. Em 1990, Anchieta Fernandes<br />

me apresentou um livro, “’O Écran Natalense – a história do<br />

Cinema em Natal”. Esse é um livro sensacional, uma página da<br />

história da cidade. Anchieta me procurou dizendo que já tinha<br />

tentado editar o livro através dos órgãos de cultura do Estado e<br />

não tinha conseguido. Então eu disse a ele: - Anchieta, eu vou<br />

tentar editar o seu livro. Eu li e achei uma coisa tão bonita e<br />

tão importante. Aí - porque na verdade eu edito a duras penas,<br />

com excesso de dificuldades - me juntei a Varela Cavalcanti,<br />

na época presidente do Sindicato dos Bancários, que deu a<br />

impressão gráfica. O passo seguinte foi pedir o papel a Afrânio,<br />

que tinha uma representação de papel aqui em Natal. Pedi uma<br />

força também ao sebista Jácio e conseguimos lançar o livro, que<br />

foi um sucesso estrondoso. Ainda hoje tem várias universidades<br />

que indicam esse livro para os alunos. Inclusive, estou<br />

reeditando-o esse ano.<br />

PREÁ – Qual a “mágica” para editar tantos livros?<br />

ABIMAEL SILVA - Realmente tem que fazer uma certa<br />

mágica. No início, tendo a consciência da importância destes<br />

livros para o futuro e para a história da nossa cidade, eu fazia o<br />

seguinte: como não tinha capital, ia pedindo a fulano, sicrano,<br />

beltrano e aos amigos, tipo 50 reais, 100 reais, que depois eu<br />

devolveria esse valor em dobro, em exemplares e colocaria no<br />

livro: “Essa publicação teve o apoio cultural de fulano, sicrano<br />

e beltrano”. Deu certo. O primeiro, o segundo, o terceiro,<br />

o quarto... Acontece que isso acabou se tornando uma coisa<br />

desgastante, eu ia como se estivesse mendigando, às vezes deixava<br />

o livro lá e não conseguia receber o dinheiro de volta, conforme<br />

o combinado. Eu fazia isso e distribuía os livros entre todos que<br />

faziam parte desta espécie de “cooperativa”. Ainda assim, ficou<br />

uma coisa ridícula, tanto da minha parte, quanto destas pessoas<br />

que estavam me dando esse apoio. Algumas até me davam como<br />

se fosse uma esmola, tipo ‘toma, nunca mais apareça aqui’.<br />

18 Julho 2003<br />

Resolvi então fazer de outro jeito. Descubro um<br />

determinado autor, com uma obra interessante,<br />

procuro a família para saber o interesse dela<br />

na reedição. Eles pagam uma parte, eu pago<br />

outra e a gente vai juntando, depois divide.<br />

Um fica com a parte dos livros, outro fica com<br />

outra, no geral. Mais recentemente, outras<br />

pessoas me procuram apenas para que o livro<br />

saia pelas edições do Sebo Vermelho, com esse<br />

padrão de qualidade, dentro da coleção João<br />

Nicodemos de Lima e me dão entre 10% e<br />

15% da edição em exemplares, em média.<br />

Eu também pego determinado livro e tento<br />

fazer uma edição o menor possível, com 100,<br />

200 ou 300 exemplares. Se o autor vende a<br />

metade no lançamento, ele pode ir na gráfica e<br />

encomendar outros exemplares.<br />

PRÉA - Você esperava que a sua carreira de<br />

editor tomasse a dimensão que tomou?<br />

ABIMAEL SILVA - De nenhuma maneira,<br />

ainda bem que não é uma coisa só para mim,<br />

mas para toda a cidade, para o Estado. Até<br />

porque eu não sou muito de ‘oba oba’.<br />

Foto: Eduardo Felipe


Foto: Evaldo Gomes<br />

PREÁ – Outro dia você deu uma declaração<br />

em um dos jornais da cidade dizendo que era<br />

o único editor ‘liso’ no Brasil. Esse trabalho de<br />

editor lhe rende alguma coisa financeiramente?<br />

ABIMAEL SILVA – Até o presente momento<br />

isso não me rendeu nada financeiramente. Aqui<br />

e acolá tem um empresário que sabe de nossas<br />

dificuldades e dá alguma ajuda. Quem sempre<br />

tem dado muita força é <strong>Augusto</strong> Maranhão,<br />

que é uma pessoa sensacional, vem por livre e<br />

espontânea vontade e me ajuda. Quando vou<br />

editar, pego a pessoa, arrumo todo o material<br />

gráfico, os papéis, as chapas, mando fazer o<br />

fotolito no Diário de Natal, vou lá peço um<br />

favor à direção do jornal para dar uma ajuda<br />

como apoio cultural, peço a um amigo que<br />

faça uma capa, a arte da capa como uma<br />

presença, uma gentileza. Mas, mesmo tendo<br />

editado todos esses livros, sobre Natal ou o Rio<br />

Grande do Norte - a maioria de autores norterio-grandenses<br />

-, acontece uma coisa cruel,<br />

porque até hoje nenhuma biblioteca do Estado<br />

tem as nossas edições. Tem livro de sicrano, de<br />

beltrano, mas não tem os nossos livros.<br />

Abimael Silva<br />

PREÁ – Mas não é obrigatório as bibliotecas terem ao menos<br />

um volume de cada livro publicado no Estado?<br />

ABIMAEL SILVA – Sim. Mas isso é quando se trata da<br />

Biblioteca Nacional. Aqui as pessoas fazem ofícios pedindo<br />

doações, enquanto se gasta dinheiro com tantas outras coisas<br />

que não fazem o menor sentido. Eu já recebi “n” ofícios pedindo<br />

doações de livros, mas não posso doar esses livros, até para que as<br />

pessoas reconheçam que existe um custo extremamente elevado<br />

por trás desse trabalho de editoração. Não dá para ser de graça.<br />

PREÁ – Você conhece alguém em outro Estado que tenha um<br />

trabalho semelhante a esse seu?<br />

ABIMAEL SILVA – Sebista fazendo esse trabalho de editoração,<br />

no Brasil, que eu saiba, não existe nenhum outro.<br />

PREÁ – De todos os livros que você editou quais são os seus<br />

preferidos?<br />

ABIMAEL SILVA – Tem alguns pelos quais tenho um carinho<br />

todo especial, como por exemplo, “As Cartas de Drummond<br />

a Zila Mamede”, um livro que até hoje me enche de alegria;<br />

“Os Americanos em Natal”, de Lenine Pinto; “Costumes<br />

Locais”, de Eloy de Souza; “Os Elementos do Caos”, de<br />

Miguel Cirilo; “69 Poemas de Chico Doido de Caicó”,<br />

organizado por Nei Leandro de Castro e Moacy Cirne;<br />

“Nomes da Terra”, de Cascudo; “Contistas Potiguares”, de<br />

Manoel Onofre Júnior; o “Papa Jerimun”, de Cleudo Freire;<br />

“Uma Câmara vê Cascudo”, de Carlos Lyra; a antologia de<br />

contos organizada por Manoel Onofre Júnior, “Poetas do Rio<br />

Grande do Norte”, de Ezequiel Wanderley, que foi a primeira<br />

antologia da poesia potiguar, editada em 1922, tendo inclusive<br />

sido resenhada no Jornal do Brasil.<br />

PREÁ – É mais fácil vender livros de prosa ou de poesia?<br />

ABIMAEL SILVA – Com todo o respeito aos poetas, não se<br />

compara. Poesia é a coisa mais difícil de se vender. Em geral,<br />

depois do lançamento, o livro de poesia fica na estante. Só<br />

quando o poeta é muito pavão, tem um nome consagrado e usa<br />

bem a mídia é que consegue vender um pouco mais.<br />

Julho 2003<br />

19


Entrevista<br />

PREÁ – Os autores dão muito trabalho a você na hora de editar<br />

um livro?<br />

ABIMAEL SILVA – Ainda bem que esses são uma minoria.<br />

Tem uns chatérrimos, que acabam virando meus inimigos.<br />

Teve um insuportável, que simplesmente queria editar o livro<br />

dele bilingüe, em português e inglês. Ligava de manhã cedinho,<br />

vinha aqui toda hora, só faltou tirar meu juízo. Ainda bem que,<br />

de cem, tem apenas uns cinco que não têm quem agüente.<br />

PREÁ – Você se considera discriminado por não contar com<br />

apoio governamental para editar seus livros?<br />

ABIMAEL SILVA – O que existe é uma certa incompreensão<br />

por parte de alguns órgãos. Não era para ser obrigação, mas pelo<br />

menos algumas obras deveriam merecer uma atenção maior<br />

desses órgãos. Para você ter uma idéia, no lançamento de um livro<br />

que eu editei no final do ano passado, teve um cidadão, um dos<br />

coordenadores da Biblioteca Doutor Américo de Oliveira Costa,<br />

que teve a ousadia de ir ao lançamento, dizer que a Biblioteca<br />

tinha o melhor acervo. Aí eu disse: rapaz, com certeza lá, em<br />

relação a livros do Rio Grande do Norte deve ser muito fraco,<br />

mesmo porque não tem essas nossas edições... Ele concordou e,<br />

em cima da bucha, pediu uma doação. Um camarada da UnP<br />

também veio com essa conversa para eu doar 50 livros. Imagine<br />

eu doar 50 livros para a UnP, sem mais nem menos. Ora, eles<br />

têm obrigação de adquirir esses livros, até mesmo porque podem<br />

abater no Imposto de Renda.<br />

PREÁ – Se procurado, você aceitaria fazer parcerias com órgãos<br />

públicos?<br />

ABIMAEL SILVA – Já procurei muito essas parcerias e estou<br />

aberto a qualquer proposta, a qualquer negociação. Pode ser que,<br />

por eu ser muito independente, existam dificuldades. Inclusive,<br />

acho muito importantes as parcerias. Graças a essas parcerias é<br />

que no ano passado foi comemorado o centenário de Renato<br />

Caldas {poeta}. A prefeitura do Assu mandou imprimir quatro<br />

livros: a reedição de “Fulô do Mato”, a publicação das cartas<br />

de Renato Caldas para Fausta; o livro “Renato Caldas, o Poeta<br />

das Melodias Selvagens” e mais outro livro inédito com a versão<br />

de “Fulô do Mato”, bem antiga. Ou seja, só através de uma<br />

parceria dessas é possível fazer esse tipo de coisa.<br />

PREÁ – É verdadeira a história de que mal morre o dono de<br />

uma grande biblioteca a viúva ou os filhos correm aos sebos para<br />

se desfazer dos livros? Quem chega primeiro ao sebo? As viúvas<br />

ou os filhos?<br />

20 Julho 2003<br />

Foto: Alexandro Gurgel<br />

ABIMAEL SILVA – Olhe, aí é uma pergunta<br />

cruel {risos, faz uma pausa}. Eu acho que as<br />

viúvas. As viúvas, com certeza. Mas hoje isso<br />

está mudando um pouco. Até os anos 90 isso<br />

era um pouco cruel. Claro que livro é uma coisa<br />

que a pessoa tem de ter uma certa intimidade,<br />

um certo prazer. Só como exemplo: teve um<br />

senhor, um médico muito conceituado, morava<br />

ali perto de Parnamirim, que começou a perder<br />

a visão. Esse médico era muito amigo de um<br />

grande amigo meu, Otacílio Lopes Cardoso. E<br />

esse homem simplesmente não queria vender<br />

os livros, embora estivesse 90% cego. Mas a<br />

pressão da família era grande. O acervo dele era<br />

especial, todo em capa dura, bem conservado.<br />

Ele implorava para que a família não vendesse<br />

os livros, porque poderia muito bem recuperar<br />

a visão, depois não ter mais os livros, uma coisa<br />

extremamente dramática. Cheguei a ir lá numa<br />

kombi comprar os livros, mas desisti. Disse à<br />

família que se eles quisessem vender levassem os<br />

livros até o sebo. Isso é para mostrar o quanto<br />

muitas pessoas têm desprazer com livros.<br />

PREÁ – Os intelectuais pechincham muito<br />

ou esquecem de pagar quando compram<br />

parcelado?<br />

ABIMAEL SILVA – Bem, não posso dizer que<br />

não, se disser estarei mentindo. Isso é natural<br />

em todo comércio.<br />

PREÁ – Quem chega pela primeira vez ao<br />

Sebo Vermelho pode se surpreender com a<br />

desorganização. Como você faz para encontrar<br />

determinado livro?<br />

Com o poeta Pedro Grilo


Foto: Eduardo Felipe<br />

ABIMAL SILVA – À primeira vista tem essa<br />

aparência, só que ali é uma desorganização<br />

organizada {risos}. Nós colocamos os livros<br />

em determinadas estantes, levando em conta<br />

os assuntos. Por exemplo, os livros sobre<br />

filosofia estão todos na mesma estante, o<br />

mesmo acontecendo com obras sobre história,<br />

literatura, os didáticos, etc. Claro que devemos<br />

ter cerca de 5% de livros fora do lugar.<br />

PREÁ – Você lembra de algum livro que tenha<br />

sido oferecido a você e que, na hora, o tenha<br />

deixado entusiasmado por tratar-se de algo<br />

valioso?<br />

ABIMAEL SILVA – Livro, livro mesmo, não.<br />

Agora uma vez uma pessoa foi vender uma<br />

discoteca. E no meio dos discos, uns 300,<br />

tinha o primeiro LP de Roberto Carlos, um<br />

disco raríssimo, que custa hoje no mercado<br />

cerca de R$ 1 mil. Eu comecei a olhar, olhar,<br />

olhar, quando vejo lá o primeiro disco de<br />

Roberto. “Louco por você” é o nome do disco.<br />

Eu então comecei a fazer a maior propaganda,<br />

disse: - rapaz, esse é o primeiro disco de<br />

Roberto, é<br />

Abimael Silva<br />

uma raridade e tal. O cidadão então disse, separe ele, que vou<br />

vender apenas os outros, deixe esse de Roberto fora. O pacote,<br />

com uns 300 discos – sem o de Roberto -, era mais ou menos R$<br />

250,00. Ainda cheguei a botar R$ 250,00 somente pelo disco de<br />

Roberto, mas ele não vendeu. Eu fiquei chateado por ter dado<br />

com a “língua nos dentes” e perdido um grande negócio.<br />

PREÁ – Você lembra de algum caso pitoresco acontecido no<br />

sebo durante esses anos todos?<br />

ABIMAEL SILVA – Teve o caso de uma ninfomaníaca, inclusive<br />

amiga minha. A mulher chegava no sebo e fazia de tudo para a<br />

gente ter um envolvimento. Mas eu ficava fugindo. No começo,<br />

eu meio menino, e ela fazendo a maior pressão. Um certo dia ela<br />

chegou no sebo, nessa época ficava em cima do Gimmy Lanche,<br />

por volta das 11 horas da manhã. Estávamos apenas eu e o cantor<br />

Cleudo Freire, e ela não contou conversa: foi logo trancando a<br />

porta, pegou a chave e tirou a blusa e, mesmo na presença de<br />

Cleudo, que a conhecia, disse: - hoje você não escapa {risos}.<br />

Mas, felizmente, eu consegui escapar.<br />

PREÁ – Como foi receber o Título de Cidadão Natalense? Você<br />

já tinha vestido paletó antes na sua vida? {risos}<br />

ABIMAEL SILVA – Na verdade, eu só usei o tal do ‘blazer’,<br />

gravata não. Eu tenho um paletó na minha casa, lá no Pium,<br />

mas eu uso ele exclusivamente para dormir no inverno,<br />

porque lá nesse período faz muito frio. Paletó é o fim da<br />

linha, pretendo inclusive nunca mais usar na vida. Eu já<br />

tinha recebido umas propostas para receber o título, mas<br />

eu sempre achei uma coisa tão comum e também, com todo<br />

respeito, tem tanta gente sem futuro que recebe esse título que<br />

a coisa acabou ficando meio ridicularizada. Mas como foi uma<br />

proposta de Hermano {Hermano Morais, vereador}, um amigo,<br />

sempre vai nos nossos lançamentos, e como eu ia completar<br />

40 anos e estava editando o centésimo livro, ele mandou um<br />

assessor, com esses argumentos, e eu acabei convencido.<br />

PRÉA- Você tem percebido na rotina do sebo alguma mudança<br />

no nível de leitura do leitor médio natalense?<br />

ABIMAEL SILVA - Tenho observado um aumento pela procura<br />

de livros. As pessoas lêem de tudo. Existem homens e mulheres<br />

que compram livros de Adelaide Carraro e de Cassandra Rios,<br />

outros preferem os registros técnicos, autores do Rio Grande<br />

do Norte, best sellers. Com certeza, os tempos mudaram para<br />

melhor.<br />

Julho 2003<br />

21


13 por 1<br />

22 Julho 2003<br />

13 POR 1<br />

Ana Luiza (diretora de jornalismo da Tv Cabugi)<br />

Romancista: Rubem Fonseca<br />

Poeta: Carlos Drummond de Andrade<br />

Livro: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar<br />

Filme: Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore)<br />

Diretor/Cinema: Alfred Hitchcock<br />

Ator/Atriz: Matheus Nachtergaele /Fernanda Montenegro<br />

Pintor: Van Gogh<br />

Cantor/Cantora: Caetano Veloso/Marisa Monte<br />

Compositor: Tom Jobim<br />

Música: I´ve got you under my skin - Cole Porter<br />

Peça teatral: Rei Lear - Shakespeare<br />

Intelectual: Sebastião Vicente (jornalista potiguar)<br />

Personalidade cultural do RN: Câmara Cascudo


A universalidade de Zila<br />

A poetisa em um alojamento na Universidade de Syracuse (Estados Unidos), em 1961<br />

Esse ano faz 50 anos da publicação de “Rosa de Pedra” (primeiro livro) e 25<br />

de “Navegos” (antologia), da poetisa Zila Mamede. Um ensaio fotográfico,<br />

poemas de Zila e de Nivaldete Ferreira, e um texto de Graça Aquino<br />

marcam nossa homenagem a grande poetisa. Entre dezenas de fotos para o ensaio,<br />

colocadas à disposição pela irmã de Zila, Ivonete Mamede, com a assessoria de<br />

Gildete Moura, optamos por escolher aquelas que mostravam um pouco da<br />

intimidade da poetisa. Nas legendas, constam as informações que a própria Zila<br />

escrevia, às vezes atrás das fotos, em outras vezes, no papel onde ela as colava.<br />

Apenas em uma não aparece o ano em que foi feita. O ensaio abarca fotografias<br />

feitas entre o final dos anos quarenta e início dos anos sessenta.<br />

Julho 2003<br />

23


Especial/Zila<br />

Ouvindo música em sua casa, à rua Trairi, 719, no Tirol, em 1952<br />

Partida<br />

(Zila Mamede)<br />

Quero abraçar, na fuga, o pensamento<br />

da brisa, das areias, dos sargaços;<br />

quero partir levando nos meus braços<br />

a paisagem que bebo no momento.<br />

Quero que os céus me levem; meu intento<br />

é ganhar novas rotas; mas os traços<br />

do virgem mar molhando-me de abraços<br />

serão brancas tristezas, meu tormento.<br />

Legando-te meus mares e rochedos,<br />

serei tranqüila. Rumarei sem medos<br />

de arrancar dessas praias meu carinho.<br />

Amando-as me verás nas puras vagas.<br />

Eu te verei nos ventos de outras plagas:<br />

juntos – o mar em nós será caminho.<br />

24 Julho 2003<br />

Escrito quando Zila contava com 22, 23 anos, “Rosa de Pedra”<br />

estava pronto desde 1951 e seria lançado pela editora Hipocampo.<br />

Mas a editora, dirigida pelos poetas Geir Campos e Thiago de<br />

Mello, faliu. Somente dois anos mais tarde, o livro seria publicado<br />

pela Imprensa Oficial do Rio Grande do Norte, numa modesta<br />

edição de 200 exemplares, com capa do artista Newton Navarro.<br />

De acordo com o poeta e professor Paulo de Tarso Correia de Melo,<br />

estudioso da obra de Zila, “Rosa de Pedra representa o início de uma<br />

carreira importante para a poesia potiguar. Zila se mostra fiel ao seu<br />

destino de poeta, seu livro contém os germes de todas as constantes<br />

da sua poesia. Temas como a infância e o mar, que acompanhariam<br />

toda a sua obra, também estão presentes em Rosa de Pedra”.<br />

Zila Mamede está nacionalmente relacionada com o que se<br />

convencionou chamar de Geração de 45 na literatura brasileira.<br />

“No caso específico de Zila, ela alcança o Pós-45, geração essa que<br />

curiosamente nasce no Nordeste, com nomes do porte de Mauro<br />

Mota e João Cabral de Melo Neto”, afirma Paulo de Tarso.<br />

Uma poeta de personalidade. Uma pessoa compenetrada, resignada,<br />

e sempre terna com a família e os amigos. Para Ivonete Mamede,<br />

assim era “Pêta” (como ela ainda hoje chama Zila). “Ela era muito<br />

católica e monitorou toda a minha juventude. Quando terminei<br />

meus estudos, fomos morar juntas”.<br />

Segundo a irmã, Zila parecia ser muito quieta, mas na verdade<br />

era bastante ativa. Prova disso foram os diversos trabalhos que<br />

desenvolveu não só na poesia, mas na biblioteconomia e no<br />

jornalismo.<br />

Ivonete atesta o cuidado que Zila tinha com a poesia. “Ela<br />

‘esqueletava’ o poema na cabeça e depois no papel. E era bastante<br />

humilde em relação à sua obra. Várias vezes ela chegava para mim e<br />

perguntava por uma palavra, se estava boa, se eu tinha uma sugestão<br />

melhor”, revela.


Cronologia<br />

Especial/Zila<br />

1928 - Nasce em 15 de setembro, na Vila de Nova Palmeira, em<br />

Picuí (PB), Zila da Costa Mamede. É a segunda de sete filhos.<br />

1933 - Muda-se com a família para Currais Novos (RN). 1942<br />

- Nova mudança, desta vez para Natal. O pai de Zila trabalharia<br />

na construção de Parnamirim. 1943 - Estuda no Colégio<br />

Imaculada Conceição. Religiosa, pensa em tornar-se freira.<br />

1951 - Primeiras publicações em jornais. Desiste de ser freira<br />

depois de conhecer e se amedrontar com a vida que as freiras<br />

levavam em um convento no Recife. 1953 - Publica seu primeiro<br />

livro, “Rosa de Pedra”. 1954 - Obtém o 1º lugar nos Concursos<br />

Permanentes do “Jornal de Letras”, no Rio de Janeiro, com o<br />

soneto “Noturno do Recife”. 1955 - Muda-se para o Rio, onde<br />

estuda biblioteconomia na Biblioteca Nacional. 1956 - Recebe o<br />

diploma em Biblioteconomia. Foi a primeira biblioteconomista<br />

formada no RN. 1957 - Viaja para a Europa, como jornalista<br />

enviada pelo jornal “O Globo”. 1958 - Publica “Salinas”,<br />

pelo qual recebe o prêmio “Vânia Souto Carvalho” de poesia,<br />

em Recife. 1959 - Publica “O Arado”. Trabalha na Secretaria<br />

Municipal de Cultura de Natal. Reorganiza a Biblioteca do<br />

Tribunal de Justiça do RN. Organiza a Biblioteca da Faculdade<br />

de Direito. Promove curso intensivo de Biblioteconomia.<br />

1961 - Viagem de estudos aos Estados Unidos. 1963 - Trabalha<br />

na organização do Serviço Central de Bibliotecas da UFRN,<br />

atualmente denominado Biblioteca Central Zila Mamede. 1964<br />

- Perde a mãe, Elídia Bezerra Mamede, falecida aos 59 anos de<br />

idade. 1966 - Publica “Bibliografia de Xico Santeiro”. É incluída<br />

na “Antologia Poética da Geração de 45”. 1969 - Organiza a<br />

Biblioteca Pública Câmara Cascudo, em Natal. 1970 - Publica<br />

“Câmara Cascudo: 50 Anos de Vida Intelectual”. 1974 - Assume<br />

o cargo de diretora da Biblioteca Central da UFRN. 1975 -<br />

Publica “Exercício da Palavra”. Os cem livros que recebe como<br />

direitos autorais são doados para o Hospital do Câncer. 1978<br />

- Publica o livro “Navegos”, comemorando seus 25 anos de<br />

atividade poética, reunindo todos os livros até então publicados<br />

e o inédito “Corpo a Corpo”. 1980 - Aposenta-se como Diretora<br />

da Biblioteca Central da UFRN. 1983 - Publica seu último<br />

livro, “A Herança”. 1985 - Morre, em 13 de dezembro, aos 57<br />

anos, por afogamento, quando nadava na Praia do Forte. Participa de pic-nic do Sesi, em 1953, na praia de Ponta Negra<br />

Julho 2003<br />

25


Especial/Zila<br />

Rosas para Zila<br />

Nivaldete Ferreira (Poetisa)<br />

Rosa de Pedra - metáfora, escultura intangível.<br />

Alquímica poética: a pedra se tornando pétala,<br />

A pétala vencendo o tempo,<br />

Mais do que aquela que se guarda nas páginas de um livro.<br />

Saber a rosa não é saber a pedra, e saber a pedra não é saber a rosa.<br />

Mas Zila sabia uma e outra.<br />

Sabia a pedra/pedregulho que seus pés de menina pisaram<br />

Nos campos do avô.<br />

Sabia a pedra/sustentação, a que sustenta para além da casa onde<br />

se mora.<br />

Zila sabia a pedra que sustenta a nossa morada na própria vida: a<br />

pedra da coragem e da firmeza.<br />

Zila sabia a pedra que viaja no coração das águas e,<br />

Inventando asas, retorna ao lugar anterior,<br />

Até que não retorna mais...<br />

Zila sabia a pedra do anel falhado,<br />

A pedra incrustada nas paixões sem gesto.<br />

Sobretudo sabia o mais difícil: o hálito da pedra,<br />

Aquele que, tão sutil, pode gerar a rosa,<br />

A rosa dos ritos poéticos,<br />

A rosa desfolhada em versos, versos, versos...,<br />

Como água boa de matar essa outra sede.<br />

Versos, versos de altear a vida,<br />

De lembrar que o humano é mais do que o humano,<br />

Mais do que um envelope guardando um conteúdo provisório.<br />

Rosas, rosas para Zila.<br />

Rosas marítimas, cachos de espuma,<br />

Rosas brancas, por esses dias em que o corpo da história anda febril,<br />

Porque há homens que esqueceram a poesia.<br />

Rosas para Zila.<br />

Porque, enfim, a vida é mais com Zila.<br />

Mesmo sem Zila.<br />

Em seu primeiro emprego (1951), no escritório de<br />

contabilidade de Sérgio Severo<br />

26 Julho 2003<br />

Em Parati (RJ), no carnaval de 1957<br />

Velha parede ponte limitando:<br />

passado e presente<br />

Graça Aquino (mestre em Literatura)<br />

“O Arado”, terceiro livro de poesia de Zila Mamede, lançado em<br />

1959 pela Livraria São José, do Rio de Janeiro, com prefácio de<br />

Câmara Cascudo, tinha em sua primeira edição vinte poemas.<br />

Quando relançado em “Navegos” (1978), que reúne toda<br />

poesia de Zila até aquela época, perdeu um poema, intitulado<br />

sintomaticamente de “Retirada”.<br />

Dos vinte poemas que compõem o livro, sete são escritos na<br />

forma de soneto, cinco são tercetos, um é quarteto e os demais<br />

são elaborados em estrofes irregulares, com predominância de<br />

versos livres.<br />

Neste estudo, analiso dois poemas: “O Açude” e “Rua (Trairi)”;<br />

ambos remetem à experiência de vida da poeta que, nesse livro,<br />

através do processo da rememoração, traz para seus textos<br />

poéticos as lembranças de menina sertaneja entrelaçadas pela<br />

sua vida de “moça da cidade”.<br />

O poema “O Açude” vai se construir a partir de uma velha<br />

parede ponte imitando/os dois barrancos entre chão e chão. A<br />

parede implica limites e divide chão e chão. Os dois chãos podem<br />

representar as experiências vivenciadas pela poeta: um, sua terranatal;<br />

o outro, a vida urbana. No meio das duas experiências, a<br />

parede, que divide e controla, e que bem poderia ser lida como<br />

signo de um coração dividido entre os dois espaços: o rural e o<br />

urbano. Vejamos o soneto:


O passadiço pode significar a passagem de um tipo de vida a<br />

outro, já que na praticidade da vida, o mesmo permite que as<br />

pessoas possam fazer uma travessia por cima de uma cerca, ou<br />

seja: possam vencer barreiras, metaforicamente falando.<br />

A represança é a represa que segura as águas e balde concha, o<br />

medidor da profundidade. Trocando em miúdos: por mais que o<br />

passadiço permita a passagem da narradora de um lugar a outro<br />

(do sertão à cidade), ela sente-se presa ao lugar de origem. Todos<br />

esses fatos são enunciados como sobras de um passado distante.<br />

É a poeta no presente, sentindo-se presa às origens, revelando<br />

que as lembranças da infância permanecem vivas na mulher<br />

adulta, ainda cheia de saudades e sentindo-se só, como mostram<br />

os dois últimos versos do poema:<br />

Sobras do antigo na menina extinta:<br />

redorme na vazante a solidão.<br />

A linguagem é cristalina e se estrutura a partir dos signos<br />

açude, sangradouro e balde, apontando para a possibilidade de<br />

resgate de vivências no sertão. A poeta bebeu das águas também<br />

cristalinas de Nova Palmeira, e delas não pôde mais esquecer.<br />

O livro, inclusive, foi dedicado à sua terra-mãe. Vejamos a<br />

dedicatória:<br />

A meu avô Caçote<br />

A Nova Palmeira,<br />

terra mãe, fonte raiz,<br />

chão do meu chão.<br />

Percebe-se que as imagens do sertão utilizadas nos poemas de<br />

“O Arado” passam por um processo tão intenso de elaboração,<br />

que a terra, em alguns momentos, deixa de ser tema e passa a<br />

personagem, como nos exemplos que seguem:<br />

... Sofrida pelo arado<br />

a terra inova-se...<br />

(“Moenda”)<br />

...<br />

nervuras duma terra que desperta<br />

alucinadamente a fecundar-se...<br />

(“A Apanha”)<br />

Julho 2003<br />

O Açude<br />

A Odilon Ribeiro Coutinho<br />

Velha parede ponte limitando<br />

os dois barrancos entre chão e chão.<br />

Ao passadiço (em que montavam luas,<br />

xexéus milipousavam no mourão)<br />

a represança vinha da montante<br />

em balde concha. Sobre a levação<br />

do sangradouro retesou-se tempo<br />

de quando as águas, nos rasgando a mão.<br />

Na praia de Areia Preta (sem data)<br />

Especial/Zila<br />

Desciam na revência, verdivida<br />

amarelando cheiro de melão:<br />

eram celeiros, peixes nos maretas<br />

e em nós era ternura, era canção.<br />

Sobras do antigo na menina extinta:<br />

redorme na vazante a solidão.<br />

27


Especial/Zila<br />

Lendo, em 1949, na Praça Pedro Velho<br />

Com um grupo de amigos (1957) em Parati (RJ)<br />

28 Julho 2003<br />

A terra agora não será mais a da infância, mas a da mocidade,<br />

presente no soneto “Rua (Trairi)”. Este poema, aparentemente<br />

deslocado em relação aos outros do livro, cumpre seu papel de<br />

chamar atenção para os dois tempos da vida/poesia de Zila<br />

Mamede: a terra (o passado da poeta vivenciado no sertão) e a<br />

cidade representada pelo sal (o presente/momento da elaboração<br />

de sua poesia).<br />

Nos cubos desse sal que me encarcera<br />

(pedra, silêncios, picaretas, luas,<br />

anoitecidos braços na paisagem)<br />

a duna antiga faz-se pavimento.<br />

Meu chão se muda em novos alicerces,<br />

sob as pedreiras rasgam-se meus passos;<br />

e a velha grama (pasto de lirismo)<br />

afoga-se nos sulcos das enxadas,<br />

nas ânsias do caminho vertical.<br />

Ao sono das areias abandonam-se<br />

nesta rua vividos fantasmas<br />

de seus rios-meninos que descalços<br />

apascentavam lamas e enxurradas.<br />

Meu chão de agora: a rua está calçada.<br />

Este poema faz parte das recordações do tempo juvenil, pois a<br />

referida rua era o local onde Zila morou quando mocinha, recém<br />

chegada do sertão de Currais Novos/RN, até a época em que<br />

escreveu “O Arado”. Não é, portanto, em vão que ela constrói<br />

o poema com essa temática. São sentimentos da jovem/poeta<br />

presentificando-se no texto, através da voz memorialística.<br />

A cidade (Natal) é apresentada pela palavra sal, por se tratar de<br />

litoral, e é esse sal que encarcera a poeta. A cidade, lugar almejado<br />

anteriormente, não vai significar a liberdade tão desejada. O sal<br />

remete à penitência, misticamente falando, e é usado no batismo<br />

do cristão. Na imagem construída no poema, ele encarcera a<br />

narradora e a penitencia na medida em que a afasta da paisagem<br />

de origem, fonte de suas lembranças.


No decorrer da leitura dos poemas de “O Arado”, observa-se<br />

que a fertilização da terra e do texto são uma constante nos<br />

mesmos. Em “Rua (Trairi)” ocorre o oposto, pois o sal pode<br />

opor-se à fertilização. Nesse caso, a terra salgada pode significar,<br />

também, terra árida, endurecida. Um costume antigo e por<br />

demais conhecido em tempo de guerra, era jogar sal nas terras<br />

das cidades destruídas para tornar o solo sempre estéril.<br />

Talvez a poeta se sentisse mais segura morando numa rua de<br />

duna (terra) e não de pavimento, porque a terra a faz sentir-se<br />

mais próxima do sertão, a antiga paisagem sertaneja, do que o<br />

cimento da cidade grande.<br />

As picaretas, por sua vez, anunciam outro espaço e outro tempo:<br />

o presente da cidade moderna chegando nas ânsias do caminho<br />

vertical, em contradição com o passado. Seus passos rasgam os<br />

novos alicerces, pois estão acostumados ao chão da antiga rua<br />

(de barro, de terra). A poeta viu e sentiu o chão moldando-se<br />

do novo e trazendo o fim do espaço que estava intrinsecamente<br />

ligado à sua vida, às suas origens e, que, agora, no presente,<br />

mostra-se revestido de outro aspecto misturando o antigo e o<br />

moderno. Seus braços nada podem fazer para mudar tal situação<br />

porque se encontram anoitecidos na paisagem e inertes frente ao<br />

progresso que avassala a rua. Diante da impossibilidade de atuar,<br />

ela apenas observa e a duna antiga faz-se pavimento.<br />

Junto às mudanças por que passa a rua vai o “mundo” da<br />

poeta, o mundo em que formou seu ser e seus valores. E agora?<br />

Meu chão de agora: a rua está calçada. As mudanças exteriores<br />

provocam transformações na poeta/narradora, como se junto<br />

com a “morte” da antiga rua ela também morresse um pouco;<br />

ela, que simbolicamente já havia morrido uma vez, quando<br />

afastada do seu chão de origem: o sertão. As lembranças, que são<br />

seus vívidos fantasmas, angustiam-na, pois não está preparada<br />

para as transformações ou não as quer realmente.<br />

Nesse discurso poético sobre a rua, o “eu” decide buscar sua<br />

infância (quase) perdida. No entanto, ela vê as transformações<br />

pelas quais a rua passa e não as aceita. A rua - locus da<br />

modernidade - vai se transformando em sua multiplicidade de<br />

significados, que o eu-poético procura reler, agora, pelos fios<br />

da memória. A rua, portanto, na atualidade, é um mundo de<br />

signos, apontando para infinitas e inacabadas leituras. Espaço de<br />

possibilidades...<br />

Especial/Zila<br />

No verão de 1958, nas proximidades do SCBEU (Sociedade<br />

Cultural Brasil-Estados Unidos)<br />

Com a mãe Elídia e o sobrinho Jorácio, em 1952<br />

Julho 2003<br />

29


Título ou Tópico<br />

Os bichos<br />

30 Julho 2003


na poesia<br />

Anchella Monte (poetisa)<br />

Ilustração: Venâncio Pinheiro<br />

Há um livro – lindo! lindo! – publicado pela Bertrand<br />

Brasil (Programa Nacional Biblioteca da Escola, do<br />

Ministério da Educação, Coleção “Literatura em<br />

minha casa”) intitulado “A Poesia dos Bichos”, que reúne poemas<br />

de Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros e Thiago<br />

de Mello, tendo os animais como matéria-prima poética. O livro<br />

é encantador, pena que tão pouco volumoso, deixando ausentes,<br />

talvez por isso, dois mestres chegados também aos bichos, como<br />

Manuel Bandeira e Mário Quintana.<br />

Aproximei-me do livro por causa do projeto “A presença dos<br />

animais nos textos narrativos”, desenvolvido com meus alunos<br />

da 7ª série da Escola Municipal Professor Ulisses de Góis.<br />

Estudamos, principalmente, fábulas e crônicas, mas também<br />

poemas com enredo.<br />

A presença dos bichos é uma constante na poesia de muitos<br />

autores, quer como metáforas da própria existência humana,<br />

quer como elementos indissociáveis das paisagens da memória,<br />

afetiva (animais de estimação, animais observados, animais cujo<br />

sofrimento ou tipo de vida provocam inquietação) ou espacial<br />

(imagens ligadas à composição de um cenário).<br />

Os bichos estão também vivíssimos no trabalho de poetas<br />

do Rio Grande do Norte, do pioneiro Lourival Açucena, do<br />

tempo em que nossa cidade começava sua vida cultural, aos<br />

contemporâneos Luís Carlos Guimarães, Diógenes da Cunha<br />

Lima, Demétrio Vieira Diniz, Lisbeth Lima (e na minha poesia,<br />

por que não me incluir?), entre outros.<br />

Julho 2003<br />

31


Os bichos na poesia<br />

Nei Leandro de Castro, no “Poema da<br />

Longitude”, deixa escapar o pássaro do<br />

dicionário – somos nós quem viaja no meio<br />

de todas as texturas do azul. Sabemos que a<br />

metáfora resulta da visão interior do poeta,<br />

do emprego pessoal de uma palavra, frase ou<br />

texto. Mas essa subjetividade é igualmente do<br />

leitor, a metáfora não existirá sem os olhos<br />

nos olhos. Como não perceber, porém, neste<br />

poema, o homem-pássaro que se entrega ao vôo<br />

da liberdade, após estudar as suas possibilidades<br />

logísticas e afetivas?<br />

O pássaro/ não levanta vôo em vão./ Ele<br />

avalia na brisa imprecisa/ o peso exato do seu<br />

coração,/ e só depois viaja/ vai além,<br />

No poema “O Gato”, de Dailor Varela, o<br />

bichano sai do enquadramento da janela e se<br />

incorpora no homem:<br />

Desmistifi cada/ a liberdade do<br />

gato/ é tédio na janela.<br />

O gato, animal doméstico, ronrona entre a<br />

casa e a rua, colocando-se no limiar: a janela.<br />

Mas há sempre o salto latente em suas patas e<br />

no seu coração felino. Mas o homem – gato,<br />

domesticado, padece do tédio existencial<br />

absoluto, pois se encontra por trás da janela,<br />

consistindo a sua liberdade apenas no olhar<br />

para fora.<br />

Luiz Rabelo, em versos belíssimos, deixa<br />

mais clara a transferência de sentidos, porque<br />

o homem se torna pássaro. No entanto, na<br />

realização do poema a metáfora se expande,<br />

pois o pássaro também vai além, cresce na<br />

plenitude do amor (personificado através do<br />

vocativo) para a própria leveza:<br />

Cresceu na tarde o pássaro que<br />

fui,/ amor, tanta leveza.<br />

32 Julho 2003<br />

Em “A Última Lição”, a voz do poeta convida:<br />

Aqui é a Casa./ Seja bem-vindo./<br />

Descanse os pés./ Recolha as asas. [...]<br />

Use seus pés./ Conserve as asas.<br />

Nesse poema de Homero Homem, o ser humano torna-se<br />

híbrido, metade homem, pois a necessidade de descansar os pés<br />

sugere muito uso, e metade pássaro, o que tem asas. Ter asas<br />

implica em poder alçar vôo, daí a necessidade de conservá-las<br />

(tratar bem e mantê-las), e recolhê-las quando necessário, posto<br />

que tem os pés no chão.<br />

Em Vera Lúcia Pinto, o eu-lírico, escondido no casulo, tece asas<br />

aquecido por um olhar. O casulo, porém, e depois a borboleta,<br />

representada metonimicamente pelas asas, denuncia a presença<br />

do ser poético, do próprio eu:<br />

Casulo tanto tempo,/ Deixei-me penetrar pela<br />

luz do teu olhar,/ Pude tecer devagarinho,/<br />

Com meus sonhos,/ As mais belas asas.<br />

No poema “Corujas”, Carmen Vasconcelos pondera:<br />

Belo é não ter pátria/ Morar em entrecascas, por aí...<br />

O eu-coruja mora entre árvores, de árvore em árvore, nômade,<br />

à vontade diante da vida, tornando possíveis todos os lugares.<br />

Bicho e gente, mesmo ser.<br />

Às vezes, porém, os animais apenas povoam os campos das<br />

palavras. Mais do que o espaço capturado por um olhar sensível,<br />

a paisagem vista nos poemas resulta do que as pontua: os bichos.<br />

Da cidade ou do sertão, são eles que enchem de vida a texto que<br />

abre porteiras. Não se trata, no caso, de relacionar paisagem e<br />

estado de alma, o que ocorre é um repasse, uma transferência do<br />

estado natural para a linguagem, paisagem elaborada.


A noite fi ndou a ronda.<br />

Na aurora acesa no campo<br />

Rubro galo no horizonte<br />

Arremessou o seu canto.<br />

Este cajueiro plantado<br />

no chão de areia fi na<br />

é asa de passarinho:<br />

de pintassilgo, pardal, [...]<br />

Os dois trechos transcritos, de Luís Carlos Guimarães, dos<br />

livros “A Lua no Espelho” e “Ponto de Fuga”, basicamente<br />

descritivos, relevam a presença dos bichos: o galo que arremessa<br />

o canto, marcando o fim da noite (imagem recorrente, mas não<br />

desgastada), o papel do cajueiro não como árvore que fornece<br />

frutos, mas que abriga passarinhos.<br />

A figura do galo acolhendo a manhã também aparece em<br />

Diógenes da Cunha Lima. Nos versos do poeta o galo dá vida<br />

às cores da manhã. Os passarinhos desassossegando as árvores<br />

também surgem na poesia de Jaime dos Guimarães Wanderley:<br />

Assobiam, no arvoredo despenteado,/<br />

canários, sanhaços e sabiás.<br />

Elementos de linguagem verbal, sinônimos de leveza, liberdade e<br />

alegria, e não verbal, puro canto, nota musical transferida para o<br />

papel, multiplicam-se nos poemas os pássaros- signos:<br />

Quando ouço a juriti/ Soltar saudosa<br />

um gemido/ Saudoso, pensando<br />

em ti,/ Respondo com um ai dorido.<br />

Lourival Açucena<br />

Senhor! Consola e abençoa/ As almas simples da Terra,/<br />

Desde os sapos da lagoa/ Aos pintassilgos da serra!<br />

Henrique Castriciano<br />

Todas as tardes, sempre a mesma hora/<br />

Vem visitar-me um passarinho amigo...<br />

Palmyra Wanderley<br />

As aves abriam o vôo e voejavam/<br />

sobre as ásperas faces da manhã desnuda.<br />

Vital Correa de Araújo<br />

No claro azul da noite, em paz<br />

de ermos, solidários, passam<br />

cantando/ pássaros marinhos,<br />

à busca de pouso.<br />

Gilberto Avelino<br />

Manhã adolescente.<br />

Algazarra de pássaros cantando.<br />

Jaime dos Guimarães Wanderley<br />

Curió avoa<br />

voa<br />

Curió avoa(ante)<br />

espaços e<br />

desafi os.<br />

Carlos Humberto Dantas<br />

Os bichos na poesia<br />

Assobia o teu – viva o sol – concliz!<br />

Canta o teu lundum forte – graúna!<br />

Canta poeta – plagiador: - xexéu!<br />

Todos os pássaros são poetas neste mormaço...<br />

Jorge Fernandes<br />

No último poema, de Jorge Fernandes,<br />

os nomes dos pássaros, exclamativos,<br />

parecem movimentar o texto, para<br />

deleite do leitor, que segue os pulos dos<br />

pássaros, de verso em verso, como se em<br />

galhos de árvores.<br />

Em todos os poemas destacados, o<br />

pássaro é selo: estampa e autenticação<br />

do texto poético, relação simbiótica<br />

entre poeta e pássaro. Jorge Fernandes<br />

assevera: Todos os pássaros são poetas<br />

neste mormaço. Poderíamos dizer<br />

que todos os poetas têm um pássaro<br />

dentro de si. Ou desejam ser como eles,<br />

conforme Auta de Souza:<br />

Ah! Quem me dera só andar cantando, /<br />

Sempre criança, como os passarinhos!<br />

Julho 2003<br />

33


Os bichos na poesia<br />

A relação entre homem e bicho estreita-se<br />

em Zila Mamede, revelando comunhão,<br />

identificação plena de quem compartilha<br />

uma história de vida, resultado da integração<br />

espacial e temporal, da mesma formação como<br />

ser vivente:<br />

Era o cavalo em pêlo<br />

Em pêlo era o menino, e os dois<br />

- mais sua solidão, mais seu destino.<br />

Ainda em:<br />

Os bois assim dormindo caminhavam<br />

Destino não de bois mas de meninos<br />

Libertos que vadiassem chão de feno.<br />

O menino não é o cavalo, o boi não é o menino,<br />

mas são semelhantes, absolutamente próximos<br />

diante de tão igual existência. Cavalos e bois<br />

pastam na poesia de Zila. Também ocupam<br />

os campos textuais de Dorian Gray e Dailor<br />

Varela:<br />

Pátios com vacas / ruminando o sono/<br />

da terra: o acre-doce/ barro da terra (DG).<br />

Vacas pastam/ preguiçosa paisagem/<br />

branca e preta/ sobre o campo verde (DV).<br />

Outros bichos menores circundam e entram na<br />

paisagem poética. Em Demétrio Vieira Diniz,<br />

a lagartixa: “Melhor que olhar os pássaros/ e<br />

as borboletas/ é fitar a lagartixa/ movendo-se/<br />

entre fendas e heras/ de velhos quintais”. Em<br />

José Bezerra Gomes, os sapos e tanajuras: “Os<br />

34 Julho 2003<br />

sapos/ os cururus/ cantando/ dentro das noites/ empoçados. /As<br />

tanajuras/ Esvoaçando/ na luz/ das lamparinas. “Hamster”, em<br />

Lisbeth Lima de Oliveira: “porque os ratos de minha avó/ vivem<br />

em gaiolas, como os pássaros”.<br />

Essa estreiteza do convívio entre gente e bicho está presente<br />

no livro que encantou os meus alunos, “A Poesia dos Bichos”.<br />

A beleza que colocam no mundo (Os bichos? A poesia?) está<br />

contida no poema, “O Gavião”, de Thiago de Mello, integrante<br />

da obra:<br />

Chegava de tardinha,/ de começo desconfi ado, olhando<br />

oblíquo,/ e pousava, delicado como uma pomba, / no<br />

parapeito largo de itaúba, / ali fi cava me olhando,/ a<br />

grossura das garras me assustando,/ eu estirado na rede de<br />

tucum. [...] uma tarde chegou, fi cou me olhando/ imóvel<br />

largo tempo, depois voou,/ regressou, pousou no parapeito,/<br />

não soube me contar sua tristeza/ que me doía tanto, e então<br />

se foi,/ as asas lentas, desapareceu/ no fi m dos verdes. Nunca<br />

mais voltou.<br />

O gavião taciturno, mesmo assustando o poeta, era bem-vindo.<br />

O olhar do gavião parecia buscar um diálogo, esperado pelo<br />

outro, que não chegou a acontecer. Mas a emoção de estarem<br />

juntos eterniza-se no poema.<br />

Irmãos de reino, nós e os bichos, povoamos as mesmas plagas<br />

discursivas, e reinamos democraticamente. Não reconhecer<br />

essa irmandade implica em ficar carente de um grande prazer,<br />

como revela o espantalho de Iracema Macedo: “Meu corpo de<br />

palha seca/ nunca sentiu a volúpia dos bichos”. Aos bichos<br />

agradecemos, através da perspicácia de Manoel de Barros:<br />

Meu irmão agradeceu a Deus aquela/ permanência em<br />

árvore porque fez amizade com muitas / borboletas.


ESCRITURA POTIGUAR<br />

Alexandre Abrantes de Albuquerque nasceu em<br />

Natal em 26 de junho de 1968. Graduou-se em<br />

Engenharia Civil e Direito pela Universidade<br />

Federal do Rio Grande do Norte, onde<br />

atualmente cursa Letras. Começou a sua aventura<br />

poética em 1978, aos nove anos de idade. É<br />

membro da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins<br />

do Rio Grande do Norte. Em 2002 foi vencedor<br />

do II Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães,<br />

da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>. No mesmo ano,<br />

recebeu Menção Honrosa no Concurso Othoniel<br />

Menezes, promovido pela <strong>Fundação</strong> Capitania das<br />

Artes. Breve estará lançando o seu primeiro livro,<br />

“No coração das palavras”.<br />

Julho 2003<br />

35


Escritura Potiguar<br />

Justaposição<br />

Entre dois corpos,<br />

livros inundados<br />

de suor e metáforas.<br />

As palavras<br />

correm soltas<br />

pelas coxas;<br />

A leveza dos corpos<br />

repele o peso da vida.<br />

Mentes ultrapassam<br />

a esquina banal;<br />

voam sobre curvas,<br />

ruas sem sinal.<br />

Idéias, mundos,<br />

epiderme;<br />

corações narrando<br />

uma epopéia,<br />

ou simplesmente<br />

ouvindo<br />

a lírica do amor.<br />

36 Julho 2003<br />

Reflexos<br />

Espelhos deformam<br />

a face da verdade.<br />

Espelhos quebram<br />

a luz dos olhos<br />

desatentos.<br />

O mundo é um espelho,<br />

refletindo dados<br />

controversos<br />

na face assombrada<br />

do fazedor de castelos.<br />

E a força que ergue<br />

estruturas de concreto<br />

sobre camadas de gelo<br />

treme e não sabe<br />

de que lado penderá<br />

o céu que desaba.<br />

O mundo morre<br />

e só o amigo sobrevive.<br />

O mundo foge<br />

e só o amigo retorna.<br />

O espelho do mundo<br />

se estilhaça<br />

a cada golpe<br />

de fatuidade,<br />

mas a face do amigo<br />

permanece clara<br />

a cada raiar do dia.


Alvorada<br />

Da madrugada só tenho<br />

uma fração delirante.<br />

No resto, me perco<br />

literalmente em sonhos:<br />

nuvens carregadas de livros,<br />

versos e romances<br />

sobre a cabeceira<br />

da alma.<br />

O coração acordado<br />

procura um ninho de sossego<br />

a fim de fazer morada,<br />

mas só encontra uma bacia<br />

para guardar as lágrimas.<br />

Vendados, meus olhos<br />

vagueiam pelas aldeias<br />

dos fantasmas,<br />

poetas misteriosos.<br />

A escuridão é clara<br />

e intensa a luz<br />

dos fatos incertos.<br />

Ainda assim<br />

não tenho pressa<br />

de ver o sol,<br />

com seu primeiro viço,<br />

se enroscar<br />

por entre as frestas.<br />

Se tenho da madrugada<br />

vasta porção intrigante,<br />

a outra parte é amor,<br />

é pura nostalgia.<br />

A tela escrita<br />

Escritura Potiguar<br />

Pintar o amor que vem<br />

e brinca com as cores<br />

e abandona o quadro:<br />

eis as tintas que pincei.<br />

A espuma e a areia<br />

beijam o busto na tarde<br />

de um azul quase céu,<br />

não fosse a tristeza<br />

do despontar do crepúsculo.<br />

Os pomares vermelham<br />

as manhãs de abril<br />

quando as noivas se preparam<br />

para sofrer a parte<br />

não dourada da cumplicidade.<br />

A criança espera a promessa<br />

outra vez adiada<br />

e tão breve é o homem a correr<br />

sobre a rua cinza e áspera.<br />

Talvez nem seja sombra<br />

no próximo pôr-do-sol.<br />

Um bem-te-vi acompanha<br />

com suas retinas livres<br />

o aprisionado olhar da mãe<br />

que perdeu o filho e as noites<br />

de sublime cuidado entre<br />

brancas velas e alvas orações.<br />

O amor partiu para outro porto<br />

deixando águas pra(n)teadas<br />

a rememorar na tela<br />

o que seria desengano.<br />

Mas as cores<br />

ficaram misturadas,<br />

porque a vida<br />

não iria suportar<br />

a monotonia da reta.<br />

A última tinta da saudade<br />

ainda pulsa fresca<br />

e entre o pincel e o papel<br />

vou pintando o verso.<br />

Julho 2003<br />

37


Escritura Potiguar<br />

Estrelas<br />

Estrelas se movem<br />

sem rumo<br />

no coração do infinito.<br />

Estrelas fogem<br />

em segundos<br />

sem dó dos corações aflitos.<br />

Você e eu nada podemos<br />

contra o tempo, esse rio<br />

que nos levará<br />

para bem longe do mundo.<br />

Para onde vão as estrelas<br />

quando morrem?<br />

Não temos nada com isso,<br />

pobres trapezistas sem prumo,<br />

malabaristas desastrados,<br />

de pó correndo nas veias,<br />

riacho de sangue e vaidade.<br />

Onde anda minha estrela<br />

que se despediu à tarde?<br />

Se partiu,<br />

deixou-me a noite sem vida<br />

ou uma vida sem noites.<br />

Mas e daí?<br />

O resto está pulsando<br />

e o mundo não acabou.<br />

38 Julho 2003<br />

Submerso<br />

O meu pânico é suave,<br />

sem grito nem olhar<br />

de histeria.<br />

E essa volta do selvagem<br />

deixa-me ir sem pressa<br />

à cabeceira do rio.<br />

Ao mergulhar profundo<br />

onde só vejo<br />

o repousar das aves,<br />

após labor do dia,<br />

minha memória se deita<br />

no vão do não-pensamento,<br />

no não-compartimento da razão.<br />

E nessa lenta passagem<br />

sem que eu possa perceber<br />

tudo que longe voa,<br />

empreendo cosmo-viagem,<br />

onde figura objeto<br />

aquilo que não vejo.<br />

Esqueço o que é discreto<br />

e me envolvo nas imagens<br />

construídas na vertigem.<br />

Numa delas um ser disforme<br />

me diz que Borges<br />

mais contemplava o Belo<br />

no tempo que já não via.


CAMPO GRANDE<br />

Música de geração a geração<br />

Por Gustavo Porpino<br />

Fotos: Vlademir Alexandre<br />

Campo Grande, principal cidade do Médio Oeste, a 258 km de Natal, tem<br />

tradição musical secular. Já por volta de 1870, a “Bandinha dos Brito<br />

Guerra”, primeira banda de música de que se tem registro no município,<br />

fazia alvoradas na antiga Vila do Triunfo. A iniciação à música, antes<br />

restrita a filhos e filhas dos ilustres coronéis fazendeiros da região, foi<br />

democratizada e passou a ser herança de pai para filho. O músico Zé<br />

Pequeno e o maestro Ranieri são exemplos da cultura musical passada a<br />

cada geração.


Campo Grande<br />

A grandeza de<br />

Zé Pequeno<br />

Zé Pequeno é um homem realizado. Aos 93<br />

anos, o músico mantém a postura de quando<br />

tocava clarinete e acompanha o desempenho de<br />

três bisnetos na “Banda Monsenhor Militão”.<br />

“Trabalhei até o ano passado como barbeiro<br />

e toquei na banda até os 90 anos”, comenta,<br />

para logo a seguir recordar as origens humildes.<br />

“Minha primeira profissão era o rabo da<br />

enxada”.<br />

Zé Pequeno foi também pedreiro, barbeiro e<br />

carpinteiro. Aos 12 anos, começou a trocar o<br />

árduo ofício de cultivar o roçado por batidas no<br />

bombo. A música não demorou a conquistar o<br />

coração do menino. “Achavam que eu tocava<br />

bem”, diz sem soberba alguma. O músico faz<br />

uma pequena pausa e cita o nome de Mestre<br />

Artur e Manuel Mocó, os primeiros a ensinar a<br />

ele a arte musical.<br />

O nome Zé Pequeno, apelido herdado por ser<br />

filho de José Genoíno de Lima, o Dedinho,<br />

também conhecido como Zé Grande, não<br />

condiz com a representatividade do músico<br />

José Severo de Lima para o povo de Campo<br />

40 Julho 2003<br />

Grande. A vida de Zé Pequeno é repleta de superlativos. “Tive<br />

dez filhos, seis ainda vivos, já tenho 16 netos e 20 bisnetos”,<br />

comenta, enquanto pergunta ao filho mais novo se fez a conta<br />

certa.<br />

Antônio Idalécio, o caçula dos dez filhos de Zé Pequeno, mora<br />

com o pai na casa número 115 da rua Antônio Véras, em<br />

Campo Grande. “Ele deixou de tocar, mas continua envolvido<br />

com a banda. Chega a chorar quando a banda passa”, afirma o<br />

filho mais novo.<br />

“Só parei de tocar por ordem médica, mas me sinto bem. Só<br />

estou um pouco môco”, comenta o pai, entre uma e outra risada.<br />

Zé Pequeno não parece gostar de ser tratado como um idoso que<br />

requer cuidado especial. Anda pelas ruas sem ser amparado e não<br />

pede ajuda para dar o nó da gravata.<br />

Participou de dezenas de festas de padroeiras e carnavais, mas<br />

um em especial ele nunca esqueceu. O músico tem a resposta na<br />

ponta da língua quando perguntam sobre sua melhor lembrança<br />

durante os 78 anos que dedicou à vida de instrumentista. “O<br />

carnaval de 1940 em Areia Branca é minha melhor recordação.<br />

Era um cabra novo e namorador”, salienta.<br />

Seguindo o exemplo e a genética<br />

Anaildo da Silva, 14 anos, Anailton de Lima Silva, 17 anos, e<br />

Anailde de Lima Silva, 16 anos, iniciaram a carreira musical<br />

influenciados pelo bisavô. Anailton recebeu de presente de Zé<br />

Pequeno um dos três clarinetes usados por ele durante o tempo<br />

em que tocava na Banda Monsenhor Militão. O clarinete, feito<br />

em ébano, tem quase 60 anos de uso.<br />

Zé Pequeno, enquanto acompanha o ensaio da banda, fixa o<br />

olhar na bisneta sentada na primeira fila como se ali antevisse<br />

a sua dedicação à música sendo herdada por longos anos. O<br />

músico não fica sentado por muito tempo. Irrequieto, se levanta<br />

e observa todos os instrumentistas como se tivesse analisando o<br />

desempenho de cada um.<br />

Conhecimento não falta. Zé Pequeno já foi solista dos maestros<br />

Manuel de Oliveira (Manuel Mocó), José Pereira Jácome (José<br />

de Nataniel) e Antônio Vieira (Antônio de Pastora). Todos<br />

eles ex-regentes da banda de Campo Grande. “Em todos esses<br />

anos, sempre gostei mais de tocar “Royal Cinema” de Tonheca<br />

Dantas”, comenta, fazendo ainda uma referência ao maestro<br />

Vicente Ranieri, atual regente da banda.


“Ranieri é novo, conhece de música e gosta<br />

muito do que faz”, salienta. Zé Pequeno<br />

destaca que quase todos os músicos da cidade<br />

foram formados por Ranieri. “Campo Grande<br />

tem duas bandas, mas os músicos quase todos<br />

foi ele quem fez”.<br />

O maestro também reconhece a grandeza do<br />

legado de Zé Pequeno. Ranieri lembra que,<br />

ainda menino, Zé Pequeno seguia para Paraú<br />

na garupa do cavalo para tocar bombo. “Zé<br />

Pequeno é um patrimônio cultural que temos”,<br />

sintetiza. O interesse dos jovens da cidade em<br />

seguir a carreira de músico continua vivo. Disso<br />

ninguém duvida.<br />

O retorno de um<br />

vencedor<br />

Regente Vicente Raniere<br />

A Serra do Cuó é testemunha do esforço dos<br />

36 músicos da “Banda de Música Monsenhor<br />

Militão Benedito de Mendonça” em manter<br />

viva a tradição musical de Campo Grande.<br />

A banda, vinculada a Associação e Escola de<br />

Música Francisco Soares Filho, poderia ter<br />

sido extinta não fosse a dedicação do maestro<br />

Vicente Ranieri de Aquino Soares, 38 anos,<br />

neto de Laudemiro Soares, o Birico, ex-músico<br />

e compositor. Os instrumentistas chegaram a<br />

atravessar uma fase crítica de 1983 a setembro<br />

de 1989 por não terem regente para assumir<br />

sua direção.<br />

Vicente Ranieri, regente formado pela escola<br />

de música da UFRN, não só aceitou o desafio<br />

como iniciou a formação de uma nova safra de<br />

solistas. “A procura hoje é sempre maior que a oferta de vagas na<br />

banda”, atesta. O filho do maestro, Mateus Daniel, 7 anos, já<br />

ensaia os primeiros acordes com a flauta doce e o trumpete.<br />

O maestro estudou muito antes de voltar a Campo Grande para<br />

assumir a regência da banda. Aos 14 anos já era aluno da antiga<br />

Escola de Música da UFRN, ainda instalada na Praça Cívica,<br />

e tocava clarinete na banda de música do colégio Winston<br />

Churchill. “Comecei a tocar clarinete na 7ª série, aprendendo<br />

com major Lourival Cavalcanti”, recorda.<br />

“Também fiz muitos cursos de teoria musical, regência e harmonia<br />

pela <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>”, diz, destacando a oportunidade<br />

em ter participado do 1º Painel para Instrumentistas e Mestres<br />

de Bandas de Música, ministrado em novembro de 2000 por<br />

Roberto Farias, mestre da Banda Sinfônica do Estado de São<br />

Paulo.<br />

O maestro também não esconde a gratidão com o empresário<br />

Antônio Gentil de Souza, natural de Campo Grande e patrono<br />

da banda Monsenhor Militão. “O baluarte maior é Antônio<br />

Gentil. Ele é o nosso braço forte, sem ele a banda já tinha<br />

fechado”, salienta. A banda conta ainda com o apoio de 25<br />

associados. “Cada associado paga uma mensalidade de 10<br />

reais, mas é um sufoco grande. Começamos com mais de 70<br />

associados”, ressalta.<br />

“Saudades de minha terra”<br />

Campo Grande<br />

Vicente Ranieri já compôs onze dobrados, cinco valsas<br />

instrumentadas e também marchas solenes, frevos e maxixes.<br />

“Podemos tocar uma festa de padroeira só com composições<br />

minhas”, diz, salientando que o dobrado mais tocado pela banda<br />

é “Saudades de Minha Terra”, obra do maestro Estevam Guerra,<br />

composta em 1907.<br />

“Quase toda banda no país toca o dobrado do maestro Estevam<br />

Guerra. Existe até uma polêmica. Alguns dizem que “Saudades<br />

de Minha Terra” é de Isidoro de Castro ou de Tonheca Dantas,<br />

mas temos comprovação que este dobrado foi enviado do Pará<br />

por Estevam como despedida de sua terra natal”, explica.<br />

Documentos do Centro Cultural Cleto de Souza contam que<br />

Estevam Protomarte de Brito Guerra, filho do maestro Basílio<br />

de Brito Guerra, foi regente da banda de Campo Grande entre<br />

1904 e 1906, quando foi morar no Pará fugindo de uma grande<br />

seca que atingiu o município. Estevam ao saber que estava com<br />

tuberculose, na época uma doença sem cura, teria composto<br />

“Saudades de Minha Terra” em homenagem a Campo Grande.<br />

Um tributo perpetuado pela música.<br />

Julho 2003<br />

41


Campo Grande<br />

Do erudito ao popular<br />

A profusão de músicos em Campo Grande<br />

é tanta que fez surgir a Filarmônica Maestro<br />

Antonio da Pastôra, fundada em 26 de julho<br />

de 2000, em homenagem ao maestro Antonio<br />

Vieira, regente da banda de Campo Grande<br />

entre 1966 e 1982. O regente Francisco Vieira<br />

Fernandes, o Chico Vieira, 33 anos, é segundo<br />

sargento da polícia militar em Natal, mas vai a<br />

Campo Grande duas vezes por mês para ensaiar<br />

a Filarmônica.<br />

O filho de Chico Vieira, Fernando Carlos<br />

Moura Vieira, 7 anos, acompanha as<br />

apresentações da banda e faz valer a tradição<br />

de fazer a paixão pela música uma herança.<br />

“Meu filho já é doidinho por música”, destaca<br />

o regente.<br />

Campo Grande já chegou a ter uma terceira<br />

banda, a Filarmônica Manuel de Oliveira,<br />

em homenagem ao maestro Manuel Mocó,<br />

mas a banda foi desativada por dificuldades<br />

financeiras. “A Banda Monsenhor Militão não<br />

comporta todos os músicos”, salienta Chico<br />

Vieira.<br />

A Filarmônica Antonio da Pastôra tem 30<br />

instrumentistas, quase todos ex-alunos do<br />

maestro Vicente Ranieri. O repertório da<br />

banda vai do erudito ao popular. “Tocamos<br />

jazz, blues e também forró. Fazemos um estilo<br />

mais popular, mas não deixamos de tocar os<br />

dobrados e valsas de Felinto Lúcio Dantas,<br />

Tonheca Dantas, Antonio da Pastora e Manoel<br />

Mocó”.<br />

42 Julho 2003<br />

As duas bandas de Campo Grande desfilam nas alvoradas festivas<br />

pelas ruas da cidade. Chico Vieira, aluno do 2º período do curso<br />

de regência do Instituto de Música Waldemar de Almeida, não<br />

nega a necessidade de agradar o público com músicas mais<br />

populares. “Sempre abrimos com valsas e dobrados e depois vem<br />

o repertório mais popular”, comenta.<br />

A união das duas bandas fortalece a cultura de Campo Grande e<br />

oferece mais oportunidades aos músicos do médio oeste. Chico<br />

Vieira enfatiza que “a origem de 80% dos instrumentistas é da<br />

banda Monsenhor Militão” e destaca a importância do apoio<br />

mútuo. “Nunca deixamos de prestigiar a outra banda”. E assim,<br />

unidas, as bandas Monsenhor Militão e Antônio da Pastora<br />

seguem em frente, perpetuando a tradição musical de Campo<br />

Grande.<br />

Empresário dá o exemplo<br />

A Associação e Espaço Cultural Cleto Souza, criada em julho<br />

de 1996, é um convite ao saber. Logo na entrada, o visitante<br />

depara com um livrinho com os dizeres - “Queremos lembrar<br />

aos nossos visitantes, que o importante não é a sua assinatura no<br />

livro de visitas e sim a leitura que você faz em uma das obras que<br />

temos. Portanto leia, leitura é cultura”.<br />

Neuraci Vieira Albuquerque<br />

Livros para enriquecer o conhecimento dos visitantes não<br />

faltam. O acervo inicial de 350 volumes evoluiu para 4700 obras<br />

entre clássicos da literatura, enciclopédias e livros didáticos. O<br />

espaço cultural funciona no antigo escritório de Cleto de Souza,<br />

tabelião, músico e poeta natural de Campo Grande. O ambiente<br />

abriga também três computadores utilizados em aulas de<br />

iniciação à informática.


A vice-presidente do Espaço Cultural Cleto<br />

de Souza, a professora aposentada Neuraci<br />

Vieira Albuquerque, explica que o trabalho<br />

na Associação não está restrito à administração<br />

da biblioteca. “Ajudamos pessoas que querem<br />

aprender a trabalhar através de cursos de<br />

bordado, ponto de cruz e outros”, destaca.<br />

“A entidade tem por objetivo promover a arte<br />

e a cultura e fomentar novas oportunidades de<br />

desenvolvimento local”, acrescenta o empresário<br />

Antônio Gentil de Souza, presidente de honra<br />

da Associação. Gentil lembra ainda o objetivo<br />

de manter um acervo com um livro para cada<br />

habitante.<br />

Os estudantes da Escola Estadual Adrião<br />

Melo estão entre os principais freqüentadores<br />

do espaço cultural. Agnaldo Nogueira de<br />

Paula Oliveira, 20 anos, estudante do 3º ano,<br />

freqüenta a biblioteca desde que deixou há dois<br />

anos o sítio Caiana, na área rural de Campo<br />

Grande, e foi morar na cidade. “É um espaço<br />

de estudo e lazer. Temos acesso às revistas e<br />

jornais para nos atualizarmos com o mundo”,<br />

destaca. Agnaldo tem vontade de fazer o curso<br />

de informática oferecido pela Associação, mas<br />

não tem condições de arcar com a mensalidade<br />

de R$ 25,00.<br />

O Museu Donatila Jácome, esposa de Cleto<br />

Souza, também faz parte da Associação e<br />

Espaço Cultural Cleto Souza. O destaque do<br />

acervo são os móveis antigos e um oratório<br />

que pertenceu a Dona Miliana, esposa de Zé<br />

Pequeno. Os prédios do espaço cultural e do<br />

museu são anexos, localizados em frente ao<br />

largo da matriz de Nossa Senhora Sant’ana,<br />

construída em 1756.<br />

Espaço Cultural Cleto de Souza<br />

Praça João do Vale<br />

Rua João Roberto, 364<br />

Campo Grande (RN)<br />

A igreja de Campo Grande é<br />

apontada como a segunda maior<br />

do interior do Estado e abriga<br />

uma imagem centenária de Nossa<br />

Senhora de Sant’ana, restaurada<br />

pela <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>.<br />

O padre holandês Pedro Neefs,<br />

pároco em Campo Grande desde<br />

1979, tem feito um trabalho<br />

paroquial voltado para o trabalho<br />

e a educação política. “Envolver o<br />

povo em seu próprio destino” tem<br />

sido uma das missões do vigário.<br />

Padre Pedro conseguiu verba da Holanda para construir o<br />

prédio da Cooperativa Sertão Verde de Apoio a Agricultura<br />

Familiar, sede da Associação Comunitária dos Artesãos de<br />

<strong>Augusto</strong> Severo, antigo nome da cidade de Campo Grande. O<br />

surgimento da Associação beneficiou o trabalho das rendeiras e<br />

pequenos artesãos.<br />

Pelas mãos de Dona<br />

Tiquinha, a Tiquinha<br />

de Zé do Gato, nascem<br />

rendas de formas perfeitas.<br />

Um pano de bandeja da<br />

renda renascença, também<br />

conhecida como irlandesa,<br />

chega a levar mais de um<br />

dia para ser feito.<br />

Campo Grande<br />

Julho 2003<br />

43


Campo Grande<br />

Um poeta nas<br />

ondas do rádio<br />

Teatro, música e poesia fazem parte da vida de<br />

José Régis de Melo, o Zé Régis, 47 anos, desde<br />

o tempo em que morava na Fazenda Recreio,<br />

na zona rural de Campo Grande. Apaixonado<br />

por sua terra natal, o poeta, escritor e radialista<br />

divide seu tempo entre o estúdio da FM<br />

Independência, dirigida por ele, e a redação de<br />

textos para peças de teatro.<br />

A literatura de cordel está presente nas 13<br />

representações teatrais escritas por ele. “A<br />

donzela proibida” e “O casamento da inflação”,<br />

apresentadas no “Movimento Escambo”, estão<br />

entre as de maior destaque. A curiosidade<br />

e o espírito de comunicador sempre o<br />

acompanharam.<br />

O radialista conta das vezes em que “procurava<br />

as pessoas mais idosas para buscar histórias,<br />

sempre anotando o que elas falavam”. Zé Régis<br />

chegou a escrever um livro de 120 páginas<br />

sobre a história de Campo Grande, mas nunca<br />

conseguiu a publicação.<br />

“Já publiquei um livro de poesias, “Registro de<br />

um tempo”, mas a história de Campo Grande<br />

há três anos tento publicar”, comenta. Zé Régis<br />

acredita que a interiorização dos investimentos<br />

com a cultura irá possibilitar a edição do livro.<br />

A história do município não é o único trabalho<br />

de resgate cultural desenvolvido por ele.<br />

O comunicador comanda na Rádio<br />

Independência um programa de serestas<br />

relembrando as músicas antigas de artistas<br />

esquecidos pelas gravadoras. “Toco Nelson<br />

Gonçalves, Agnaldo Timóteo e outros. Quase<br />

não consigo fazer o programa de tantos<br />

telefonemas”.<br />

44 Julho 2003<br />

A Vida do Sertanejo<br />

A alegria do sertanejo<br />

É quando a chuva cai no chão<br />

Pra cuidar da plantação<br />

E tomar banho de riacho<br />

Colher dos braços<br />

O milho e o feijão<br />

Sua mulher Filomena<br />

De vestido cheio de renda<br />

Lhe espera ao anoitecer<br />

Vendo o marido correr<br />

Cansado e suado<br />

Fazendo o que comer<br />

Alimenta a família<br />

De muitos filhinhos<br />

Uns mais gordos<br />

Outros magrinhos<br />

Uns cheio de lombrigas<br />

Mas muito feliz da vida<br />

Ainda acha que são pouquinhos<br />

Quando a noite chega<br />

Chama a muié pra dormir<br />

Dizendo ô qui beleza<br />

Minha quirida Fí Fí<br />

Ta fazendo um frio danado<br />

Tire o vistido rendado<br />

Prumode nóis ir<br />

E assim o tempo passa<br />

Naquela brincadeira<br />

A casa não tem espaço<br />

Nas noites sertanejas<br />

Dorme na sala dorme no quarto<br />

Dorme em cima dorme embaixo<br />

Dorme até na cumieira<br />

Zé Régis<br />

Música ruim não toca<br />

O Canal Cultural é uma rádio diferente. “Priorizamos a música<br />

de qualidade e promover a cultura. São proibidas músicas que<br />

têm conteúdo banal ou pornográfico”, garante Fábio Fernandes,<br />

21 anos, diretor de programação da emissora. Fábio é artista<br />

circense há oito anos e planeja reativar o grupo de teatro de rua<br />

“Big Show”. “Pretendemos participar do Movimento Escambo<br />

em <strong>Janduís</strong>, vamos reativar o grupo”, confirma Francisco<br />

Antônio da Silva, diretor da rádio.


<strong>Janduís</strong><br />

O palco é a rua<br />

Por Gustavo Porpino<br />

Fotos: Vlademir Alexandre<br />

<strong>Janduís</strong>: Município, 1963,<br />

desmembrado de Caraúbas. De<br />

nhandu-i, a ema pequena, o<br />

corredor, o veloz. Os indígenas<br />

<strong>Janduís</strong>, da raça Tarairiú,<br />

tomaram essa denominação<br />

do nome do chefe, guerreiro<br />

poderoso, aliado aos holandeses,<br />

Janduí, Janduim, Jandovius,<br />

Jan du wy. A ema seria o totem<br />

da tribo. No escudo holandês do<br />

Rio Grande do Norte, concedido<br />

em 1639 pelo Conde de Nassau,<br />

figura uma ema, com o dístico<br />

Velociter, suficientemente<br />

esclarecedor. (Luís da Câmara<br />

Cascudo, em “Nomes da Terra”)


<strong>Janduís</strong><br />

<strong>Janduís</strong> à luz do dia<br />

É verde sempre verde<br />

O sol não rouba a paz de ninguém<br />

O sol não sabe quem é quem<br />

Além do mais ou do nada<br />

Todos merecem raios e trovoadas<br />

<strong>Janduís</strong> <strong>Janduís</strong><br />

Esta cidade tão pequena<br />

Com problemas de um país<br />

Iluminada pela luz das algarobas<br />

Verdes sempre verdes<br />

Resta agora decidir<br />

Matar a sede que nos mata<br />

E nos arrasta<br />

Para uma arena desigual<br />

Onde o boi é o bandido<br />

E a platéia o oprimido<br />

No varal.<br />

Ray Lima, poeta paraibano, autor de<br />

“Nhandupoiema”<br />

46 Julho 2003<br />

Heróis da resistência<br />

“Alecrim, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser<br />

semeado. Foi meu amor que me disse assim, que a flor do campo<br />

é o alecrim”. A cantiga popular anuncia a chegada da Ciranduís<br />

pelas ruas de <strong>Janduís</strong>. O palhaço Berg comanda o cortejo<br />

fazendo a alegria de dezenas de crianças. O Grupo Ciranduís,<br />

fundado pelo professor e<br />

poeta Josivan Melo da Silva<br />

em 21 de abril de 1993, é o<br />

único sobrevivente dentre os<br />

vários grupos de artes cênicas<br />

que um dia fizeram a cidade<br />

ser a capital potiguar do teatro<br />

de rua. Se sobreviver fazendo<br />

teatro na capital já é difícil,<br />

imaginem em <strong>Janduís</strong>, no<br />

médio oeste potiguar, a 270<br />

km de Natal.<br />

Palhaço Berg comanda o espetáculo;<br />

embaixo, Berg na torre da Matriz<br />

O grupo Ciranduís, junção das palavras Ciranda e <strong>Janduís</strong>,<br />

evoluiu para Companhia Cultural <strong>Janduís</strong> em 1999, passando de<br />

oito a quatorze componentes<br />

em menos de dois anos. O<br />

coordenador do movimento,<br />

o poeta e ator Lindemberg da<br />

Silva Bezerra (Berg), 21 anos,<br />

explica que a intenção foi<br />

criar uma ONG para “levar<br />

cultura e educação à grande<br />

massa que não tem acesso<br />

aos teatros”. O trabalho<br />

voluntário do grupo tem<br />

agradado, principalmente,<br />

às crianças e adolescentes de<br />

<strong>Janduís</strong>.


As crianças são a razão da existência da<br />

companhia. Sem elas, o grupo provavelmente<br />

teria sucumbido por falta de apoio. “Ema<br />

Ligeira”, “Nhanduí”, “Emanduís” e o “Grupo<br />

de Palhaços Filhos do Sol” também já tentaram<br />

levar um pouco de alegria para as crianças<br />

da comunidade. Não resistiram ao tempo. A<br />

Ciranduís herdou alguns membros dos antigos<br />

grupos de teatro e segue em frente convivendo<br />

com as dificuldades. “Só resta a Ciranduís, mas<br />

artistas temos muitos”, destaca Lindemberg.<br />

A disciplina da Ciranduís é rígida. A rotina do<br />

grupo lembra a de soldados de um quartel. A<br />

maioria já está de pé às 5h30 da manhã para<br />

fazer exercícios físicos. Novos componentes<br />

são aceitos, mas precisam ter comportamento<br />

exemplar e compromisso com a comunidade.<br />

“Preparo físico é importante para enfrentarmos<br />

um cortejo”, explica Lindemberg.<br />

O cortejo inicia na sede provisória da<br />

companhia, na rua Adrião Fernandes, passando<br />

em frente à Escola Estadual Vicente Gurgel,<br />

à praça e igreja Santa Terezinha. O trajeto<br />

contempla também as ruas com casas mais<br />

humildes de <strong>Janduís</strong> até chegar no “Vaporzão”,<br />

prédio que recebeu este nome por soltar a<br />

fumaça de uma antiga usina de beneficiamento de algodão. O<br />

Vaporzão foi a primeira sede da Ciranduís.<br />

“Iniciamos no Vaporzão e temos planos de ter uma sede própria.<br />

Já temos um terreno de 35 por 20 metros”, conta Lindemberg. A<br />

sede provisória da Companhia Ciranduís, uma casa com apenas<br />

um cômodo, é alugada pela Prefeitura.<br />

A simplicidade das instalações da sede não preocupa os atores.<br />

A Companhia prefere seguir o estilo de teatro da Idade Média,<br />

quando as trupes mambembes percorriam a Europa fazendo<br />

apresentações de artes cênicas. “Buscamos levar ao público a<br />

conscientização política utilizando trechos da poesia matuta de<br />

Patativa do Assaré e outros”.<br />

A preocupação em manter a população consciente sobre o<br />

que está acontecendo na região levou o grupo a criar também<br />

o programa “Recordes Culturais”. Todas as manhãs de sábado<br />

das 8h às 10h, os quatro alto-falantes da igreja Santa Terezinha<br />

transmitem o informativo com as notícias de interesse da<br />

comunidade. “A rádio mais próxima fica em Caraúbas”, salienta<br />

Lindemberg, justificando a importância do noticiário para a<br />

população.<br />

A atuação da Companhia Ciranduís não está restrita a <strong>Janduís</strong>.<br />

O grupo já desenvolveu oficinas de teatro, dança e capoeira em<br />

Messias Targino e diversas campanhas na zona rural de <strong>Janduís</strong> e<br />

Campo Grande. As campanhas levam às comunidades carentes<br />

informações, em linguajar simples e utilizando representações<br />

dramáticas, sobre prevenção a AIDS, higiene<br />

bucal, combate ao fumo e ao mosquito da<br />

dengue.<br />

Os textos teatrais montados são simples e vão<br />

sempre ao encontro dos problemas enfrentados<br />

pela população. “O Bode que pegou AIDS” e<br />

“As aventuras de Billy The Kid”, apresentados<br />

entre 1996 e 1999, até hoje são lembrados<br />

pela comunidade. “O texto de Billy The Kid<br />

não tinha pra ninguém, foi apresentado até<br />

em Upanema, Alexandria, Catolé do Rocha,<br />

Iracema e Aracati”, recorda.<br />

Julho 2003<br />

<strong>Janduís</strong><br />

47


<strong>Janduís</strong><br />

A Companhia Ciranduís vai além da arte de<br />

representar na rua. O teatro democrático do<br />

grupo educa, conscientiza e faz acreditar numa<br />

<strong>Janduís</strong> tão irrequieta quanto aquela que um<br />

dia acolheu vários grupos teatrais. Atores e<br />

poetas não hão de faltar.<br />

Apresentação em frente ao “Vaporzão”<br />

O moleque-palhaço-poeta<br />

O professor Valdécio Fernandes Rocha conhece<br />

Lindemberg da Silva Bezerra como ninguém.<br />

“Berg é acima de tudo o moleque-palhaçopoeta<br />

que tem as mesmas características do<br />

“Severino Retirante” descrito por João Cabral<br />

de Melo Neto em “Morte e Vida Severina”,<br />

descreve na página final do livro “Meu Lugar”,<br />

primeira obra poética de Lindemberg.<br />

De sua formosura<br />

Já venho dizer<br />

És um menino magro<br />

De muito peso não é<br />

Mas tem o peso do homem<br />

De obra de ventre de mulher<br />

48 Julho 2003<br />

“Minha poesia vem do Maracanaú”, diz o coordenador da<br />

Companhia Ciranduís, fazendo uma referência ao sítio,<br />

em Campo Grande, onde nasceu. Os poemas escritos por<br />

Lindemberg expressam romantismo e paixão, mas também<br />

guardam lugar para a revolta com a corrupção e o sofrimento do<br />

homem do campo. Berg já faz planos para publicar um segundo<br />

livro. “Desta vez quero escrever um livro de contos. Já estou<br />

preparando”, avisa.<br />

A Seca<br />

A Seca do Nordeste<br />

Maltrata o agricultor<br />

Já o clima do Agreste é<br />

A favor da agricultura<br />

A Seca do Nordeste<br />

Traz desespero e dor<br />

Faz a migração de conterrâneos<br />

Fugindo do grande calor<br />

No meio da grande seca<br />

Atravessamos fugindo da fome<br />

Com poesias, versos e alegria<br />

Despertando a fome de quem come<br />

Meu método da seca<br />

É viver na poeira<br />

Incentivando e ajudando<br />

A quem segue essa carreira<br />

Lindemberg Bezerra


“Precisamos ter mais chances”<br />

Atriz e dançarina Ivaneide Gurgel (ao centro)<br />

Ivaneide Gurgel, 18 anos, tem o semblante da esperança.<br />

A atriz e dançarina da Companhia Ciranduís exemplifica o<br />

esforço dos jovens de <strong>Janduís</strong> em ver seu talento reconhecido.<br />

“A sociedade ainda vê o teatro de forma diferente. Parte<br />

da população reconhece, mas é discriminado por outros”,<br />

comenta, deixando escapar um ar de tristeza com aqueles<br />

que consideram o teatro uma atividade supérflua.<br />

“Buscamos a mudança de consciência da comunidade através de<br />

nosso trabalho”, destaca. Ivaneide pensa em seguir carreira como<br />

atriz e lamenta a falta de oportunidades de estudo. “Sou muito<br />

realista, mas o meu sonho é fazer uma universidade de teatro”.<br />

A dançarina da Ciranduís faz apresentações de bolero e forró<br />

tradicional. A única oportunidade que teve de estudar artes<br />

cênicas foi há quatro anos, em Mossoró, como participante<br />

de uma oficina do “Auto da Liberdade”. “Precisamos ter mais<br />

chances”, diz, lembrando que a Companhia Ciranduís reivindica<br />

um intercâmbio entre grupos de teatro do interior e Natal.<br />

O sertão quer chegar ao mar<br />

Os poetas Josivan Melo da Silva, 35 anos, fundador do Grupo<br />

Ciranduís, e Daniel Joaquim Roberto, 37 anos, têm em comum<br />

o sentimento de revolta com a desigualdade social e a preferência<br />

por poemas críticos.<br />

Josivan Silva, conhecido em <strong>Janduís</strong> pelo pseudônimo de<br />

J. Rhuann, publicou “Do Sertão ao Mar”, livro de poemas<br />

que segundo o autor reflete a necessidade de levar a cultura<br />

popular à capital. Daniel Roberto, vencedor do concurso<br />

nacional de poesia da revista Brasília, em<br />

2000, escreveu “Alento a um Povo”, mas<br />

está em busca de apoio para publicação.<br />

“A minha poesia busca retratar as questões<br />

sociais e a realidade do nosso povo sertanejo,<br />

que ainda hoje, sofre discriminação, vive<br />

humilhado e explorado pelo poder dominante<br />

da burguesia”, costuma dizer J. Rhuann. O<br />

professor e poeta já tem um segundo livro para<br />

publicação, “Ironia de Poesia”, uma série de<br />

poemas críticos sobre questões sociais.<br />

“A poesia sou eu, é você, são aqueles que lutam<br />

por uma sociedade mais justa, onde a poesia<br />

não chegar vai restar a ironia”, diz, justificando<br />

a escolha do título. J.Rhuann também<br />

dedica parte do seu tempo ao “Movimento<br />

Escambo”.<br />

O poeta lembra a importância do “Escambo”,<br />

encontro de grupos de teatro de rua, idealizado<br />

em <strong>Janduís</strong>. “Os grupos “Alegria Alegria”<br />

e “Escarcéu de Mossoró” já tiveram aqui<br />

no Escambo, é bom para ganharmos mais<br />

experiência”.<br />

O próximo “Movimento Escambo” será<br />

realizado em <strong>Janduís</strong> de 8 a 11 de agosto.<br />

“Minha formação vem da vivência do cotidiano<br />

e do Movimento Escambo”, lembra. “Cultura<br />

transforma, mas não é prioridade. Sem cultura<br />

não há memória e amanhã o próprio gestor será<br />

esquecido”.<br />

Poeta J. Rhuann<br />

Julho 2003<br />

<strong>Janduís</strong><br />

49


<strong>Janduís</strong><br />

O poeta Daniel Roberto é ainda mais envolvido<br />

com temas sociais. “Prefiro escrever poemas<br />

críticos mostrando a realidade social e metendo<br />

o pau na burguesia”, comenta, sem esconder<br />

a falta de interesse pela poesia romântica.<br />

“Nada de poemas de amor”, sentencia em tom<br />

ríspido.<br />

Independentes ou<br />

sobreviventes?<br />

Somos<br />

Pobres diabos bonecos<br />

Jogados iludidos patéticos<br />

Caretas simplórios ingênuos<br />

Brasileiros.<br />

Final de século<br />

Final de milênio.<br />

50 Julho 2003<br />

Muro de Berlim<br />

Muro decadente.<br />

Será que somos independentes ou<br />

Na verdade, sobreviventes?<br />

J.Rhuann<br />

BRASIL...<br />

De tédios e manias<br />

fraudes, fome e fantasias<br />

de moda, melodrama<br />

medo e melancolia.<br />

Brasil de sem teto<br />

dos sem terra<br />

de omissos e espertos.<br />

Brasil que amo<br />

que muitos desamam<br />

de políticos que enganam.<br />

Brasil de discursos e teoria.<br />

Fome e agonia.<br />

Daniel Roberto


Esculpindo a fé<br />

Hamilton Ferreira de Lima, 19 anos, estudante<br />

e devoto de Nossa Senhora da Conceição,<br />

busca inspiração para suas esculturas lendo<br />

livros de história geral e a Bíblia. O gosto pelas<br />

artes plásticas começou aos 10 anos, quando<br />

aprendeu a ler na escola Daniel Gurgel. “A<br />

primeira escultura que fiz era uma mulher com<br />

trajes da década de 20”, recorda.<br />

A família de Hamilton tem dotes artísticos. O<br />

irmão Aldair faz parte do grupo de capoeira<br />

da Ciranduís e o outro irmão, Marcos Lima, é<br />

cantor. “Meu interesse maior é pela arte sacra,<br />

estou pensando em fazer um presépio para a<br />

igreja este ano”, destaca.<br />

O paraíso dos mocós<br />

Julho 2003<br />

<strong>Janduís</strong><br />

O nome é fazenda Cangaíra, lugar de sombras, mas poderia<br />

se chamar museu tamanho é o valor histórico dos objetos e<br />

mobília do casarão do início do século passado. Paulo Targino,<br />

proprietário, gosta mesmo é de mostrar a abundância de mocós<br />

correndo entre as caraíbas e subindo os rochedos.<br />

A fazenda, antiga morada de João Praxedes, foi adquirida por<br />

Messias Targino da Cruz em 1934. Pelos cômodos espaçosos<br />

do casarão já passaram os ex-governadores José Varela, Sílvio<br />

Pedrosa, Dix-Sept Rosado e Aluízio Alves.<br />

“Temos entre 8 a 10 mil mocós por aqui, sem exagero”,<br />

destaca Targino. “É um bicho em extinção”, salienta. O mocó<br />

assemelha-se com o preá, mas é maior e possui a cabeça mais<br />

comprida. O sertanejo considera a carne do mocó mais nobre<br />

que a do preá. O queijo de coalho, seguindo sua receita original,<br />

era feito com o coalho do mocó. Os principais predadores do<br />

animal são raposa, águia, teju e cobras.<br />

51


Esse estranho<br />

“Beijo” (Mármore - 1932). Victor Brecheret.


magnetismo<br />

Gustavo de Castro (jornalista)<br />

“O amor é um nó no qual se amarram,<br />

indissoluvelmente, destino e liberdade”.<br />

Quando o destino, os deuses ou a liberdade<br />

unem duas pessoas, eis aí o que poderíamos<br />

chamar de “estranho magnetismo”, essa feliz<br />

expressão usada pelo poeta mexicano Octávio<br />

Paz para sugerir que o encontro amoroso não<br />

é apenas um mero encontro, mas uma trama<br />

secreta do destino, do tempo e do próprio<br />

coração. Quando duas pessoas começam a se<br />

aproximar sem saber ao certo por que isso está<br />

acontecendo, motivadas talvez por uma força<br />

ainda incompreendida, uma força, quem sabe,<br />

radicada nos limites do desconhecido, que<br />

nome, rótulo ou classificação poderíamos dar<br />

ao que move esse encontro? Talvez, no amor,<br />

devemos deixar um espaço reservado para o que<br />

excede os limites da lógica. Aquela dimensão<br />

das ações e das decisões humanas que tomamos<br />

sem saber. Talvez o amor devesse ser explicado<br />

também a partir dos limites do sobrenatural,<br />

afinal, como dizem os místicos, o sobrenatural<br />

é apenas o natural não explicado.<br />

Será que podemos explicar racionalmente tudo o que nos<br />

acontece a nível sentimental? Em busca desta resposta, o poeta<br />

mexicano percorreu boa parte da literatura ocidental sobre o<br />

assunto (Apuleio que narra a história de Eros e Psiqué, os poemas<br />

de Safo, Denis de Rougemount e seu “L’amour et l’Occident”, o<br />

amor provençal, o amor cortês, Tristão e Isolda, Ovídio, Virgílio,<br />

Platão, Dante, Petrarca, entre outros) e também alguns livros da<br />

literatura oriental (o chinês Tsao Tchan e seu “Hung lou meng”<br />

ou o “Sonho do pavilhão vermelho” e o japonês Murasaki<br />

Shikibu que escreveu “História de Genji”, entre outros). Na<br />

sua busca, Paz encontrou uma diferença marcante na concepção<br />

literária de amor entre o Oriente e o Ocidente. No Ocidente,<br />

diz ele, o amor é filho do sentimento poético e da filosofia, é<br />

pensado primeiramente por Homero, Empédocles e Platão,<br />

enquanto que no Oriente o amor foi vivido e pensado dentro dos<br />

limites da religião, sendo uma confirmação dos ensinamentos do<br />

taoísmo e do budismo.<br />

No Oriente, o amor é um destino imposto desde o passado.<br />

Mais exatamente, é um karma ou o resultado de nossas vidas<br />

anteriores que, no presente, visam de alguma forma ajustaremse.<br />

No Ocidente, o amor é um destino livremente escolhido<br />

e, por mais que haja a influência da predestinação, há, na<br />

concepção ocidental de amor, a idéia de autonomia e escolha.<br />

Nas duas tradições, contudo, o amor possui valor de culto,<br />

sendo que tanto a literatura ocidental quanto a oriental narram<br />

Julho 2003<br />

53


Esse estranho magnetismo<br />

o amor como uma “escola de desenganos”, destino, “busca da<br />

felicidade” e como “caminho de ascensão até a beleza”. O ponto<br />

de interseção na noção de amor no Oriente e no Ocidente<br />

aparece então neste nó entre destino e liberdade.<br />

Esse nó magnético que arrebanha corações ocidentais e orientais,<br />

possui em sua natureza raios sinergéticos que ampliam-se em<br />

todas as direções. Na poesia e na literatura, a meu ver, esses raios<br />

parecem ganhar um valor complementar, pois testemunham<br />

a capacidade humana de relatar a experiência, a sabedoria e a<br />

força desse magnetismo às vezes em poucas linhas. Um exemplo<br />

singular do que falo está no conto “Uma segunda oportunidade”,<br />

do jornalista José Eduardo Agualusa. Em seis parágrafos, ele<br />

narra uma fascinante história de amor de um colega seu do<br />

Instituto Superior de Agronomia. Essa capacidade de síntese em<br />

literatura pode ser responsável às vezes pela ampliação de noções<br />

e conceitos, justamente por trabalhar ao nível da metáfora.<br />

Vejamos então se isso se aplica na metáfora de amor como ‘raio’,<br />

utilizada pelo jornalista. A história contada por ele é a seguinte:<br />

Li recentemente, num jornal brasileiro, a história de um homem<br />

que foi atingido por um raio durante uma tempestade tropical.<br />

Um médico que passava pelo local, socorreu-o. Verificando que<br />

não era capaz de reanimar (o infeliz sofrera paragem cardíaca),<br />

afastou-se para pedir ajuda. Nesse momento o homem foi<br />

atingido por um segundo raio, e com isso, espantosamente,<br />

recuperou a consciência. Morto por um raio, ressuscitado por<br />

outro, aquele homem está certamente convencido que Deus lhe<br />

deu uma segunda oportunidade.<br />

Lembro-me disto a propósito do amor. Pode haver, no amor,<br />

uma segunda oportunidade?<br />

Fui colega, no Instituto Superior de Agronomia, de um<br />

guineense, vou chamar-lhe Mariano, que tendo sido oficial do<br />

exército português em Dili, ali conheceu e se apaixonou por uma<br />

jovem menina da aristocracia timorense. Os pais da menina,<br />

descontentes com o namoro, acusaram Mariano de estar ligado<br />

ao movimento nacionalista guineense e ele foi preso e deportado<br />

para Cabo Verde. Poucas semanas depois aconteceu o 25 de<br />

Abril, e Mariano regressou a Bissau, onde o receberam como<br />

herói. A namorada de Mariano, entretanto, descobrira que estava<br />

grávida, sendo forçada pelos pais a casar com outro homem. Na<br />

seqüência da invasão de Timor pelas tropas indonésias fugiu para<br />

a Austrália com o marido e o filho pequeno. Não conseguiu,<br />

porém, esquecer-se de Mariano. Alguns anos depois separouse<br />

do marido e foi à procura do grande amor de sua vida. Em<br />

54 Julho 2003<br />

Bissau disseram-lhe que Mariano havia partido<br />

para o Rio de Janeiro. No Brasil informaramna<br />

que estava em Portugal. Em Lisboa, quando<br />

já pensava em desistir, encontrou na rua um<br />

antigo soldado português que também servira<br />

em Timor. Soube através dele que Mariano<br />

estudava agronomia – e encontrou-o.<br />

Conheci-a numa tarde de chuva. Era uma<br />

mulher de uma beleza sem exemplo, com uma<br />

cabeleira forte e negra, e uns olhos orientais<br />

que a dor tornara mais fundos. Aquela teimosia<br />

de amor deixou-me sem fôlego. “Se eu tivesse<br />

talento”, disse ao meu colega, “escreveria um<br />

romance com a vossa história”. Mariano riu-se:<br />

“eu escrevo”.<br />

Alguns meses depois voltei a encontra-lo. Estava<br />

sozinho. Perguntei pela mulher. Mariano ficou<br />

aflito. “Voltou para a Austrália”, disse-me:<br />

“Não deu certo. Sabes, no amor não há duas<br />

oportunidades”.<br />

“Toda repetição é uma ofensa”, canta a<br />

mexicana Lhasa num disco de uma beleza<br />

assombrada pela melancolia, “La Llorona”, que<br />

gosto de ouvir quando estou sozinho. “Não<br />

necessito amar, tenho vergonha”, explica Lhasa,<br />

“de voltar a desejar o que já tive”.<br />

Eu entendo o que ela quer dizer. Mas acho que<br />

o meu coração duvida. Um raio mata, outro<br />

ressuscita. Não pode ser assim no amor?<br />

O conto/crônica do jornalista angolano nos<br />

lembra o que Octávio Paz diz sobre a literatura:<br />

que ela é uma forma de “erotização da<br />

linguagem”. A palavra, de certo modo, é uma<br />

maneira de fazer amor com o mundo e com a<br />

vida, por isso a relação entre amor e literatura<br />

nunca deixará de ser íntima. “O que nos têm<br />

dito os poetas, os dramaturgos e os romancistas<br />

sobre o amor, não é menos precioso e profundo<br />

que as meditações dos filósofos. E com<br />

freqüência é mais certo, mais de acordo com<br />

a realidade humana e psicológica”. Poderíamos<br />

então seguramente dizer à luz deste conto<br />

que um amor mata, outro ressuscita... Não


poderá ser assim na vida real? Quando somos<br />

aplacados pelo raio do amor, caímos como que<br />

desfalecidos para a vida, temos uma segunda<br />

chance de acertar, de tomar consciência do que<br />

realmente importa. Assim, encontrar o amor<br />

de sua vida eqüivale no conto de Agualusa<br />

a renascer para si mesmo, ressuscitar para o<br />

mundo, despertar!...<br />

Lembro agora de uma mulher que conheci<br />

casada havia quase duas décadas que, diziame<br />

ela, nunca havia experimentado o amor.<br />

Perguntei-lhe então o que era “experimentar<br />

o amor” e ela me respondeu que mesmo<br />

sem jamais ter amado ninguém, sentia que<br />

o amor verdadeiro existia, pois o encontrava<br />

constantemente em filmes e romances.<br />

“E se existe lá é por que existe de fato!”.<br />

Sinceramente, gostaria que ela estivesse certa!<br />

Infelizmente, vivemos a cultura das sensações<br />

e não mais a dos sentimentos, como define o<br />

psicanalista Jurandir Freire Costa. A cultura<br />

dos sentimentos foi sufocada pela cultura<br />

das sensações, que promete felicidade rápida<br />

através das sensações corporais, da boa forma,<br />

do estímulo sensual, do sexo fácil, do êxtase...<br />

Amar de verdade parece agora algo limitado<br />

ao mundo da ficção, quando não o é. Nunca<br />

é tarde para descobrir o amor, muito embora<br />

seja difícil, mas não impossível, encontrá-lo.<br />

Encontramos parceiros para nos acompanhar<br />

ao longo da vida, encontramos pais para<br />

nossos filhos, projetos comuns, mas o amor<br />

verdadeiro, como encontrar?<br />

“Como encontrar?” Esta é a pergunta que Boris<br />

Cyrulnik faz no seu livro “Nutrir os afetos”,<br />

ainda inédito em português. Ele notou um<br />

padrão de interações recorrentes entre pessoas<br />

que buscam um amor. Em primeiro lugar,<br />

diz ele, para haver encontro é preciso estar<br />

ou ter estado separado, de modo que cada<br />

um manifeste, por sinais, suas sensibilidades.<br />

Isso torna o encontro um diálogo emocional.<br />

“Quando os casamentos eram arranjados pelos<br />

pais, as mímicas, os gestos e os vestuários<br />

tinham por função assinalar a pertença a uma<br />

categoria social. No casamento por amor é a<br />

Esse estranho magnetismo<br />

intimidade da pessoa que se exprime prioritariamente. É por isso<br />

que, hoje, os encontros se dão muito mais entre inconscientes do<br />

que entre famílias”.<br />

Encontramos o que procuramos? Ele ouviu de uma mulher que<br />

ela procurava um “príncipe encantado cego ou deficiente” e de<br />

uma senhora idosa que sempre fora atraída pelos escorraçados,<br />

a revelação de que encontraram, sim, os seus amados, do modo<br />

que procuravam. A primeira encontrou o seu príncipe encantado<br />

deficiente mental, a segunda, num baile, notou um homem com<br />

as mãos entre as pernas, acabrunhado. Ele convidou-a para<br />

dançar...casaram-se e ela passou o resto de sua vida ao lado de um<br />

homem com depressão crônica. “O encontro neurótico provoca<br />

casamentos entre estruturas opostas mas complementares: um<br />

homem que deseja dar, tem fortes probabilidades de encontrar<br />

uma mulher que deseja receber”.<br />

O encontro é necessário para criar um campo sensorial, diz ele,<br />

que permita às nossas competências realizarem-se, deixarem de<br />

ser latentes e passarem a ser reais, atuando concretamente no<br />

mundo. Creio por isso que encontramos o que procuramos.<br />

Mais cedo ou mais tarde, ele se manifesta aos nossos olhos. E<br />

isso aqui não se trata de uma visão idealista tirada dos contos de<br />

fadas, mas de uma perspectiva cotidiana, extraída dos encontros<br />

rotineiros do dia-a-dia, e da capacidade de engendramento<br />

inconsciente da nossa psiqué em realizar um desejo. De<br />

idealismos, o amor nunca esteve nem estará livre, mas é de<br />

encontros e histórias reais, surpreendentes e inusitadas que ele<br />

é, em parte, feito. Podemos dizer sem medo de errar, que esse<br />

“estranho magnetismo” relacional que faz do amor encontro,<br />

simpatia e abertura para o outro pode mesmo nos fazer acordar<br />

para a vida, renascer, como se fôssemos, de repente, fulminados<br />

por um raio, esgarçados de força e de luz.<br />

“Amantes Tropicais” (Óleo sobre tela - 1983). Siron Franco<br />

Julho 2003<br />

55


A biografia<br />

que falta<br />

Rubens Lemos Filho (jornalista)<br />

A<br />

humanidade tolera uma categoria de<br />

ser humano perversa e persistente: a<br />

dos que não fazem nada e reclamam de<br />

quem toma alguma iniciativa. São eles, talvez,<br />

os invejosos. Mas não vou batizá-los assim. Vou<br />

chamá-los de pentelhos, pronto.<br />

Há dois anos, consegui publicar em livro a<br />

biografia do meu maior ídolo futebolístico: o<br />

uruguaio Danilo Menezes, que disputou pela<br />

Celeste Olímpica a Copa do Mundo de 1966,<br />

foi titular do Vasco na segunda metade da<br />

década de 60 e brilhou como um regente no<br />

ABC glorioso dos belos anos 70.<br />

Tão logo o livro saiu – e eu já reclamei na<br />

época -, uma procissão de sábios protestou:<br />

Por que Danilo virou livro e não Alberi, o<br />

maior jogador do futebol potiguar em todos os<br />

tempos, o craque da Bola de Prata em 1972. A<br />

Bola de Prata é o Oscar do futebol brasileiro,<br />

entregue pela Revista Placar a cada final de<br />

campeonato.<br />

Expliquei – nem me interessava se convenceria -<br />

, que Danilo havia sido o primeiro jogador<br />

56 Julho 2003<br />

de categoria internacional a atuar no Rio Grande do Norte,<br />

o craque - alvinegro-ortodoxo (Alberi perdeu pontos com a<br />

“frasqueira” por haver jogado no América). E, sem a menor<br />

cerimônia, admiti que Danilo sempre foi o meu ídolo e é missão<br />

de todo fã eternizar seu objeto de adoração.<br />

Revendo revistas de dois, três anos atrás, encontrei o argumento<br />

que me faltou naquela época da polêmica (soberba minha?).<br />

Em pelo menos duas, havia referências a Francisco das Chagas<br />

Marinho, a Bruxa, ele sim, o maior orgulho nativo da bola<br />

potiguar.<br />

Marinho é uma entidade que só nós não reverenciamos. Foi o<br />

melhor lateral-esquerdo do mundo na Copa de 74, isso todo o<br />

planeta, até as gordas patuscas e fofoqueiras sabem de cor. Jogou<br />

dois anos pelo São Paulo. Um futebol tão deslumbrante que<br />

lhe rendeu a camisa 6 da hipotética seleção paulista de todos os<br />

tempos. Tem Marinho, tem Zizinho, Ademir da Guia, Julinho.<br />

Só não há Pelé porque ele é hour concours. Marinho, quando<br />

deixou o ABC em 1970 foi para o Náutico. Lá, jogou apenas um<br />

ano. Está no melhor Náutico e na melhor seleção pernambucana<br />

da história.<br />

Marinho é um tema para os sociólogos. Ele que figura entre os<br />

50 melhores de todos os tempos do São Paulo, do Fluminense<br />

e do Botafogo. Jogou no Cosmos (EUA), com Beckenbauer.<br />

Marinho Chagas é uma alma de criança, uma dádiva de talento<br />

que nasceu num campo de várzea, quando ainda havia deles em<br />

Natal.<br />

Eles, os tais pentelhos, adoram uma notícia ruim sobre a vida<br />

particular de Marinho, que é só dele, ainda que seja o mais<br />

público desportista do nosso tempo. Ninguém traz no sorriso<br />

a simpatia cativante do lateral-esquerdo que batia com a perna<br />

direita e arrancava ao ataque na passada de uma gazela.<br />

Marinho, sim, daria outra bela biografia. Se eu tivesse a ousadia<br />

de escrevê-la, começaria com um depoimento de Nilton Santos,<br />

o precursor: - Ah, Marinho, como jogava bonito. Se eu pudesse<br />

jogar com ele, eu me improvisava na quarta-zaga. Ele jogaria na<br />

minha.<br />

Palavra de Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol. O pai da<br />

bola de Marinho.


O Pai Bastião e a Casa de Usher<br />

José Antônio Pereira Rodrigues<br />

(Procurador do Estado e Professor de Direito)<br />

Para Olívia Pereira Rodrigues<br />

São duas casas. Uma, a da Fazenda Pai Bastião, quase ao<br />

sopé da Serra de São Bernardo, onde nasceu minha mãe;<br />

outra, a do conto de Edgar Alan Poe. Na verdade, uma<br />

não teria nada a ver com a outra se não fosse o episódio da queda<br />

em si. A primeira, enleada nos meandros de um bucolismo real,<br />

mesmo na visão de terra arrasada, terra ressequida, sem inverno,<br />

sem algodão e sem gado; a queda da outra, tecida no imaginário<br />

de espanto e terror. Ficção como contra-ponto da realidade,<br />

formando paralelos. Devaneios do espírito em diferentes esferas<br />

do sentimento humano. Ora, um autor atormentado pela<br />

vulnerabilidade da condição humana e pelo delírio do gênio.<br />

Ora, a perplexidade do outro ante a ruptura dos laços que une o<br />

homem ao seu passado - uma casa derrubada deliberadamente.<br />

Ilustração: Sayonara Pinheiro<br />

Fotos: Candinha Bezerra<br />

Se, num momento, a queda é real, noutro é puro<br />

intelecto em suas formas de expressionismo e<br />

êxtase - uma casa que rui num contexto onírico<br />

de criatividade artística. Narrativa do irreal nas<br />

construções da mente, apenas possível como<br />

retrato de um estado da alma.<br />

O Pai Bastião, portanto, é essa outra casa, tão<br />

plantada nos meus sonhos quanto o fora nos<br />

lajedos de Caicó. Dela, às vezes eu penso que<br />

teria sido minha, talvez, na sucessão hereditária<br />

dos homens, se estivesse intacta, de pé, e os<br />

ventos contrários da viuvez, junto com a seca<br />

Julho 2003<br />

57


O Pai Bastião e a Casa de Usher<br />

braba, não tivessem feito minha avó - Ubaldina<br />

de Medeiros Pereira - perder o gado e vender a<br />

terra. Quanto à casa de Usher, trata-se apenas<br />

de um pretexto comparativo, que poderia se dar<br />

com outra, de nosso universo literário. Como,<br />

por assim dizer, com a casa do engenho de fogo<br />

morto, do avô de José Lins; a casa da infância<br />

de Drummond, na sua Itabira hoje apenas um<br />

retrato na parede; ou a casa da Rua da União, do<br />

avô de Bandeira, na sua “Evocação do Recife”.<br />

Casas que desapareceram não para sempre,<br />

porque, se não mais existem em sua forma<br />

material e na forte presença da espiritualidade<br />

humana de seus remotos habitantes, persistem,<br />

entretanto, no esboço lírico-fisionômico da<br />

memória literária:<br />

“Vão demolir esta casa.<br />

Mas meu quarto vai ficar,<br />

Não como forma imperfeita<br />

Neste mundo de aparências:<br />

Vai ficar na eternidade,<br />

Com seus livros, com seus quadros,<br />

Intacto, suspenso no ar!”<br />

(Bandeira, em “A Última Canção do Beco”)<br />

Este, o prelúdio de um enfoque sobre uma<br />

recente experiência pessoal, numa viagem de<br />

retorno ao espaço das minhas origens, em<br />

busca de um tempo não reencontrado. A<br />

história não é sombria como a de Usher, pois,<br />

no Seridó, o sol que bate na rocha descoberta,<br />

e agora redescoberta, refletindo calor e luz,<br />

não compadece com os estados de languidez<br />

invernal.<br />

Deu-se que era o mês de festa da Santa, tempo<br />

de reencontro entre os homens e dos homens<br />

com Deus. Tempo, ainda, de se reverenciar<br />

58 Julho 2003<br />

raízes familiares incrustadas no alto ondular das serras, em<br />

terrenos feitos da mesma pedra fundamental da Igreja Catedral,<br />

um dia consagrada como altar de holocausto e penitência dos<br />

homens e de seus louvores a Deus. Sendo assim, e estando o sol a<br />

pino, dirigi-me pelas brenhas daquelas veredas tórridas, abrindo<br />

trilhas entre galhos ressequidos da vegetação arbústea, em busca<br />

da casa do meu avô. Levava minha mãe quase centenária, que<br />

também ia ao reencontro com o chão de pedra exposta, terra<br />

batida e tijolo branco que a viu nascer, ali de onde se avista a<br />

Serra de São Bernardo, que é como avistar o paraíso. Serra cuja<br />

contemplação supera em séculos a das pirâmides na retórica de<br />

Bonaparte. Protuberância rochosa a imprimir um ar tão solene<br />

quanto o “Cântico do Magnificat”, tão grave quanto o olhar do<br />

Cristo encarando o Gólgota, só poderia esse pedaço do mundo<br />

vir a ser escolhido pelos desbravadores daqueles rincões como<br />

marco fundacional de uma nova civilização nos sertões do<br />

Brasil.<br />

Uns primos também compunham o séqüito, servindo seus<br />

préstimos como guias na garimpagem de sentimentais vestígios<br />

arqueológicos. Caicó ia se distanciando a passos largos, à medida<br />

que as porteiras iam sendo abertas e, uma após a outra, as antigas<br />

casas das tias velhas iam despontando no caminho de volta da<br />

história. Ali, morava Tia Dalila, a mais bonita, que enviuvou<br />

muito nova, e nunca mais casou. Mais adiante, Tia Joaquina<br />

do velho Bedé, o legendário maestro da Banda de Música, com<br />

suas evoluções em meio ao foguetório, nas alvoradas de hinos e<br />

sinos, com suas performances nas retretas, no coreto da Praça da<br />

Liberdade, que se seguiam às louvações fervorosas e emotivas nos<br />

terços de Santana. Manoel Vitoriano Fontes, nome de dobrado,<br />

inconfundível com o seu gorro estilo francês e a piteira no canto<br />

da boca, vermelho como Churchill, inesquecível na sua figura de<br />

homem pacato e bom.<br />

O lugar permanece com as mesmas características de ambiência<br />

mística, como se fosse um espelho a refletir a imagem do<br />

homem, em sua relação com os fatores telúricos que o<br />

acompanham desde a origem, fazendo-se projetar como marca<br />

indelével do seu destino. O meio ambiente é o de uma natureza<br />

viva assumindo a forma de um ilusório quadro animado em<br />

sons, cores e brilhos, ainda que na disposição aparentemente<br />

estática dos objetos, sugerindo ausências redivivas, mágoas de<br />

abandono e irreversibilidade do tempo - debalde, pois nada<br />

disso consegue abater a têmpera do sertanejo indormido. Lá, o<br />

silêncio não se faz, nem a solidão se impõe, apesar da sensação de<br />

infinito, ao se fitar a paisagem, e da lentidão com que perpassa o


tempo. Se o silêncio existe, e quando existe, é lá pelos costados<br />

da noite, mesmo assim, cortado pelo canto da ave agourenta,<br />

pelo bater de asas do vôo rasante das marrecas, sobre o espelho<br />

d’água dos açudes, ou pela gritaria das gaivotas rasgando a<br />

escuridão. Nos meus sertões, o silêncio é apenas uma forma de<br />

serena contemplação das vicissitudes do tempo e das coisas, no<br />

aprendizado da vida. No silêncio, a palavra do homem é como<br />

um grito a ecoar ao longe, fazendo tinir na consistência metálica<br />

do horizonte rochoso a fibra do valoroso seridoense.<br />

Tudo isto para dizer que, malgrado a ausência e silêncio à parte,<br />

o mundo de tio Bedé permanece intacto, na aura que envolve<br />

e sustenta o tempo revisitado, trazendo de volta a partitura<br />

inapagável de seu dobrado, na hora do alpendre de sua casa,<br />

no lugar outrora cativo do armador de sua rede e ante a visão<br />

maravilhosa do seu pequeno açude, com águas que teimam em<br />

não evaporar, nem à força do sol abrasador. É julho, mas verde<br />

de todo só a algarobeira, resistente como o jumento. Supondo-se<br />

existir uma mitologia seridoense, seria a algarobeira um jumento<br />

plantado - não anda, mas dá sombra para o gado e também<br />

alimento. Dádivas do Deus Sol, rei da luz, da liberdade, da<br />

vida.<br />

Sôfrego, fui seguindo viagem, abrindo porteiras e transpondo<br />

mourões, em busca de um espaço perdido no tempo. Não<br />

somente o espaço, mas a própria casa do meu avô, edificada,<br />

quem sabe, pelas mãos calejadas de escravos alforriados, ou<br />

de índios remanescentes das barbaridades perpetradas pela<br />

infantaria do extermínio, possíveis descendentes, numa ou<br />

noutra linhagem, de um certo Pai Bastião. No compasso<br />

da caminhada, fazia conjecturas sobre o que ainda poderia<br />

restar da velha Casa Grande: a cobertura, de duas águas, e a<br />

fachada, alpendrada; suas salas, uma com o oratório da rezaria;<br />

os quartos, com os baús da roupa da família, voltados para o<br />

nascente; a parte frontal descortinando a majestade da serra com<br />

nome de santo - São Bernardo, na sua opulência resultante de<br />

convulsões sísmicas, numa perspectiva iluminada pela luz dos<br />

astros e a servir de norte à figura singela do incansável peregrino.<br />

Serra que oculta insondáveis mistérios divinos, fazendo às vezes<br />

do Arcanjo Gabriel, dessa feita anunciando o encantamento<br />

de Santana como a gloriosa padroeira da cidade com nome de<br />

índio.<br />

O açudeco foi se apequenando, ainda mais, na distância, se<br />

escondendo por entre ramagens verdes dos pés de algaroba.<br />

Tudo plantado pelo seu antigo dono, dizia um dos guias,<br />

enquanto o grupo ia desbravando a caatinga, margeando cercas<br />

O Pai Bastião e a Casa de Usher<br />

Julho 2003<br />

59


O Pai Bastião e a Casa de Usher<br />

de pedras sobrepostas, em cujas brechas se<br />

acoitavam as cobras. De repente, eis que surge<br />

a terra da promissão - o Pai Bastião, com toda<br />

a força mítica de um simbolismo familiar, de<br />

uma energia a impregnar em mim e nos meus<br />

irmãos, através dos anos, a idéia ou o sonho do<br />

sublime retorno ao chão sagrado das origens.<br />

Terra marcada com o ferro da raça, nas pegadas<br />

sobre o solo em brasa, nos tempos de bonança<br />

ou de apertura, na travessia do futuro. Terra<br />

que, com a morte do patriarca José Antônio<br />

Pereira, meu avô e homônimo, foi vendida, lá<br />

pelos idos de quinze, ao então Juiz de Direito da<br />

Comarca, o inolvidável Dr. Janúncio Nóbrega,<br />

filho do Cel. Gorgônio, da Fazenda Dominga,<br />

amigo e compadre do meu avô.<br />

O mesmo torrão onde minha mãe, então<br />

menina, correu de cobras jararaca e de veado,<br />

indo ou vindo de banhos no açude grande da<br />

Fazenda, e em cujas paragens, de outra feita,<br />

foi lançada à distância pelos chifres temíveis do<br />

touro brabo. Chão encharcado de bosta com<br />

urina de gado. Chão em que o índio enterrava<br />

seus utensílios, como preservação inconsciente<br />

de sua própria civilização e no qual, quantas<br />

vezes, fez colar o ouvido, a escutar o rufo dos<br />

tambores das tribos inimigas em pé de guerra.<br />

Chão pisoteado pelos cascos de reses, cavalos<br />

e jumentos do meu avô plantador, criador e<br />

tropeiro. Chão que ele fazia de escondedouro<br />

para suas patacas, como que as resguardando<br />

da sanha dos cangaceiros do bando de Antônio<br />

Silvino, tesouro enterrado só devassável no<br />

sonho dos pósteros, com as botijas da fala do<br />

60 Julho 2003<br />

povo e das histórias de antigamente, repetidas por Da. Olívia<br />

Pereira Rodrigues, minha mãe, antiga professora do Senador<br />

Guerra, pré-centenária e lúcida, legítima Comendadora da Vila<br />

do Príncipe da Freguesia de Santana do Caicó.<br />

O cenário geográfico e humano, como se vê, difere totalmente<br />

das brumosas nuvens, do lago gélido, da sensação de abandono<br />

e solidão ferindo a alma, que permeiam o clima do conto de<br />

Poe, fazendo implodir a casa de Usher. Aqui, já não mais existe<br />

a casa do meu avô, com seus habitantes, seus personagens.<br />

Minha mãe, já em idade provecta, de sua antiga e numerosa<br />

estirpe, resta só no mundo, mas nem por isto a casa velha da<br />

Fazenda se fez ruir, espontaneamente, como a outra, com suas<br />

estruturas impregnadas de melancolia. A casa do meu avô não<br />

teve sua queda provocada por ação corrosiva do tempo, nem<br />

por fadiga dos materiais; ela caiu por ação do homem, que não<br />

soube preservar um templo histórico do lugar, habitat de deuses<br />

familiares. A misteriosa casa de Usher desmoronou ecoando um<br />

estrondo, tal um toque de partida que se retardou, para que<br />

houvesse tempo de se revê-la. Mesmo num imaginário quase<br />

real. A casa do Pai Bastião foi o que eu vi, junto com minha mãe<br />

- um desrespeito a cento e cinqüenta anos de eternidade. Pois a<br />

ordem de quem sucedeu ao Juiz, no latifúndio - disse o capataz<br />

-, foi derrubar a casa, sem deixar pedra sobre pedra. Deitar tudo<br />

por terra, sem rufar de tambores, para não despertar a cobiça<br />

de eventuais posseiros. Quanto equívoco! Quanta insensatez!<br />

Antes, os posseiros, que receberiam aquela morada em usufruto,<br />

como depositários fiéis da história.<br />

O que para mim, então, foi outrora um acalentado sonho, já<br />

havia se transformado num amontoado de escombros, desde a<br />

remota antevéspera da chegada. Não à maneira de Poe, pois,<br />

sem tempestades, sem relâmpagos, ali tão raros... Sem delírios<br />

ou assombrações - nem ao menos, que fosse, uma recorrente<br />

assombração da infância...


A travessia do<br />

“nonada”<br />

pelo Grande Sertão<br />

Rejane de Souza (mestranda em Literatura Comparada)<br />

Ao narrar sua experiência em “Grande Sertão: veredas”,<br />

Riobaldo rememora a paixão transgressora por<br />

Diadorim, mas submete ao crivo da razão o encontro<br />

com o Demo. Fazendo a travessia do sertão e de si mesmo,<br />

à procura de esclarecimento, Riobaldo empreende a busca<br />

incessante do aprender a viver que imprime a real dimensão<br />

moderna da obra-prima de Guimarães Rosa. Riobaldo é o<br />

sertão feito homem e é meu irmão, diz o autor.<br />

Nesse sertão, as várias vertentes do homem se apresentam nos<br />

caminhos e descaminhos da personagem principal, Riobaldo<br />

e seu (sua) companheira (a) Diadorim. Através do desejo de<br />

conhecer o início e o fim das coisas são guiados pelas veredas<br />

do “Nonada” e “Travessia” que formam a estrutura circular da<br />

narrativa.<br />

A construção dessa linguagem interage divinamente com a<br />

criação e formação dos personagens. Não há linha divisória entre<br />

fala, pessoas, os sons e as imagens. O conjunto compõe o todo e<br />

ajuda na compreensão dos fatos.<br />

Julho 2003<br />

61


A travessia do “nonada” pelo Grande Sertão<br />

Na escrita roseana, é na força das palavras<br />

que está contida toda uma sabedoria, que<br />

o poeta põe em prática, em verso ou em<br />

prosa, tentando, buscando dizer o indizível, o<br />

indecifrável, revelando um novo aspecto e uso<br />

para aquela palavra... reinventando a verdade...<br />

O sertão é reinventado pela linguagem criadora.<br />

Nele, Rosa associa as indagações metafísicas<br />

do sertanejo, preocupado com o sentido<br />

do existir, da realidade além das aparências,<br />

ao questionamento presente no homem de<br />

qualquer tempo ou lugar conferindo ao texto<br />

um sentido de universalidade: O sertão é o<br />

mundo...<br />

A passagem pelo sertão é a travessia de todos os<br />

perigos do mundo, por que aí a vida é muito<br />

discordada. Tem neblinas de Siruiz. Tem cara<br />

de todos os cãos e as vertentes do viver. Enfim,<br />

viver é muito perigoso.<br />

Chegamos à personagem Riobaldo, em ‘Grande<br />

Sertão: veredas’ pensando: já que a alma tem de<br />

animar vários corpos e sendo Riobaldo vários<br />

em um, sua alma evoluiu de forma rica e plena.<br />

Ou nas palavras de Guimarães Rosa: Imortal é<br />

o que é do sofrido; tudo abaixo daí, é póstumo.<br />

Riobaldo era todos e nenhum deles. É um<br />

outro.<br />

Esse outro nos ensina a apreciar o mundo, ora<br />

como menino, ora como professor, ora como<br />

jagunço, ora como Tatarana, ora como Urutu-<br />

Branco... As veredas são diversas. O homem,<br />

na sua eterna busca de si mesmo, atravessa<br />

caminhos tão paradoxais quanto a sua própria<br />

existência.<br />

A travessia de Riobaldo pelo Grande Sertão<br />

reflete a visão do homem humano que se vê<br />

nesse mundo fragmentado como um recém-<br />

62 Julho 2003<br />

nascido que aprende e apreende informações e conhecimentos<br />

no decorrer da vida. O saber e o não saber demarcam a<br />

caminhada do personagem que narra a sua vida que não chega<br />

a entender:<br />

Mas naquele tempo, eu não sabia.<br />

O que não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia.<br />

Hoje sei.<br />

No não saber está o perigo de viver: Viver não é?<br />

Muito perigoso. Porque ainda não se sabe.<br />

O Grande Sertão que Rosa idealizou e que o personagem<br />

principal nos narra é a travessia do homem através de si<br />

mesmo, descobrindo suas veredas e verdades, e crescendo em<br />

dimensão espiritual, na medida em que se autoconhece. É nessa<br />

caminhada Riobaldo de que vai se estruturando a travessia pelo


um território vazio, onde os valores surgem pelo preenchimento<br />

dos espaços que ele se apropria, assinalando-os com a marca<br />

de sua passagem. É como no dizer de Benedito Nunes: “Para<br />

Guimarães Rosa, não há de um lado um mundo e, de outro, o<br />

homem que o atravessa. Além de viajante o homem é a viagemobjeto<br />

e sujeito da travessia, em cujo processo o homem se faz”.<br />

Na verdade, a interpretação de Riobaldo desse mundo só pode<br />

se processar a partir da condição de viajante, que é para ele e<br />

nós, leitores, uma continuada descoberta. Nesse sentido, as<br />

veredas desconhecidas, as decisões de amor e morte se diluem na<br />

travessia para constituir a experiência da personagem.<br />

Em sua multiplicidade, no caminho da descoberta e experiência,<br />

ele recompõe os pontos essenciais de uma circularidade que se<br />

fecha sobre si mesma: seu encontro com os jagunços e a aceitação<br />

da vida guerreira, sertão adentro; a convivência com Reinaldo/<br />

Diadorim - o sofrido amor; e, finalmente, sua tomada de mando<br />

sobre o sertão, quando passa a chamar-se Urutu-Branco, chefe<br />

de jagunço na imposição de suas leis.<br />

No primeiro ponto, o destino guerreiro que corresponde a uma<br />

permanente expectativa oscilando entre a surpresa e o medo,<br />

à frente de um mundo que ainda não conhece. No início da<br />

narrativa, Riobaldo diz:<br />

Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não<br />

ninguém ainda não sabe.<br />

Embora diga que o sertão é o que não sei, dirá também que o<br />

sertão é dentro da gente, revelando a descoberta primeira das<br />

coisas do mundo que o leva à atitude admirativa onde o homem<br />

e o mundo não se distinguem.<br />

Esse primeiro momento da experiência dá lugar a uma intuição<br />

poética de uma realidade mutável que traz outro elemento<br />

fundamental na trajetória de Riobaldo: Diadorim.<br />

É Diadorim menino quem introduz Riobaldo ao mundo<br />

maravilhoso e áspero do sertão. Menino diferente, tem estatura<br />

de um ser mítico, fabuloso, parecendo igualar-se ao próprio rio<br />

em sua força e em segredos. Possui o conhecimento das coisas e<br />

mostra a Riobaldo a beleza das flores e dos pássaros:<br />

“Foi o menino quem me mostrou. E chamou a minha<br />

atenção para o mato da beira em pé, paredão, feito a régua<br />

regulado. - as flores. Não me esqueci de nada, o senhor vê.<br />

A travessia do “nonada” pelo Grande Sertão<br />

Aquele menino como eu podia deslembrar?...<br />

Ele o menino dessemelhante, já disse não<br />

dava minúcia de pessoa outra nenhuma”.<br />

Diadorim é a presença do amor. É nesse<br />

ponto que se alcança a experiência central de<br />

Riobaldo, quando ele mesmo diz que foi nesse<br />

lugar, no tempo dito, que meus destinos foram<br />

fechados.<br />

O senhor... Mire veja: o mais importante e<br />

bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não<br />

estão sempre iguais, ainda não foram terminadas<br />

- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou<br />

desafinam. Verdade maior.<br />

À constatação primeira de que as pessoas ainda<br />

não foram terminadas, sucede a descoberta<br />

de Diadorim, desafio no mistério do amor:<br />

a vida não é luta com o sertão por fora, mas<br />

luta com o sertão por dentro: é um encontro/<br />

desencontro com as pessoas que estão sempre<br />

por se fazerem. Assim Diadorim aparece como<br />

núcleo circular da viagem de Riobaldo que faz a<br />

travessia para dentro de si em busca do eu.<br />

Nesse momento, o personagem debate-se numa<br />

luta dividida entre a busca do amor que não<br />

conhecerá e a tentativa de compreender um<br />

mundo regado por veredas onde se faz presente<br />

o oculto, impalpável, mas sempre assustador.<br />

Nessa hora, no meio dessa contradição, ele<br />

conclui: o sertão é o sozinho.<br />

A partir da constatação da quebra do estado<br />

de inocência, tudo se reduz à solidão e aí se<br />

delineiam as decisões. Riobaldo agora é o Urutu-<br />

Branco, no centro da guerra que o leva para as<br />

veredas do Demo a qual deve empreender<br />

solitariamente. Tem início a travessia... Essa<br />

travessia do deserto vazio, decidida na solidão<br />

mais radical, traz para a estória a figura de<br />

Riobaldo, agora, transformado em chefe de<br />

jagunço que recompõe e domina o mundo a<br />

partir do nada.<br />

Julho 2003<br />

63


A travessia do “nonada” pelo Grande Sertão<br />

Tendo a solidão e o nada como pontos de partida do agir, a<br />

personagem se constrói ou reconstrói pelas próprias forças e<br />

ergue os próprios valores. No ‘Grande Sertão: veredas’, esse gesto<br />

essencial de preencher com os próprios valores os espaços vazios<br />

faz a personagem atravessar a realidade conhecendo-a, e conhece<br />

mediante este fazer poético, que nasce do ato da nomeação. A<br />

travessia é, enfim, a busca de valores a que todo homem procede<br />

a partir do estado de solidão.<br />

E é, portanto, no meio desse universo insondável, abrindo<br />

trilhas, tentando caminhos, descobrindo roteiros, que Riobaldo<br />

terá o encontro com a Verdade. Da primeira palavra “Nonada”<br />

do livro ao símbolo final ¥, o que se acompanha é a trajetória<br />

do nada ao infinito, do caos ao cosmos, das trevas à luz. No<br />

romance, os rios correm do poente para o nascente.<br />

Ele descobre, através de sua iniciação pelo sertão, que a vida é um<br />

eterno recomeço, um ciclo vital em que o homem, em constante<br />

aprendizagem, mesmo após suas experiências, não sabe nada.<br />

Volta ao início, pois como está “nonada”, sabe que certezas não<br />

há, exceto que diabo não há, existe é o homem humano.<br />

Demais é que se está: muito no meio do nada.<br />

Donde nada eu não disse.<br />

No nada disso não pensei.<br />

O homem precisa fazer essa caminhada que começa “Nonada”<br />

e termina na “Travessia”. Essa última fronteira que nos leva ao<br />

estado da alma mais singelo, místico e físico. O homem tem<br />

de descobrir, na sua solidão diária, a solidão dele próprio e dos<br />

outros.<br />

Em Riobaldo, encontramos todas as paixões humanas o mítico<br />

e o real, o sonho e a verdade. Este magnífico e ao mesmo tempo<br />

tão insignificante destino, perante a sua complexidade.<br />

Por isso viver é muito perigoso, e não temos como fugir dele.<br />

Essa é a travessia que nunca tem fim, pois enquanto existir o<br />

homem, existirá sempre o caminhar para frente, em um eterno<br />

círculo.<br />

64 Julho 2003


O senhor<br />

do futuro<br />

Pablo Capistrano (escritor e filósofo)<br />

Mais uma vez me dirijo a estante<br />

de meu escritório para consultar<br />

a lista de escritores compilada<br />

por Harold Bloom no seu livro “O Cânone<br />

Ocidental”. Lançado em 1996 pela Objetiva,<br />

o livro de Bloom, como qualquer outra lista,<br />

é polêmico. Alguns afirmam que o livro<br />

reflete mais as opções culturais do autor,<br />

limitado lingüisticamente ao inglês, do que<br />

propriamente um traçado correto das principais<br />

obras do Ocidente.<br />

Nunca é bom esquecer que listas são sempre<br />

problemáticas. Toda vez que alguém faz uma<br />

antologia de poetas aqui no Rio Grande do<br />

Norte o mundo quase vem abaixo. A de Harold<br />

Bloom, no entanto, é especialmente polêmica<br />

porque revela, não apenas um simples gosto<br />

pessoal, mas um enfoque, uma angulação em<br />

direção a um modo de como a literatura deveria<br />

ser. Temos onze capítulos dedicados a autores<br />

de língua inglesa, um capítulo para Proust e<br />

um para Montaigne e Molière, um para Dante,<br />

um para Tolstoi e a língua russa, três autores<br />

de língua alemã (Goethe, Kafka e Freud),<br />

três autores de língua hispânica (Borges,<br />

Neruda e Cervantes), um capítulo para Ibsen<br />

Julho 2003<br />

65


O senhor do futuro<br />

e os Trolls da Escandinávia e uma citação, no<br />

meio do capítulo que fala de Borges e Neruda<br />

a Fernando Pessoa, chamado de Whitman<br />

português.<br />

Anglocentrismos à parte, no final do livro,<br />

Bloom põe uma lista mais extensa de obras.<br />

Inspirada em Vico e Spengler a lista é dividida<br />

em varias eras: a era Teocrática de Homero e da<br />

Bíblia hebraica; a era Aristocrática de Dante,<br />

Shakespeare e Cervantes; a era Democrática de<br />

Willian Blake, Novalis e Baudelaire e por fim a<br />

era do Caos.<br />

O Caos é a antevisão do cânone do futuro. Não<br />

é uma lista definitiva, mas uma possibilidade<br />

de lista, uma aposta que tenta equacionar o<br />

seguinte problema: quem vai indicar o caminho<br />

da literatura no terceiro milênio?<br />

Os candidatos mais fortes, de acordo com<br />

Bloom são: Kafka, Joyce, Becket, Proust.<br />

Quando eu li esse livro em 1996 estava muito<br />

ansioso para pensar como gente grande e nem<br />

me dei conta que o futuro de Bloom está no<br />

século XX. Um futuro tomando pelo espectro<br />

desconstrutivo que marcou toda a estética<br />

do século passado. O anseio de desmontar<br />

a própria civilização ocidental a quem o<br />

próprio Bloom busca filiar-se de modo tão<br />

apaixonado. Kafka, Becket, Proust e Joyce<br />

(bem particularmente Joyce) fazem parte dessa<br />

grande expansão rumo ao esgotamento da<br />

narrativa clássica, a sublevação do épico, ao<br />

mergulho na impressão do tempo cotidiano<br />

distendido, da linguagem nua, do pensamento<br />

acuado, do imenso e ansioso pesadelo de nossa<br />

vida moderna. Bloom só conseguiu chegar ao<br />

Caos e sua visão apaixonada da literatura pura<br />

passou batida por um nome que se projeta<br />

rumo ao verdadeiro futuro.<br />

66 Julho 2003<br />

Não falo dos beatniks (com exceção do Gary Snyder) totalmente<br />

excluídos da listinha da era do Caos, falo de J.R.R. Tolkien.<br />

Quando eu tinha 14 anos li o “Hobbit” e posteriormente uma<br />

grande parte do livro “A Sociedade do Anel” (primeira parte da<br />

trilogia “O Senhor dos Anéis”, e que agora virou filme). Achei a<br />

narrativa estranha, talvez porque na época só tínhamos edições<br />

vindas de Portugal, fato que, para um garoto da minha idade<br />

dificultava um tanto a fluência da leitura.<br />

Muita literatura depois acabei por me desfazer dos livros,<br />

acreditando que aquele tipo de texto (convencional) não teria<br />

futuro e que eu, como candidato a escritor, sonhando com uma<br />

vaguinha no cânone de Bloom, teria que concentrar minhas<br />

energias na alta literatura. A literatura do futuro. Comecei<br />

então a escrever um livro que se Deus quiser nunca vai ser<br />

publicado, chamado pomposamente de “A Metafísica do Sol”.<br />

Com o tempo eu percebi que o tipo de experiência que o livro<br />

se prestava havia sido esgotada em língua portuguesa, já em<br />

1974, com a publicação de “O Catatau” do Paulo Leminski.<br />

Não haveria como se opor ao “Catatau” e tentar enveredar pela<br />

desconstrução que o livro do poeta curitibano havia enveredado.<br />

No livro “Galáxias” do Haroldo de Campos tem o seguinte:<br />

(...)começo escrever mil páginas escrever milumapáginas para<br />

acabar com a escritura para começar com a escritura para<br />

acabarcomeçar com a escritura(...). De Joyce a Leminski o<br />

movimento foi esse, acabarcomeçar com a escritura. Fora o<br />

poeta de Curitiba, que depois do “Catatau” mergulhou fundo<br />

na poesia e juntou Drummond e João Cabral numa síntese<br />

espantosa, muita gente foi tragada pelo acabarcomeçar da<br />

escritura. Eu seria provavelmente mais um se não tivesse me<br />

lembrado do Tolkien.<br />

A obra desse professor de filologia é espantosa. A construção de<br />

um mundo não é tarefa para uma vida, mas Tolkien construiu<br />

um mundo. Escreveu longamente acerca da geografia, história,<br />

sociologia da Terra Média, compôs um universo paralelo<br />

encharcado de uma riqueza pouco vista na história da prosa. Todo<br />

esse esforço, como está atestado no prefácio da edição de 1954 do<br />

“Senhor dos Anéis”, se deu motivado por uma paixão lingüística.


A necessidade de se criar um suporte vivo para um idioma que<br />

ele mesmo inventou, o idioma Elfico. Inspirado nas línguas<br />

celtas antigas Tolkien construiu um idioma que hoje é falado e<br />

estudado por um grande número de pessoas. Mas como construir<br />

uma língua sem o suporte histórico, social e antropológico que<br />

lhe dê sentido? O caminho seria então o de inventar uma cultura.<br />

Uma forma de vida, ou várias formas de vida. Hobbits, Anões,<br />

Elfos, Orcs, Trolls. Criaturas retiradas da mitologia nórdica que<br />

povoariam a Terra Média com suas peculiaridades culturais,<br />

seus sotaques, seus trajes, hábitos e características próprias. Mas<br />

uma cultura não poderia ser construída apenas com criaturas.<br />

Seria necessário um mito fundador, uma cosmogonia, uma<br />

teogonia que seria síntese de uma grande diversidade de mitos<br />

e histórias recolhidas minuciosamente e compiladas numa obra<br />

de extensão monumental da qual o “Senhor dos Anéis”, com<br />

seus três livros, é apenas a parte mais famosa. Tolkien começou<br />

querendo construir uma língua, acabou acreditando que estava<br />

construindo uma mitologia para a Inglaterra e terminou por<br />

deixar o caminho aberto para a literatura do futuro.<br />

Joyce capturou Ulisses de Homero e o jogou nas ruas de Dublin<br />

fazendo o percurso de uma odisséia cotidiana, transformando<br />

em arte o pequeno da vida e tentando desmontar uma língua. A<br />

relação de Joyce com a linguagem é uma relação de ansiedade.<br />

A prisão da palavra virou lugar comum na literatura do século<br />

XX. A busca por ultrapassar a palavra, por sublevar a sintaxe, por<br />

fazer ruir sobre suas bases a escritura se tornou a pedra de toque<br />

da produção literária no século XX.<br />

Tolkien passou completamente alheio a essa ansiedade. Talvez<br />

por ser filólogo não tivesse grandes problemas com esse monstro<br />

implacável chamado língua, que imortaliza e destroça poetas<br />

com a mesma falta de cerimônia com que inventa problemas<br />

metafísicos. A compreensão das regras que constituí o solo da<br />

língua fez com que Tolkien ultrapassasse o estado de tensão<br />

adolescente em que muitos escritores acabam se perdendo.<br />

Adotando a idéia grega de criação, que empurra o escritor no<br />

caminho de modelar a massa amorfa da tradição mitológica de<br />

O senhor do futuro<br />

sua terra para fazer surgir um grande mito, um<br />

mito do futuro, Tolkien escreveu uma epopéia<br />

sem culpa ou vergonha. Não ficou perdido<br />

tentando fazer uma criação ex-nihilo como<br />

muitos escritores durante o século XX tentaram<br />

fazer. Acabarcomeçar para fazer surgir do nada<br />

uma nova linguagem, um novo mundo, uma<br />

nova forma de vida, um novo paradigma, uma<br />

nova novidade. O autor do “Senhor dos Anéis”<br />

reviveu a epopéia na era do Caos. Uma semente<br />

do verdadeiro futuro que é cíclico e não linear.<br />

Talvez por isso Bloom não tenha visto ou<br />

não tenha querido ver a força de Tolkien. O<br />

Cânone Ocidental de 1996 está imbuído de<br />

um profetismo apocalíptico. Ele olha para o<br />

fim, para o término da experiência humana.<br />

Bloom parece perdido em meio a velha e<br />

tediosa idéia de que o tempo é linear. Mas Vico<br />

e Spengler nos mostram que o tempo gira e<br />

que, nas eras atuais, se esconde a semente das<br />

eras que passaram e que um dia voltarão. Num<br />

século de coisas pequenas (caixas, flats, chips e<br />

automóveis) surge desatento numa poesia de<br />

Leminski o sentido do futuro:<br />

e no interior do mais pequeno / abre-se profundo<br />

/ a flor do espaço mais imenso.<br />

Estou livre da ansiedade de enfrentar Joyce,<br />

inimigo invisível que apresenta o vazio como<br />

campo de combate. Temos um verdadeiro<br />

construtor de mundos para destronar. J.R.R<br />

Tolkien não entrou no cânone do século XX<br />

porque, muito provavelmente, sua prosa é para<br />

o futuro. Para os 150 milhões de leitores de<br />

seus livros e os filhos desses leitores. Talvez não<br />

tenha havido espaço para o “Senhor dos Anéis”<br />

na listinha do Bloom pelo motivo que o próprio<br />

Tolkien gostava de ressaltar: meu problema é<br />

que eu sou um autor de espírito épico, numa<br />

época fascinada por coisas menores.<br />

Julho 2003<br />

67


“Estudo para o sepultamento” (Bronze - 1923). Victor Brecheret<br />

Bené Chaves (escritor)<br />

Diziam os estudiosos de Voltaire (1694-<br />

1778) - cujo verdadeiro nome era<br />

François Marie Arouet - que ele era<br />

uma pessoa paradoxal ao extremo. Foi preciso a<br />

parteira dar-lhe palmadas para que sobrevivesse.<br />

Os médicos não lhe deram mais do que quatro<br />

dias, mas ele enganou a todos e viveu 84 anos.<br />

Desprezava a humanidade, embora gostasse dos<br />

homens. Ridicularizava o clero, porém dedicou<br />

um de seus livros ao Papa. Falaram também<br />

que odiava a hipocrisia, empenhando-se com o<br />

riso na tarefa de afligir seus mentores. Todavia,<br />

era um hipócrita na atitude com os judeus.<br />

Não acreditava em Deus, mas sempre procurou<br />

encontrá-lo.<br />

No entanto, tinha um discernimento incomum<br />

em relação às instituições políticas e sociais de seu<br />

tempo. E numa profunda verdade sentenciava:<br />

rio-me, para não enlouquecer.<br />

E o que diremos nós, caro Voltaire, já tão<br />

calejados, hoje em dia, dessas malfadadas<br />

instituições? O jeito mesmo é rir, amargamente<br />

rir, senão enlouqueceremos todos.<br />

68 Julho 2003<br />

Sobre a<br />

vida e<br />

Mais adiante, bem mais adiante, aparece o poeta e escritor<br />

austríaco Ernst Fischer, nascido em 1899. Dizia ele que em um<br />

mundo alienado, no qual unicamente as “coisas” possuem valor, o<br />

homem se torna um objeto entre objetos: o mais impotente, o mais<br />

desprezível dos objetos. Eles têm mais força do que os homens.<br />

Em razão disso acrescenta com lucidez: a arte é necessária para que<br />

ele, o homem, se torne capaz de conhecer e mudar o mundo.<br />

E eis que chega uma mulher para nos auxiliar. É a chinesa Chiang<br />

Kai–shek, que nasceu em Xangai também no ano de 1899. Dizia<br />

lá nos seus ensinamentos que o excesso de riqueza devia pertencer<br />

à humanidade... deve haver igualdade entre os povos e as classes...<br />

paz e harmonia entre as nações ; roupa, alimento e habitação para<br />

os indivíduos.<br />

Mas, o que vemos depois de quase um século de vida? Que seu<br />

discurso tão apregoado com louvor, parece ter desfalecido na<br />

ganância insaciável e na insensatez dos homens. Afinal, concluía:<br />

não sou mística, não sou visionária. Acredito no mundo visto, não<br />

no mundo não visto.<br />

Grande mulher, hein? essa madame Kai–shek


e a morte<br />

Sobre a morte, esse fantasma que ronda nossas<br />

vidas e nos pega de surpresa, já comentava o<br />

célebre escritor argelino Albert Camus: “o que<br />

me espanta sempre, quando sempre estamos tão<br />

dispostos a sutilizar noutros assuntos, é a pobreza<br />

de nossas idéias acerca da morte”. E acrescenta<br />

adiante que “terei de morrer, mas isso nada quer<br />

dizer, porquanto não chego a acreditar e só posso<br />

ter a experiência da morte dos outros”. Todavia,<br />

diz ele... “penso então: flores, sorrisos, desejos de<br />

mulheres, e compreendo que todo o meu horror<br />

de morrer está contido em meu ciúme de viver”.<br />

Apenas como ilustração: no excelente filme “O<br />

sétimo selo”, de Ingmar Bergman, o assunto<br />

é focalizado, e na sua seqüência final mostra a<br />

sempre temível Morte carregando enfileirados<br />

todos os personagens da trama.<br />

Mas, vamos falar da vida... E sobre ela temos o<br />

depoimento realista do escritor americano Henry<br />

Miller, quando diz, entre outras coisas, que “a meu<br />

ver o mundo caminha para a ruína. Não é preciso muita inteligência<br />

para ir vivendo, do modo que as coisas andam. Na verdade, quanto<br />

menos inteligência se tem, mais se progride, arrebatando depois<br />

que eu queria encantar, mas não escravizar; queria uma vida mais<br />

ampla, mais rica, porém não à custa dos outros; eu queria libertar a<br />

imaginação de todos os homens...”<br />

E diante dos questionamentos da morte ou da vida, apelamos<br />

para o filósofo Confúcio, que viveu lá nos idos dos anos 531-478<br />

a.C. Dizia ele, com a sabedoria que lhe foi peculiar: como hei de<br />

compreender a morte, se ainda não compreendo a vida?<br />

Mas, quanto aos caminhos e descaminhos obscuros de uma<br />

vivência justa, declarava: se a humanidade fosse governada com<br />

justiça durante apenas um século, toda violência desapareceria da<br />

terra. Procurava compreender o ser humano, porém batia na tecla<br />

de que “não me preocupa muito que os homens não me entendam.<br />

O que me aflige é não os entender”.<br />

Vejam como naquele tempo as pessoas já eram complicadas e<br />

difíceis. Avaliem vocês se Confúcio vivesse no mundo atual,<br />

com um elo forte de corrupção atiçando as falsas probidades<br />

humanas.<br />

Julho 2003<br />

69


A tarrafa de Deífilo<br />

Luiz Cláudio Penha da Silva (estudante de<br />

Comunicação Social da UFRN)<br />

O tempo, ah, o tempo...<br />

Nos faz adiar tantos projetos<br />

nesse curto espaço da existência humana.<br />

Nesse momento sinto-me com a consciência<br />

do dever cumprido.<br />

Por volta da década de 80, quando aluno do<br />

Colégio Nossa Senhora das Neves, produzindo<br />

canções, com o meu amigo e parceiro musical,<br />

Iúri de Andrade (in memorian), ouvi uma das<br />

melodias mais doces e belas, produzida por ele<br />

para o poema “tarrafas” do professor Deífilo<br />

Gurgel.<br />

De lá, até os nossos dias, fui depositário desse<br />

encontro entre a poesia e as notas musicais,<br />

em que me sentia no dever de transmití-lo ao<br />

autor do poema. O ideal era que Iúri e Deífilo<br />

partilhassem o momento de fusão entre verso<br />

e canto. O “terceiro estágio” não permitiu que<br />

Iúri socializasse com o parceiro, o seu fazer<br />

criador.<br />

Cantava o poeta Nelson Cavaquinho: “...<br />

depois que eu me chamar saudade não preciso<br />

de vaidades, quero preces e nada mais”. As boas<br />

ações e criações de um ser humano devem ser<br />

ditas e lembradas em vida e após a morte.<br />

Nos versos que seguem, Deífilo expressou<br />

muito bem a vida paciente e laborativa do<br />

pescador em prol do seu sustento diário:<br />

70 Julho 2003<br />

Tarrafas<br />

A sombra do cajueiro que floresce junto ao mar<br />

Paciente o pescador tece a rede de pescar<br />

Enquanto a mão se entretece nesse mister singular<br />

Outra mão por trás do tempo vai tecendo sem cessar<br />

A tarrafa que algum dia, vai pescar o pescador<br />

Juntamente com seu tédio, seu sorriso e sua dor.<br />

E tece com tal mestria essa tarrafa de vento<br />

Que o pescador nunca pensa, quando pesca o seu sustento<br />

Que a morte o está pescando, lentamente, dia a dia<br />

Nessa embora inevitável, invisível pescaria.<br />

Na dialética da existência humana (“...outra mão por trás do<br />

tempo vai tecendo sem cessar...”) vivemos cercados de incertezas.<br />

Neste momento me bate uma saudade...Mas também, a<br />

felicidade de saber que a “tarrafa de Deífilo”, encanta por falar<br />

de coisas tão deliciosas e maravilhosas como a sombra, o mar,<br />

o pescador, a rede, juntamente com a melodia que, somada aos<br />

versos, nos deixam de alma calma e tranqüila.<br />

É assim que se solidifica o processo de construção: da poesia, da<br />

melodia, do labor, do cair, do levantar, do aprender, do lutar e<br />

sonhar com a certeza de que o fazer diário nos torna aprendizes<br />

da lição chamada vida.


O Beco da Lama, das<br />

artes e dos orixás<br />

Por Moura Neto<br />

Fotos: João Maria Alves<br />

Um dos últimos redutos dos artistas e boêmios no centro de<br />

Natal, o Beco da Lama vem se tornando palco de manifestações<br />

culturais prestigiadas não somente pela fauna humana que o<br />

freqüenta com pontualidade. Alguns dos eventos realizados na<br />

rua Dr. José Ivo, nome oficial do logradouro que se estende entre<br />

a Ulisses Caldas e Heitor Carrilho, cortando a João Pessoa, na<br />

Cidade Alta, têm atraído até mesmo parcela da sociedade chique<br />

tradicionalmente avessa aos botecos modestos e restaurantes<br />

populares que ali proliferam. A idéia é que isto aconteça com<br />

mais regularidade, segundo os membros da Sociedade dos<br />

Amigos e Moradores do Beco da Lama e Adjacências (Samba),<br />

entidade que há quatro anos levanta a bandeira da preservação<br />

do patrimônio histórico que o local abriga.<br />

Se depender da nova diretoria da Samba, que tomou posse em<br />

meio a ambiente festivo no mês de maio, com apresentações<br />

de bandas e performances dos remanescentes das tribos<br />

undergrounds, o Beco da Lama e adjacências irão ganhar um<br />

calendário de eventos que ajudará a resgatar sua história e ampliar<br />

seu acesso a todas as classes sociais. “Queremos promover pelo<br />

menos um evento por mês”, afirma o poeta Plínio Sanderson,<br />

40 anos, laureado com o prêmio Otoniel Menezes 2002, diretor<br />

cultural da entidade.<br />

O carro-chefe desta programação, segundo ele, será um<br />

evento que prestará homenagem póstuma a todos os grandes<br />

“habitues” da área, famosos e anônimos, talentosos ou não, que<br />

contribuíram para que o lugar ganhasse uma áurea pitoresca e<br />

Julho 2003<br />

71


Beco da Lama, das artes e dos orixás<br />

se consolidasse, ao longo de tantas décadas,<br />

como ponto de encontro de artistas plásticos,<br />

músicos, poetas, escritores, cultuadores e<br />

apreciadores das artes em geral. Enquanto a<br />

grande maioria dos mortais estiver chorando<br />

seus mortos nos cemitérios, no feriado do Dia<br />

de Finados, em novembro, a Samba garante que<br />

estará promovendo uma animada festa, que se<br />

repetirá nos anos seguintes, com exposição<br />

de fotos, recital de poesia e apresentação de<br />

músicas que lembrem os baluartes do Beco<br />

da Lama e adjacências, como o foram, por<br />

exemplo, o artista plástico e escritor Newton<br />

Navarro, o poeta Bosco Lopes e o cantor<br />

pau-de-arara Odair Soares, todos de saudosa<br />

memória.<br />

Se os mortos merecem loas, os vivos mais ainda,<br />

com o projeto “Calçada da fama”, idealizado no<br />

molde hollywoodiano para render homenagens<br />

aos que ainda estão entre nós. Outra meta da<br />

nova diretoria da Samba é popularizar a lavagem<br />

do beco, ao estilo baiano, com a participação<br />

das entidades de Umbanda e dos comerciantes<br />

que, alojados naquela área, vendem artigos para<br />

adeptos das religiões afro-brasileiras. Além do<br />

marketing que a realização invoca, conforme<br />

ficou comprovado nas duas edições anteriores,<br />

o objetivo é “limpar as energias” que confluem<br />

para aquele refúgio natural de boêmios,<br />

jogadores inveterados e “malucos” em geral.<br />

“Enfim, queremos transformar o beco num<br />

corredor cultural”, revela Plínio Sanderson.<br />

O médico e sindicalista João Batista de Lima, o<br />

Zizinho, que passou o cargo de diretor executivo<br />

da Sociedade dos Amigos e Moradores do Beco<br />

da Lama e Adjacências para o produtor cultural<br />

e poeta Eduardo Alexandre, o Dunga, conta<br />

que a idéia de fundar a entidade nasceu entre<br />

aqueles que alimentam “um certo amor pelo<br />

centro da cidade e sua parte mais antiga”. A<br />

fonte de inspiração, segundo ele, brotou das<br />

inúmeras iniciativas semelhantes ocorridas<br />

em cidades onde a população despertou para<br />

a necessidade de prezar seus sítios históricos,<br />

como a do Rio de Janeiro. “Nosso objetivo foi<br />

o de alertar a comunidade e o poder público<br />

para a importância de tombar e preservar um<br />

patrimônio histórico como esse”, disse Zizinho,<br />

72 Julho 2003<br />

53 anos recém-comemorados, claro, num dos botecos do bunker<br />

da boemia natalense que ajuda a manter ativo.<br />

Foi na sua gestão que o Beco da Lama, com suas casas e casarões<br />

antigos, abriu suas fronteiras para a penetração de notívagos e<br />

foliões acostumados aos cenários modernos da capital. Além da<br />

lavagem do beco, a Samba promoveu, nos anos anteriores, festas<br />

como as dos tributos a Chico Science e Noel Rosa, carnaval<br />

com banda de frevo e marchinha e um grande mutirão entre<br />

artistas plásticos para a pintura do seu calçamento, entre outras<br />

realizações.<br />

Novas gerações mantêm a<br />

tradição e o folclore do lugar<br />

Adoniram Fernandes Canan, do Bar do Nasi<br />

Várias gerações de biriteiros já se aposentaram ou se<br />

“encantaram”, mas o Bar do Nasi, na esquina da rua Dr. José Ivo<br />

com a Coronel Cascudo, no coração do Beco da Lama, continua<br />

com suas portas abertas aos profissionais do copo e amadores<br />

da conversa solta, possivelmente sem o mesmo glamour de<br />

décadas atrás, quando o velho Nasi Miguel Canan (Nasi, como<br />

era conhecido) descendente de libaneses, adotou uma clientela<br />

fiel ao aperitivo que ainda hoje dá fama ao estabelecimento: a<br />

meladinha, feita com cachaça, mel e limão.<br />

O patrono da casa faleceu em dezembro de 2001, aos 76 anos,<br />

mas deixou descendentes para cultuar sua memória e a do bar ao<br />

qual dedicou 40 anos de sua existência, de 1955 a 1995, quando<br />

adoeceu de diabetes e transferiu a administração do negócio para<br />

o filho Nasi Adoniram Fernandes Canan, hoje com 34 anos.<br />

“Mesmo doente ele vinha aqui todos os dias”, conta Adoniram,


herdeiro que não esconde orgulho por manter acesa a tradição do<br />

boteco. Na época do seu pai, não era difícil surpreender naquele<br />

recanto simplório do Beco da Lama algumas das expressões das<br />

artes e das letras potiguares, como os já mencionados Newton<br />

Navarro e Bosco Lopes, o jornalista e poeta Celso da Silveira e<br />

o escritor Bob Mota, que suspenderam suas atividades etílicas,<br />

pelo que se sabe. No desabrochar do terceiro milênio, o bar<br />

continua sendo freqüentado pelas novas gerações dos artistas<br />

natalenses.<br />

O carisma do velho Nasi, no entanto, se irradiava também pelos<br />

territórios mais conservadores da sociedade natalense. Compadre<br />

do ex-secretário de Justiça do governo de José Agripino, Manoel<br />

de Brito, foi por meio deste que o comerciante recebeu, em seu<br />

estabelecimento, aquele que hoje é o líder do PFL no Senado.<br />

A visita mais enaltecedora e marco maior dos áureos tempos do<br />

bar, porém, ficou registrada para a posteridade em placa afixada<br />

na parede, onde se lê: “Aqui Pixinguinha recebeu o abraço<br />

carinhoso desta Natal boêmia”. Foi ele mesmo, sim, o grande<br />

mestre da MPB, que ali esteve em 21 de abril de 1969.<br />

Como a maior parte dos fregueses que atendia, Nasi tinha<br />

características singularíssimas. Não anotava os pedidos que<br />

despachava, guardando tudo na memória. Isto fez com que<br />

ocupasse lugar de honra no anedotário folclórico que exalta os<br />

personagens típicos do beco e adjacências. Dizem uns e outros<br />

que Nasi passava a conta do freguês após observar seu estado - e<br />

jamais errava no cálculo. “Bastava olhar para ele saber quantas<br />

doses o cliente havia tomado”, atesta Dorian Lima, produtor<br />

cultural, 40 anos, uns 19 vividos naquelas redondezas. Outra<br />

faceta deste personagem: não limpava as prateleiras onde se<br />

enfileiravam as garrafas de pinga, deixando que de lá saltassem<br />

enormes teias de aranha, sinal de sorte, conforme crença árabe.<br />

O dono do bar e o padre<br />

Nascido na rua Gonçalves Ledo, 671, prolongamento da Vigário<br />

Bartolomeu, numa casa cujos fundos dá para o Beco da Lama, o<br />

músico e comerciante Pedro Abech (Pedrinho), descendente de<br />

turco, árabe e judeu, passou a infância, cresceu e tornou-se adulto<br />

em contato permanente com aquele setor da cidade, onde hoje,<br />

aos 44 anos, mantém um pub (bar) no mesmo endereço citado<br />

acima. Abech conhece como ninguém os tipos que transitam por<br />

ali. Antes de abrir o bar, em 1985, foi dono de uma casa de jogo<br />

por dez anos, freqüentada também pela fina flor da sociedade.<br />

Viu de tudo, mas conserva a discrição. Faz parte de seus planos<br />

Beco da Lama, das artes e dos orixás<br />

atuais expandir os negócios. Ele pretende<br />

ampliar a estrutura do bar para a realização de<br />

eventos culturais, oferecendo dois ambientes<br />

distintos, um clássico e outro popular, para a<br />

clientela composta principalmente de artistas<br />

que, como ele, se mantém fiel à tradição do<br />

beco.<br />

Vizinho a Abech reside o padre espanhol<br />

Agustin Juan Calatayud y Salom, que jamais se<br />

aborreceu com o barulho da música e das vozes<br />

que se exaltam em discussões acaloradas. Ao<br />

contrário, em artigo publicado no livro Cantões,<br />

Cocadas - uma antologia sobre o Grande Ponto<br />

Djalma Maranhão, coordenada por Eduardo<br />

Alexandre - ele descreve a satisfação com que<br />

às vezes conversa, no bar do Pedrinho, com os<br />

artistas, intelectuais e comunistas (a sede do PC<br />

do B fica ali perto) que “procuram no luar, na<br />

cerveja e na camaradagem desafogar as pressões<br />

do dia e da vida”. O Beco da Lama, aliás, tem<br />

sido cantado em verso e prosa não só por<br />

poetas e músicos, mas por cronistas de todas as<br />

estirpes, incluindo os de alta plumagem como<br />

Berilo Wanderley.<br />

Pedro Abech, dono de bar<br />

Julho 2003<br />

73


Beco da Lama, das artes e dos orixás<br />

Ali morreu Jorge Fernandes<br />

segurando a mão de Bibita<br />

Moura Júnior (Bibita)<br />

As casas que antigamente se situavam na avenida<br />

Rio Branco e nas ruas Vigário Bartolomeu e<br />

Gonçalves Ledo tomavam todo o quarteirão. A<br />

água da roupa lavada, conduzindo os dejetos e<br />

outras impurezas dos bichos soltos nos quintais,<br />

escorria para o beco dos fundos, dando origem<br />

ao nome do gueto que, tempos depois, passou a<br />

ser sinônimo de boemia e vagabundagem. Isto<br />

aconteceu depois da segunda metade da década<br />

de 40, segundo o procurador aposentado da<br />

Assembléia Legislativa, Manoel Procópio de<br />

Moura Júnior, 63 anos.<br />

Segundo ele, no final do século XIX e primeira<br />

metade do século XX, a rua Voluntários da<br />

Pátria, no trecho entre a Ulisses Caldas e<br />

Coronel Cascudo, também na Cidade Alta, era<br />

conhecida como Beco da Lama por causa do<br />

que nela havia de sobra. Este trecho foi fechado,<br />

entre 1937 e 1945, passando o acesso a fazer<br />

parte dos quintais das casas localizadas nas ruas<br />

da Conceição e Vigário Bartolomeu. Com isso,<br />

afirma Moura Júnior, a denominação de Beco<br />

da Lama foi transferida para a rua Dr. José Ivo,<br />

que durante muito tempo foi conhecida como<br />

rua do Meio, por se localizar entre a avenida<br />

Rio Branco e Vigário Bartolomeu.<br />

Moura Júnior viveu 30 anos de sua vida nas<br />

proximidades do atual Beco da Lama. A casa<br />

onde nasceu pelas mãos da parteira Salomé<br />

Carvalho de Albuquerque Maranhão, mãe<br />

do ex-prefeito de Natal Djalma Maranhão,<br />

ficava entre a casa do poeta vanguardista Jorge<br />

74 Julho 2003<br />

Fernandes, na Vigário Bartolomeu com fundos para a Dr. José<br />

Ivo, e a de Bartolomeu Fagundes, dono do cartório herdado pelo<br />

filho Armando, na rua da Conceição. Foi ali que começou sua<br />

carreira de boêmio, encerrada há alguns anos. Foi dali, também,<br />

que guardou sua recordação mais preciosa: a amizade com o<br />

poeta precursor do modernismo. Quando Jorge Fernandes<br />

morreu em julho de 1953, aos 66 anos, ele tinha apenas 13. A<br />

diferença de idade, porém, não foi empecilho para que os dois<br />

se tornassem íntimos.<br />

Moura Júnior tinha um apelido, Bibita. Na noite em que o poeta<br />

fechou os olhos para este mundo, a filha Alice invadiu correndo<br />

a casa de seu Nezinho (pai de Moura), para levar Bibita até à<br />

cama do moribundo, que queria vê-lo. “Ele morreu segurando<br />

minha mão”, lembra. Muito tempo - antes desta hora final - os<br />

dois passaram juntos. Jorge costumava chamar Bibita para tomar<br />

suco de limão, fruto que o garoto colhia da árvore do vizinho. Só<br />

depois Moura Júnior descobriu que a limonada trazida para ele<br />

por dona Alice (esposa do poeta e que tinha o mesmo nome da<br />

filha) não era a mesma oferecida ao poeta, que naquelas ocasiões<br />

tomava batida de limão.<br />

Rezando em cartilha diferente<br />

Os botecos do Beco do Lama sempre foram ocupados pelos<br />

boêmios que não rezavam - e o verbo também pode ser conjugado<br />

no presente - pela cartilha da sociedade bem comportada. Na<br />

época em que os holofotes pipocavam na direção da Confeitaria<br />

Cisne, Acácia Bar e Sorveteria Aracati, nas imediações do Grande<br />

Ponto, locais freqüentados por figuras ilustres como o mestre<br />

Câmara Cascudo e o dr. João Medeiros Filho, alguns preferiam o<br />

beco e adjacências, onde pontificavam, por exemplo, o Granada<br />

Bar e Oásis. Depois se instalaram por ali comerciantes como<br />

Nasi, Odete e Chico, cujas casas continuam abertas ao público,<br />

sempre renovado ao sabor das estações dos anos.<br />

Entre os anos 90 e 91, há quem lembre, fez sucesso o Balalaika,<br />

um espaço cultural alternativo e independente, sem vínculo<br />

com instituições oficiais, onde se realizavam lançamentos de<br />

livros e exposição de artes plásticas. Também havia sala para a<br />

comercialização de livros usados e de artigos do sertão, mas o<br />

movimento maior, sem dúvida, era no bar onde loucos e sãos se<br />

confundiam como gatos pardos na noite. Um dos proprietários<br />

do lugar, o livreiro e editor Abimael Silva, 40 anos, conta que a<br />

derrocada do Balalaika foi durante o Plano Collor, que confiscou<br />

a poupança dos brasileiros. A deles também.

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