Família Saturno - Fundação Jose Augusto
Família Saturno - Fundação Jose Augusto
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Natal, RN - N° 16, Janeiro/Fevereiro, 2006<br />
Umarizal<br />
Efervescência e diversidade cultural<br />
São Miguel do Gostoso<br />
Na rota de Gaspar de Lemos<br />
Entrevista<br />
Poeta Iracema Macedo<br />
Ensaio fotográfi co<br />
“Os Cão”<br />
<strong>Família</strong> <strong>Saturno</strong><br />
Paixão e devoção pelo circo se sucedem há três gerações
A Preá está na Internet: www.fja.rn.gov.br<br />
FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO<br />
Rua Jundiaí, 641 - Tirol - CEP 59020-120<br />
Fone/fax: (84) 3232.5327/3232.5304<br />
Governadora<br />
Wilma Maria de Faria<br />
Presidente<br />
François Silvestre de Alencar<br />
Diretor<br />
José Antônio Pinheiro da Câmara Filho<br />
PREÁ - REVISTA DE CULTURA DO<br />
RIO GRANDE DO NORTE<br />
ISSN 1679-4176<br />
ANO IV Nº 16<br />
JANEIRO/FEVEREIRO/2006<br />
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA<br />
PERIODICIDADE<br />
BIMESTRAL<br />
EDITOR<br />
TÁCITO COSTA<br />
tacitocosta@estadao.com.br<br />
EDITOR ASSISTENTE<br />
GUSTAVO PORPINO DE ARAÚJO<br />
gporpino@hotmail.com<br />
ESTAGIÁRIOS<br />
DAVID CLEMENTE E MICHELLI PESSOA<br />
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO<br />
LUCIO MASAAKI<br />
infi nitaimagem@infi nitaimagem.com.br<br />
(84)8805-1004<br />
REVISOR<br />
JOSÉ ALBANO DA SILVEIRA<br />
CAPA<br />
FOTO: ANCHIETA XAVIER<br />
axphotographer@gmail.com<br />
A palavra da casa<br />
François Silvestre<br />
Este número da Preá traz um encarte com a prestação<br />
de contas das nossas ações nestes três anos do Governo<br />
Wilma de Faria. A prestação é nossa; o julgamento e a comparação<br />
fi cam por sua conta, caro leitor.<br />
Nenhum governo do Rio Grande do Norte, em todos os<br />
tempos, investiu tanto na infra-estrutura cultural quanto o<br />
atual. Digo e cobro a negação desta assertiva. O segundo<br />
lugar começa a fi car quase invisível no retrovisor.<br />
Após o fracasso das revoluções sociais e políticas, tanto a<br />
burguesa quanto a socialista, nós enfrentamos um momento<br />
de perplexidade e de angústia ideológica.<br />
O que sobrou dessas revoluções? A revolução burguesa, que<br />
prometia liberdade, igualdade e fraternidade foi derrotada<br />
pela ganância e criou a perversidade capitalista. A revolução<br />
soviética, que preconizava de cada um, conforme a capacidade,<br />
e para cada um de acordo com a necessidade, foi<br />
destruída pela violência política e pela burocracia estatal. O<br />
que sobrou? Sobraram o poder e o vazio.<br />
Do vazio, não temos a divina capacidade de tirar proveito.<br />
Sobra-nos o poder. Esse ente dialeticamente antagônico.<br />
Afi rmação e negação dele mesmo. Dele, saem duas vertentes<br />
principais. Na negação, o poder usado para o domínio dos<br />
poucos que o usufruem. É a sua perversa face de desumanização.<br />
Na afi rmação, o poder pode transformar-se no instrumento<br />
de contenção desse abismo. Pelo controle social<br />
da repartição. Não se confunda isso com assistencialismo.<br />
Não. Esse controle deverá ser feito pela própria sociedade<br />
não detentora do comando econômico. Como? Pelo aprofundamento<br />
da prática democrática. Do exercício cotidiano<br />
e continuado da Democracia. É fácil? Claro que não. É um<br />
aprendizado penoso. Lento e indelegável. Para o aprofundamento<br />
desse processo o povo não pode tirar férias.<br />
E ainda do poder, na sua face de afi rmação, há duas vertentes.<br />
Uma, da transformação. Outra, da conservação. A<br />
transformação tem de atacar os bolsões de miséria, da pobreza<br />
e da violência. É sua obrigação política. A conservação<br />
tem como objeto a identidade cultural e a paisagem. O<br />
que chamo de paisagem não é apenas o cartão-postal. É o<br />
conjunto do meio ambiente com o bom nível de vida em<br />
cada lugar. A identidade cultural é o único veículo capaz da<br />
condução à dignidade humana. Quem não se identifi ca culturalmente<br />
será humanamente incompleto. Por isso vamos<br />
tirar do poder o que ele ainda pode dar. Taí a Preá número<br />
dezesseis. A Preá Leão!
Í n d i c e<br />
O palhaço Pára-choque segue a<br />
carreira do avô e do pai e não<br />
deixa o circo se acabar. Nova<br />
geração de artistas circenses<br />
acredita que o circo ainda tem<br />
muito a oferecer<br />
O premiado fotógrafo<br />
Fernando Pereira<br />
assina ensaio sobre<br />
o famoso bloco<br />
carnavalesco “Os Cão”,<br />
que sai na Praia da<br />
Redinha, em Natal<br />
Expediente / A palavra da casa 3<br />
Cartas 6<br />
Circo <strong>Saturno</strong> - Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor! 8<br />
Volonté - “Do poeta falam tudo” 14<br />
Ensaio fotográfi co - “Os Cão” 18<br />
“Pessoal do Tarará” leva arte à periferia 24<br />
Deífi lo Gurgel - “Escrevo com o coração” 28<br />
O fi lme 31<br />
Músicapoesia - Leito de saudades e lembranças 32<br />
Fogo contra Fogo 34<br />
Poesia Potiguar - Elí Celso de Araujo Dantas da Silveira 35
O jornalista Gustavo Porpino (primeiro à direita), em texto de despedida<br />
e balanço, fala sobre as reportagens que fez no interior do<br />
Estado para a Preá. À esquerda, o fotógrafo Anchieta Xavier, e ao<br />
centro, o motorista Érico Alves<br />
Í n d i c e<br />
O escritor pernambucano Fernando Monteiro escreve<br />
sobre um mito do cinema, a atriz Greta Garbo<br />
AGENDA - 13 POR 1 39<br />
Foco Potiguar - Dois festivais 40<br />
Descobertas e aprendizado pelas veredas do RN 42<br />
O pensamento vivo de Guimarães Rosa 44<br />
“Greta Garbo, quem diria, acabou de se sentar...” 48<br />
O anjo terrível 52<br />
Tratado das intenções com entrelinhas de sabotagem 56<br />
Umarizal - Efervescência e diversidade cultural 58<br />
Entrevista - Poeta Iracema Macedo 73<br />
São Miguel do Gostoso - Na rota de Gaspar de Lemos 80<br />
PS 90
evistaprea@rn.gov.br<br />
CARTAS<br />
Pesquisa<br />
Apreensão<br />
Orgulho<br />
Chega às minhas mãos a PREÁ 14, Recebi com apreensão “A palavra da Parabéns a toda equipe pelo alto nível<br />
editada por essa <strong>Fundação</strong>. Tive opor- casa” na PREÁ 15. Pareceu-me um mis- de informação, divulgação e resgate da<br />
tunidade de apreciar outros exemplato de pedido de socorro, explicitação de cultura e do orgulho que esta revista<br />
res e, diante da qualidade do trabalho, uma situação de abandono e uma despe- desperta nos nordestinos com quem<br />
encaminhei à redação para auxiliar nos dida. Assim, externo minha preocupação tenho contato e que tiveram acesso a<br />
trabalhos diários dos repórteres. Porém,<br />
com a existência em si da PREÁ, de po- alguns números. Parabéns também pela<br />
der perceber, nas entrelinhas, a vulnera-<br />
gostaria de poder agregar o produto ao<br />
agilidade da resposta, insisto na sugestão<br />
bilidade e a transitoriedade dos subsídios<br />
acervo do Setor de Pesquisa do Diário de<br />
que no rodapé das imagens e/ou fotos,<br />
que a mantém. Considero a PREÁ um<br />
Natal. Para tanto, tomo a liberdade de<br />
o leitor de fora ou distante possa locali-<br />
patrimônio do RN. Até quando a elite<br />
consultá-lo sobre a possibilidade de adzar/saber<br />
que por exemplo: o casarão do<br />
governante não perceberá que o investiquirir<br />
a coleção de revistas já publicadas.<br />
tempo de “mil novecentos e vote”, que a<br />
mento do Estado em cultura é a mesma<br />
Quero deixar o meu registro parabeni-<br />
imagem da santa tal, que o cruzeiro das<br />
coisa que o investimento de um pai na<br />
zando a <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> pela ex-<br />
almas de tal, está em tal cidade, povoa-<br />
educação de um fi lho, pois é necessácelente<br />
produção da revista PREÁ.<br />
do, sítio e etc.<br />
rio, custoso, em longo prazo e a fundos<br />
Albimar Furtado<br />
(Diretor-Geral do Diário de Natal)<br />
********************<br />
perdidos... Porém, absolutamente imprescindível.<br />
A PREÁ é uma das poucas<br />
coisas positivas que vi em toda minha<br />
vida, entregue graciosamente pelo ente<br />
Ana Lúcia<br />
(Educadora – Brasília-DF)<br />
********************<br />
público. Por favor, não deixem acabar Nordeste<br />
Viagem<br />
com a PREÁ!!!<br />
Acabo de ler com prazer e interesse a<br />
Já tornei-me um leitor assíduo da PREÁ,<br />
Aristóbulo Lima PREÁ 14. E aqui venho para felicitar<br />
pela excelente qualidade de suas reporta-<br />
(Advogado – Currais Novos-RN) toda a equipe pela excelência da revista.<br />
gens. Entendo que essa revista tornou-<br />
********************<br />
Sem falar na entrevista de Ariano Suasse<br />
uma leitura obrigatória daqueles que<br />
suna, sempre hors-concours, gostei so-<br />
“fazem” a cultura. Fiquei bastante emo- Patronímico<br />
bremodo das reportagens sobre cidades<br />
cionado ao ler a reportagem “São José<br />
Li, com o agrado de sempre, a entrevis- potiguares, como São José de Campestre<br />
do Campestre: a borborema potiguar”<br />
ta com Ariano Suassuna, na PREÁ 14. e Rodolfo Fernandes e sua capela das<br />
(PREÁ 14). Campestre é a minha terra Quanto à etimologia do patronímico “meninas das covinhas”. Elas despertam<br />
natal! Essa reportagem levou-me ao túnel Suassuna, prefi ro fi car com as raízes no minha curiosidade pelo Nordeste, que é<br />
do tempo, através do texto bem elabora- nheengatu, sendo suassuna: o bicho inesgotável, e mostram que em todos os<br />
do e das belas fotos. Foi uma verdadeira grande. O veado é chamado suaçu, por- recantos o brasileiro luta pela sua afi rma-<br />
“viagem” às minhas origens.<br />
que é bicho grande.<br />
ção como povo.<br />
Jerônimo Rafael Medeiros<br />
Ítalo Suassuna<br />
Enéas Athanázio<br />
(Diretor do Museu Câmara Cascudo/UFRN<br />
6 Jan/Fev 2006<br />
(Médico – Rio de Janeiro-RJ)<br />
(Balneário Camboriú-SC)
evistaprea@rn.gov.br<br />
Bicho da terra<br />
leção tão procurada pelas pessoas que Desconhecimento<br />
freqüentam esta Biblioteca. Nem temos<br />
Navegando dia desses, encontrei-o.<br />
Agradeço mais uma vez pela revista<br />
palavras para agradecer-lhe. Deus lhe<br />
Oxente, pensei, peraí: esse é bicho da<br />
PREÁ, mormente o maravilhoso pre-<br />
pague!<br />
terra, do mato; não é bicho do mar.<br />
sente da edição número 14, que traz a<br />
Mas ele estava lá, melhor dizendo, ela, Biblioteca do Centro de Estudos entrevista com Ariano Suassuna. Aqui,<br />
a PREÁ. Adorei a entrevista com o ge-<br />
Geográfi cos e Agrários fi co pasmo de verifi car o quanto não são<br />
nial Ariano Suassuna. Sou de Martins e<br />
(Votuporanga-SP) mostrados valores como ele nas nossas<br />
moro em João Pessoa-PB há 15 anos. Parabéns<br />
pela excelente e belíssima PREÁ.<br />
Corajosa. Inovadora. Independente.<br />
Sem pedantismo, mas também sem falsa<br />
modéstia. É, sem dúvida, uma das melhores<br />
nesta área.<br />
********************<br />
escolas, porquanto de dez amigas de minha<br />
fi lha, todas adolescentes, nenhuma<br />
Design e conteúdo<br />
sabia quem era Ariano Suassuna. Porém,<br />
Sou pesquisador da cultura popular após mostrar e ler para elas, com certeza<br />
e autor de cordel. Há 2 anos tive contato que jamais esquecerão deste maravilhoso<br />
com a PREÁ e o que me chamou logo escritor.<br />
Francisco Júnior Damasceno Paiva<br />
(Professor de Filosofi a – João Pessoa-PB)<br />
********************<br />
a atenção foi o design gráfi co, e depois,<br />
claro, o conteúdo, diga-se de passagem,<br />
maravilhoso. Moro em São Paulo, capital,<br />
a cidade mais nordestina fora do<br />
Ademir Neves<br />
(Jornalista-São Paulo-SP)<br />
********************<br />
Divulgação<br />
Nordeste.<br />
Identidade<br />
Vocês da PREÁ estão de parabéns. Fiquei<br />
maravilhada com o conteúdo da revista.<br />
Cheguei a divulgar através de trabalhos<br />
da universidade as técnicas utilizadas por<br />
vocês. Gostaria de me manter mais informada<br />
sobre a cultura do meu estado e<br />
também de contribuir para o engrandecimento<br />
desse meio de comunicação.<br />
Bartira M Coutinho,<br />
(Estudante de Jornalismo – Ipueira/RN)<br />
Edson Luiz Tenho recebido com regularidade os<br />
(São Paulo-SP) exemplares da PREÁ, que a cada número<br />
******************** se apresenta melhor e mais interessante!<br />
Para quem está fora do Brasil, ler bons<br />
Ariano<br />
textos em português e manter o conta-<br />
Recebi o n° 14 da bem-elaborada PREÁ to com a própria cultura é essencial para<br />
(nome curioso, sui generis). Excelente preservar a identidade brasileira e suprir<br />
entrevista com o fora-de-série, Ariano a “saudade” das nossas coisas. Portanto,<br />
Suassuna. Fotos lindas... Enfi m, uma agradeço a vocês por essa alegria que<br />
publicação cultural excelente, bem ela- aqui chega! Que a PREÁ continue o seu<br />
borada. São Paulo carece de uma revista caminho de sucesso.<br />
********************<br />
Coleção<br />
de cultura deste porte. Magnífi ca, sem<br />
porquês... Ótima. Quem sabe um dia teremos?<br />
Afi nal, temos duas secretarias de<br />
Silvia Costola<br />
(Roma-Itália)<br />
Recebemos o grande presente para 2006.<br />
cultura, Estadual/ Municipal.<br />
Chegaram os sete primeiros volumes da<br />
Renato Braga<br />
revista PREÁ para completar nossa co-<br />
(São Paulo-SP)<br />
Jan/Fev 2006<br />
7
8 Jan/Fev 2006<br />
Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor!
Circo <strong>Saturno</strong><br />
Tácito Costa<br />
Fotos: Anchieta Xavier<br />
O “camarim” onde Naelson Abreu<br />
da Silva se transforma no palhaço Párachoque<br />
é também o local onde ele dorme,<br />
em um colchão de solteiro, com o<br />
irmão, o trapezista Nadelson <strong>Saturno</strong><br />
de Carvalho. O local, uma cobertura de<br />
lona, imitando uma barraca de camping,<br />
é tão apertado que mal cabe uma pessoa.<br />
E para completar ainda está abarrotado<br />
de caixas e um baú com objetos do Circo<br />
<strong>Saturno</strong>. O calor, mesmo à noite, faz<br />
qualquer um que se demore lá dentro alguns<br />
minutos começar a suar. É sentado<br />
no colchão que Naelson, segurando um<br />
minúsculo espelho e com gestos rápidos<br />
e certeiros, em menos de dez minutos se<br />
apronta para entrar em cena.<br />
O espetáculo está marcado para começar<br />
às 21 horas. A velha Kombi passou o dia<br />
anunciando pelo bairro. Mas chega o horário<br />
previsto para o início do espetáculo<br />
e o público não aparece. Do lado de fora<br />
do Circo <strong>Saturno</strong>, armado no antigo e<br />
popular bairro das Rocas, em Natal, em<br />
frente à Ofi cina de Zé de Alaíde, na rua<br />
Luiz Joaquim de M. Filho, dois rapazes e<br />
uma moça conversam sob os fi os de alta<br />
tensão de um poste, de onde saem faíscas<br />
a intervalos intermitentes, que eles ignoram<br />
solenemente.<br />
O pessoal do circo aparenta tranqüilidade<br />
e cada um faz o seu trabalho. A bilheteira,<br />
que é a partner do atirador de<br />
facas, está a postos desde às 20h30. O<br />
engolidor de fogo cuida da portaria. Na<br />
entrada, já estão montadas duas mesinhas,<br />
com pipocas, algodão-doce e um<br />
freezer com água mineral e refrigerantes.<br />
O algodão e a pipoca custam 1 real, cada.<br />
Palhaço Pára-choque (Naelson Abreu da Silva) segue os passos do pai e do avô<br />
A garrafi nha de água fi ca também por 1<br />
real e o refrigerante 1 real e 50 centavos.<br />
Tudo é muito simples e feito com devoção<br />
e seriedade. A dignidade está presente<br />
nos menores gestos. Uma das principais<br />
atrações do espetáculo, “Sheik”, aguarda<br />
tranqüilo a sua vez de entrar em cena.<br />
Pela aparência robusta, deve receber<br />
mesmo tratamento de estrela. O salário<br />
é pago por semana e depende dos números<br />
que cada artista apresenta, mas não<br />
ultrapassa os 100 reais. Em alguns casos,<br />
quando o artista tem família, para melhorar<br />
a renda, ele pode negociar com o<br />
dono a venda de produtos, como “maçã<br />
do amor”, pipocas, picolés e outras mercadorias,<br />
no interior ou nas proximidades<br />
do circo.<br />
Naelson Abreu da Silva, 23 anos, o Párachoque,<br />
fi lho do dono, vai lá fora conversar.<br />
Já são 21h10. Ele explica que o<br />
público só sai de casa depois da novela.<br />
Jan/Fev 2006<br />
9
José Nazareno <strong>Saturno</strong> e o bode “Sheik”<br />
O que se comprova em seguida. Em 15<br />
minutos as pessoas começam a chegar.<br />
Às 21h30 o espetáculo inicia com casa<br />
cheia.<br />
Para uma terça-feira, depois de duas semanas<br />
de espetáculo, é uma bilheteria<br />
surpreendente. Umas 300 pessoas lotam<br />
o <strong>Saturno</strong>, que tem capacidade para receber,<br />
segundo o seu dono, cerca de 400<br />
espectadores. Os preços são convidativos.<br />
A entrada para a arquibancada custa<br />
1 real. Já para as cadeiras o ingresso sai<br />
por 2 reais. Mas o bom do circo é mesmo<br />
a arquibancada, dividida entre crianças,<br />
adultos e idosos.<br />
10 Jan/Fev 2006<br />
José Nazereno (centro) e os fi lhos. Os dois mais velhos já atuam no circo. Naelson Abreu da Silva (à direita)<br />
é o palhaço Pára-choque; Nadelson <strong>Saturno</strong> de Carvalho (à esquerda) é o trapezista<br />
Uma família de artistas<br />
As condições gerais do <strong>Saturno</strong> são boas. Ele é todo coberto. A lona<br />
é nova e foi adquirida recentemente. Custou 4 mil reais. É uma<br />
lona vistosa, amarela, azul e branca, as cores da bandeira brasileira.<br />
A arquibancada, aparentemente, é segura. As cadeiras é que estão<br />
um pouco gastas. Mas nada que impeça o espectador de sentar e<br />
desfrutar com tranqüilidade o espetáculo. O perigo, talvez, venha<br />
do alto, onde o trapezista faz seu número sem nenhuma rede de<br />
proteção.<br />
O <strong>Saturno</strong> é um circo tradicional, que tem na família, sua razão de<br />
existir. Sua história não é muito diferente da história de centenas de<br />
pequenos circos que percorrem as cidades do interior e as periferias<br />
das capitais e cidades maiores.<br />
O seu dono, José Nazareno <strong>Saturno</strong> da Silva, 43 anos, cinco casamentos<br />
e sete fi lhos, nasceu em Açu e, salvo alguns pequenos<br />
períodos de sua vida, sempre esteve ligado ao circo. Em um desses<br />
momentos, por exemplo, trabalhou como fi gurante no fi lme<br />
“O Cangaceiro Trapalhão”, de Renato Aragão, rodado no Ceará.<br />
Ele herdou o amor ao circo do pai, Manoel <strong>Saturno</strong> da Silva, que<br />
em 1965 deixou o Açu em um circo. Tocava guitarra, mas depois<br />
aprendeu a ser palhaço.
Nascia aí a tradição de palhaços na família<br />
<strong>Saturno</strong>, que agora chega à terceira<br />
geração. Nazareno é o palhaço Pára-brisa.<br />
Ele se apresenta na segunda parte do<br />
espetáculo e o fi lho, Naelson, o palhaço<br />
Pára-choque, na primeira. Mas como a<br />
equipe de artistas é pequena todos se revezam<br />
fazendo outros números. Quando<br />
não estão no palco, de terra batida,<br />
vigiam a cerca para os moleques não<br />
entrarem sem pagar, cuidam do som, da<br />
portaria e da bilheteria e ajudam na venda<br />
dos refrigerantes.<br />
Assim é que o palhaço Pára-brisa é também<br />
o atirador de faca e se apresenta ao<br />
lado da grande estrela “Sheik”; o trapezista,<br />
Nadelson <strong>Saturno</strong> de Carvalho,<br />
17 anos, também fi lho de Nazareno, se<br />
traveste para apresentar o personagem<br />
televisivo conhecido como “Lacraia”, o<br />
número mais ovacionado pela platéia;<br />
a bilheteira vira partner do atirador de<br />
facas; o engolidor de fogo (o “Homem<br />
Vulcão”) cuida da portaria e Luiz Eduardo<br />
Júnior, o equilibrista, fi scaliza a cerca<br />
de arame para impedir que as pessoas<br />
entrem sem pagar. É este grupo, de seis<br />
pessoas, que conduz o espetáculo durante<br />
1 hora e 30 minutos.<br />
José Nazareno <strong>Saturno</strong> conta que começou<br />
a trabalhar em circo aos 14 anos,<br />
como o palhaço que saía pelas ruas, em<br />
pernas de pau, chamando o povo para<br />
o espetáculo. Depois deixou o Açu e foi<br />
encontrar com o pai na Bahia, que tinha<br />
montado um circo. A experiência durou<br />
pouco, ele trocou a Bahia pelo Ceará e somente<br />
em 1976 retornou ao Rio Grande<br />
do Norte, onde montou em 1988 o circo<br />
Noveon. O nome é uma homenagem ao<br />
cantor e compositor Raul Seixas, autor<br />
da música “Novo Aeon”.<br />
Três meses depois de criado, o circo estava<br />
armado em Upanema, no Oeste<br />
Potiguar, quando atearam fogo e o que<br />
restou foram apenas os ferros. “Fiquei<br />
com as mãos na cabeça, sem lenço e<br />
sem documento”, relembra Nazareno.<br />
Estava chegando ao fi m o sonho de ter<br />
a sua própria companhia e ele voltou a<br />
trabalhar de empregado em outros circos,<br />
como o Fantástico Circo, Circo Real<br />
Madrid, American Circus, Diorama Circus,<br />
Circo Europeu, Circo Califórnia,<br />
Circo Hatari, Circo Kaoma, Arca Circus<br />
e Circo Mágico Nelson, entre outros.<br />
Neste último foi onde nasceu o palhaço<br />
Pára-choque.<br />
Em 1996, junto com os irmãos, fundou<br />
um novo circo, o primeiro <strong>Saturno</strong>, que<br />
uma ventania intensa, em 2003, quando<br />
estava armado em Ipanguassu, reduziu à<br />
tábua e ferro.<br />
O novo <strong>Saturno</strong> foi montado este ano,<br />
em sociedade com Devaldo Freitas de<br />
Souza, e estreou nas Rocas, onde Devaldo,<br />
que já trabalhava com locação de<br />
som, mora. É a segunda vez que Nazareno<br />
trabalha junto com os fi lhos. Ele conta<br />
que irá percorrer os bairros da cidade<br />
e municípios próximos, de forma que<br />
os fi lhos possam continuar estudando.<br />
Da arte circense ele manja tudo. “Sou<br />
do tempo em que tinha teatro no circo,<br />
com ‘ponto’ atrás da cortina”.<br />
Circo <strong>Saturno</strong><br />
Jan/Fev 2006<br />
11
Palhaço não tem pai nem mãe<br />
Ser palhaço, para ele, é uma das mais<br />
difíceis profi ssões. “Palhaço não tem<br />
pai nem mãe, pode ter morrido a mãe,<br />
mas ele tem de se apresentar com um<br />
sorriso estampado no rosto”. Nazareno<br />
conta que não orienta nenhum fi lho a<br />
seguir carreira no circo. “Não pode ser<br />
o pai que destina o fi lho, ele deve estudar<br />
primeiro e depois seguir a carreira<br />
que escolher”, diz ele, que não chegou a<br />
terminar o primário. O apelido de Párabrisa<br />
surgiu num dos primeiros circos<br />
em que trabalhou, ainda menino, fazendo<br />
fi guração no “Táxi maluco”, que<br />
acabava desmontado em meio a muitas<br />
palhaçadas.<br />
Ao contrário dele, Naelson, o Pára-choque,<br />
lê e escreve com desenvoltura. Trabalhou<br />
recentemente dois anos como cinegrafi<br />
sta de uma TV de Natal e se mostra<br />
antenado com ferramentas modernas<br />
12 Jan/Fev 2006<br />
como a Internet, cita Chaplin, Mr. Bean<br />
e os Três Patetas, como modelos que fazem<br />
rir com simplicidade e que devem<br />
ser adotados.<br />
É possível notar a infl uência “modernizante”<br />
de Naelson antes mesmo de começar<br />
o espetáculo, quando o sistema de<br />
som do circo toca o CD da banda Kid<br />
Abelha e na abertura das apresentações,<br />
quando um locutor faz um resumo didático<br />
da história do circo. É visível o esforço<br />
dele em apresentar um espetáculo<br />
de qualidade. Idéias visando isso ele tem<br />
e cita duas: patrocínios privados ou Leis<br />
de Incentivo à Cultura. Mas enquanto<br />
isso não é viabilizado, o espetáculo é<br />
montado com o que se pode e tem.<br />
A noite abre com o bode “Sheik”, anunciado<br />
no microfone como “o único do<br />
Brasil que joga futebol”. “Sheik” faz a<br />
sua parte. Seu treinador, Nazareno, manda<br />
e ele levanta a pata e cumprimenta o<br />
público; depois paga uma promessa, de<br />
joelhos; dá umas cabeçadas em uma bola<br />
e mostra como se guia um bêbado. Sucesso<br />
estrondoso.<br />
“Sheik” tem dez anos e foi comprado<br />
ainda novo no Alto Oeste potiguar. Nazareno<br />
conta que descobriu a vocação do<br />
bode para “artista”, quando viu o animal<br />
brincar de bola com um dos fi lhos. Começou,<br />
então, a treinar o bicho para se<br />
apresentar no picadeiro.<br />
O espetáculo prossegue com o palhaço<br />
Pára-choque; o equilibrista Júnior, no<br />
“Cilindro Oriental”; a personagem televisiva<br />
“Lacraia”; Pára-choque dubla o<br />
cantor italiano Andrea Bocceli; o atirador<br />
de facas faz o seu número temerário,<br />
convidando uma pessoa da platéia; o trapezista;<br />
o engolidor de fogo; e o palhaço<br />
Pára-brisa encerra a noite.<br />
O público é um espetáculo à parte.<br />
Grita e ri o tempo todo, alguns dizem
Circo <strong>Saturno</strong><br />
palavrões, mas também surgem tiradas<br />
hilariantes, como por exemplo,<br />
um anônimo que chama a “banda”<br />
que acompanha a música de Andrea<br />
Bocceli, dublada por Pára-choque, de<br />
“Banda Diarréia”. É uma platéia politicamente<br />
incorreta. Uma moça um<br />
pouco acima do peso, cai na besteira<br />
de aceitar o convite do atirador de facas,<br />
para participar do número. Ouve<br />
poucas e boas da platéia. Sai rindo!<br />
O espetáculo se encerra por volta das<br />
23 horas, com o bordão, pronunciado<br />
de forma engraçada, pelo palhaço<br />
Pára-brisa: “Gente, volte amanhã”.<br />
Dali a instantes é hora de contar o<br />
apurado, comentar as atuações, avaliar<br />
o que saiu errado e o que pode melhorar<br />
e cada um se recolher ao calor<br />
de suas barracas, para tentar dormir<br />
como pode. Porque no dia seguinte<br />
tem espetáculo, sim senhor!<br />
Origens do circo<br />
Alguns estudiosos afi rmam que o circo<br />
surgiu na Grécia Antiga e no Império<br />
Egípcio, onde já havia animais domados.<br />
As Olimpíadas, que começaram por<br />
volta do século VIII a.C., contavam com<br />
números circenses. Nos anos 70 a.C.,<br />
em Pompéia, no Império Romano, havia<br />
um anfi teatro usado nas exibições de<br />
habilidades incomuns<br />
A versão do circo que conhecemos –<br />
com picadeiro, lona, desfi le de animais<br />
– é recente e foi criada pelo subofi cial<br />
inglês Philip Astley, por volta de 1770.<br />
Na época, ele montou um espetáculo<br />
com cavalos, que contava com saltadores<br />
e palhaços.<br />
O circo com suas características, em geral<br />
itinerante, existe no Brasil a partir dos<br />
fi ns do século XIX. Desembarcavam em<br />
um porto importante, faziam seu espetáculo,<br />
partiam para outras cidades, descendo<br />
pelo litoral até o rio da Prata, indo<br />
para Buenos Aires. O circo brasileiro tropicalizou<br />
algumas atrações. Por exemplo,<br />
o palhaço brasileiro fala muito, ao contrário<br />
do europeu, que é mais mímico.<br />
O Dia do Circo, no Brasil, 27 de março,<br />
está relacionado ao nascimento em<br />
Ribeirão Preto (SP) do palhaço Piolin,<br />
Abelardo Pinto “Piolin” (27.3.1897-<br />
1973). Filho de artistas circenses, Piolin<br />
foi um dos mais queridos palhaços brasileiros.<br />
Outro grande palhaço é George Savalla<br />
Gomes, o Carequinha, que nasceu em<br />
Rio Bonito, RJ, em 1915. Começou a<br />
trabalhar como palhaço aos cinco anos<br />
de idade, passando por vários circos nacionais<br />
e até um internacional, o Circo<br />
Sarrazani.<br />
Jan/Fev 2006<br />
13
VOLONTÉ<br />
Por Gustavo Porpino<br />
Fotos: Areta Luna<br />
Sou um mulato democrático do litoral<br />
a gente precisa ver o luar<br />
(Volonté)<br />
Quem conhece Volonté? Manoel Fernandes<br />
de Souza Júnior, 49 anos, natalense<br />
das Rocas, é uma das fi guras humanas<br />
mais populares de Natal. O poeta<br />
Volonté faz parte da Natal mais provinciana,<br />
em que quase todos compartilhavam<br />
as mesmas amizades, batiam papo<br />
nas calçadas do centro e brincavam no<br />
carnaval de rua de Petrópolis à Ribeira.<br />
A Natal, pacata e boêmia, dos anos 70<br />
e os jogos do escrete de 70, despertaram<br />
em Manoelzinho o gosto pela poesia. O<br />
garoto do Areial, nas Rocas, aceitou ser<br />
poeta e, desde então, espalha seus versos<br />
curtos e cortantes nas esquinas de Natal.<br />
O pseudônimo “Volonté”, que ele diz já<br />
ter explicado a origem “umas cem vezes”,<br />
é uma homenagem ao ator italiano Gian<br />
Maria Volontè, ator principal do fi lme<br />
“Giordano Bruno”, dirigido por Giulia-<br />
14 Jan/Fev 2006<br />
no Montaldo. “É talvez um dos maiores<br />
atores da história do cinema”, salienta.<br />
Volonté é irrequieto, crítico, às vezes impaciente,<br />
leitor voraz de jornais e observador<br />
do cotidiano natalense. Sabe como<br />
ninguém ler as entrelinhas das colunas<br />
e artigos e tem sempre uma opinião<br />
formada. Não suporta os bajuladores e<br />
tem sempre uma crítica dirigida aos que<br />
chama de “canalhas”. Para ser amigo de<br />
Volonté, ou pelo menos ser respeitado<br />
por ele, tem que ter opinião, como disse<br />
certa vez o poeta mineiro Cacaso no início<br />
do poema “Face a face”.<br />
São as trapaças da sorte<br />
são as graças da paixão<br />
pra se combinar comigo<br />
tem que ter opinião<br />
A obra do poeta e ensaísta Antônio<br />
Carlos de Brito (1944-1987), o Cacaso,<br />
parece ter infl uenciado Volonté. O poeta<br />
potiguar admira a “poesia marginal”<br />
de Cacaso e também faz uso da crítica<br />
social nos seus poemas. Outros versos<br />
do poeta mineiro casam perfeitamente<br />
com Volonté.<br />
O meu amor e eu<br />
nascemos um para o outro<br />
agora só falta quem nos apresente<br />
O poeta andarilho é solitário. Gosta de<br />
caminhar pelas ruas como se estivesse à<br />
procura de si mesmo. O artista plástico<br />
Dorian Gray Caldas desvenda bem<br />
Volonté no prefácio do livro “Proemas”,<br />
publicado em 2004. Segundo Dorian,<br />
“o poeta está sempre em trânsito, sempre<br />
com um livro consultando, lendo,<br />
discutindo o texto ou passando a poesia<br />
para alguém”.<br />
Há 15 anos mora sozinho numa quitinete<br />
na Cidade Satélite. Passa longas horas<br />
ouvindo música, lendo e telefonando<br />
sem ser importunado. Adora telefonar<br />
para jornalistas e alguns poucos amigos.<br />
“A melhor conversa que tem é por telefone”.<br />
Na simplicidade da sua morada,<br />
rabisca seus versos em pedaços de papel.<br />
“Só escrevo com lápis, tenho medo de<br />
computador”.<br />
A fi gura de cabelos já grisalhos, cortados<br />
bem curtos, sandálias havaianas,<br />
calça jeans com a bainha dobrada e camiseta,<br />
tem seus pontos de parada favoritos.<br />
Quando não está em casa ou<br />
na sede da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>, de
“Do poeta falam tudo”<br />
onde é funcionário, pode ser facilmente encontrado no<br />
sebo Letra e Música, Café Cirol ou tomando cerveja no<br />
Beco da Lama. “Gosto muito de andar a pé. De ônibus e<br />
de carro é uma tortura. O trânsito de Natal está um câncer<br />
quase incurável”.<br />
Os sebos exercem um fascínio sobre os poetas. Volonté freqüenta<br />
os principais sebos de Natal. Vai sempre ao Sebo<br />
Vermelho conversar com o livreiro Abimael Silva, gosta dos<br />
sebos de Jácio e Amorim, mas é no “Letra e Música”, do<br />
amigo Ary Ramalho, que Volonté parece se sentir em casa.<br />
A música de boa qualidade acalma o poeta, tem sempre um<br />
jornal guardado à sua espera e a companhia de Ary para<br />
trocar idéias sobre música entre um e outro cigarro.<br />
Música, poesia e cerveja são três grandes paixões na vida<br />
do poeta. Os Beatles, preferencialmente interpretado por<br />
Sarah Vaughan, Bob Dylan, Led Zeppelin, Chat Baker,<br />
Luís Gonzaga, Vital Farias, Lenine e Paulinho da Viola formam<br />
o universo musical de Volonté. No mundo das letras<br />
é igualmente exigente. Perde facilmente a paciência com<br />
textos mal escritos.<br />
Conta que já passou dez anos sem ler. De 1988 a 1998.<br />
Entre os anos de 1991 a 1995 viveu a fase mais difícil.<br />
“O percalço da vida”, como defi ne. Diz ter sido salvo por<br />
alguns amigos como os médicos Elmano Marques e Napoleão<br />
Paiva. Vencida a fase de imersão, retomou o olhar<br />
sobre os poemas de Cacaso, Manuel Bandeira, Jorge de<br />
Lima, Fernando Pessoa e Mário Faustino. Também elogia<br />
a “dura poesia concreta dos irmãos Campos (Haroldo e<br />
<strong>Augusto</strong> de Campos)”.<br />
Jan/Fev 2006<br />
15
VOLONTÉ<br />
O culto à cerveja Volonté exerce, preferencialmente,<br />
no Beco da Lama, reduto<br />
de boêmios no centro de Natal, e aceita<br />
até a sofi sticação dos shoppings, desde<br />
que o chope seja bem gelado. Antes mesmo<br />
de publicar o primeiro livro, “Antecedentes<br />
criminais” (1979), Volonté já<br />
freqüentava o Beco da Lama na companhia<br />
do poeta Bosco Lopes, já falecido.<br />
Mais recentemente, gosta de dividir<br />
mesa nos bares do Pedrinho e Nazaré<br />
com o músico Carlança.<br />
Poesia potiguar<br />
Volonté acompanha de perto a produção<br />
poética nas terras potiguares. É fi gura<br />
certa nos lançamentos de livros e saraus<br />
poéticos. Elogia muitos e desconversa<br />
sobre outros. Os poemas dos potiguares<br />
Napoleão Paiva, Demétrio Diniz, Adriano<br />
de Sousa, Alex Nascimento, Plínio<br />
Sanderson, Moacy Cirne, Nei Leandro<br />
e Sanderson Negreiros são celebrados<br />
por Volonté. A explicação pela escolha<br />
é simples. “É gente que escreve bem”,<br />
diz. “Inclua na lista também a fotografi a<br />
poética de Giovanni Sérgio”.<br />
O poeta andarilho prefere falar dos versos<br />
alheios, de elogiar os outros poetas.<br />
Não gosta de comentar sua própria obra,<br />
16 Jan/Fev 2006<br />
nem de escolher rótulos para si mesmo.<br />
Acha até que “não há defi nição para o ser<br />
humano”. Poetas, então, são ainda mais<br />
complexos. “Nem Octávio Paz conseguiu<br />
defi nir o poeta”, diz, recorrendo ao<br />
ensaísta mexicano de quem é admirador<br />
assumido. Mas alguns poemas de “Cara<br />
a cara”, livro reeditado em 2005 com<br />
ilustrações do sobrinho João Felipe, 11<br />
anos, falam por Volonté.<br />
Do poeta<br />
falam tudo<br />
e sei que o mel<br />
lambuza hipocrisia<br />
Volonté acha mesmo é que “a pessoa é<br />
mais persona”. O poeta pretende apresentar<br />
algumas destas fi guras “mascaradas”<br />
em “Perfídia”, livro de crônicas sobre<br />
Natal e alguns personagens da cena<br />
natalense. “Mas utilizo nomes de cidades<br />
americanas e fi ctícios para as pessoas”,<br />
avisa. O novo livro ainda não tem data<br />
para ser lançado.<br />
Copa e carnaval<br />
A Copa de 70 foi “o primeiro alumbramento”<br />
de Volonté. “Foi um momento<br />
sem igual entre poesia, arte e autenticidade<br />
da malandragem brasileira”, descreve.<br />
O futebol-arte de Tostão, Gérson,<br />
Pelé, Rivelino e companhia encantou<br />
tanto Volonté que no ano seguinte nasciam<br />
os primeiros poemas. Marcados<br />
também pela crítica social ao regime da<br />
ditadura. “Vi a Copa todinha na antiga<br />
Confeitaria Atheneu”, relembra. Alguns<br />
anos depois, Volonté fez parte do grupo<br />
fundador do “Comitê norte-rio-grandense<br />
pela anistia”.<br />
A paixão de Volonté por carnavais de rua<br />
vem da infância no Areial. “Quando eu<br />
era criança, esperava sempre a ‘Bagunça<br />
do PV’ passar”. O bloco de rua do carnaval<br />
das Rocas arrastava os canguleiros<br />
pelas ruas do bairro e criava em Volonté<br />
o gosto pela folia. Já crescido, o poeta<br />
passou a acompanhar a Bandagália e<br />
relembra antigos foliões do carnaval de<br />
Natal. “Eugênio Cunha, Jácio Fiúza,<br />
Olinto Rocha, Laércio Bezerra, Ary Ramalho,<br />
todos eles, seguiam as bandinhas<br />
de rua do Tob’s bar, em Petrópolis, até a<br />
Peixada Potengi, na Ribeira”.<br />
Enquanto os antigos carnavais de Natal<br />
não voltam, como deseja Volonté, o<br />
poeta segue andando por aí, colhendo<br />
versos do cotidiano, telefonando para<br />
uns, encontrando outros e espantando<br />
os dândis.
DOIS POEMAS<br />
INÉDITOS DE<br />
VOLONTÉ<br />
Um dia de torres gêmeas<br />
Acordo pela manhã<br />
Acendo um cigarro<br />
Vejo a cor do sol<br />
Diferente<br />
Entre guerras e torres<br />
E terrorismo<br />
Manhattan não será mais a mesma<br />
Somente um começo de século<br />
E milênio<br />
Viajando para o infi nito<br />
E meu velho amigo de tantos anos<br />
Esfumaçando meu pensamento<br />
*************************<br />
Tenho um passado<br />
Dentro de mim<br />
A lira lampeja<br />
Minha poesia<br />
Em versos soltos<br />
Nosferatu<br />
“Do poeta falam tudo”<br />
Jan/Fev 2006<br />
17
18 Jan/Fev 2006
“OS CÃO”<br />
FERNANDO PEREIRA<br />
“Os Cão” é um tradicional bloco<br />
carnavalesco da praia da Redinha,<br />
em Natal, que sai às ruas uma vez<br />
por ano, com os foliões recobertos da<br />
lama do mangue.<br />
Fernando Pereira é jornalista e fotógrafo freelancer. Participou de várias exposições e ganhou concursos de fotografi a no RN,<br />
como “Revele a Vila”, “Visões da Redinha” e “Eu Fotografei as Kengas”. Porém, seu maior feito veio do Japão, com o concurso<br />
fotográfi co promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – 1994/95. Participaram do evento 19.491<br />
fotógrafos, oriundos de 153 países, concorrendo com 44.039 trabalhos. Desses, apenas cem imagens foram selecionadas para<br />
compor o catálogo, entre elas a sua foto “Earthen Men” (“Homens de Barro”). Contatos: (84) 3641-1949, 9984-0899.<br />
Jan/Fev 2006<br />
19
20 Jan/Fev 2006<br />
“OS CÃO”
Jan/Fev 2006<br />
21
22 Jan/Fev 2006<br />
“OS CÃO”
Jan/Fev 2006<br />
23
“Pessoal do Tarará”<br />
leva arte à periferia<br />
24 Jan/Fev 2006<br />
Sérgio Vilar<br />
Fotos: Anchieta Xavier<br />
É com o ideal de disseminar arte<br />
ao público da periferia que o grupo de<br />
teatro de rua “O Pessoal do Tarará”, de<br />
Mossoró, começou suas atividades. Música,<br />
circo, máscaras, barulho, ideologia,<br />
arte, enfi m, tudo aquilo que tem cor,<br />
vida e contrasta com o conceito de que<br />
as ruas são meros fl uxos econômicos de<br />
uma cidade, está presente no teatro de<br />
rua do Tarará. São nesses espaços cinzentos<br />
que o artista fala com seu semelhante<br />
de forma direta e pura.<br />
Tudo começou em novembro de 2002,<br />
com um par de tênis doado. Quando
se cogitou fazer uma rifa para angariar<br />
dinheiro e conseguir o fi gurino e artefatos<br />
para as primeiras apresentações. O<br />
apurado foi pouco, mas quem conhece<br />
a realidade de “O Pessoal do Tarará” reconhece<br />
que com o pouco se faz muito.<br />
O grupo iniciou os ensaios, nas praças<br />
de Mossoró e em um espaço emprestado<br />
por amigos, que funciona como sede<br />
improvisada. O primeiro espetáculo encenado<br />
foi o “Sanduíche de Gente”, do<br />
poeta mossoroense Crispiniano Neto.<br />
Ficou um ano em cartaz e ganhou, inclusive,<br />
as ruas de Natal.<br />
Com a peça, o grupo concorreu ao Prêmio<br />
de Fomento à Cultura, patrocinado<br />
pela Petrobrás e prefeitura de Mossoró.<br />
Venceu e ganhou R$ 15 mil. Foi o bas-<br />
tante para montar o segundo espetáculo:<br />
“O Inspetor Geraldo”, uma livre adaptação<br />
de “O Inspetor Geral”, de Nicolai<br />
Gogol, autor de clássicos da literatura<br />
russa. “Adaptamos à nossa linguagem, à<br />
nossa cultura, com os costumes da nossa<br />
terra”, explica o roteirista do espetáculo,<br />
Dionízio Cosme Neto, o Dionízio do<br />
Apodi. Sentida as difi culdades de locomoção<br />
do primeiro espetáculo, o grupo<br />
decidiu comprar bicicletas para cada<br />
componente e facilitar o transporte das<br />
indumentárias dos shows aos locais de<br />
apresentação.<br />
A necessidade virou marca do grupo.<br />
Chegada a hora da apresentação, lá vai<br />
“O Pessoal do Tarará”, em cima de bicicletas<br />
repletas de adereços variados e<br />
coloridos, em cortejo pelas ruas de Mossoró.<br />
Na frente, o ator Jarllon Azevedo,<br />
20, segura um alto-falante, a chamar<br />
todos ao espetáculo: “Pra você que está<br />
com nome sujo no SPC, está com insônia,<br />
vem para cá que você vai ser um<br />
novo moço, uma nova moça. É o grupo<br />
Tarará...”. E no improviso, acompanhado<br />
por apitos, buzinas e chocalhos dos<br />
outros componentes, o jovem ator guia<br />
um grupo de dez bicicletas até chegar à<br />
travessa Riacho Doce, no bairro Barrocas,<br />
periferia de Mossoró. Era lá a apresentação<br />
do dia.<br />
A presença repentina e barulhenta do<br />
grupo causa surpresa aos moradores<br />
das redondezas. Ao contrário daqueles<br />
que acenavam para o grupo no meio do<br />
Jan/Fev 2006<br />
25
caminho, as pessoas agora fi cam confusas<br />
com todos aqueles jovens, adultos<br />
e crianças com máscaras e pinturas no<br />
rosto, roupas espalhafatosas e um cenário<br />
simples, guardado dentro das maletas<br />
que seguem penduradas no bagageiro<br />
das bicicletas até o local da apresentação.<br />
Em cerca de 10 minutos o “palco” está<br />
montado. “Senhoras e senhores, respeitável<br />
público...”, anuncia o início do espetáculo<br />
o mais jovem componente do<br />
grupo, com apenas 12 anos, em cima de<br />
uma perna de pau.<br />
O espetáculo<br />
A trama da peça original, “O Inspetor<br />
Geral” é respeitada na livre adaptação do<br />
26 Jan/Fev 2006<br />
grupo: as autoridades de uma pequena<br />
aldeia tomam conhecimento de que um<br />
inspetor do governo chegará incógnito<br />
em breve para investigar certos abusos.<br />
Por acaso, um aventureiro passa por ali<br />
e os poderosos do local, achando que ele<br />
é o inspetor, fazem de tudo para suborná-lo.<br />
No entanto, o status de alguns personagens<br />
foi modifi cado. O aventureiro é<br />
um engraxate, que carrega toda a malícia<br />
e o jeitinho brasileiro de se dar bem<br />
em qualquer situação, e aproveita-se do<br />
suborno para dias de luxo. Para não citar<br />
o poeta russo, Punchin, no meio do<br />
roteiro, o grupo prefere os bons nomes<br />
da terra, como Antônio Francisco. A linguagem<br />
empregada é a de rua. E se há<br />
menção a alguma obra clássica, vai para<br />
o popular romance de Romeu e Julieta,<br />
escrito por “Xeiquespeáre”.<br />
Alguns componentes do grupo já realizavam<br />
outros trabalhos ligados ao teatro<br />
amador, mas a maioria se dividia em<br />
atividades distintas e aguardava, mesmo<br />
sem muito acreditar, o desejo de um dia<br />
trabalhar com teatro de rua. É o caso de<br />
Bené Tavares, o mais velho do grupo,<br />
com 46 anos.<br />
Bené largou a atividade de professor para<br />
entrar no grupo Tarará. Lecionava Filosofi<br />
a e Sociologia no Colégio Geo. E veio<br />
do Ceará para Mossoró só para isso, em<br />
1993. Sempre afi cionado pelo teatro de<br />
rua, ao ver a passagem do pessoal do Tarará,<br />
um velho sonho de juventude redi-
mensionou conceitos na mente de Bené.<br />
“Tenho aprendido com essa juventude<br />
a renovar minha mentalidade. Não vejo<br />
idade quando estou aqui (nos ensaios e<br />
nas apresentações). Vejo, sim, espírito e<br />
força de vontade. E isso ajuda até na formação<br />
dos meus fi lhos”, revela.<br />
Mesmo tendo largado a atividade pedagógica<br />
por completo, Bené ainda consegue<br />
tempo para dedicar-se ao rádio,<br />
aonde conduz o programa “Cantada<br />
Brasileira”. Na verdade, foi numa rádio<br />
em Icó, interior do Ceará, que Bené tomou<br />
gosto pela arte teatral, ainda com<br />
15 anos. Ele participava da Companhia<br />
Vassoura de Arte, que encenava apresentações<br />
na rádio. A temporada foi curta,<br />
mas a magia do teatro improvisado per-<br />
maneceu no jovem artista. Hoje, Bené<br />
interpreta a mulher do prefeito, na peça<br />
“O Inspetor Geraldo”. É ele quem arranca<br />
as maiores risadas do público.<br />
Euzimário Macário, 19, é outro exemplo<br />
de dedicação ao ofício. Ainda morador<br />
do sítio Juvenal, no distrito de Baraúna,<br />
Euzimário vem diariamente a Mossoró<br />
para o colégio e os ensaios com o Tarará.<br />
Por vezes, dorme na sede improvisada do<br />
grupo, devido às distâncias. Mas mesmo<br />
antes de entrar para o grupo e interpretar<br />
os protagonistas das peças, Euzimário já<br />
estudava teatro no grupo Arruaça, também<br />
de Mossoró. “Mas quando o Tarará<br />
passou, me chamou atenção o modo<br />
como trabalhava”. Ao deixar o grupo Arruaça,<br />
recebeu um convite de Dionízio<br />
do Apodi, diretor do Tarará, para integrar<br />
o grupo.<br />
“Estamos sempre aprendendo com as situações<br />
das ruas; o improviso leva a isso.<br />
Às vezes tem bêbado atrapalhando, é um<br />
cachorro que não pára de latir... Mas é<br />
tudo em nome da arte”, conclui.<br />
Com apenas três anos de existência, “O<br />
Pessoal do Tarará” já conseguiu gravar<br />
um documentário sobre a rotina do grupo,<br />
desde os ensaios, à saída da sede e<br />
apresentações na rua. O documentário<br />
foi premiado no Festival do Vídeo Potiguar.<br />
Além do documentário, foi feito<br />
o fi lme “Um Chão de Esperança”, de 45<br />
minutos com roteiro e direção de Dionízio<br />
do Apodi.<br />
Jan/Fev 2006<br />
27
DEÍFILO GURGEL<br />
David Clemente<br />
Fotos: Anchieta Xavier<br />
Deífi lo Gurgel, 79 anos, é um dos<br />
mais respeitados estudiosos do folclore<br />
no Rio Grande do Norte. Mas quando<br />
perguntado sobre sua profi ssão, responde<br />
simplesmente: “aposentado do Estado”.<br />
No entanto, essa classifi cação é<br />
vaga demais para quem publicou livros<br />
de poesia e sobre folclore, estudou Direito,<br />
foi bancário, professor, diretor do<br />
Departamento de Cultura da Prefeitura<br />
Municipal do Natal e diretor do Centro<br />
de Promoções Culturais da <strong>Fundação</strong><br />
José <strong>Augusto</strong>. Um currículo considerável<br />
para ser resumido apenas a “aposentado<br />
do Estado”.<br />
O pesquisador da cultura popular nasceu<br />
e viveu toda a infância na cidade de<br />
Areia Branca, a 330 km de Natal. Ele<br />
conta que seu pai era rigoroso em muitas<br />
28 Jan/Fev 2006<br />
coisas, mas quando se tratava de amizade,<br />
não havia restrições. O menino, que<br />
mais tarde seria folclorista, recorda que<br />
costumava brincar de “touro passa” e<br />
“barquinho passará”. As brincadeiras não<br />
infl uenciaram sua carreira, pois ele só<br />
veio a se interessar profi ssionalmente por<br />
folclore a partir dos 44 anos. Antes disso,<br />
sempre teve ligação afetiva com a cultura.<br />
Era poeta. Sua poesia está em quatro<br />
livros de versos inéditos e um quinto<br />
em que reúne os melhores poemas dos<br />
livros anteriores. O primeiro foi intitulado<br />
“Cais da Ausência”, publicado em<br />
1961. O segundo chamava-se “Os Dias<br />
e as Noites”, publicado em 1979. Em<br />
1983 nasceu “7 Sonetos do Rio e Outros<br />
Poemas”. Em 2002, publicou “Areia<br />
Branca, a Terra e a Gente”, no qual além<br />
de poesia há também história e antropologia<br />
e está, como diz o autor, “vendendo<br />
como cocada” porque consta no edital de<br />
um concurso da prefeitura da cidade. O<br />
quinto livro, de 2005, ganhou o nome<br />
de “Os Bens Aventurados”.<br />
Em 1967 ele recebeu o diploma de bacharel<br />
pela Faculdade de Direito de<br />
Natal. Mal teve tempo de praticar sua<br />
formação, pois em 1971 aceitou dirigir<br />
o Departamento de Cultura do Estado<br />
do RN. Foi quando nasceu seu interesse<br />
pelo folclore. Ao se instalar no novo<br />
local de trabalho, encontrou cadernos<br />
com cantigas folclóricas. Primeiro fi cou<br />
curioso, depois apaixonado e pôs-se a<br />
procurar mais registros culturais como<br />
aqueles. “Entrei com toda a força para<br />
o universo do folclore”, diz Deífi lo que<br />
até ensaia uma comparação com o conterrâneo<br />
Câmara Cascudo: “Ele estudou<br />
todos os países. Eu me centrei aqui no<br />
RN”. E quando volta ao assunto do diploma,<br />
ele diz não muito preocupado:<br />
“deve estar numa dessas gavetas da minha<br />
casa”.
“Escrevo com<br />
o coração”<br />
No mesmo ano em que tomou posse no<br />
seu novo cargo, o governador do Estado,<br />
Cortez Pereira, realizou uma grande<br />
festa para celebrar o natal. E lá estavam<br />
as tradicionais apresentações de Pastoril,<br />
Bumba-meu-boi, Chegança e Fandango.<br />
Numa delas, em São Gonçalo do Amarante,<br />
Deífi lo fi cou deslumbrado com a<br />
dança e as marradas do Boi. “Comecei a<br />
comprar livros para estudar o folclore e<br />
hoje tenho uma biblioteca”. Aquele era o<br />
elo entre o antes e o depois. A partir de<br />
então a poesia foi deixada de lado, pois<br />
era a vez do folclore. Apesar disso, ainda<br />
publicou livros de poesia.<br />
Em 1979 vieram dois novos desafi os para<br />
Deífi lo. Num deles teria que administrar,<br />
no outro, lecionar, ambos ligados à cultura.<br />
Nesse ano ele tomou posse como diretor<br />
do Centro de Promoções Culturais da<br />
<strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> e como professor<br />
de Folclore Brasileiro, na UFRN.<br />
Dois anos depois começavam os<br />
lançamentos dos seus livros sobre<br />
folclore. Respectivamente, Danças<br />
Folclóricas do RN; João-Redondo<br />
- Teatro de Bonecos do Nordeste;<br />
Romanceiro de Alcaçuz; Manual do<br />
Boi-Calemba; Espaço e Tempo do<br />
Folclore Potiguar.<br />
O livro com que Deífi lo mais se empolga<br />
para falar é, sem dúvida, Areia<br />
Branca, a Terra e a Gente. Somando<br />
todas as fases, o autor investiu<br />
15 anos para terminar a obra. Dos<br />
quais, dois para concluir a primeira<br />
parte e treze para a segunda, que trata<br />
da árvore genealógica das famílias da<br />
cidade. “Para desvendar a genealogia<br />
areia-branquense, foi necessário visitar<br />
casa por casa para ver as famílias”,<br />
diz. E conta orgulhosamente que no<br />
lançamento, o professor Vingt-un<br />
Rosado disse que dentro de 50 anos<br />
o RN não verá outro livro tão impac-<br />
tante. “Sempre escrevo com o coração.<br />
Mas nesse livro foram uns três ou quatro<br />
corações para escrever”, diz o autor.<br />
Além de todas as profi ssões, Deífi lo também<br />
atende pelo substantivo de pai para<br />
9 fi lhos, o de avô para 15 netos e de bisavô<br />
para quatro bisnetos.Todos frutos<br />
de um único matrimônio com Zoraide<br />
Gurgel, para quem ele compôs o poema<br />
“Musa”, em 1996.<br />
O folclorista cidadão<br />
O lado pesquisador do folclorista, por<br />
vezes se confunde com o cidadão. Deífi<br />
lo conta que muitas de suas fontes de<br />
pesquisa são pessoas comuns, mas que<br />
guardam na sua memória canções, versos<br />
e costumes folclóricos quase extintos.<br />
São geralmente pessoas tão comuns que<br />
sequer sabem o valor que essa memória<br />
tem para a cultura. Para o pesquisador da<br />
cultura popular, não é correto pesquisar,<br />
Jan/Fev 2006<br />
29
DEÍFILO GURGEL<br />
registrar e sumir. “Não é justo. Eles dão<br />
tanto para todos que eu tenho procurado<br />
ajudar”. O primeiro caso que ele relata<br />
é do cantador Chico Antônio. Quando<br />
o coquista foi redescoberto, a TV Globo<br />
o chamou e o Ministério da Cultura<br />
lançou o fi lme “O Herói com Caráter”.<br />
Mas ele queria algo para o artista. Conseguiu,<br />
então, uma aposentadoria de três<br />
salários mínimos.<br />
Em São Gonçalo do Amarante, na Grande<br />
Natal, mora Dona Militana (Militana<br />
Salustino do Nascimento), 80 anos,<br />
mais uma artista nata que Deífi lo descobriu<br />
e a classifi ca como “fenomenal”.<br />
Dona Militana, que recebeu das mãos<br />
do Presidente Lula a Ordem do Mérito<br />
Cultural, é considerada a mais importante<br />
romanceira do Brasil por conhecer<br />
diversas canções dos romanceiros ibéricos<br />
e brasileiros. Algumas delas datam da<br />
época da descoberta do Brasil.<br />
No mundo globalizado de hoje em dia,<br />
as músicas consideradas “da moda” também<br />
chegam aos ouvidos do dedicado<br />
pesquisador de cultura popular. E Deífi -<br />
lo admite que “música, seja ela qual for,<br />
há sempre canção boa”, dos Beatles aos<br />
forrós estilizados. E admite também que<br />
nem todas as cantigas de folclore são tão<br />
boas assim. “Algumas são monótonas,<br />
chatas e só têm valor histórico. Mas há<br />
outras belíssimas”. A proposta do professor<br />
para as apresentações é que sejam<br />
selecionadas as melhores como forma de<br />
agradar o público.<br />
30 Jan/Fev 2006<br />
Folk-lore<br />
A palavra “folclore” é derivada da junção dos termos ingleses “folk” e “lore”. O<br />
primeiro signifi ca povo e o segundo signifi ca saber. Portanto, Folk-lore quer dizer<br />
sabedoria de um povo. Com o passar do tempo a palavra perdeu o hífen (folklore)<br />
e depois adaptou-se ao português e passou a ser escrita folclore, como conhecemos<br />
hoje. Ultrapassando a grafi a, Deífi lo destaca a defi nição do professor paulista<br />
Racine Tavares, quando explica que Folclore é a ciência que estuda a cultura espontânea<br />
da gente do campo e da cidade. Não é adquirida em escolas e nem em<br />
faculdades, pois atinge desde analfabetos até doutores.<br />
Outra forma de entender o que é folclore é conhecer sua história. O professor<br />
Deífi lo explana que no RN, em determinada época, o estudo nessa área era menosprezado,<br />
pois começou com brincadeiras de escravos e pessoas que não tinham<br />
acesso à cultura erudita, quase sempre importada da Europa. Depois os próprios<br />
eruditos passaram a estudá-la e descobriram que naqueles versos espontâneos havia<br />
história e costumes descritos.
O fi lme Para<br />
um livro-em-progresso<br />
Moacy Cirne<br />
Encontro-me na primeira fi la, sentado,<br />
à espera do início da sessão. À espera do<br />
fi lme, qualquer fi lme de categoria, desde<br />
que brasileiro, espanhol, italiano. Ou<br />
francês. Só que o de hoje não é um fi lme<br />
qualquer. Agrada-me fi car na primeira<br />
fi la; sinto com mais intensidade a luz que<br />
vem da tela, o som que me envolve de<br />
forma quase sensual. Aos 35 anos, continuo<br />
amando o cinema, sempre amei.<br />
Desde os tempos de Caicó, no interior<br />
do Rio Grande do Norte. O Paissandu,<br />
hoje, é a minha segunda casa, moro aqui<br />
perto. Depois das sessões, gosto de discutir<br />
com amigos ou conhecidos nas mesas<br />
do Oklahoma, molhando as palavras<br />
sem maiores preocupações, sem maiores<br />
ilusões. Mas com muita paixão sobre<br />
o último Godard, o último Glauber, o<br />
último Antonioni, o próximo Nelson<br />
Pereira, o próximo Joaquim Pedro, o<br />
próximo Luiz Rosemberg. Ou a última<br />
sacanagem do governo. Às vezes, aparece<br />
uma amiga que me acompanha até o<br />
meu apartamento, na Senador Vergueiro.<br />
Mas eis que a sessão começa. Depois<br />
dos primeiros minutos, complementos<br />
inúteis, inicia-se o fi lme, um fi lme ansiosamente<br />
esperado por mim, que ainda<br />
não o conhecia, por incrível que pareça.<br />
Aliás, eu era o único da turma que não<br />
o conhecia. E o fi lme se desenrola, nobre<br />
e solene. Com sua música. Seus ruídos.<br />
Seus diálogos. Tu n’as rien vu à Hiroshima.<br />
Rien. J’ai tout vu. Tout. Non, tu<br />
n’as rien vu à Hiroshima. Ainsi l’hôpital,<br />
je l’ai vu. J’en suis sûre. L’hôpital existe<br />
à Hiroshima. Comment aurais-je pu<br />
éviter de le voir? Sim, a dor me toca, o<br />
passado não me consola, o presente me<br />
abstrai, a paz já não existe em minhas<br />
memórias. Sou Hiroshima, sou Nevers,<br />
sou Caicó, sou Natal. Sou o fi lme que<br />
me completa. Nas sombras do cinema.<br />
Nas sombras das vozes. Nas sombras do<br />
futuro. C’est à Nevers que j’ai été le plus<br />
jeune de toute ma vie... Jeune-à-Ne-vers.<br />
Jeune-à-Ca-i-có. Oui, Jeune à Caicó. Et<br />
puis aussi, une fois, folle à Natal. Viajo<br />
nas minhas idéias, nos meus sentimentos,<br />
nas minhas angústias; o fi lme me<br />
fascina, me consome, me embriaga, me<br />
destrói. Me diz tudo, tudo, tudo. Et la<br />
Loire? C’est un fl euve sans navigation<br />
aucune, toujours vide, à cause de son<br />
cours irrégulier et de ses bancs de sable.<br />
En France, le Seridó passe pour un fl euve<br />
très beau, à cause surtout de sa lumière...<br />
tellement douce, si tu savais. O que fazer<br />
da saudade que tenho do Seridó, da sua<br />
luz quando cheio de barreira a barreira?<br />
O que fazer das minhas desilusões? Das<br />
minhas esperanças desbotadas? O que<br />
fazer do amor que se perdeu no tempo<br />
e no espaço? Não o esquecerei, jamais.<br />
Jamais. Je t’oublierait! Je t’oubli déjá! Regarde,<br />
comme je t’oublie. Regarde-moi!<br />
Hi-ro-shi-ma. Hi-ro-shi-ma. C’est ton<br />
nom. Depois de tudo, a música. Depois<br />
do fi m, o silêncio. Estou exausto. Dilacerado.<br />
Desnorteado. Escuto as pessoas<br />
que se levantam de suas poltronas. Algumas<br />
vozes, alguns vazios. Tomo a minha<br />
bengala e começo a tatear, devagar; não<br />
tenho pressa. O encarnado e o azul há<br />
muito que me escaparam da memória.<br />
Há muito que deixei de sentir os crepúsculos<br />
e as cores do Seridó. Não vejo mais<br />
do que alguns poucos fi apos de sombras,<br />
alguns restos de pequenas certezas. Não<br />
vejo mais do que o nada e uma certa<br />
náusea. Moro perto, já disse. Sei voltar<br />
sozinho para casa. E hoje prefi ro voltar<br />
sozinho.<br />
[ in A palavra e outras palavras, a sair<br />
em 2006 ]<br />
Jan/Fev 2006<br />
31
Leito de saudades e lembranças<br />
Foto: <strong>Augusto</strong> César Bezerra - Arte digital: Venâncio Pinheiro<br />
32 Jan/Fev 2006<br />
Carlos Gurgel Poeta<br />
Acho de extrema importância se constatar,<br />
que na cena cultural da cidade, existem grupos<br />
que escolhem a poesia como base dos<br />
seus trabalhos. Aliás, é importante que se<br />
frise: pronunciar o poema, não é para qualquer<br />
um. Acredito, inclusive, que é necessário<br />
dispor de elementos cênicos, para que a coisa<br />
aconteça.<br />
Desse ângulo, é preciso que a interpretação, a<br />
expressão corporal e a técnica vocal, aqueçam<br />
e consolidem o ritmo de empatia com o que<br />
se quer mostrar.<br />
Falar poesia é difícil. Tem a escolha a ser feita<br />
dos poemas. Tem o ritmo de cada poema, a<br />
química de cada palavra (ao lado da outra). E<br />
tem (o que eu considero o mais importante),<br />
o sentimento, a emoção, o coração.<br />
É imprescindível que se tenha consciência<br />
que toda essa manufatura que se estabelece,<br />
ela é urdida por entre muitas noites de sonhos,<br />
e na maioria das vezes, uma constante<br />
e verossímil ampulheta que separa com suas<br />
lentes, o imaginário do factual.<br />
É como uma energia que alivia e retempera a<br />
verdade que cada palavra encerra. Ainda mais,<br />
se tudo que foi escrito, for dito por quem escreveu.<br />
É o que podemos chamar, a foz autoral.<br />
O próprio poeta dando o tom do seu<br />
sentimento. Do seu ar. Da sua temperatura.<br />
Esses meninos do “Elegia e seus Afl uentes”;<br />
Drika (vocal e poesias), Letto (violão, voz e<br />
arranjos), Maíra (percussão), Rita (percussão)<br />
e Jennifer (fl auta transversal, arranjos), estão<br />
suando e experimentando recados. Emoldu-
am com suas crenças e melodias, um livro<br />
recheado de avisos e apelos.<br />
Quem simpatiza, acolhe e propaga versos<br />
e batuques e que esteja afi nado como um<br />
segredo do coração, é bom fi car atento.<br />
O “Elegia” com seu som acústico, sem<br />
quase nenhuma distorção eletrônica,<br />
permite que a poesia de Drika pouse<br />
como uma chuva de recados. É dessa forma<br />
que o grupo, com seus couros, vozes<br />
e sinos, abre espaço na cena da cidade<br />
para mostrar para que veio. Com sua<br />
sensível veia poética, Drika assume com<br />
seu repertório, lugar de destaque na nova<br />
safra de poetisas da cidade.<br />
Com sua poesia, que chama todos nós<br />
para o diálogo da escolha. Da escolha<br />
de permanecer passivo, indiferente ou<br />
indócil, ou mostrar-se de olhos abertos,<br />
como percebendo que a vida capitula, só<br />
se quisermos.<br />
E assim também o som do “Elegia” acaricia<br />
sambas, lamentos, manhãs, chuvas<br />
e lágrimas. E ressuscita, como o arranjo<br />
de Letto, banhado por suas mãos, verbos<br />
e recados. Belezas e relíquias.<br />
É como se fosse, rimas e sinos. A vazante<br />
de uma infi nidade de possibilidades.<br />
Como uma fl auta que se quer no meio<br />
da noite, e que aponta o caminho que a<br />
música segue, sempre procurando o melhor<br />
inverno de letras. Sempre ao redor<br />
de Maíra com seus cachos de sons, com<br />
Ritinha com sua inabalável introspecção<br />
letra/música, e de Jennifer, sincera e de<br />
extremo bom gosto.<br />
Eu sei, eu acredito na capacidade que<br />
eles têm, de transformar o cotidiano em<br />
pura arte. De irrigar com seus afl uentes,<br />
a chama que alimenta o pão, a poesia, e<br />
da sonoridade que liberta mãos e olhos.<br />
Pois é preciso cada vez mais acreditar em<br />
verdades e vontades poéticas. (Até na zona<br />
desconhecida da criação). Como olhos<br />
que investigam penumbras e sombras.<br />
Como um garimpo de suor, como uma<br />
lanterna que ilumina ao redor do nosso<br />
mundo, a vontade de falar e de revelar o<br />
suspiro que reina entre rios e encostas...<br />
E sobre as veias que insistem em saciar<br />
com seus encantos, trilhas e línguas da<br />
nossa fragilidade humana. Sobre os<br />
aguapés de palavras e tons, instante onde<br />
se celebram pecados e promessas. Verões<br />
e quimeras.<br />
E sobre estalos e sussurros, também.<br />
Sim, sobre estalos. Ou você se esquece<br />
que a maioria do que se fala, nada vale?<br />
Nada vale a pena. E é aí que a poesia entra<br />
em cena.<br />
Portanto, o que se fala sempre está ligado<br />
a estalos. Como se fossem fi lmes<br />
desconhecidos. Onde o cenário é nuvem.<br />
Onde não se tem conhecimento<br />
de nada. Feito a idéia de Buca Dantas,<br />
que está fi lmando sem roteiro. O roteiro<br />
é feito na hora. Parecido com a língua,<br />
com o verbo e com as idéias que nos<br />
tornam cúmplices do desenlace, de tatos<br />
e tratos. E que (também) nos eleva<br />
a mártires, e a salvadores de uma noção<br />
que nada sabemos. E assim somos nós. E<br />
assim é a vida.<br />
Logo, quem, além da poesia, sobrevive<br />
com frases curtas (ou longas), a mesmice<br />
das coisas? Quem, íntegro e inteiro,<br />
procura pela parte que lhe cabe nesse<br />
latifúndio que nos resta? Quem há de<br />
possuir extensas lentes híbridas, e vislumbram<br />
a vastidão da estrada que nos<br />
abocanha?<br />
Poeticamente escrevemos. Poeticamente<br />
podemos falar. E poeticamente pensamos.<br />
A dança em que as palavras se<br />
mostram, os pensamentos que de tão<br />
enormes e vadios, nos transformam em<br />
códigos, sobrenomes, lembranças e temores.<br />
A poesia tem disso. Ela arma senhas e<br />
procura saídas. Às vezes nem tão pródigas.<br />
Outras, o próprio paraíso.<br />
Pois a poesia, às vezes nua, às vezes encoberta<br />
por silhuetas, não tem meio termo.<br />
Ela, com sua língua, de saliva farta<br />
e de longas abas, abocanha quem pensa<br />
que somos somente espelhos bizantinos<br />
e movediços.<br />
E no nosso chão, bem na nossa frente,<br />
poesia e música se fundem. Unem e irmanam<br />
visões de tantos varais. Uma<br />
melancolia que nos salva, recuperando<br />
a janela do espírito tão esquecido. Tão<br />
essência. Tão poesia.<br />
Parecida com a calma que guardamos ao<br />
redor do sol e da espuma do mar. Que<br />
nos lava como se fôssemos ilhotas, prenúncios<br />
de vento e tanta luz.<br />
Por isso que o “Elegia” navega sem pudor<br />
nas margens dos olhos e nas águas que<br />
de tão profundas, desembocam silêncios<br />
e riquezas. E ao redor das palavras que<br />
vão se encaixando como desenhos, rascunhos,<br />
abrigos. E na lenha do son(h)o<br />
verbal, que ressuscita o quebradiço da<br />
vida, que de sã, aceita avulsos acentos.<br />
É como apalpar palavras, que nos querem<br />
próximas de uma avalanche de ritmos.<br />
Embalando a letra tão curva, tão lâmina<br />
e tão frágil, como os pilares de uma<br />
língua que não se parte. E que não se<br />
curva. À espera de um dilúvio de tristes e<br />
aromáticos jardins. Que não se esconde.<br />
Como possuída por lentas e intransponíveis<br />
pepitas. Que não se poupa, como o<br />
prenúncio da espera do que virá. Como<br />
o cordão que alimenta portos e estopins,<br />
vazantes e amantes.<br />
Assim, a elegia que escolhemos, não<br />
passa por nós como uma andorinha que<br />
fenece. Ela assina a vida como um corredor<br />
de fantasias, quermesse de lendas e<br />
truques. Maresias da fútil lembrança das<br />
nossas sombras.<br />
Passageiros somos todos nós. De uma<br />
eterna e preciosa lembrança do passado.<br />
Que passa por cima de morros. Aldeias.<br />
Cardumes. Varreduras.<br />
Assim somos nós. Hóspedes do passado.<br />
Parentes de lentas e tontas agonias. Parceiros<br />
da luz, que organiza circos. E da<br />
imaginação que nos exorta.<br />
E livre de toda e qualquer trapaça que<br />
ainda podemos passar. Guerreiros de uma<br />
louca e desavisada aventura chamada vida.<br />
Recheada de tapumes e dragões. E dos<br />
Jan/Fev 2006<br />
33
Fogo contra fogo<br />
34 Jan/Fev 2006<br />
Rubens Lemos Filho Jornalista<br />
Juntar Al Pacino e Robert de Niro num mesmo fi lme<br />
tem o peso de um duelo entre Patton e Rommel na 2ª<br />
Guerra Mundial. Ou, puxando meu cordão umbilical<br />
com uma bola de futebol, a um confronto acima do<br />
tempo e da lógica entre Pelé e Maradona. Um aos 22<br />
anos, disputando o título intercontinental pelo Santos<br />
contra o Benfi ca. Dieguito aos 26 na Copa do<br />
México, que ganhou sozinho.<br />
Em “Fogo contra Fogo”, de 1995, Pacino vive um<br />
policial atormentado por um péssimo casamento do<br />
qual recebeu de dote uma enteada com tendências<br />
suicidas, e De Niro é o maior bandido de Los Angeles<br />
e redondezas. Frio, sofi sticado, inteligente. Pacino<br />
imbatível como Vincent Hanna, o detetive de Homicídios,<br />
De Niro implacável como Neil McCauley.<br />
É um marco do cinema. Os dois também estavam na<br />
segunda parte da trilogia de “O Poderoso Chefão”.<br />
Mas não contracenaram. De Niro encarnou Dom<br />
Vito Andolini, Dom Corleone, pai de Michael, personagem<br />
de Pacino de crueldade invejável.<br />
”Fogo contra Fogo” é extremamente atual. Pela letalidade<br />
das armas, pelo requinte dos crimes, pela<br />
brutalidade dividida entre policiais e bandidos, rajadas<br />
a granel pelas ruas movimentadas da metrópole.<br />
Ninguém é respeitado nos tiroteios. É bala para quem<br />
puser cara e focinho.<br />
Pacino passa a pesquisar a vida de De Niro. Seus truques<br />
e manhas. McCauley corrompe um tira para sa-<br />
ber mais sobre Vincent Hanna. Os dois<br />
se respeitam como os grandes times, os<br />
generais de batalha.<br />
Até que marcam um encontro. Num<br />
bar. Tomando cafezinho. De frente um<br />
para o outro. Perguntam, um ao outro,<br />
a receita para sobreviver até o juízo fi nal<br />
que será o clássico entre ambos, o duelo<br />
moderno do Curral O.K.<br />
Hanna (Pacino) diz que não hesita<br />
quando a hora exige matar. Pensa nas vítimas<br />
das mortes que investiga. Guarda<br />
um ódio melancólico traduzido por seus<br />
olhos de peixe com sono. E descarrega o<br />
ódio e o pente do seu fuzil com toda a<br />
força. De Niro (McCauley) chega a ser<br />
fi losófi co. Conta que não se deve apegar<br />
a nada que não se possa largar em 30<br />
segundos. Tem o coração seco. Engata<br />
uma paixão por uma webdesigner. Escanteada<br />
quando ele encontra a chance<br />
de matar um delator. Um jura liquidar<br />
o outro.<br />
Só um dos dois sobra no fi m. E é Vincent<br />
Hanna. Mas de McCauley sobra a<br />
maior lição sobre a raça humana: Não<br />
confi e nela. Se livre nos 30 segundos que<br />
lhe restarem.
POESIA POTIGUAR<br />
O poeta potiguar Elí Celso de Araujo Dantas da Silveira<br />
é Doutor em Teoria Literária pela UFRJ e Mestre em<br />
Tecnologia Educacional pela UFRN. Especializou-se em<br />
Filosofi a e foi professor do Departamento de Educação da<br />
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 1991,<br />
em parceria com os poetas Iracema Macedo, Celso Boaventura<br />
Jr. e André Vesne, publicou poemas nas coletâneas<br />
Vale feliz, Gravuras (1995) e Ceia das cinzas (1998). Tem<br />
parceria só com Celso Boaventura Jr. - Reminiscências do<br />
Tártaro/Lamentações, respectivamente. É fi lho dos poetas<br />
Celso da Silveira e Myriam Coeli. Já foi premiado com o<br />
Othoniel Menezes e o Câmara Cascudo, entre outros. Em<br />
2004, ganhou menção honrosa no Concurso de Poesia Luís<br />
Carlos Guimarães, da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>. Os poemas<br />
que seguem foram publicados no livro 15 Poetas do RN,<br />
lançado no ano passado pela FJA, com os poemas vencedores<br />
do Concurso de Poesia LCG 2004. Como saíram com<br />
erros, decidimos publicá-los na Preá, como forma de minimizar<br />
o dano.<br />
PEQUENA INTRODUÇÃO AO LOUCO<br />
Era da maior pureza<br />
vestia camisas brancas<br />
não comia carne<br />
ouvia pela casa uma música silenciosa<br />
de cornetas roucas e fl autinhas fanhas<br />
que só ele ouvia<br />
diziam-no louco<br />
pois cuidava de gaiolas vazias<br />
desperdiçava guardados<br />
e ria mesmo dos pedintes<br />
por fi m atravessava meia cidade<br />
com um ramo de jasmim na mão direita<br />
para jogá-lo no rio<br />
gastava uma tarde na margem<br />
fazia nada<br />
voltando para casa<br />
aceso o candeeiro<br />
o colocava sobre o alqueire<br />
para que iluminasse a treva da casa<br />
O AFOGADO<br />
acordamos todos os dias<br />
eu e meu fantasma<br />
ele me confessa agora tudo<br />
depende de ti: ou imito<br />
o meu tempo ou fujo do teatro<br />
se canto o átimo<br />
ou as rendeirinhas<br />
canto contudo sem força<br />
mal dou meu corpo para o dia<br />
mal elaboro a falsa continuidade<br />
...e logo as mesmas solidões<br />
beijam minha voz cansada<br />
meus braços bons<br />
as rosas pálidas dos jardins públicos<br />
os vasos de guerra<br />
mas seja porque já vai tarde<br />
ou se é por a fl or lamentar a semente<br />
(se a que vem, se a que foi)<br />
passo a olhar nuvens<br />
as cidades armadas no céu<br />
o distante que houver<br />
e além dessa saudade<br />
de não saber de nada<br />
e que me rouba dum futuro absurdo<br />
e pretexta minha volta<br />
em golpadas arremessando<br />
de agora para frente<br />
no molhe da entrada da barra<br />
arremessando arremessando<br />
Jan/Fev 2006<br />
35
LIVRO DOS MORTOS<br />
em antigos jazigos<br />
plantaram três mortos<br />
sementes de trigo<br />
depois desses mortos<br />
depois desse trigo<br />
abriu-se um céu<br />
pão de paraísos<br />
jardim de perigos<br />
se a carne desceu<br />
mas se a carne ardeu<br />
a infernos comigo<br />
meu fruto venceu<br />
os fogos do trigo<br />
co’as minhas raízes<br />
cresceram abismos<br />
tapou-me os ouvidos<br />
um silo de nada<br />
num mundo sem cor<br />
uma boca fechada<br />
fechando meu grito<br />
às margens de nada<br />
negrura rehabito<br />
guardo pelo tempo<br />
terra e escuridão<br />
o ventre emproado<br />
a barca emprenhada<br />
num rio esquecido<br />
e sempre perdido<br />
coração de treva<br />
por raiz cerzido<br />
guardo, ...<br />
guardo aqui comigo<br />
36 Jan/Fev 2006<br />
TÉDIO / ABPAXAΣ<br />
(linhas fecham círculos)<br />
nome e armas da família<br />
foram barco desse engodo<br />
no século dezoito<br />
um senhor de vassalos<br />
fi lho de D. Miguel da Guirlanda<br />
cujo fi lho fi cou viúvo<br />
e alcoólatra consumado<br />
já vivia desordenadamente<br />
entre os seus servos<br />
gestas de enfado<br />
as bandeirolas da Casa<br />
serviam de guardanapo<br />
os lírios caíam ao chão<br />
eram vidro estilhaçado<br />
leões* perdidos em fl ores<br />
abriam-se no mundo errado<br />
os amores atravessavam espinhaços<br />
das senhorias de Vilanova de Tormes<br />
para desagüar no mar frio<br />
outubros abandonando-se em maios<br />
e os perfumes e os calafrios<br />
na fl or que dorme<br />
pesada de pesaδeλoς<br />
suspensa em janeiros<br />
e em cravos de aço<br />
eram guirlandas de dor<br />
e seduções de março<br />
ô tia minha myséria<br />
este homem era eu<br />
elí de araujo o entediado<br />
defronte ao que não acaba<br />
por entre beleza e horror<br />
girei a rosa do calendário<br />
_________________<br />
*o λις
ERRO<br />
(`Éρρω)<br />
nome cálido, inferno branco<br />
ouro de neblina<br />
mina de menina<br />
abrindo-me ao fl anco<br />
segredo de amador<br />
na confusão da fl or<br />
te peço a pôr alma<br />
onde morte mia calma<br />
pelejando noite e enfado<br />
se sabes que é do lado<br />
que esse rio tem brotado<br />
da fonte tua na costa minha,<br />
nome a tal consolo<br />
dá-me um: sou tolo.<br />
nome de rio ou n’alma<br />
guardarei se morte ou fala.<br />
ah, menina do fl anco<br />
aberto ao vento deserto,<br />
me inundo da neblina,<br />
nome cálido, inferno branco<br />
pois és só a que me toca<br />
pó é só o que me sina.<br />
DONJON/NEMÓLITO<br />
Tu és o cavaleiro que conquista.<br />
Que adentra meu castelo<br />
pela ponte levadiça<br />
Que me sobe ao torreão<br />
e abraça-me o peito ninho<br />
Mha senhor, que desespero<br />
eu tinha antes de ti ...<br />
Tu és a amazona que fere<br />
os alvos da minha carne e pele.<br />
Que me rouba de mim<br />
A de pretos cabelos de treliça<br />
Mha senhor, algoz desespero<br />
eu tinha antes de ti<br />
ASTROLÁBIO<br />
O teu sexo é instrumento graduado<br />
que me leva às estrelas,<br />
me ensina<br />
O teu braço é um compasso<br />
que me afaga de leve<br />
e me fulmina<br />
O teu quadril é uma fera<br />
que me recoita marés<br />
e me rumina<br />
A tua ternura é um calor<br />
uma solidão sem dor<br />
me termina<br />
(o teu peito é o pêssego do mundo)<br />
Jan/Fev 2006<br />
37
Sou homem,<br />
dentro da minha<br />
barriga<br />
crio<br />
úteros<br />
fera fútil<br />
faço poemas<br />
gero assim sacrilegamente<br />
pães ou trufas<br />
selas de cavalo/ranúnculos<br />
meu olho é um bornal<br />
o pênis arsenal-arma<br />
os círculos concêntricos<br />
do coração<br />
milícia de involuções<br />
chocam arrecifes<br />
Sou homem,<br />
dentro da minha<br />
cabeça, num planeta balofo<br />
crescem zoológicos<br />
a varejo,<br />
colméias de pequenos anjos<br />
burocratas<br />
e um cristo<br />
humilhadíssimo<br />
38 Jan/Fev 2006<br />
PEQUENO GÊNESIS SEGUNDO ELÍ DE ARAUJO<br />
Onde dorme a mãe do homem?<br />
Entre os braços e os ossos do deus?<br />
A casa do deus é uma fotografi a<br />
tomada a favor do sol<br />
em tarde antiga e pia<br />
A casa do deus tem a granulação dourada<br />
da rosa do deserto<br />
é numa encosta amarelada<br />
que se esboroa esboroa<br />
esboroa<br />
a casa do deus<br />
onde dorme a mãe do homem,<br />
fl or que não murcha ave que não voa?<br />
A casa do deus é no fi rmamento<br />
numa ilha qualquer pendurada ao vento<br />
A habitação do homem é barro<br />
e pulmão e vazio e vento<br />
com um só pavimento<br />
a casa do homem é feita<br />
com traves de carnaúba<br />
nos subúrbios do tempo<br />
Onde mora a mãe do homem?<br />
A que se veste de noite e dias?<br />
Suas janelas, de vidro bisotado<br />
seu dentro de brita e cimento<br />
sua coluna de um ferro de mãe<br />
duras suas mãos de ungüento<br />
Por uma tristeza e um naufrágio<br />
se eu soubesse te diria<br />
mas me falta crer os amargos<br />
desses mitos e da cosmogonia
Agenda<br />
Michelli Pessoa (nyla_br@yahoo.com)<br />
Centro de Formação Teatral<br />
O Centro de Teatro, da <strong>Fundação</strong> José<br />
<strong>Augusto</strong>, oferece em março e abril, ofi -<br />
cinas de Iniciação Teatral, para a faixa<br />
etária a partir dos 14 anos, com os professores<br />
Lenilton Teixeira e João Júnior;<br />
ofi cinas de Jogos Teatrais para crianças,<br />
dos 8 aos 12 anos, com Titina Medeiros,<br />
João Júnior e Quitéria Kelly; Módulo II,<br />
com alunos de Iniciação Teatral em montagem<br />
de espetáculo no segundo módulo<br />
do curso com João Júnior e a Sala de Leituras,<br />
voltada para o exercício da fala, da<br />
palavra e da dramaturgia, com Henrique<br />
Fontes. Informações: (84) 3212-1663.<br />
Site interessante<br />
Em seu blog (http://grandeponto.blogspot.com)<br />
Alexandro Gurgel publica<br />
notas, artigos, crônicas, fotos, poemas e<br />
reportagens sobre diversos temas.<br />
Cidade da Criança<br />
No dia 8 de abril a Cidade da Criança<br />
realiza o I Festival de Viola, com artistas<br />
da Paraíba, Ceará e Rio Grande do<br />
Norte. No mesmo dia e local será aberta<br />
exposição de gravuras de Alcides Sales.<br />
Mais informações: (84)3232-9757.<br />
Seis e Meia<br />
O projeto Seis e Meia será reiniciado no<br />
dia 21 de março com o grupo Delicatto,<br />
no Teatro Alberto Maranhão. Informações:<br />
(84) 3232-3669/3232-9704.<br />
Casas de Cultura Popular<br />
Em março, as Casas de Cultura de<br />
Macau, Currais Novos, Parelhas, Caicó<br />
e Campo Grande realizarão ofi cinas<br />
de teatro, música (fl auta doce e coral),<br />
dança e artesanato. Em abril, a Casa de<br />
Cultura de Martins oferecerá ofi cinas<br />
de Câmara de Cinema e Vídeo (Projeto<br />
“Cinema para Todos”).<br />
13 POR 1<br />
I Concerto Didático da OSRN; dias 30<br />
e 31, às 21 horas, comédia teatral “As<br />
Coroas”, com a Cia. Paraibana de Comédia<br />
e texto de Saulo Queiroz.<br />
Teatro Alberto Maranhão<br />
A programação de março do TAM é a Programação de março do TCP<br />
seguinte: de 09 a 12, às 21 horas, o es- A programação do Teatro de Cultura Popetáculo<br />
“Aluga-se um Namorado”, com pular, da FJA, para março é a seguinte:<br />
Eri Johnson e texto de James Scherman; Dia 8, às 17 horas: “CANTART” - Arte<br />
dia 12, às 17 horas, espetáculo infantil e Poesia para as Mulheres; dia 17, às 15<br />
“Rock Monstro”, com texto de Valeska horas: Espetáculo teatral “A Princesa En-<br />
Picado; dia 14, às 10h e às 15 horas, gasgada ou o Médico Camponês”, texto<br />
Projeto Escola - espetáculo “ A Princesa de Márcia Frederico e direção de Gil-<br />
Engasgada”, com a Cia. de Teatro GRU- berto Brito, com o grupo de teatro de<br />
TUM; dias 15 e 16, às 20 horas, espe- Mossoró GRUTUM; Dia 17, às 20h30,<br />
táculo “Dom Casmurro”, com o grupo show de humor “Descasacando”, com<br />
GRUTUM; dia 19, às 17 horas, espetá- “Casaca de Couro”; Dias 23 e 24, às 20<br />
culo infantil “Chapeuzinho Vermelho”, horas, espetáculo teatral “À Luz da Lua,<br />
com texto e direção de Geraldo Maia; de os Punhais”, texto de Racine Santos, com<br />
24 a 26, às 21 horas, espetáculo “Beijos o grupo de teatro do TCP e direção de<br />
de Verão”, com Bruno Ferrari e texto de Sônia Santos; Dias 25 e 26, às 19 horas,<br />
Domingos Oliveira; dia 26, às 17 horas, espetáculo teatral “Enquanto a Tempes-<br />
espetáculo infantil “O Gatinho Nicolau”, tade não Passa...”, com o grupo Cumbu-<br />
com o grupo Manacá de Teatro, texto ca Teatral, texto e direção de Weid Sousa;<br />
de Mano Macário; dia 28, às 20h30, I Dia 27, às 13 e 20 horas, “À Luz da Lua,<br />
Concerto da OSRN; dia 29, às 15h30, os Punhais”. Informações: 3232-5307.<br />
Marcos Ferreira (escritor)<br />
Romancista: José Humberto Dutra<br />
Poeta: Márcio de Lima Dantas<br />
Livro: Saudades, de Francisco Rodrigues da Costa<br />
Filme: Caldeirão do Diabo<br />
Diretor de cinema: Moacy Góes<br />
Ator/atriz: Carlos José (Contonete)<br />
Pintor: Fábio Eduardo<br />
Cantor/cantora: Genildo Costa<br />
Compositor: Danilo Guanais<br />
Música: Santo de Barro, de Iremar Leite<br />
Peça teatral: Chuva de Bala no País de Mossoró<br />
Intelectual: José Nicodemos<br />
Personalidade cultural do RN: Raimundo Soares de Brito<br />
Jan/Fev 2006<br />
39
FOCO<br />
POTI<br />
GUAR<br />
DOIS FESTIVAIS<br />
40 Jan/Fev 2006<br />
Marcos Aurélio Felipe<br />
aurelio.felipe@uol.com.br<br />
http://focopotiguar.zip.net/<br />
Quando, no último Festival de<br />
Cinema de Natal, me sentei na poltrona<br />
do Centro de Convenções, as expectativas<br />
ultrapassavam toda e qualquer<br />
noção de espaço e tempo – toda lógica<br />
e estética, todo o entendimento possível...<br />
Mas o fato é que todo e qualquer<br />
fi lme do diretor brasileiro Carlos Reichenbach<br />
entraria na minha lista como<br />
algo a ser esperado e, imediatamente,<br />
visto com muita expectativa, já que no<br />
mesmo evento e em uma projeção semelhante<br />
anos atrás tive o prazer diante<br />
da tela como há tempos não sentia<br />
na sala de cinema. Desde “Dois Córregos”<br />
(1999), quando não consegui<br />
conter meu entusiasmo após a sessão<br />
e percorri a cidade do Natal quase que<br />
de uma ponta a outra incorporando<br />
aquela atmosfera lírica e histórica, que<br />
aguardava outro fi lme seu com os nervos<br />
à fl or da pele.<br />
Porque a história de Hermes (Carlos Alberto<br />
Riccelli), que vive clandestino no<br />
Brasil ditatorial após participar da luta<br />
armada, chegou em um momento em<br />
que as coisas estavam sendo defi nidas.<br />
Eu tinha acabado de elaborar o projeto<br />
para a pós-graduação em educação, contactar<br />
alguns personagens da época do<br />
Regime Militar no RN e de ter acesso<br />
aos processos dos presos políticos no arquivo<br />
público do Estado. Afora que, em<br />
“Dois Córregos”, o lirismo que marca<br />
aquele piano, o silêncio daquele homem<br />
preso ao passado político e afetivo e as<br />
cartas que escrevia aos fi lhos mesmo sabendo<br />
que não seriam enviadas, já eram<br />
mais do que sufi cientes. Mas o fato é que<br />
o novo fi lme de Reichenbach não provocou,<br />
em mim, o mesmo entusiasmo<br />
que o seu cinema havia provocado anos<br />
atrás.<br />
Talvez porque “Bens Confi scados”<br />
(2005), ao assemelhar-se a um projétil<br />
estilhaçado, tenha seu núcleo dramático<br />
fragmentado demais, o que acarreta<br />
o deslocamento do seu foco sem muita<br />
precisão e propósito. Assim, o centro da<br />
câmera é dominado ora pela relação de
Serena (Betty Faria) e Luis Roberto (Renan<br />
<strong>Augusto</strong>) ou pela história do caseiro<br />
(Werner Schunemann) e sua jovem esposa,<br />
ora pelo núcleo que se forma em<br />
torno dos personagens do hotel (Marina<br />
Person e Eduardo Dusek) ou pelas relações<br />
entre Serena e Luis Roberto com os<br />
demais personagens – além do assessor e<br />
do político corrupto, que, invisivelmente,<br />
movem a história. Apesar de chegar<br />
uma hora em que é preciso perguntar<br />
sobre “quem?” ou “o quê?” é o fi lme,<br />
vemos a composição de inesquecíveis e<br />
belos momentos.<br />
A abertura de “Bens Confi scados”, assim<br />
como a cena fi nal de “O Pântano”<br />
(2001, de Lucrecia Martel) com toda<br />
aquela atmosfera envolta da queda daquela<br />
escada, trás uma das cenas mais<br />
instigantes do cinema contemporâneo<br />
– a do suicídio da estilista amante do<br />
político corrupto em pleno centro de<br />
São Paulo. Quando, nessa cena, o foco<br />
sobre a relação personagem-espaço inverte<br />
seu ponto de vista para a relação<br />
personagem-história, a inversão em escala<br />
e ângulo da câmera justifi ca a si e ao<br />
próprio fi lme. De modo que, ao sair da<br />
relação da personagem com a metrópole,<br />
o que então passa a interessar às suas<br />
lentes é a relação que os indivíduos estabelecem<br />
com suas vidas. Na escolha do<br />
movimento, da escala e do ângulo dessa<br />
tomada temos toda a história e o que sob<br />
suas cortinas decidem os personagens.<br />
Portanto, apesar da diversidade espacial,<br />
o que fi ca mais evidente são as<br />
decisões que afetam os destinos dos<br />
personagens. O que, em parte, justifi ca<br />
a fragmentação do foco dramático que,<br />
a cada deslocamento de espaço, inverte<br />
a noção de personagem principal e coadjuvante.<br />
Porque, assim como na vida,<br />
a fi cção têm histórias particulares que<br />
também precisam ser consideradas. Mas<br />
a inversão mais signifi cativa está no<br />
diálogo que “Bens Confi scados” mantém<br />
com “Dois Córregos”, quando, por<br />
exemplo, ausenta o Pai que antes estava<br />
presente; dar vida ao “Filho” e a “Mãe”<br />
e a Praia de Cidreiras–RS que apareciam<br />
somente em delírios; e quando, a partir<br />
dos mesmos ângulos, faz reviver imagens<br />
do fi lme anterior – como a estética de<br />
uma contínua e permanente evocação<br />
cinematográfi ca.<br />
Jan/Fev 2006<br />
41
Gustavo Porpino<br />
Foto: Anchieta Xavier<br />
A riqueza cultural do Rio Grande<br />
do Norte é indiscutível. Muito se fala<br />
das danças folclóricas, poetas populares,<br />
violeiros, culinária típica e costumes peculiares<br />
ao sertanejo, mas são escassas as<br />
tentativas de dimensionar a cultura potiguar.<br />
A Preá tem cumprido seu papel de<br />
mostrar as muitas faces das regiões potiguares.<br />
Em três anos desbravando o Rio<br />
Grande do Norte foram mais de 15 mil<br />
quilômetros percorridos entre idas e vindas<br />
de Natal ao interior. Subimos serras,<br />
visitamos sítios arqueológicos, conhecemos<br />
dezenas de tipos populares e vimos<br />
manifestações folclóricas brotarem em<br />
todas as regiões visitadas.<br />
Comemos muito também! A tapioca<br />
feita na casa de farinha do Rosário,<br />
em Portalegre, é imbatível. A autêntica<br />
carne-de-sol de Pau dos Ferros, o bolo<br />
ligado de São Miguel, o caldo de camarão<br />
do Gargalheiras, em Acari, e o guiné<br />
torrado de Lagoa de Velhos ainda atiçam<br />
meu paladar. Queijeiras foram muitas.<br />
Experimentamos de tudo. O chouriço<br />
de Carnaúba dos Dantas, por exemplo,<br />
pode não ser atrativo visualmente, mas<br />
quem saboreia gosta. Às vezes parecíamos<br />
candidato a deputado em campanha<br />
pelo interior. Um convite para tomar um<br />
42 Jan/Fev 2006<br />
Descobertas e aprendizado<br />
pelas veredas do<br />
Rio Grande do Norte<br />
Anchieta Xavier (fotógrafo), Érico Alves (motorista e “faz tudo”) e Gustavo Porpino: quase 15 mil quilômetros rodados em<br />
busca da verdadeira cultura do RN<br />
café com bolo ali, um doce de leite com<br />
queijo de manteiga acolá. E nas conversas<br />
com a gente simples do interior potiguar<br />
surgiam bons personagens e informações<br />
valiosas para enriquecer as matérias.<br />
Comprovamos a receptividade potiguar<br />
e fomos sempre bem recebidos. Depois<br />
da consolidação da revista, lá pela edição<br />
número 5, a chegada da equipe da Preá<br />
foi até motivo de festa em alguns municípios.<br />
Em São José de Campestre, tinha<br />
faixa de boas vindas ao lado da igreja e<br />
uma mesa farta com galinha caipira, feijão<br />
macassar, batata-doce, farofa e arroz<br />
de leite à nossa espera. O motorista Érico<br />
Alves e o fotógrafo Anchieta Xavier,<br />
gulosos assumidos, se deleitavam a cada<br />
banquete.<br />
Paisagens surpreendentes foram muitas.<br />
A vista das serras de Portalegre e Martins<br />
no inverno encanta até mesmo a quem<br />
está acostumado a passar férias na Europa.<br />
A estrada de São Miguel a Venha<br />
Ver, também em época de chuvas, corta<br />
um vale de verde intenso e pequenas<br />
fl ores. Cenário bem diferente do interior<br />
nordestino estereotipado pela mídia. Em<br />
cada lugar visitado, uma surpresa. Personagens<br />
que ainda guardam a sabedoria<br />
do sertanejo e tem muito a contar.<br />
A primeira edição da Preá já trouxe uma<br />
destas fi guras quase extintas pela massifi<br />
cação cultural. Dinho de Zé dos Santos,<br />
o poeta do caderninho azul, teve a<br />
primeira oportunidade de mostrar seus<br />
versos originais nas páginas de uma re-
vista. Descobrimos outros poetas populares,<br />
cordelistas, violeiros, rezadeiras<br />
e até cantadoras de incelências. Quase<br />
todos os artistas têm algo em comum.<br />
São pessoas simples e muito receptivas.<br />
Alguns vivem em condições de pobreza<br />
extrema como o poeta e violeiro mossoroense<br />
Luís Campos. Mas não lembro de<br />
ter encontrado gente infeliz.<br />
A alegria de Dona Aldizes Bessa, dançadeira<br />
de São Gonçalo, no sítio Pega, em<br />
Portalegre, foi marcante. Outras comunidades<br />
de negros também nos receberam<br />
muito bem. Em Patu, fomos surpreendidos<br />
pela riqueza cultural dos negros do<br />
Jatobá com sua louvação a São Benedito.<br />
Comprovamos também a vivacidade da<br />
dança dos Negros do Rosário de Caicó,<br />
e seus compadres nas proximidades de<br />
Parelhas.<br />
Fomos bater na divisa de São Miguel<br />
com Pereiro (CE) para conhecer a dança<br />
de São Gonçalo feita por lá. Ouvimos<br />
cânticos preservados que atravessaram<br />
mais de um século e registramos também<br />
a arte da louceira mais antiga de São<br />
Miguel. Bois-de-reis foram vários. Uns<br />
feitos como antigamente, outros mais<br />
infl uenciados pela modernidade. Mas,<br />
como bem disse Ariano Suassuna, a cultura<br />
popular se transforma. Não temos<br />
o direito de querer que as manifestações<br />
folclóricas permaneçam sempre iguais.<br />
Tivemos muitas conversas curiosas. Destaco,<br />
aqui, duas fi guras pitorescas. O<br />
mestre Antônio da Ladeira, comandante<br />
do Boi-de-reis de Santa Cruz, e Anacreonte,<br />
um seridoense de Cruzeta, homem<br />
humilde e grande conhecedor da genealogia<br />
do povo da sua região. Vencemos a<br />
resistência dos dois em contar um pouco<br />
sobre suas vidas. Antônio é um autêntico<br />
cabra da peste. Durante a conversa,<br />
o mestre do Boi-de-reis não largou, em<br />
nenhum momento, um cacetete de madeira<br />
feito por ele. “Se vier com frescura,<br />
eu dano no pé do ouvido”, disse. Anacreonte,<br />
também desconfi ado, não admitia<br />
ser fotografado. Para ele, a máquina era<br />
“coisa do cão”.<br />
A Preá também acerta ao exibir em suas<br />
páginas a riqueza dos sítios arqueológicos<br />
potiguares. O sítio Xiquexique, em<br />
Carnaúba dos Dantas, foi o que mais<br />
me despertou interesse. Não esperava<br />
encontrar tantas pinturas rupestres ricas<br />
em detalhes e tão nítidas, apesar da falta<br />
de interesse do poder público em preservar<br />
estes locais tão ricos em história. O<br />
Lajedo Soledade, em Apodi, por ter mais<br />
fama e já receber investimentos públicos,<br />
não chegou a me surpreender tanto.<br />
Mas, obviamente, também é um lugar<br />
encantador que merece ser visitado.<br />
Timbaúba dos Batistas, terra dos bordados,<br />
também superou nossas expectativas<br />
com suas inscrições rupestres no<br />
sítio Pintado. Foram várias descobertas<br />
e muito aprendizado. A entrevista com<br />
Ariano, no casarão do bairro Casa Forte,<br />
no Recife, foi uma aula de teatro e cultura<br />
popular.<br />
Também resgatamos fotógrafos importantes<br />
da cena natalense como Jaeci<br />
Emerenciano, destaque da oitava edição,<br />
e convencemos Giovanni Sérgio, um<br />
verdadeiro poeta da imagem, a ganhar<br />
as páginas do número 11. Outro perfi<br />
l, daqueles que todo repórter gosta de<br />
escrever, foi feito com o poeta “galado”<br />
Alex Nascimento. Criativo e sarcástico,<br />
Alex diz tudo que a gente gosta de ouvir.<br />
Quem não leu, pode conferir na Preá 14.<br />
Todas as edições estão disponíveis na página<br />
da FJA na internet (www.fja.rn.gov.<br />
br).<br />
Faria tudo de novo. Conheci o Rio<br />
Grande do Norte e seu povo em sua plenitude.<br />
Vi uma terra culturalmente rica<br />
e de povo humilde. Faltou agradecer a<br />
alguns pela oportunidade. Deixo aqui o<br />
meu agradecimento e a vontade de rever<br />
cada personagem. Vida longa à Preá!<br />
Jan/Fev 2006<br />
43
O pensamento vivo de Guimarães Rosa<br />
44 Jan/Fev 2006<br />
Nei Leandro de Castro Escritor<br />
Em novembro de 1967, no meio do caminho de uma pesquisa<br />
que resultaria no meu livro “Universo e Vocabulário do Grande<br />
Sertão”, estive no Rio de Janeiro para conhecer pessoalmente<br />
João Guimarães Rosa.<br />
Sem combinar antes o encontro (falha imperdoável), fui à Divisão<br />
de Fronteiras do Itamarati, onde o escritor trabalhava,<br />
levando comigo parte da pesquisa. Guimarães Rosa, segundo a<br />
secretária que me atendeu, estava em casa, às voltas com o seu<br />
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. No momento<br />
não recebia visitas. Adiada desde 1963, sua posse na ABL seria,<br />
fi nalmente, dali a dois dias, 19 de novembro.<br />
As pessoas não morrem, fi cam encantadas, disse Guimarães Rosa<br />
no seu discurso de novo imortal, três dias antes de morrer. Vinte<br />
e oito anos depois desse “encantamento”, 50 anos depois do lançamento<br />
do “Grande Sertão: Veredas” reúno aqui uma pequena<br />
parte do pensamento do romancista mineiro, o maior que o Brasil<br />
já teve, em todos os tempos.<br />
Para os que não lêem Guimarães Rosa,<br />
sob o pretexto de que ele escreveu<br />
numa linguagem ininteligível, devo<br />
acrescentar que foi excluído desta pesquisa,<br />
propositadamente, todo trecho<br />
rosiano onde havia palavras não dicionarizadas.<br />
As citações que se seguem foram extraídas<br />
de “Grande Sertão: Veredas”,<br />
“Corpo de Baile”, “Ave, palavra”, “Em<br />
memória de João Guimarães Rosa”<br />
(Livraria José Olympio Editora) e de<br />
“Literatura deve ser vida” (um diálogo<br />
de Günter W. Lorenz com JGR, em<br />
Gênova, 1965, publicado no católogo<br />
da Exposição do Novo Livro Alemão,<br />
em 1971).
Minha biografi a, antes de tudo minha<br />
biografi a literária, não deveria ser crucifi<br />
cada em datas. Aventuras são sem<br />
tempo, sem começo e fi m. Meus livros<br />
são aventuras. Eles são minha maior<br />
aventura. Escrevendo, descubro sempre<br />
um novo pedaço do infi nito. Eu vivo o<br />
infi nito, o instante não conta. Vou-lhe<br />
revelar um segredo: creio que já vivi uma<br />
vez. Naquele tempo, eu também era brasileiro<br />
e me chamava João Guimarães<br />
Rosa. Quando eu escrevo, repito aquilo<br />
que vivi anteriormente. E para essas duas<br />
vidas meu vocabulário não basta.<br />
*****<br />
Eu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o<br />
português, o latim – talvez até o esquimó<br />
e o tártaro. Queria a língua que se falava<br />
antes de Babel.<br />
*****<br />
O caráter do homem é seu estilo, sua<br />
língua. Isto deve soar naturalmente doutrinário,<br />
mas é apenas uma verdade simples<br />
da vida. Eu não entendo tampouco<br />
isso por elegância ou seleção de estilo da<br />
língua. Elegância demasiada também é<br />
suspeita, porque ela esconde um vazio.<br />
*****<br />
Todos que malmontam o sertão só alcançam<br />
de reger em rédea por uns trechos;<br />
que sorrateiro o sertão vai virando tigre<br />
debaixo da sela.<br />
*****<br />
O sertão é uma espera enorme.<br />
*****<br />
O sertão é onde manda quem é forte,<br />
com as astúcias. Deus mesmo, quando<br />
vier, que venha armado!<br />
*****<br />
Goethe nasceu no sertão, como Dostoievski,<br />
como Tolstoi, como Flaubert e<br />
Balzac; ele foi, como os outros que eu<br />
admiro, um moralista, um homem que<br />
viveu com a língua e que pensou na eternidade.<br />
Eu acho que Goethe foi mesmo<br />
o único poeta da literatura mundial que<br />
não escreveu para o dia, que escreveu<br />
para a infi nidade. Ele era sertanejo. Zola,<br />
como exemplo oposto arbitrário, provinha<br />
apenas de São Paulo. De cem escritores,<br />
um é parente de Goethe, noventa<br />
e nove de Zola.<br />
*****<br />
Deus é paciência. O contrário é o<br />
diabo.<br />
*****<br />
Eu sou místico, pelo menos eu acho.<br />
Que sou também cismador, aí não sei<br />
se isso eu devo lamentar ou alegrar-me,<br />
isso eu reparo no meu trabalho sempre<br />
de novo. Eu posso meditar muito tempo<br />
sobre alguma coisa, posso fi car quieto e<br />
esperar. Nós sertanejos somos muito diferentes<br />
das pessoas cheias de temperamento<br />
do Rio ou da Bahia, que não podem<br />
fi car nem um minuto quietas. Nós<br />
somos tipos especulativos, cismar nos dá<br />
até prazer.<br />
*****<br />
O diabo vige dentro do homem, os crespos<br />
do homem – ou é o homem arruinado,<br />
ou o homem dos avessos.<br />
*****<br />
Sertão é isto: o senhor empurra para trás,<br />
mas de repente ele volta a rodear o senhor<br />
dos lados. Sertão é quando menos<br />
se espera.<br />
*****<br />
Saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo<br />
do vento nas palmas dos buritis<br />
todos, quando é ameaço de tempestade.<br />
Alguém esquece isso? O vento é verde.<br />
Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio<br />
e põe no colo.<br />
*****<br />
Aprendi umas línguas estrangeiras só<br />
para enriquecer a minha própria linguagem.<br />
E porque existem demasiadas<br />
coisas intraduzíveis, pensadas em sonho,<br />
intuitivas, que só se podem encontrar no<br />
som original.<br />
*****<br />
Viver é muito perigoso.<br />
*****<br />
Sertão: é dentro da gente.<br />
*****<br />
Nós temos de aprender de novo a dedicar<br />
muito tempo a uma idéia. Então<br />
seriam escritos de novo melhores livros.<br />
Livros nascem do pensamento: escrever<br />
é técnica e prazer no jogo com palavras.<br />
Jan/Fev 2006<br />
45
O pensamento vivo de Guimarães Rosa<br />
Eu não preciso inventar estórias. Elas<br />
vêm ao meu encontro, aproximam-se<br />
de mim, forçam-me a escrevê-las. Assim<br />
se passa comigo (...) de repente o<br />
diabo me cavalga, que, no caso, se chama<br />
inspiração.<br />
*****<br />
Medo, não, mas perdi a vontade de ter<br />
coragem.<br />
*****<br />
A lógica, meu caro, é a faca com a qual<br />
o homem ainda se matará um dia. Só<br />
quem supera a lógica pensa com justiça.<br />
Refl ita pois uma vez: amor é sempre ilógico,<br />
mas todo crime é cometido segundo<br />
as leis da lógica.<br />
*****<br />
Eu quero a paz, e pago-a com um fervor<br />
de guerra.<br />
*****<br />
A morte é um corisco que sempre já<br />
veio.<br />
*****<br />
Só o epitáfi o é fórmula lapidar.<br />
*****<br />
Eu não sou revolucionário da língua. As<br />
pessoas que afi rmam isso não têm elas<br />
mesmas o sentido da língua, porque julgam<br />
segundo a pura aparência. Se é preciso<br />
absolutamente uma classifi cação, eu<br />
gostaria mais de que me chamassem de<br />
reacionário da língua. Porque eu quero<br />
voltar cada dia à origem da língua, ali,<br />
46 Jan/Fev 2006<br />
onde a palavra ainda está abrigada nas<br />
entranhas da alma, para que eu possa<br />
dar-lhe a luz, segundo minha imagem.<br />
*****<br />
O que não é Deus é estado de demônio.<br />
Deus existe mesmo quando não há. Mas<br />
o demônio não precisa de existir para haver<br />
– a gente sabendo que ele não existe,<br />
aí é que ele toma conta de tudo.<br />
*****<br />
O sertão é do tamanho do mundo.<br />
*****<br />
Mesmo, o espaço é tão calado que ali<br />
passa o sussurro da meia-noite às nove<br />
horas.<br />
*****<br />
O escritor é um descobridor, apenas o<br />
bom escritor, naturalmente. O mau crítico<br />
é seu inimigo porque ele é o inimigo<br />
dos descobridores, daqueles que partem<br />
para mundos estrangeiros. Colombo<br />
deve ter sido sempre ilógico, do contrário<br />
não teria descoberto a América. O<br />
escritor deve ser um Colombo. Mas o<br />
crítico malévolo e não sufi cientemente<br />
instruído faz parte daquela camarilha<br />
que quer impedir sua partida, porque ela<br />
contradiz sua chamada lógica. O bom<br />
crítico vai como piloto a bordo do navio.<br />
*****<br />
Todo buritizal é fl orestal – ramagem e<br />
amar em água.<br />
*****<br />
Mas, por cativa em seu destinozinho de<br />
chão, é que árvore abre tantos braços.<br />
*****<br />
O pássaro que se separa de outro vai voando<br />
adeus o todo tempo.<br />
*****<br />
Quando chegamos cá no acampo, as<br />
ramas d’árvores já iam pegando o pó<br />
da noite.<br />
*****<br />
O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.<br />
*****<br />
Noite redondeou, noite sem boca.<br />
*****<br />
Dia da lua. O luar que põe a noite inchada.<br />
*****<br />
Passarinho que se debruça – o vôo já está<br />
pronto!<br />
*****<br />
Aí quando é tempo de vaga-lume, esses<br />
são mil demais, sobre toda a parte:<br />
a gente mal chega, eles vão se esparramando<br />
de acender, na grama em redor<br />
é uma esteira de luz de fogo verde que<br />
tudo alastra.<br />
*****<br />
Só não existe remédio é para a sede do<br />
peixe.<br />
*****
Toda saudade é uma espécie de velhice.<br />
*****<br />
Coração da gente – o escuro, escuros.<br />
*****<br />
A gente estava desagasalhados na alegria,<br />
feito meninos.<br />
*****<br />
Vingar, digo ao senhor, é lamber, frio, o<br />
que outro cozinhou quente demais.<br />
*****<br />
O vau do mundo é a alegria!<br />
*****<br />
No combate velho do Tamanduátão:<br />
limpamos o vento de quem não tinha<br />
ordem de respirar.<br />
*****<br />
Querer o bem com demais força, de incerto<br />
jeito, pode já estar sendo se querendo<br />
o mal, por principiar.<br />
*****<br />
Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa<br />
com quem a gente gosta de conversar,<br />
do igual o igual, desarmado. O de que<br />
um tira prazer de estar próximo. Só isto,<br />
quase: e os todos sacrifícios.<br />
*****<br />
Medo agarra a gente é pelo enraizado.<br />
*****<br />
O prazer muito vira medo, o medo vai<br />
vira ódio, o ódio vira esses desesperos?<br />
*****<br />
Pobre tem de ter um triste amor à honestidade.<br />
*****<br />
Os sapos gritavam latejado.<br />
*****<br />
O sapo não fecha os olhos: guarda-os,<br />
reentrando-os na caixa da cabeça.<br />
*****<br />
Silêncio tenso – como pausa de araponga.<br />
*****<br />
O peixe vive pela boca.<br />
*****<br />
Perdoar uma cascavel: exercício de santidade.<br />
*****<br />
Pela cascavel, por transparência, vê-se o<br />
pecado mortal.<br />
*****<br />
Pantera negra: na luz esverdeada de seus<br />
olhos, lê-se que a crueldade é uma loucura<br />
tão fria que precisa do calor de sangue<br />
alheio.<br />
*****<br />
A cigarra cheia de ci.<br />
*****<br />
Avista-se o grito das araras.<br />
*****<br />
O arrebol de um pavão.<br />
*****<br />
Os castores – num jeito de quem conta<br />
dinheiro, murmuram segredos aos troncos<br />
das árvores.<br />
*****<br />
Só o cintilante instante sem futuro nem<br />
passado: o beija-fl or.<br />
*****<br />
A coruja não agoura: o que ela faz é saber<br />
os segredos da noite.<br />
*****<br />
O poço nunca é do peixe: é do outro peixe<br />
mais forte.<br />
*****<br />
A zebra se coça contra uma árvore, tão<br />
de leve, que nem uma listra se apaga.<br />
*****<br />
Hoje em dia, um dicionário é, ao mesmo<br />
tempo, a melhor antologia lírica. Cada<br />
palavra é na sua essência um poema.<br />
Pense só na gênese delas. No meu centenário,<br />
publicarei um livro, meu romance<br />
mais importante: um dicionário. Talvez<br />
o faça um pouco mais cedo. Isso será então<br />
a minha autobiografi a.<br />
O pensamento vivo de Guimarães Rosa<br />
Jan/Fev 2006<br />
47
“Greta Garbo, quem diria,<br />
48 Jan/Fev 2006<br />
Fernando Monteiro Escritor<br />
Para Vicente Serejo<br />
Foi essa a frase (“Greta Garbo, quem<br />
diria...”) que, há vinte anos, eu murmurei<br />
para a minha mulher, numa tarde de<br />
julho de 1985. Estávamos caminhando<br />
ao longo das margens do Hudson, num<br />
daqueles passeios arborizados que acompanham<br />
as amuradas do rio novaiorquino,<br />
quando Cristina propôs que sentássemos<br />
um pouco.<br />
Vimos um sólido banco de ferro, repintado<br />
de verde, e esperávamos fi car sós<br />
nele, na quietude daquela área onde os<br />
habitantes da megalópole podem tomar<br />
o sol esquivo entre choupos e tílias. Ali<br />
– mais ou menos da 51 para cima – eram<br />
ruas menos permeadas de turistas, naquela<br />
época, e, suponho, não parecíamos<br />
com eles, sem sacolas de compras e sentados<br />
não para os lanches improvisados<br />
dos cucarachas.<br />
Não me passou pela cabeça, então, a proximidade<br />
de um dos endereços mais gritantes<br />
de silêncio do cinema: o de Greta<br />
Lovisa Gustafsson, número 450 da rua
acabou de se sentar”...<br />
52 de passantes indiferentes uns aos outros,<br />
nos domingos e nos outros dias da<br />
semana (se você não for um daqueles vagabundos<br />
profi ssionais, olhando para o<br />
nada como se olhassem para as portas do<br />
fundo de alguma antiga vida).<br />
Foi então que veio sentar-se, no mesmo<br />
banco, uma senhora também cansada.<br />
“É ela. Eu juro. É ela, sim!” – foi o meu<br />
murmúrio seguinte, para a incrédula<br />
Cristina.<br />
“Quem?”<br />
“Greta. Greta Garbo.”<br />
Eu não podia me enganar com aquele<br />
formato do rosto e com a boca, embora<br />
o nariz... Não, não era nada que se<br />
pudesse apontar: seria, antes, a reminiscência<br />
de uma aura magnética, o resto<br />
do halo da “Divina”, naquela face devastada.<br />
Sei lá por que, mas algo da sua<br />
personalidade misteriosa estava ainda<br />
presente, e não deixava dúvidas sobre<br />
você estar diante da Estrela Absoluta dos<br />
Céus Frios da Perdida Idade de Ouro<br />
do Cinema, persistente nas retinas. Por<br />
falar em retinas, seus olhos – a prova defi<br />
nitiva – estavam infelizmente velados<br />
pelos óculos escuros, de modelo antiquado.<br />
Apoiava-se numa bengala preta,<br />
e se aproximara com a leve hesitação de<br />
uma senhora bem-educada, para se sentar<br />
justo no nosso banco lustroso da tinta<br />
nova onde o ferro estivera, quem sabe,<br />
tão descascado quanto ela própria, Greta<br />
Garbo.<br />
“Greta Garbo?”<br />
Minha mulher não acreditava. Mas, era.<br />
Era a Garbo, aquela anciã em quem ninguém<br />
estava prestando atenção, exceto<br />
nós – com o cuidado extremo dos disfarces<br />
inúteis para olhos talvez implacáveis,<br />
atrás daquelas lentes grossas.<br />
O canto esquerdo de seus lábios, num<br />
ricto, passou a fugidia impressão da pessoa<br />
que fi ca nervosa, ao se saber reconhecida.<br />
“Não olhe assim!”.<br />
Cristina tinha razão. Eu estava a examinar<br />
muito diretamente a estranha que<br />
ela tentava proteger da minha curiosidade.<br />
De pouco adiantava, entretanto:<br />
qualquer um fi caria vidrado na fi gura de<br />
cabelos escorridos, sem estilo (aparados<br />
pela própria?) e sem o brilho que, um<br />
dia, havia ostentado na noite artifi cial<br />
dos estúdios. Estava vestida com o desleixo<br />
de quem saíra apenas para esticar<br />
as pernas e caminhar ao longo das amu-<br />
radas, calçada com uns tênis meio sujos<br />
nos pés talvez grandes demais para uma<br />
mulher.<br />
Minha atenção era, portanto, fascinada<br />
e irreprimível. Ou mal-educada, numa<br />
palavra que são duas (você deixa de saber<br />
contar, diante do fantasma de uma<br />
Diva). E daí? Você só vai estar sentado<br />
junto de Greta Garbo uma vez – se é que<br />
vai estar, alguma vez na vida.<br />
Ficamos ali, portanto, trocando olhares<br />
oprimidos pela certeza de saber quem era<br />
aquela senhora pálida e descolorida como<br />
o casaco machucado que ela usava sobre o<br />
corpo antigamente escultural, com mais<br />
um lenço desbotado na cabeça...<br />
Quando o tirou (para receber o sol atenuado),<br />
eu tive, então, a mais plena certeza:<br />
era, de fato, a atriz retirada do cinema<br />
há 44 anos, puxando do bolso um<br />
saco de milho para dar aos pombos privilegiados,<br />
alguns dos quais acostumados,<br />
acercando-se para se alimentar das mãos<br />
de dedos nodosos – como pequenos galhos<br />
castigados – de um dos seres humanos<br />
mais belos e mais enigmáticos que já<br />
nasceu sobre a superfície do planeta quase<br />
tão exausto quanto a solitária senhora<br />
de Nova York, quem diria, Greta Garbo,<br />
80 anos, acabou de se sentar...<br />
Jan/Fev 2006<br />
49
“Greta Garbo, quem diria,<br />
I want to be alone...<br />
Muitos garantiram que ela nunca disse<br />
isso, “eu quero fi car só”. Sua frase (a um<br />
jornalista), teria sido: I want to be let alone<br />
– “eu quero que me deixem sozinha”.<br />
Ou seja, em paz (ela que tinha horror de<br />
entrevistas e mexericos).<br />
Eu sabia do reparo feito à frase tão famosa,<br />
e podia estar olhando, sendo indiscreto,<br />
até incômodo etc, porém jamais<br />
iria romper com as derradeiras regras da<br />
educação e apresentar-me como cinéfi lo<br />
e perguntar a Greta Garbo: “Por que razão<br />
a senhora abandonou o cinema, no<br />
auge da fama?”<br />
Claro que era humanamente impossível<br />
indagar isso, sem mais nem menos,<br />
à gentil alimentadora de pombos tristes<br />
entre seus pés (ela sorrindo à sombra daquele<br />
sorriso iluminado pelos mais aclamados<br />
mestres da fotografi a).<br />
Tudo que eu fazia era olhá-la, sem tentar<br />
virar o rosto ou disfarçar – como se<br />
olha para o busto da rainha Nefertiti,<br />
no museu egípcio de Berlim. Só que<br />
ali, próximo das águas do Hudson, estava<br />
uma contrafação da beleza imóvel<br />
da genial escultura da 18ª dinastia: um<br />
rosto vivo, e não de pedra calcária, cujas<br />
50 Jan/Fev 2006<br />
linhas devastadas pouco correspondiam<br />
àquelas imortalizadas em 24 quadros por<br />
segundo nas telas e no rio do tempo que<br />
faz escorrerem os minutos, as horas, os<br />
meses, os anos e as décadas sepultando<br />
tudo sobre a pedra-pome de Pompéia há<br />
séculos soterrada.<br />
Greta Garbo – então, você existe? E nasceu<br />
de mulher, como se diz na Bíblia, no<br />
dia 18 de setembro de 1905? Cresceu<br />
num bairro pobre, a terceira fi lha de um<br />
gari de Estocolmo?<br />
Perguntas possíveis. As respostas – bem,<br />
as respostas poderiam variar um pouco,<br />
de acordo com o humor da jovem sueca<br />
cujo primeiro emprego havia sido a mais<br />
que subalterna função de ensaboar os<br />
rostos dos clientes de uma barbearia.<br />
Você ainda se lembra do seu primeiro<br />
fi lme longo?<br />
Eu sei qual foi (caso você já tenha esquecido):<br />
Pedro, o Vagabundo, uma comédia<br />
dirigida por Erick Petschler, em 1922.<br />
Com o pouco dinheiro que ganhou nesse<br />
fi lme ridículo, Senhora dos Pombos<br />
da Paz Impossível, você foi estudar na<br />
Real Academia de Arte Dramática, onde<br />
seu belo rosto anguloso logo chamou a<br />
atenção de Mauritz Stiller (1883-1928),<br />
cineasta nascido na Finlândia, e não na<br />
Suécia, como muitos imaginam.<br />
Foi Stiller quem a dirigiu num fi lme baseado<br />
num livro de Selma Lagërlof – A<br />
Saga de Gösta Berling – que chamou a<br />
atenção para a novata. Mauritz queria<br />
chamá-la “Mona Garbor”, nos letreiros<br />
onde você mesma escolheu chamar-se<br />
Greta Garbo (e não Garbor).<br />
O sucesso de Gösta Berling a levou para<br />
as mãos do diretor alemão G. W. Pabst.<br />
Com ele, você fez o seu segundo fi lme<br />
– Rua das Lágrimas (1925) – porém Stiller<br />
a recuperou para si, quando recebeu,<br />
naquele ano, convite de Louis B. Mayer<br />
para trabalhar em Hollywood. Você se<br />
lembra? O seu descobridor impôs, ao<br />
produtor, uma única condição para viajar<br />
rumo à loucura da América: contratar<br />
também a “querida Greta”, com salário<br />
de 300 dólares por semana.<br />
Quantas “verdinhas” mais você terá ganhado,<br />
minha linda sovina, para aparecer<br />
em mais 24 fi lmes, na maioria grandes<br />
sucessos de bilheteria? O mordomo<br />
Gustav, serviçal na sua mansão de Beverly<br />
Hills, mais tarde iria revelar: “Eu nunca<br />
vi Miss Garbo comprar um vaso para<br />
a casa; ela me dava 100 dólares mensais<br />
para a comida e isso era tudo; se eu com-
acabou de se sentar”...<br />
prasse algo a mais, ela reclamava como<br />
uma caixeirinha”.<br />
É verdade, senhora? E é verdade, também,<br />
que você nunca amou ninguém?<br />
Nem o astro de A Carne e o Diabo, aquele<br />
rapaz de bigodinho chamado John<br />
Pringle? Ídolo da tela com o nome de<br />
John Gilbert, ele chegou a comprar um<br />
palácio em Los Angeles e um iate de 200<br />
mil dólares, para recebê-la na terra e no<br />
mar. Deu em água: você desapareceu,<br />
em 1927, depois que ambos atuaram em<br />
Love, a primeira versão de Ana Karenina.<br />
Gilbert fi cou esperando, durante anos,<br />
até se afogar em uísque, depois de fi lmar<br />
Ana, de novo, consigo, oh Senhora Sempre<br />
Sozinha!<br />
Você não amou nem sequer aquela<br />
amiga íntima, Mercedes de Acosta, roteirista<br />
e aristocrata de luminosa inteligência?<br />
(Você admirava as mentes brilhantes.)<br />
E, confesse, gostava mais das<br />
mulheres do que dos homens. E mais<br />
dos jogos de espírito do que dos prazeres<br />
do corpo? O que sentiu, no fundo,<br />
por “Stoky”? (Se ninguém adivinha,<br />
esse foi o apelido que ela pôs no maestro<br />
Leopold Stokowski, seu amante<br />
vinte e três anos mais velho.)<br />
E o fotógrafo inglês Cecil Beaton – que<br />
todos chamam de o seu “último amor”<br />
– poderia lhe dar prazer? Ele que, sim,<br />
preferia os rapazes, mas viria a abrir exceção,<br />
em 1932, para amar uma única<br />
mulher em toda a sua longa carreira de<br />
paixões masculinas?<br />
Vocês dois nunca foram (todo mundo<br />
sabe) “apenas bons amigos”, por favor.<br />
A senhora passou o fi nal da guerra com<br />
Beaton, e, já envelhecida, fez cruzeiros<br />
seletíssimos com ele, nos mais luxuosos<br />
transatlânticos gregos. Até que acabou<br />
(você acabou).<br />
Senhora Dureza, quantas vezes luziu<br />
o diamante do seu coração gelado do<br />
norte europeu? Cecil, o artista delicado,<br />
fotografou-a como ninguém. Dizem que<br />
você possui todas essas fotos fechadas<br />
num arquivo. E também dizem que Beaton,<br />
para os melhores amigos, reconhecia<br />
ser você “uma excêntrica e uma chata”<br />
que ele amara sem restrições, até sofrer<br />
um derrame em 1974, quando fi cou semiparalítico<br />
e com a fala travada, na Inglaterra.<br />
Um dia, anunciaram-lhe a visita<br />
de Miss Greta. Ele autorizou, e ela subiu<br />
as escadas de mármore, entrou no quarto<br />
do doente, para uma conversa por sinais<br />
e palavras truncadas do homem de robe<br />
de chambre na cama estilo Tudor.<br />
Depois, a atriz de Ana Karenina assinou<br />
o livro de visitas (que o educadíssimo<br />
Beaton disponibilizara no saguão<br />
repleto de obras de arte). E nunca mais<br />
se viram.<br />
Para se livrar de algumas dívidas, a sua<br />
amiga Acosta escreveu um livro de memórias<br />
que consta ter irritado a senhora<br />
profundamente, no seu retiro do apartamento<br />
da rua 52 aqui perto – isso<br />
procede? Você não desejava que fossem<br />
divulgadas coisas como a pequena Greta<br />
se ver como um “homenzinho”, desde a<br />
infância, quando se referia a si mesma na<br />
terceira pessoa, como “ele”...<br />
Enfi m, minha cara senhora, quem é ou,<br />
melhor, quem foi você, mito vivo e incomodado<br />
com meus olhares insistentes?<br />
Mas ela já não estava ali. Com difi culdade<br />
que não pedia por qualquer ajuda,<br />
Greta Garbo havia se levantado do banco<br />
de ferro e partido, com seu caminhar<br />
inseguro, fi rmando a bengala para prosseguir<br />
rumo à solidão escolhida. Cinco<br />
anos depois, iria falecer num hospital de<br />
Nova Iorque, no dia 15 de abril de 1990,<br />
mais só do que jamais havia sido.<br />
Jan/Fev 2006<br />
51
O anjo<br />
terrível<br />
52 Jan/Fev 2006
Gustavo de Castro e Silva<br />
Poeta e escritor. Doutor em Antropologia,<br />
é professor da UCB e da UnB<br />
São muitas as formas que a arte encontra<br />
para falar em nós.<br />
Rubem Alves diz que os verdadeiros artistas<br />
nunca são felizes, mas seres atormentados,<br />
angustiados, terríveis. “Os<br />
felizes, diz ele, não necessitam fazer arte.<br />
Têm de viver a sua felicidade”. De qualquer<br />
forma, os artistas – sejam eles felizes<br />
ou infelizes – são atores sociais ainda<br />
pouco pensados pelos acadêmicos e estudiosos<br />
de plantão. O historiador Victor<br />
Leonardi, no livro Jazz em Jerusalém (Ed.<br />
Nankim, 2001) — indispensável para<br />
quem quer investigar as razões da criação<br />
na arte e no artista — tentou investigar a<br />
produção social do artista através de uma<br />
história cultural da criatividade. Outra<br />
instância pouco pensada, sobretudo pelas<br />
ciências sociais, é a da arte enquanto<br />
produção social do protesto. A revolta<br />
parece ter sido um pouco esquecida pela<br />
arte contemporânea. E quais serão os<br />
motivos desse silenciamento? O Estado<br />
conseguiu, através das diversas leis de<br />
incentivo à produção artística, fi nanciar<br />
obras de todos os tipos. Terá isso afetado<br />
o artista e a sua crítica social? Por outro<br />
lado, os tempos atuais parecem resgatar<br />
o que Aristóteles chamou a seu tempo<br />
de “A Beleza do Feio” ou o belo do<br />
monstruoso. As obras parecem caminhar<br />
para uma estetização em que vale o que é<br />
pior, uma arte desconectada da elevação<br />
espiritual, do protesto social, da verticalidade<br />
subjetiva. Assim, vemos hoje a estetização<br />
da violência (Sin City e as obras<br />
de Quentin Tarantino), a cosmética da<br />
fome (termo criado pela pesquisadora<br />
Ivana Bentes para analisar a produção recente<br />
do cinema nacional), a estetização<br />
do êxodo e da migração (cujo principal<br />
representante é Sebastião Salgado), entre<br />
outros, sem que junto à estética venha a<br />
produção do pensamento. Mas, digamos<br />
em coro, para que pensar?! Os padres<br />
espanhóis da idade média cunharam até<br />
uma máxima que fi cou famosa em seu<br />
país: “Malditos os que incitam ao pensamento”.<br />
Quem ama o conhecimento<br />
que trate de imbecilizar-se ou corre o<br />
risco de fi car sozinho. O jovem escritor<br />
francês, Martin Page, escreveu Como me<br />
Tornei um Estúpido (Rocco, 2005) como<br />
protesto à cultura do superfi cial. O livro<br />
conta a história de um personagem que,<br />
para não fi car ilhado culturalmente, decide<br />
iniciar um projeto de auto-imbecilização.<br />
Assim, começa a investir na bolsa<br />
de valores, compra todas as roupas da<br />
moda, vai constantemente ao shopping,<br />
deixa de ler, de ir a museus, etc. A cena<br />
fi nal é hilariante. Seus amigos, preocupados<br />
com ele, que estava realmente se<br />
tornando um imbecil, decidem seqüestrá-lo.<br />
Amarram-no com cordas e começam<br />
a ler Flaubert, Proust, Balzac, entre<br />
outros, numa tentativa desesperada de<br />
salvá-lo. E ele, fi nalmente, se recupera.<br />
Mas não é fácil escapar de tanto lixo cultural.<br />
Tanto lixo que, quando vejo o consumo<br />
desenfreado de pagode, axé, forró,<br />
funk, sertanejo, entre outras porcarias,<br />
imagino esses consumidores como porcos<br />
que chafurdam no lixo e na lama da<br />
cultura contemporânea.<br />
Talvez por isso é que o livro do escritor<br />
e professor universitário Alex Galeno,<br />
Antonin Artaud – A revolta de um anjo<br />
terrível (Sulina, 2005), seja um bálsamo<br />
contra a miséria cultural dos tempos<br />
atuais. Depois que terminamos de ler<br />
o livro, fi camos com dois sentimentos<br />
distintos: um pelo personagem do livro,<br />
outro pelo que o livro em si incita. No<br />
primeiro caso, somos levados pouco a<br />
pouco a conhecer a alma de um artista<br />
notável: escritor, poeta, desenhista, encenador,<br />
cenógrafo, pintor, que teve (e<br />
tem) papel decisivo na teoria da arte teatral.<br />
Nascido em Marselha, descendente<br />
de uma família de turcos, teve logo no<br />
Jan/Fev 2006<br />
53
início da sua vida, crises profundas. Por<br />
ser hipersensível, esteve sujeito à dor do<br />
mundo e padeceu por isto vida afora: a<br />
perda da irmã, as crises de depressão, a<br />
primeira internação num sanatório, aos<br />
19 anos, o consumo de láudano e ópio,<br />
o misticismo, o eletrochoque que o fez<br />
perder os dentes. Ao chegar a Paris, em<br />
1920, para tratar de sua saúde, rapidamente<br />
insere-se na cena parisiense. Escreve<br />
para uma revista de arte e literatura,<br />
conhece os surrealistas entre os quais<br />
se torna uma das principais referências<br />
do movimento. Monta e atua em diversas<br />
peças teatrais, faz cinema e é reconhecido<br />
internacionalmente como ator.<br />
Por quase vinte anos, tematiza a revolta,<br />
a peste, a crueldade, a injustiça, a revolução<br />
e a dor-do-mundo como arcabouço<br />
estético e conceitual. Não fez concessões<br />
ao pensamento em favor da estética, ao<br />
contrário, arriscou fama, carreira, prestígio,<br />
em favor da revolta e do protesto.<br />
Referindo-se à psicanálise (aliás, o livro<br />
Antonin Artaud – A revolta de um anjo<br />
terrível deveria ser lido por todos os psicanalistas),<br />
diz algo que vale para os que<br />
gostam do encarceramento das idéias,<br />
algo que vale também para a vida e que<br />
vai além da psicanálise: “fugirei de qualquer<br />
tentativa de encarcerar minha consciência<br />
em preceitos ou fórmulas, numa<br />
54 Jan/Fev 2006<br />
organização verbal qualquer” (p.68). É<br />
notável ver no livro a prepotência de Jacques<br />
Lacan ao lidar com o caso Artaud.<br />
Afi rma inclusive que tentará desestimular<br />
algum aluno seu que desejar cuidar<br />
do caso. “O caso Artaud está resolvido”.<br />
Alex Galeno diz que Lacan não estava<br />
preparado para diagnosticar a lucidez da<br />
poesia e o desconcerto estético presentes<br />
em Artaud. De fato, não é fácil mesmo<br />
entender nem a poesia, nem a loucura.<br />
Elas têm às vezes muita sabedoria por<br />
trás para facilitar o entendimento. Têm<br />
sobretudo uma outra visão de mundo.<br />
Têm a força vulcânica do que não se<br />
enquadra. Não é fácil distinguir o que<br />
é clínico do que é místico, o obscuro do<br />
iluminado, o irracional do sapiencial,<br />
ou o que são ambas as coisas ao mesmo<br />
tempo. Sabemos, ao fi nal do livro, que<br />
Artaud realmente sofria de problemas<br />
psíquicos, mas não deixamos de vê-lo<br />
como um gênio artístico. Não é fácil saber<br />
o limite das coisas.<br />
Deleuze e Guattari dirão, no Anti-Édipo,<br />
anos depois: “Artaud é a destruição da<br />
psiquiatria. É a realização da literatura<br />
precisamente por ser esquizofrênico e<br />
não por não o ser”. Se a poesia e a literatura<br />
não tivessem esse não-sei-quê de<br />
coragem, loucura e lucidez não seriam o<br />
que são. Nem faria sentido sê-lo.<br />
Em janeiro de 1936, Artaud inicia uma<br />
viagem ao México, ao país dos Tarahumara.<br />
Conhece Diogo Rivera, prova o<br />
peiote, dá palestras em universidades,<br />
fi ca ali por quase um ano. Ao voltar, no<br />
ano seguinte, vai a Bruxelas e a Dublin,<br />
capital da Irlanda, vaga pelas ruas sem<br />
dinheiro, drogas, e com extrema difi -<br />
culdade para falar inglês, desentende-se<br />
com os padres jesuítas, a polícia local, é<br />
preso e deportado para a França. Chega<br />
à França de camisa-de-força e é internado<br />
num hospital psiquiátrico. É o início<br />
de sua vida asilar, que durará nove anos.<br />
Daí em diante, Artaud é transferido de<br />
hospital em hospital. Isso não o impede<br />
de criar; o vemos sempre desenhando,<br />
escrevendo, pintando. Seus cadernos<br />
hoje valem uma fortuna e sua obra é motivo<br />
de contenda judicial entre a família<br />
e a editora Gallimard. No asilo, Artaud<br />
foi praticamente abandonado pela família.<br />
Após o fi nal da guerra, em 1946, um<br />
grupo de intelectuais se une para tirá-lo<br />
do asilo. Contribuem Georges Bataille,<br />
Pablo Picasso, Jean Paul Sartre, Albert<br />
Camus, Simone de Beauvoir, entre outros.<br />
Em 1948, ele morre de câncer no<br />
reto, no hospital psiquiátrico de Ivry, nos
subúrbios de Paris. É encontrado aos pés<br />
da cama, segurando um sapato.<br />
A cena da morte de Artaud é, a propósito,<br />
a primeira imagem forte do livro de<br />
Alex Galeno. Ela alia-se a outras cenas<br />
desse livro-tese-ensaio que farão o leitor<br />
emocionar-se ao mesmo tempo que<br />
pensar. As cenas das relações sexuais de<br />
Artaud com Anaïs Nin são perfeitas.<br />
O livro do escritor e professor de Ciências<br />
Sociais da UFRN é resultado de<br />
uma pesquisa de doutoramento realizada<br />
na PUC de São Paulo, sob a batuta do<br />
fi lósofo e antropólogo Edgard de Assis<br />
Carvalho. A obra de Galeno, aliás, é o segundo<br />
sentimento que gostaria de ressaltar<br />
nesta crítica. Quanto a isso, sejamos<br />
sinceros: um livro que discute a revolta, a<br />
loucura, o tormento, o despedaçamento<br />
e o desassossego não é fácil de engolir em<br />
tempos que preferem os personagens doces<br />
e meigos, que buscam o entendimento<br />
sem debate, as facilidades da literatura<br />
água com açúcar, entre outras baboseiras.<br />
Galeno foi na direção contrária. Ao<br />
escolher um autor que se insere no seio<br />
dos malditos como Nietzsche, Rimbaud,<br />
Nerval, Van Gogh — os que não aceitam<br />
facilmente as mentalidades de sua época<br />
—, optou pelos que geralmente ninguém<br />
escolhe: os marginais, os suicidados da<br />
sociedade, os esquecidos, os rebeldes e os<br />
inconformados. Bela escolha.<br />
Para construir sua obra, ele visitou um<br />
número considerável de textos, livros,<br />
documentos, teses, cartas e postais de e<br />
sobre o autor francês. Esteve em contato<br />
com pesquisadores na França, adquiriu<br />
catálogos pictóricos e fotográfi cos, viu<br />
fi lmes, leu e assistiu a peças teatrais, leu<br />
fi lósofos preocupados com a idéia da<br />
estrangeiridade e de estranhamento, e,<br />
sobretudo, ao fi nal, conseguiu construir<br />
uma obra viva, no fundo, uma poética<br />
da revolta dramática, elemento que percebe<br />
desde os clássicos, como Sófocles,<br />
passando por Shakespeare, Dostoievsky<br />
até chegar a Artaud, Camus, entre outros.<br />
Talvez, realmente, como disse Rubem<br />
Alves, os verdadeiros artistas não<br />
sejam nunca felizes, mas atormentados,<br />
angustiados, terríveis. Talvez por isso<br />
consigam dizer mais profundamente.<br />
Talvez por isso fi quem como patrimônio<br />
artístico da cultura humana. Talvez por<br />
isso sejam Artistas! Quem vai ler Antonin<br />
Artaud – A revolta de um anjo terrível, se<br />
prepare para encontrar ali uma vida pulsante,<br />
uma escrita encarnada, uma obra,<br />
simultaneamente, leve como um anjo e<br />
terrível como um demônio. Assim como<br />
são as coisas belas da vida.<br />
O anjo<br />
terrível<br />
Jan/Fev 2006<br />
55
Tratado das intenções com<br />
56 Jan/Fev 2006<br />
Josimey Costa Escritora<br />
Ilustração: Isaias Ribeiro<br />
Deseje.<br />
Deseje com força, com urgência. Busque<br />
extremos. Não: torne-se o extremo. Faça<br />
concessão nenhuma, principalmente em<br />
seu desejo. Só o melhor é o bastante para<br />
começar. As meias medidas, o meio de<br />
vida, a meia pataca, o médio oriente, o<br />
meio-fi o, a meia-boca, jogue fora tudo<br />
isso. Rompa os limites, sim, vá além deles.<br />
Encha o êmbolo até o fi m, beba até a última<br />
das gotas, mergulhe no mais fundo do<br />
poço, desça depois do quinto inferno... e<br />
aí você poderá pleitear o seu gozo.<br />
O gozo pleno é uma arte. Exige extrair,<br />
meticulosamente, a essência de todas as<br />
coisas. Macere, pois, os sentimentos para<br />
que sejam sumo e néctar, ácido e bálsamo,<br />
a luz mais cortante e a sombra mais<br />
compacta. Torne isso palavra e, com ela,<br />
engravide os atos. Tantos, tão profundos
entrelinhas de sabotagem<br />
e verdadeiramente signifi cativos – mas<br />
mesmo ainda há o desejo.<br />
Assim, olhe para o que deseja.<br />
Que seja antes de longe, e o desejo se aninhará,<br />
completo. Abrace com o olhar e<br />
traga para mais perto o seu objeto de desejo.<br />
Ouça-o muito bem. Ouça a modulação<br />
do seu som e ouça até o ar que não<br />
vibra quando nada é dito. Ato contínuo,<br />
cheire aquilo que deseja. Toque-o com<br />
o seu olfato e decifre as mensagens que<br />
nem ele sabe que emite. Tatue na memória<br />
de cada célula do corpo, do seu e do<br />
outro, o padrão desse desejo que, enfi m,<br />
se assume molecular. Fractal. Tão entranhado<br />
que nem é mais desejo. É você.<br />
Agora, costure pele nesse desejo.<br />
O que antes o olhar abraçava, empunhe,<br />
sorva, deguste, invada, emaranhe, dedilhe,<br />
mordisque, respire, dissolva e descreva,<br />
esvaia e preencha.<br />
Então, vá para casa.<br />
O seu desejo é mesmo tonto e cego. Não<br />
elege alvos; aciona armadilhas.<br />
Assim, é preciso cuidado e distância. O<br />
terreno é instável; deve ser apenas meio<br />
medido. As pausas são bons anteparos,<br />
prioridades dão ótimo escudo. Qualquer<br />
fervura não queima quando engole água<br />
fria. Evidentemente, há que inciar a fervura,<br />
isso o desejo impõe. O fogo, porém,<br />
deve ser lento e a água, contida. Desejo e<br />
paixão são uma alquimia de morte. Petite<br />
mort. Morte por sufocamento.<br />
Só se morre asfi xiado quando algo ou alguém<br />
chega muito perto, tão perto que<br />
pressiona os sentidos, desacerta a pulsação<br />
e seqüestra a voz. Ah, mas isso só<br />
pode vir por dentro. Como um vampiro,<br />
precisa de convite para entrar e não aceita<br />
nenhuma ordem para sair. Há perigo<br />
e você não constrói discurso sobre isto<br />
senão enquanto dor. O infi nitamente<br />
próximo é também mortiferamente poderoso.<br />
É esta a condição para fazer você<br />
gozar como sonha. Como um animal<br />
com alma. Um anjo. Demoníaco.<br />
Mas você é fl echa. Uma fl echa não comporta<br />
um se. Você é efi ciência e arte fi nal.<br />
Você é a decisão.<br />
Por isso, vá sempre para casa.<br />
Brinque com os extremos que você conhece.<br />
Perca-se em si e todo estranhamento<br />
não ultrapassará os tecidos dos<br />
seus órgãos. Distraia a dor, precisamente<br />
essa dor. As outras, viva-as plenamente,<br />
elas não arrancam você das suas próprias<br />
mãos. Dê-se também o seu próprio prazer.<br />
Quando, onde e como você quiser.<br />
Se isso não for sufi ciente para aquietar o<br />
seu desejo, escolha uma armadilha pronta<br />
como alvo. Qualquer uma; os mecanismos<br />
você adivinha só com o olhar.<br />
Depois, você poderá voltar para casa do<br />
mesmo jeito, com seu discurso pronto e<br />
na ponta da língua.<br />
Para mais do que isso, seria preciso você<br />
se perder muito além de si e sem pressa<br />
alguma de se achar.<br />
Jan/Fev 2006<br />
57
UMARIZAL<br />
Efervescência e diversidade cultural movimentam a cidade<br />
58 Jan/Fev 2006
Sérgio Vilar<br />
Fotos: Anchieta Xavier<br />
Umarizal, a 405 km de Natal, ainda<br />
é uma jovem cidade. Não tem 50 anos.<br />
Somente emancipou-se de Martins em<br />
27 de novembro de 1958. Muitos moradores,<br />
sobretudo os mais antigos, deixaram<br />
sítios e fazendas de criar e plantar<br />
das redondezas para morar na cidade,<br />
que prosperava amparada no ciclo algodoeiro.<br />
Talvez por isso, a receptividade<br />
sertaneja e pura, já escassa em alguns<br />
lugarejos, ainda resista em Umarizal. O<br />
município, que chegou à condição de<br />
terceiro em arrecadação do Estado, hoje<br />
vive em função dos empregos gerados<br />
por uma grande empresa fabricante de<br />
carrocerias. O ciclo do algodão ou a feira<br />
livre da cidade, que aglomeravam visitantes<br />
de todas as regiões são hoje apenas<br />
retratos de um passado rico.<br />
O nome de Umarizal pode ter surgido<br />
em referência à grande quantidade de<br />
árvores chamadas umarizeiras. Hoje o<br />
que se encontra em cada quarteirão da<br />
cidade são as árvores sempre-verdes. São<br />
elas que emprestam alguma sombra às<br />
ruas. Mas Umarizal já colecionou outros<br />
nomes. Antes de se constituir Vila Divinópolis,<br />
em 1938, a região tinha o nome<br />
de Gavião. O nome vem da povoação<br />
que se formou às margens do riacho homônimo.<br />
Como escreveu o escritor Ma-<br />
noel Onofre Júnior, a ocupação daquelas<br />
terras foi no início do século XVIII,<br />
quando foi concedido ao padre Manoel<br />
Pinheiro Teixeira e a <strong>Jose</strong>ph Ferreira,<br />
terras situadas entre as serras da Mãe<br />
D’Água e Catolé, às margens do riacho<br />
Umari. Parte dessas terras pertenciam ao<br />
padre João de Paiva e fi cava na nascente<br />
do riacho Gavião.<br />
Em 1902, escreveu Câmara Cascudo,<br />
no livro Nomes da Terra, o povoado de<br />
Gavião já contava com cemitério, capela<br />
e algumas casas de taipa e palha. E<br />
foi em volta do cemitério, puxada pela<br />
movimentação de uma feira livre que<br />
reunia cantadores, violeiros, folhetos de<br />
cordel, comidas típicas e artesanatos variados<br />
em cerâmica lúdica, utilitária ou<br />
decorativa, que a cidade cresceu. A capela<br />
do Sagrado Coração de Jesus, hoje<br />
igreja matriz, também foi construída em<br />
1902, por iniciativa do padre Abdon<br />
Melibeu. Mas, como tantas outras, está<br />
distante da arquitetura original. O seu<br />
oratório tem pouca semelhança com os<br />
de estilos antigos.<br />
No entanto, muito da história do município<br />
está preservada na memória de<br />
moradores ilustres, como dona Telva<br />
Menezes, de 98 anos. A irreverência em<br />
conjunto com a valentia de seu povo<br />
pode ser retratada pelos depoimentos,<br />
recordações e trejeitos de seu Felipe Gomes<br />
de Souza, de 80 anos, e suas lembranças<br />
de Lampião. O escritor Mário<br />
de Andrade, considerado o papa do Modernismo<br />
brasileiro, quando de passagem<br />
pelos interiores do Nordeste, em 1929,<br />
caracterizou os moradores do povoado<br />
de Gavião como “gente brigona, acangaceirada”.<br />
Mas a julgar pela simplicidade<br />
do empresário mais bem sucedido da<br />
região: Joaquim Suassuna Filho, 70, ou<br />
mesmo pelo silêncio das ruas nas noites<br />
de Umarizal, a verdade é outra.<br />
O estilo pacato ou a riqueza também se<br />
encontram naqueles onde a simplicidade<br />
foi oferecida como sina pelo destino.<br />
O violeiro e cantador Raimundo Praxedes<br />
é um destes. Considerado um dos<br />
nomes mais representativos da cultura<br />
popular de Umarizal, vive sem apoio<br />
ou até estímulo para espalhar sua poesia<br />
pelos recantos nordestinos, como a<br />
maioria dos poetas, cordelistas e cantadores<br />
populares.<br />
A Umarizal de ruas largas, do senador<br />
Zezito, ainda abriga outras expressões<br />
culturais. Mas, a decadência da antiga<br />
feira livre, vitrine para mostra e venda de<br />
produtos artesanais e das artes plásticas<br />
da cidade, contribui para o anonimato<br />
desses personagens. A Casa de Cultura<br />
Popular instalada no município ainda<br />
serve de espaço para algumas exposições<br />
ou apresentações de grupos como o “Relendo<br />
Araruna” e a companhia teatral<br />
“Arte & Riso”, sobretudo durante os<br />
eventos da cidade.<br />
Jan/Fev 2006<br />
59
A história do município em cordel<br />
Desde 2000, o vice-diretor da Escola Estadual 11 de Agosto, Francisco Praxedes,<br />
o professor Chiquito, 49 anos, tenta editar o livro que escreveu sobre a História de<br />
Umarizal, intitulado “A cultura nordestina chega ao terceiro milênio”. No livro, o<br />
professor resgata lembranças dos tempos da Umarizal de ontem e, embasado em<br />
pesquisas, conta a história de fundação e primeiras famílias do município.<br />
Muitas das histórias são contadas em versos de cordel. É que a convivência estreita<br />
do professor com as letras começa já na adolescência, quando produzia literatura de<br />
cordel com temas ligados à pedagogia ou sobre os fatos de Umarizal. Mas, os acontecimentos<br />
no sítio Poço Branco, em Caraúbas, também o infl uenciou. E não poderia<br />
ser diferente. “Os tempos de menino foram difíceis. Não tinha como esquecer”.<br />
O professor Chiquito chegou a Umarizal aos 15 anos. A mudança cultural, segundo<br />
ele, “travou um pouco a inspiração de um matuto vindo de sítio”. Só aos 25 anos<br />
iniciou na escrita do cordel. Foi também nessa idade que iniciou as pesquisas para o<br />
livro. “Existe uma carência de temas voltados para esse resgate da história local. E é<br />
importante deixar imortalizada e também divulgar essa história, essa cultura. É uma<br />
forma de deixar os moradores orgulhosos e conhecedores de sua história”.<br />
60 Jan/Fev 2006<br />
Pioneirismo, criatividade<br />
e trabalho<br />
A necessidade muitas vezes se faz manual<br />
de aprendizado. E no interior, ela alia-se<br />
à criatividade do sertanejo. O empresário<br />
Joaquim Suassuna Filho, cria do<br />
sítio Cajuais, no município de Riacho<br />
da Cruz e que adotou Umarizal como<br />
moradia a partir de 1978, construiu um<br />
império chamado Vicunha, a maior fabricante<br />
de carrocerias para camionetes,<br />
caminhões e carretas do Nordeste, com<br />
fi liais em Fortaleza e Natal. A empresa é<br />
a maior fonte de renda de Umarizal.<br />
Como outros moradores antigos do município,<br />
a cultura ensinada nos sítios impregnou<br />
seu Joaquim de uma simplicidade<br />
sólida. O meio de transporte de que<br />
mais se utiliza é uma bicicleta Monark,<br />
já com 42 anos de estrada. Ao lembrar<br />
os tempos difíceis, no trabalho junto à<br />
madeira cerrada ou planada por duas<br />
máquinas confeccionadas pelo próprio<br />
empresário, seu Joaquim sorri. É que ele<br />
parece viver daquele tempo. Sua casa é<br />
semelhante a muitas outras do município.<br />
Mas seus bens tomam extensos<br />
quarteirões, onde são processadas todas<br />
as etapas de fabricação das carrocerias.<br />
“Vim para Umarizal por causa da educação<br />
dos meus fi lhos. E aqui tinha a<br />
vantagem da feira, que juntava muita<br />
gente. Umarizal estava se desenvolvendo”,<br />
lembra. Joaquim trabalhou por 12
anos em Riacho da Cruz. A tal necessidade,<br />
no início, obrigou também a sua<br />
mulher, Marlene de Amorim Suassuna,<br />
65, a ajudar na produção das carrocerias.<br />
Ela fazia as pinturas, detalhadas em fi nos<br />
traços. O método foi improvisado, fruto<br />
da criatividade necessária: “Não usava<br />
pincel. Eu tirava a parte de dentro de<br />
uma seringa e deixava só a ponta. Pegava<br />
uma agulha mais grossa, cortava um pedaço<br />
e depois pegava uma lã de carneiro<br />
pra fazer um pincel na ponta da agulha.<br />
Depois, amarrava com uma linha. Ali,<br />
colocava a tinta, que ia ensopando a lã<br />
até chegar à ponta da seringa”.<br />
A tecnologia da maquinaria domina<br />
hoje os espaços dos muitos galpões de<br />
Joaquim. Em um deles, uma ofi cina<br />
para jovens da periferia foi formada. É<br />
o orgulho e o passatempo do empresário<br />
nessa altura da vida. A idéia surgiu ao<br />
ver crianças e jovens ao redor da fábrica<br />
em busca de restos de material. Por<br />
questão de espaço, são 22 alunos, selecionados<br />
por critério de idade (12 aos 17<br />
anos) e média escolar. A ofi cina já dura<br />
15 anos. Na produção dos jovens, predomina<br />
a fabricação de colméias, atividade<br />
em expansão no município. Mas há<br />
também garajaus (cestos) para proteção<br />
de plantas e cercas para jardins. Muitos<br />
alunos assumem hoje cargos gerenciais e<br />
de chefi a na empresa. Outros saíram de<br />
lá para trabalhar em outras fábricas. “Do<br />
tolhimento da madeira se faz mil e uma<br />
obras de arte”, comenta Joaquim.<br />
Barba, cabelo,<br />
bigode e poesia<br />
Antônio Márcio Sobrinho, mais conhecido<br />
como Toinho de Otília, 63 anos,<br />
mistura duas profi ssões bem distintas.<br />
No salão em que trabalha desde 1979,<br />
ele faz barba, cabelo e também poesia.<br />
Toinho chegou a Umarizal vindo do sítio<br />
Traíra, em Apodi, no mesmo ano de<br />
1979. Mas a “mania” de escrever começou<br />
há apenas dois anos, com músicas<br />
Jan/Fev 2006<br />
61
de forró e hinos evangélicos para o<br />
irmão que mora em São Paulo.<br />
Muitos clientes ainda desconhecem<br />
e até duvidam que o barbeiro, tão<br />
conhecido na cidade, deu pra poeta.<br />
Mas ele recebe com ironia a desconfi<br />
ança: “Quando dizem: ‘você sabe<br />
fazer nada, homi’. Aí eu mostro o<br />
discurso da missa de primeiro ano de<br />
morte do sanfoneiro Chico de Kival.<br />
Aí o povo se admira”.<br />
Francisco de Assis dos Santos, o Chico<br />
de Kival (1965-2004), foi assassinado<br />
aos 38 anos. Era natural de<br />
Umarizal. O sanfoneiro chegou a tocar<br />
nas bandas de forró Saia Rodada,<br />
Linder Som e Cheiro de Menina. Era<br />
nome expoente na Zona Oeste. Em<br />
16 estrofes, Toinho prestou homenagem<br />
ao seu primo. Alguns trechos:<br />
“Os passarinhos acordaram/ Ali ao<br />
romper da Aurora/ Em vez de cantar<br />
choraram/ Aquela triste sonora/<br />
Dizendo um pro outro/ Nosso artista<br />
foi embora. Chorou toda região/<br />
Inclusive Umarizal/ Toda família<br />
sentiu/ Aquele golpe fatal/ E a notícia<br />
se espalhando/ Morreu Chico de<br />
Kival”.<br />
E completa o barbeiro poeta: “Poesia,<br />
música, não depende do saber. As escolas<br />
até aperfeiçoam, mas se o cara<br />
não nascer pra aquilo, acabou-se”.<br />
62 Jan/Fev 2006<br />
O homem que conheceu Lampião<br />
Felipe Gomes de Souza, 80, nasceu de sete meses. Mas nem precisava dizer. Apesar da<br />
idade, o pernambucano, nascido no município de Floresta, é ativo como um jovem,<br />
e espirituoso como os bons sertanejos de antigamente. Além de ter morado em várias<br />
cidades brasileiras, “por não conseguir parar em nenhuma”, seu Felipe guarda outra<br />
peculiaridade: em sua morada de infância, na Fazenda Betânia, entre os 4 e 5 anos de<br />
idade, em Pernambuco, o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, aparecia<br />
com freqüência.<br />
O cangaceiro era tão íntimo da casa que apadrinhou dois irmãos de seu Felipe. “Lampião<br />
foi criado junto com meu pai”, recorda. Segundo suas lembranças, o cangaceiro<br />
era homem moreno, magro e simpático. Lampião passava até três dias na Fazenda.<br />
“Polícia num ia lá porque tinha medo”. Para a criançada da Fazenda, a presença daquele<br />
cangaceiro de bandoleira carregada de ouro entre uma ponta e outra, as vestimentas<br />
requintadas e brilhantes, embora tipicamente nordestinas, aguçavam o imaginário da<br />
molecada. “Todos nós queríamos ser iguais a ele”, conta.<br />
Outra recordação da presença do cangaceiro e seu bando na Fazenda também perdurou<br />
na memória de seu Felipe: “Maria Bonita foi a mulher mais bonita que eu
já vi. E era valente também. Ela seguiu<br />
Lampião porque o marido lhe deu uma<br />
surra. E ela num era mulher de aceitar<br />
surra de marido”, disse seu Felipe, meio<br />
encabulado ao elogiar a beleza de Maria<br />
Bonita ao lado de sua mulher, Raimunda<br />
Gomes de Souza, Passados 25 anos do<br />
casório, seu Felipe ainda lembra detalhes<br />
dos primeiros contatos, motivo pelo qual<br />
fi ncou morada no município.<br />
“Assim que cheguei em Umarizal, na<br />
casa de meu primo, ela estava lá e logo<br />
me ofereceu água. Depois, foi a primeira<br />
a me oferecer queijo. Aí pensei: Essa<br />
mulher tá me perseguindo”. Seu Felipe<br />
foi embora de Umarizal, mas sentenciou<br />
para dona Raimunda: “Eu volto aqui pra<br />
te buscar”. Voltou e fi cou. E apesar de<br />
ter morado em São Paulo por 27 anos,<br />
onde trabalhou de pedreiro “pra ganhar<br />
o sufi ciente pra fi car dois meses sem<br />
trabalhar”, seu Felipe percorreu vários<br />
municípios Brasil afora. E deixou marcas<br />
em muitos: “Deixei nove mulheres<br />
com aliança, mas só casei mesmo com<br />
Raimunda”, orgulha-se.<br />
O casamento foi acertado através de<br />
carta escrita de São Paulo pelo escritor<br />
François Silvestre. Sem saber ler e escrever,<br />
seu Felipe pediu ao amigo para manter<br />
contato com a noiva, em Umarizal.<br />
Quando retornou a Umarizal para casar,<br />
não lembrava as feições da noiva e pediu<br />
a uma conhecida para apontá-la, porque<br />
temia confundi-la com a irmã.<br />
Quadrinhos com sotaque nordestino<br />
As histórias dos super-heróis em quadrinhos<br />
ou da turma de Maurício de Sousa<br />
foram leituras quase obrigatórias para as<br />
crianças, sobretudo dos anos 80. Mas,<br />
para Rodrigo Fernandes, 26 anos, elas<br />
se mostraram caminho para a futura<br />
profi ssão de arte-fi nalista. Nascido em<br />
Umarizal, Rodrigo costumava desenhar<br />
por hobby já em tenra idade. Ao perceber<br />
um talento peculiar, começou a<br />
estudar arte seqüencial. Ele se julga um<br />
batalhador neste campo da arte. E não é<br />
para menos: Rodrigo precisa retirar do<br />
próprio bolso os custos para a publicação<br />
bimestral dos fanzines produzidos.<br />
O mercado de HQ’s em Umarizal ou<br />
nos interiores do Estado é praticamente<br />
nulo. Por isso, já aos 17 anos Rodrigo<br />
veio para Natal estudar e se profi ssionalizar.<br />
Passou quatro anos. Trabalhou<br />
nos estúdios Reverbo, de estórias em<br />
quadrinhos, e desenhando a arte-fi nal<br />
da revista Brado Retumbante, com personagens<br />
de super-heróis locais. Uma<br />
cooperativa de artistas do gênero era responsável<br />
pela publicação da revista. Os<br />
cooperativados se reuniam na <strong>Fundação</strong><br />
Capitania das Artes para discutir projetos<br />
e roteiros das estórias. Mas o campo<br />
de HQ’s, mesmo na capital, também é<br />
difícil. “Não tem mercado. A cultura<br />
local não favorece. Não fosse o lance da<br />
paixão pura já teria desistido”.<br />
Em 2004, Rodrigo voltou a Natal para<br />
ensinar desenho artístico no ateliê de<br />
Ricardo Tinoco. Mas os planos do artista<br />
em produzir revistas e fanzines não<br />
avançavam. Voltou para Umarizal no<br />
ano seguinte. E desde então tem feito a<br />
arte seqüencial dos personagens do roteirista<br />
Francinildo Senna, como o herói<br />
chamado de Crânio. A tiragem é de 800<br />
exemplares e já possui mercado em Belo<br />
Horizonte e Rio de Janeiro. Mas o sonho<br />
mesmo de Rodrigo é ver seu personagem,<br />
o Bispo, estampado nos fanzines.<br />
A originalidade do personagem está no<br />
ambiente em que vive: uma Natal escu-<br />
Jan/Fev 2006<br />
63
a, nas madrugadas sombrias e violentas<br />
da cidade grande. Na próxima edição do<br />
fanzine, a ser publicado este mês, o Crânio<br />
dividirá atenções com o Bispo. Ambos<br />
serão protagonistas do roteiro.<br />
O Bispo foi inspirado no famoso herói<br />
de Gotham City, Batman. Mas tem lá<br />
um quê de Lampião também. Sem superpoderes<br />
ou maiores incrementos vi-<br />
A nostalgia de um velho agricultor<br />
Raimundo Galdino, 80 anos, é personagem<br />
cotidiano no centro de Umarizal.<br />
Todos os dias ele anda “uma légua”, do<br />
sítio Caiçara onde mora desde que nasceu,<br />
ainda nos limites do município,<br />
até as praças da cidade. No momento<br />
da reportagem, Galdino estava sentado<br />
em um costado de uma churrascaria. A<br />
expressão sonolenta e tranqüila, de observador<br />
passivo, denotava um homem<br />
de histórias guardadas.<br />
Raimundo é dos poucos umarizalenses<br />
ainda moradores de sítio. Muitos apontam<br />
a praga do bicudo e a conseqüente<br />
falência da prática algodoeira como motivo<br />
maior do êxodo para a cidade. No<br />
censo de 1991, as pesquisas mostravam<br />
533 casas na Zona Rural já sem condições<br />
de moradia. O abandono ocasionou<br />
também a falência de uma minindústria<br />
de castanha, mesmo com o produto ainda<br />
em abundância na região.<br />
64 Jan/Fev 2006<br />
suais, o Bispo é um vigilante revoltado<br />
pelo assassinato brutal de sua família. Ele<br />
vive pelas ruas, vigiando as madrugadas<br />
natalenses. “O Bispo não tem dinheiro<br />
como o Batman pra comprar automóveis<br />
ou armas. Ele combate na raça mesmo”.<br />
E nesse caso, criador e criatura se misturam<br />
em uma mesma intenção: vencer as<br />
batalhas na raça e na força de vontade.<br />
As lembranças de Galdino remetem a<br />
uma Umarizal próspera. Agricultor aposentado,<br />
ele lembra ainda do auge do<br />
cultivo do algodão e das famílias ricas do<br />
município. “O algodão acabou por causa<br />
do bicudo, que derrubou tudo, até as<br />
usinas. Em 1985 eu plantei algodão na<br />
propriedade dos Germanos. Em 1 ano<br />
colhi 14 mil quilos de algodão em 10<br />
hectares de terra. Mas o bicudo atrapalhou<br />
tudo”, recorda.<br />
Casado há 53 anos, o agricultor de 14<br />
fi lhos, “todos espalhados mundo afora”,<br />
28 netos e 4 tataranetos não cansa de comentar<br />
as lembranças de outrora: “Trabalhei<br />
em 22 propriedades em Umarizal.<br />
Botei muita renda nessas famílias”,<br />
orgulha-se. Embora continue no campo,<br />
onde passou boa parte da vida, Galdino<br />
é saudosista também da feira livre do<br />
município. “Antigamente as feiras iam<br />
até de noite. Hoje, depois das 14 horas,<br />
o povo vai embora”, reclama o agricultor<br />
de trajes e trejeitos rurais.
“O sertão é tudo”, diz o trovador<br />
Raimundo Praxedes, 51 anos, é um daqueles artistas<br />
que mais parecem uma metáfora perfeita da poesia<br />
popular. Um sertão de pedras e pedregulhos, de horizontes<br />
extensos e cinzas, a dividir paisagem com o<br />
céu limpíssimo, habitam a cabeça do cantador. “O sertão<br />
é tudo”, afi rma, como se nem precisasse adivinhar<br />
que cada um carrega mesmo um sertão dentro de si.<br />
E quando sentencia a universalidade do sertão, Rai-<br />
O hobby que virou profi ssão<br />
Os trabalhos com cera e grafi te são o forte do artista plástico Macson Antônio, 30<br />
anos. A perfeição dos traços e formas de seus quadros e telas impressionam. E tudo<br />
o artista aprendeu na prática. As fi sionomias e as paisagens predominam na obra de<br />
Macson. Como muitos artistas que lidam com desenhos, ele iniciou no mundo da<br />
arte como hobby.<br />
Aos 8 anos Macson já desenhava seus primeiros rabiscos. Segundo ele, a facilidade<br />
no manuseio com os lápis e pincéis logo chamaram atenção de todos. A profi ssionalização<br />
veio em seguida, assim como a desvalorização de seu trabalho devido à falta<br />
de apoio do poder público para os artistas locais.<br />
“Sinceramente, me sinto desestimulado. Já pensei em desistir”, comenta. Macson já<br />
expôs seu trabalho na Zona Oeste e ainda tem recebido algumas encomendas. “Mas<br />
é pouco. Desse jeito não dá para viver só da arte”.<br />
mundo Praxedes confi rma que ninguém melhor que o cantador pode<br />
sentir a variedade de cenários do cotidiano sertanejo.<br />
A voz aguda de repentista confunde-se em afi nação e harmonia com<br />
sua viola desgastada pelo tempo, já com dez anos de estradas nordestinas.<br />
Parecem cantar juntos. É ela quem acompanha as sextilhas do<br />
poeta, que também passeia pelos campos do galope beira-mar ou do<br />
martelo agalopado. Em suas canções e improvisações, Praxedes traz<br />
dos sertões para as cidades o retrato da natureza e do rigor que castiga<br />
peles e mentes. E que também alimenta costumes e cultura.<br />
“O caboré, um pássaro noturno e vigilante/ Quando é de meia-noite<br />
em diante/ Ele voa pra um morro de um sopé/ Dali passa a noite e<br />
num dá fé/ Que ele olha com muita ligeireza/ Uma muralha de pedra<br />
é sua empresa/ Ele olha e vê todo o movimento/ Discursa montado em<br />
rolamento/ O quanto é grande o poder da natureza”, canta Praxedes,<br />
em som misturado ao da viola, do cacarejo da galinha e do silêncio<br />
audível e místico do sertão em volta.<br />
A morada do cantador é simples. Fica no bairro Mutirão, quase zona<br />
rural de Umarizal. O município ainda chamava-se Vila do Gavião<br />
Jan/Fev 2006<br />
65
quando Praxedes nasceu nessa casa de chãos de terra batida.<br />
Ali, ele planta e colhe, cria algum gado, porcos e galinhas.<br />
“Viver só da viola não dá”, lamenta, já acostumado e sabedor<br />
da sina dos poetas populares. Apenas enquanto viveu<br />
na região do Seridó, na década de 80, Praxedes conseguiu<br />
“viver da viola”.<br />
O início na cantoria foi em 1978. O poeta e cordelista mossoroense,<br />
Luiz Campos foi seu primeiro incentivador. Logo,<br />
Praxedes trocaria Umarizal por Caicó, onde viveu cinco anos<br />
“Relendo Araruna”: respeito à tradição<br />
O grupo de danças Araruna é um dos representantes da cultura potiguar. O pessoal<br />
de Umarizal foi buscar inspiração nele para criar o grupo “Relendo Araruna”. A Sociedade<br />
Araruna de Danças Antigas e Semidesaparecidas, que tem à frente o mestre<br />
Cornélio Campina (enfocado em reportagem publicada na PREÁ nº 6 ), foi criada<br />
em 1956.<br />
O grupo “Relendo Araruna”, como o próprio nome confi rma, é uma conseqüência<br />
do Araruna de Natal. A formação do grupo, com 20 integrantes, se deu na 1ª<br />
66 Jan/Fev 2006<br />
e participou de vários programas de rádio. Acabaram com as cantorias<br />
nas rádios, que davam alguma notoriedade aos cantadores.<br />
Os desafi os dos repentistas, antes vistos em praças públicas de<br />
forma costumeira, parece se esvair.<br />
Os CDs independentes, gravados e copiados facilmente a preços<br />
baixos são hoje a mídia dos repentistas do interior. Ainda assim, Praxedes<br />
lamenta: “Até tenho um trabalho gravado, mas falta dinheiro<br />
para copiar”. E dessa forma o poeta segue seu ritmo de vida, vencendo<br />
obstáculos no improviso das necessidades e dos repentes.<br />
Mostra de Cultura Popular na Educação,<br />
promovida pelo Governo do Estado, em<br />
novembro de 2003. A mostra reuniu milhares<br />
de estudantes do ensino médio de<br />
escolas públicas vindos de 50 municípios<br />
do Estado.<br />
Nessa mostra cultural, cada cidade do<br />
RN era representada por um folguedo.<br />
O xaxado, caboclinho, pastoril, malhação<br />
do judas e fandango foram algumas<br />
danças apresentadas. Foi nesse evento<br />
onde os integrantes do “Relendo Araruna”<br />
conseguiram os fi gurinos de casacas<br />
e cartolas, e os longos vestidos de saias<br />
rodadas em preto e branco, a denotar<br />
um estilo aristocrático, infl uente na<br />
origem da Araruna. O aprendizado dos<br />
alunos para a Mostra ocorreu por meio<br />
de um vídeo onde coreografi as da dança<br />
eram praticadas. A professora de artes<br />
Maria da Paz foi quem conseguiu a fi ta<br />
e orientou os alunos. A partir daí, outras<br />
coreografi as foram montadas, sempre<br />
em respeito às normas da dança.
Arte & Riso faz a hora<br />
Em dezembro de 2001, as comemorações<br />
do natal promovidas pela fábrica de<br />
carrocerias Vicunha, de Umarizal, mudariam<br />
a vida de quatro jovens. Para animar<br />
as muitas crianças presentes, fi lhos de<br />
funcionários da empresa, a secretária da<br />
Vicunha procurou o estudante Emanuel<br />
Alves, 18 anos. Ela já conhecia o trabalho<br />
teatral de Emanuel na escola e achou<br />
que, se reunisse outros estudantes ligados<br />
a grupos teatrais, o improviso poderia<br />
dar sucesso. Estava criado ali o embrião<br />
para a “Cia. de Teatro Arte & Riso”.<br />
Os estudantes Jardel Amorim, Francisco<br />
Dias e José Neto foram os outros a<br />
entrarem no grupo para aquela primeira<br />
apresentação. Em princípio ela seria<br />
única, apenas para aquele natal. As rou-<br />
pas foram confeccionadas pela<br />
empresa e emprestadas aos atores<br />
amadores. O show surpreendeu<br />
as crianças e o público em geral.<br />
Como pagamento, os jovens<br />
atores preferiram o fi gurino, até<br />
então emprestado pela empresa.<br />
A partir dali, a empresa apoiou<br />
o grupo em apresentações pela<br />
Zona Oeste e até em Natal e Fortaleza.<br />
Hoje, a companhia conta com<br />
oito integrantes. O teatro de rua<br />
está presente no repertório do<br />
grupo, mas é mesmo a arte circense<br />
que predomina nos espetáculos.<br />
Imitações de personagens da<br />
cidade ou históricos, o malabares<br />
tradicional, entre outras peças são<br />
apresentadas pelo Arte & Riso.<br />
Os líderes do futuro<br />
O grupo de teatro<br />
amador Umaricatu<br />
ensaia suas apresentações<br />
baseado em<br />
roteiros enviados pela<br />
Internet. Os textos<br />
são do professor cearense<br />
Arnaldo Lima,<br />
responsável pela iniciação<br />
dos 25 componentes<br />
do grupo.<br />
Com apenas sete meses<br />
de atuação, o Umaricatu já participou de<br />
projetos de cultura pelo Estado, como o “Leitura<br />
de Texto”, de Racine Santos, e várias apresentações<br />
locais. O novo espetáculo chama-se<br />
“Hoje a banda não sai”, do cearense Severino<br />
Tavares.<br />
O nome Umaricatu é uma junção do nome da<br />
cidade com a palavra caricatura. Os componentes<br />
têm faixa etária entre 12 e 21 anos. O<br />
grupo é vinculado à sociedade maçônica, responsável<br />
por outros projetos sociais em Umarizal.<br />
Segundo o médico e maçom Roberto Alencar,<br />
33 anos, a idéia de patrocinar a atividade<br />
dos jovens é a da preparação social de líderes<br />
comunitários. “Queremos formá-los não só na<br />
arte, mas também pessoalmente, para que produzam<br />
obras sociais”, afi rmou.<br />
Jan/Fev 2006<br />
67
Artesanato: distração e renda<br />
O melhor meio que Aline Maria dos<br />
Santos, 25 anos, arranjou para se distrair<br />
em Umarizal foi produzir arranjos<br />
fl orais em meia de seda. Ela aproveitou<br />
um curso de artes oferecido em escola de<br />
Sumaré, São Paulo, onde morou e desde<br />
então tem produzido peças variadas e<br />
pequeninas, em sua maioria. O produto<br />
encontra boa aceitação em feiras e exposições<br />
de artesanato, afi rma. Mas o motivo<br />
maior da venda, ressalta, é evidenciar<br />
o trabalho produzido.<br />
“Muita gente produz, mas guarda sua<br />
obra em casa ou tem preguiça de expor<br />
nas feiras. Cansei de colocar minhas peças<br />
à venda e ninguém comprar. Mas sei<br />
68 Jan/Fev 2006<br />
que elas foram vistas. Tem que ter iniciativa.<br />
Pretendo reservar o espaço da Casa<br />
de Cultura por uma semana para mostrar<br />
meu trabalho. É assim que se começa”,<br />
aconselha. Aline hoje se orgulha em ter<br />
seu trabalho comprado para ser revendido.<br />
“Os cursos incentivam a população<br />
a produzir arte. Mas vejo também que<br />
quando oferecem cursos por aqui, pouca<br />
gente freqüenta. É uma pena”.<br />
Alexandra Maria dos Santos, 28 anos, foi<br />
das poucas umarizalenses a participar do<br />
curso ministrado na cidade, em agosto<br />
de 2005, pela Estima Artesanato, de Recife.<br />
Hoje, ela produz um trabalho original<br />
no município, com artesanatos em<br />
fl ores e coroas de cetim, trabalhos com<br />
gesso e enfeites em miniatura. Como<br />
Aline, a artesã também procura vender<br />
seu produto em municípios vizinhos ou<br />
mesmo de porta em porta, procurando<br />
mostrar um pouco do artesanato e da<br />
força de vontade de Umarizal.
Os azulejos coloridos<br />
de Zenaide<br />
Depois que Maria Zenaide de Souza, 30<br />
anos, viu na televisão como pintar paisagens<br />
e desenhos variados em azulejos,<br />
decidiu dividir sua profi ssão de fotógrafa<br />
com a nova paixão artística. Com apenas<br />
um ano nessa atividade, ela já adquiriu<br />
agilidade na pintura. E se os muitos detalhes<br />
e a qualidade do trabalho impressionam,<br />
o tempo para completar o desenho<br />
também. Em apenas três minutos<br />
ela começa e dá os últimos retoques no<br />
azulejo.<br />
O material usado é a tinta acrílica, comprada<br />
por encomenda na Internet. O<br />
“grosso” do desenho ela faz com os dedos.<br />
Para os detalhes minuciosos da pintura,<br />
a artista usa palitos e algodão. Zenaide<br />
precisa viajar a Mossoró para comprar<br />
caixas de azulejos. Apesar do esforço da<br />
produção, ela afi rma que acumula seus<br />
trabalhos em casa por falta de mercado.<br />
E lamenta só conseguir expor seu trabalho<br />
em escolas ou na Casa de Cultura de<br />
Umarizal. “Mesmo assim continuo pintando<br />
pra passar o tempo”.<br />
Dona Aurélia luta para<br />
manter quadrilha<br />
Independente das discussões sobre a legitimidade da quadrilha<br />
estilizada como forma de manifestação da cultura<br />
popular, dona Aurélia Alencar, de 59 anos, segue sua labuta<br />
para perpetuar a quadrilha junina de Umarizal por<br />
longos anos. O fi gurino colorido – que lembra o folclore<br />
dos pampas gaúchos – dos 54 componentes é alugado.<br />
A maioria dos integrantes, afi rma dona Aurélia, são pessoas<br />
humildes que precisam esperar apoio da iniciativa<br />
privada ou do poder público para bancar apresentações<br />
Jan/Fev 2006<br />
69
e viagens que o grupo faz para competir<br />
em municípios vizinhos.<br />
Em 2005 conseguiram recursos apenas<br />
para duas viagens. O dinheiro veio de<br />
bingos e eventos. Foi o menor número<br />
desde que começaram há seis anos.<br />
Nunca chegaram a vencer competições.<br />
“Com essa situação fi nanceira não dá. O<br />
apoio tem diminuído”, reclama Aurélia.<br />
Mas os membros da quadrilha são vitoriosos<br />
mesmo assim. Já conseguiram se<br />
apresentar em quase toda a Zona Oeste.<br />
E dona Aurélia, proprietária de uma<br />
pousada em Umarizal, faz parte de forma<br />
intensa nessa história.<br />
70 Jan/Fev 2006<br />
No início as quadrilhas eram matutas (ou<br />
caipiras). Foram criadas quando as comemorações<br />
do São João eram espalhadas<br />
em cada bairro da cidade. Pequenas<br />
quadrilhas improvisadas eram formadas<br />
e por ali festejavam o mês junino. Dona<br />
Aurélia afi rma sempre gostar de festas,<br />
ou “fi lotê”, como chamam em Umarizal.<br />
Ela está sempre envolvida nas organizações<br />
de eventos na cidade. Após dois<br />
anos da iniciativa do ex-prefeito Manoel<br />
Paulo Cavalcanti em criar o São João dos<br />
bairros, dona Aurélia vislumbrou uma<br />
idéia para facilitar o investimento e a organização<br />
do São João em Umarizal.<br />
Um roqueiro cordelista<br />
As cirandas de cordel e o rock progressivo<br />
caminham em estradas opostas, ou pelo<br />
menos distantes. O umarizalense Joelson<br />
de Souto, de 22 anos, quer provocar essa<br />
mistura e produzir um trabalho original<br />
e de qualidade. Ele é hoje acadêmico da<br />
Faculdade de Letras e Artes, estuda literatura,<br />
leciona gramática e redação em<br />
escolas e cursinhos de Mossoró, além de<br />
guitarrista das bandas Cumade Cristina,<br />
Audiobuzz, Projeto Blues e Graciele de<br />
Lima. A mistura dessas atividades que<br />
realiza em Mossoró ainda é um projeto<br />
de vida de Joelson.<br />
Após reunião com representantes dos<br />
bairros, fi cou decidido que o São João<br />
da cidade passaria a ser festejado todo ele<br />
na quadra municipal de esportes, e não<br />
mais de forma fragmentada em bairros.<br />
O resultado foi imediato. Já no primeiro<br />
ano, uma quadrilha estilizada pôde<br />
ser organizada. As coreografi as – uma<br />
das características que diferenciam a<br />
quadrilha tradicional da estilizada – são<br />
elaboradas por coreógrafo de Riacho da<br />
Cruz. Dona Aurélia e seu marido, José<br />
Mário de Morais viraram padrinhos da<br />
quadrilha, com toda satisfação: “Nosso<br />
maior orgulho é ver o desenvolvimento<br />
desses meninos e meninas durante esses<br />
seis anos de trabalho”, afi rma Aurélia.<br />
Desde 1999, quando partiu para Mossoró,<br />
Joelson procura se estabilizar nas<br />
profi ssões de professor e músico. “Para<br />
sobreviver em Umarizal só se for comerciante<br />
ou funcionário público”, comenta.<br />
A batalha na capital do Alto Oeste começou<br />
desde que chegou. Trabalhou como<br />
jardineiro e engraxate. Mas a leitura e as<br />
pesquisas sobre Língua Portuguesa continuavam<br />
como dedicação paralela. Por<br />
falta de tempo Joelson nunca procurou<br />
publicar seus cordéis. Em breve, ele pretende<br />
trabalhar em um projeto autoral<br />
com seus poemas, sejam eles musicados<br />
ou recitados.
A bordadeira de 98 anos<br />
Etelvina Menezes tem 98 anos. Confecciona cobertas, varandas de<br />
rede, detalhes em retalhos, renda de almofadas ou o que a imaginação<br />
e o tempo lhe permitirem. Faz crochê também. “Faço e vendo”,<br />
ressalta. dona Telva, ou Telvinha, é como os umarizalenses a conhecem.<br />
Ela, na verdade, é quem os conhece. A idade, a memória e,<br />
sobretudo, a lucidez de “dona Telva”, atestam o fato.<br />
Ela nasceu em 1908. Seus avós e bisavós também eram umarizalenses,<br />
os primeiros moradores da região. Dona Telva escava da parede<br />
da memória as lembranças da Umarizal de ontem, no início do século<br />
passado: “Só havia quatro ou cinco famílias: a de seu Porcino,<br />
de Joaquim Pinto e seu Manoel Alves. O velho Delmiro morava só,<br />
numa casa aqui perto. E tinha o velho Pachico, meu avô. O nome<br />
dele era José Francisco. A igreja era uma capelinha ainda. O centro<br />
da cidade fi cava ao redor dela e do cemitério. Tinha também<br />
um barracão, onde se fazia feira. O açougue era no<br />
meio do mato. Era só isso que tinha”.<br />
A longevidade de dona Telva parece ser herança de família.<br />
Seu pai morreu com “80 e bote força”, como disse.<br />
Dos cinco irmãos, dois morreram com mais de 90 anos.<br />
Sua irmã Nonata tem 95 anos. As outras duas, 90 e 84<br />
anos. O segredo para a idade longa, dona Telva explica e<br />
aconselha: “Fomos criados comendo, mas comendo bem<br />
muito pra encher a barriga. Agora, nunca nosso pai comprou<br />
quilo de carne de criação pra botar no forno. Só se<br />
comprava um quarto de bode, ou matava três guinés pra<br />
botar como almoço. Mas a gente trabalhava na roça. O<br />
trabalho também é importante. Nunca fomos à escola.<br />
Mas também não tinha escola naquele tempo”.<br />
São dos expedientes “sofridos e alegres” na roça que dona<br />
Telva tem as melhores lembranças. A colheita do feijão e<br />
algodão; as covas para plantação, as faxinas com a enxada<br />
construíram épocas difíceis que escapolem das nostalgias<br />
do “tempo bom” de dona Telva. As noitadas na roça sim,<br />
abrem sorrisos e saudosismos. As lembranças de dona<br />
Telva remetem aos costumes de vida brejeira, sertaneja,<br />
à vida na ainda Vila Divinópolis, ou mesmo na região do<br />
Gavião, primeiros nomes de Umarizal.<br />
“Eram quatro famílias de irmandade morando em volta<br />
do roçado. Quando era de noite se ajuntavam todos. Nem<br />
passava gente nem bicho, porque era tudo cercado. Certa<br />
vez, fi zemos um fogo do lado de fora. Botamos uma panela.<br />
Aí fomos apanhar feijão maduro pra cozinhar. Ganhamos<br />
o roçado e não acertamos voltar. Mamãe sentiu<br />
falta pelo silêncio. Ela foi ao terreiro e viu uma lamparina,<br />
que era no gás. Estávamos num pé podado que tinha no<br />
terreiro da cozinha, com três carreiras de algodão. Mamãe<br />
nos achou ali. Depois do carão, botamos o feijão pra cozinhar.<br />
Era tudo de bom. Nós passamos muita vida boa e<br />
muita vida ruim ali”, disse a senhora matriarca dos quatro<br />
netos e quatro tataranetos.<br />
Jan/Fev 2006<br />
71
Engenhoca de som em miniatura<br />
Um cabo de bicicleta, um compensado,<br />
latas de refrigerante, dobradiças de plástico,<br />
zinco, massa e está feita uma réplica<br />
de carro de som com potência de 160<br />
wats. A engenhoca, que costuma aglomerar<br />
dezenas de pessoas, quando ligado,<br />
foi idéia dos estudantes Misael Amorim,<br />
16 anos, e Alexandro de Oliveira,<br />
19 anos. Tudo começou com cortes de<br />
72 Jan/Fev 2006<br />
papelão no formato do automóvel. Aos poucos<br />
os equipamentos eletrônicos foram sendo<br />
adaptados, montados e colados. “Aprendemos<br />
mexendo mesmo”, revela Misael. Os estudantes<br />
já montaram três miniaturas de carro de<br />
som. Um dos exemplares foi vendido para<br />
uma equipadora. “Vamos levar isso pra frente<br />
e tentar ganhar algum dinheiro com a idéia”,<br />
prevê o estudante.
IRACEMA MACEDOA poesia como intensifi<br />
Por Tácito Costa e Carmen Vasconcelos<br />
Fotos: Anchieta Xavier<br />
cação da vida<br />
A poeta potiguar Iracema Macedo reside há quatro anos em Ouro Preto-MG. Doutora em Filosofi<br />
a, dá aulas na UFMG, em Belo Horizonte. Na década de 90, participou das coletâneas de poesia Vale<br />
Feliz (1991), Gravuras (1995) e Ceia das cinzas (1998), em parceria com os poetas Elí Celso e André<br />
Vesne, antes de estrear carreira solo com Lance de dardos (2000). Em 2004 lançou Invenção de Eurídice.<br />
É autora das obras acadêmicas Idealismo e Amor fati na estética de Nietzsche e Nietzsche, Wagner e a<br />
época trágica dos gregos. Considerada uma das mais importantes poetas do Estado, ganhou os prêmios<br />
Othoniel Menezes, Myriam Coeli e Auta de Souza. Em dezembro último, como faz todos os anos,<br />
ela esteve em Natal, de férias. Em entrevista à Preá, que contou com a participação especial da poeta<br />
Carmen Vasconcelos, Iracema falou sobre sua formação poética; sobre a poesia feita no Rio Grande<br />
do Norte; a relação entre fi losofi a e poesia; entre linguagem e poesia; inspiração e técnica; enalteceu a<br />
poesia feita por mulheres norte-rio-grandenses (“Foi um acaso muito feliz que tivessem nascido aqui<br />
tantas mulheres especiais”) e diz que sua poesia celebra a estetização da existência. “Tento apresentar<br />
uma estetização da existência, na dor, na alegria, na intensidade, no amor, no desamor, enfi m, em todas<br />
as suas instâncias”.<br />
Jan/Fev 2006<br />
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Preá – Quando e como a poesia entrou<br />
na sua vida?<br />
Iracema Macedo – A poesia entrou na<br />
minha vida através dos cadernos poéticos<br />
que minha mãe fazia na adolescência, na<br />
juventude. Ela copiava sonetos de revistas<br />
e jornais. Quando eu tinha uns doze<br />
anos, tive acesso a esses cadernos. Foi basicamente<br />
com os sonetos copiados com<br />
a letra da minha mãe, que eu comecei a<br />
ter contato com a poesia. A minha lembrança<br />
é de ter feito meus dois primeiros<br />
poemas, em forma de sonetos – mas não<br />
sonetos bem feitos –, nessa época.<br />
Preá – A sua casa tinha livros de<br />
poesia?<br />
Iracema Macedo – Não. Tinha esse<br />
caderno, que foi fundamental, que me<br />
deu uma certa idéia do que era escrever<br />
um poema. Por outro lado, havia muitos<br />
livros de fi losofi a em casa, porque meu<br />
pai foi seminarista e estudou Filosofi a.<br />
Preá – Quando você tomou a decisão<br />
de se tornar poeta?<br />
Iracema Macedo – Com certeza não<br />
houve decisão, foi um acontecimento<br />
inevitável.<br />
74 Jan/Fev 2006<br />
Preá – Em 1992, você com 22 anos de<br />
idade, ganhou dois dos principais prêmios<br />
de poesia de Natal (Myriam Coeli<br />
e Othoniel Menezes). Isso teve alguma<br />
importância na sua vida?<br />
Iracema Macedo – Muita. Foi um<br />
sentimento de reconhecimento, de saber<br />
que estava seguindo o caminho certo,<br />
de que tinha alguma coisa a dizer. Sem<br />
dúvida, esses prêmios nessa época foram<br />
um “batismo”, não um “batismo” social,<br />
mas pessoal, para que eu sentisse mesmo<br />
que era a isso que eu deveria me dedicar<br />
com toda força.<br />
Preá – Naquela época você estava ligada<br />
a algum grupo ou pessoas que faziam<br />
poesia?<br />
Iracema Macedo – Era ligada ao Elí<br />
Celso, ao André Vesne, que tinha sido<br />
meu namorado quando fazíamos o curso<br />
de Filosofi a, e ao Boaventura Júnior.<br />
Nós lançamos em 1991 “Vale feliz”, nesse<br />
movimento coletivo de quatro poetas.<br />
Foi um livro totalmente artesanal, a gente<br />
garimpou o papel, pedimos nas livrarias,<br />
e fi zemos o livro em cópias xerox, com<br />
apoio de alguns setores da universidade.<br />
Lançamos esse livro com esse apoio meio<br />
irreverente, contando também com a<br />
nossa irreverência à época.<br />
Preá – Como você defi niria a poesia, segundo<br />
a poesia que você mesma faz?<br />
Iracema Macedo – É muito difícil<br />
defi nir poesia. Nesse sentido eu vou pedir<br />
o apoio do meu fi lósofo predileto,<br />
Nietzsche, para quem a arte é a intensifi<br />
cação da vida. Então, se eu tivesse que<br />
dizer alguma coisa sobre poesia, sem<br />
dúvida diria que ela é intensifi cação da<br />
vida, no que ela tem de mais lindo e de<br />
mais terrível.<br />
Preá – O poema é uma construção lingüística<br />
pura? E pensando assim, o poema<br />
como uma construção de linguagem,<br />
que tipo de sensação uma palavra produziria<br />
no poeta? Uma palavra sozinha tece<br />
um poema?<br />
Iracema Macedo – Muitas vezes uma<br />
simples palavra, num momento de leitura<br />
ou de lembrança, é a célula que vai gerar<br />
o poema. Portanto, para mim, aquela<br />
palavra guarda um poema inteiro. Isso<br />
eu não tenho dúvida, não só uma palavra,<br />
mas também uma imagem, como<br />
por exemplo, o poema “Canção de amor<br />
para uma moça judia”, que foi gerado<br />
pelo retrato da Rosinha Palatnik, no cemitério<br />
do Alecrim. Apenas um retrato<br />
foi sufi ciente para me mover intensamente,<br />
fazendo com que eu criasse aque-
le poema. Mas há também poemas feitos<br />
a partir de sonhos, pesadelos. Poderia<br />
citar uma palavra, “Carmen”, que resultou<br />
num poema, uma palavra que vem<br />
carregada de todo um signifi cado, por<br />
ser uma cigana, além do bem e do mal.<br />
Essa palavra, por exemplo, me gerou um<br />
poema, chamado “Rito de Carmem”.<br />
No título coloquei o nome de Carmen<br />
com “m” para dar a idéia de uma mulher<br />
mais real e diferenciá-la um pouco<br />
da cigana de Prosper Mérimée. Mas às<br />
vezes algumas palavras também precisam<br />
ser exiladas do poema. Isso faz parte do<br />
meu processo criativo. Tem o título de<br />
um poema, em “Invenção de Eurídice”,<br />
“Anúncio de Antiquário”, inspirado na<br />
visão que eu tenho quando saio de casa<br />
em Ouro Preto, a uns quinhentos metros<br />
de onde moro tem essa loja de Antiguidades<br />
da família Toledo e eu a vejo<br />
e contemplo praticamente todos os dias.<br />
Então, não só a palavra, como a imagem<br />
e a cena geraram o poema inteiro.<br />
E tive a imensa alegria de ter esse poema<br />
musicado pela Valéria Oliveira, que está<br />
com um CD para ser gravado. Ou seja,<br />
de uma palavra, de uma imagem, nasce<br />
o poema e nasceu também uma música.<br />
Penso muito na idéia de que a criação<br />
não é solitária. É nítido para mim isso, a<br />
presença de múltiplas fi guras no que eu<br />
faço. Tudo pode ser irradiação de pessoas<br />
e coisas. Não se ama sozinha e não se faz<br />
poesia sozinha.<br />
Preá – A inspiração é necessária para se<br />
fazer poesia?<br />
Iracema Macedo – Eu não faço coro<br />
com os detratores da inspiração. Para<br />
mim, inspiração e técnica são, ambas,<br />
extremamente necessárias. Ou seja, apolíneo<br />
e dionisíaco são duas formas do fazer<br />
poético, uma sendo a mais elaborada<br />
ou a mais pensada, a mais medida, que<br />
é a apolínea, e a forma dionisíaca, que<br />
seria a forma mais inspirada. Então, de<br />
alguma maneira, pelo menos eu entendo<br />
assim, esses dois movimentos de inspiração<br />
e elaboração fazem parte do poema.<br />
Preá – Então, nada de poema encomendado?<br />
Iracema Macedo – Não sei fazer poema<br />
encomendado. Gostaria de saber.<br />
Não tenho nada contra, mas não sei fazer.<br />
Um dia, quem sabe...<br />
Preá – Como você descreveria para<br />
o leitor o seu trabalho de carpintaria<br />
poética?<br />
Iracema Macedo – Como eu já disse,<br />
não faço poesia sozinha. Faço poesia<br />
com os outros. Com todos que estão ao<br />
meu redor, com as pessoas com quem eu<br />
convivo, com as pessoas com quem eu<br />
tive experiências intensas, com as coisas<br />
que me cercam. As próprias coisas conversam<br />
entre si e com o poeta. Eu diria<br />
que há vários co-autores do meu trabalho<br />
poético, pessoas que viveram comigo ritos,<br />
amores, sensações, que foram poéticas<br />
tanto no sentido do amor quanto no<br />
sentido da amizade, como no sentido da<br />
contemplação estética. Eu não me sinto<br />
uma solitária ao fazer poemas, porque<br />
acho que vários temas me foram oferecidos<br />
por pessoas muito queridas e muito<br />
importantes para mim. Vários poemas<br />
vieram dessas relações. O maior cúmplice<br />
da minha vida e da minha poesia nos<br />
últimos onze anos é o Romã Fernandes<br />
ao lado de quem me permito tudo e que<br />
me inspira muito; ele abre muitas janelas<br />
para mim. Faz com que eu aprenda a<br />
correr riscos.<br />
Preá – Como você escolhe os títulos dos<br />
seus livros?<br />
Iracema Macedo – “Lance de Dardos”<br />
eu devo a Nei Leandro de Castro, foi um<br />
presente dele. Já “Invenção de Eurídice”,<br />
eu devo a Romã Fernandes e Nonato<br />
Gurgel, sendo que a capa deste livro é<br />
de Romã.<br />
Preá – Você aceita críticas, sugestões, no<br />
processo de elaboração dos seus livros?<br />
Iracema Macedo – Sou muito receptiva<br />
a críticas e sugestões. Há três pessoas<br />
que eu concedo que mexam nos meus<br />
poemas. São elas: Romã Fernandes, Nonato<br />
Gurgel e a poeta Maria Dolores<br />
Wanderley. Essas três pessoas lêem meus<br />
poemas antes de serem publicados. E<br />
uma quarta pessoa, especial, é Nei Leandro<br />
de Castro, que teve acesso aos meus<br />
poemas e que eu respeito e ouço muito.<br />
Preá – Quais os poetas que cabem dentro<br />
da sua poesia?<br />
Iracema Macedo – Se a gente for pensar<br />
em termos de quem me infl uenciou,<br />
inicialmente foi Adélia Prado, a ponto<br />
de no primeiro prêmio que eu participei,<br />
em que ganhei menção honrosa, Paulo<br />
de Tarso Correia de Melo {poeta} ter<br />
feito a seguinte observação: “É visível a<br />
infl uência de Adélia Prado, mas será que<br />
ela é tão inescapável assim? É preciso escapar<br />
dessa infl uência”. Adélia Prado foi<br />
realmente um marco, no sentido de que<br />
ela esteve em Natal, quando eu tinha 17<br />
anos, no projeto Encontro Marcado, e foi<br />
a partir desse momento, desse encontro,<br />
que comecei a produzir poesia de forma<br />
mais consciente. Eu ainda não tinha lido<br />
Adélia Prado. A partir daí, passei a produzir<br />
poesia intensamente. Então, ela foi<br />
o meu momento inicial. Depois dela tive<br />
muitos outros encontros: Drummond,<br />
Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Murilo<br />
Mendes, sobretudo poesia brasileira,<br />
incluindo aí a poesia feita por mulheres.<br />
Jan/Fev 2006<br />
75
Preá – Eu queria que você especifi casse<br />
que poesia é essa, que mulheres são<br />
essas?<br />
Iracema Macedo – Começaria com<br />
Adélia Prado, Cecília Meireles, Ana C.,<br />
Hilda Hilst e outras poetas de língua<br />
inglesa: Marianne Moore, Elizabeth<br />
Bishop, Sylvia Plath. Toda a literatura<br />
escrita por mulheres me interessou e me<br />
interessa até hoje.<br />
Preá – Alguns críticos locais questionam<br />
a força da poesia feminina do Rio<br />
Grande do Norte. Como você vê isso?<br />
Iracema Macedo – Sei que existe uma<br />
polêmica muito grande sobre isso. Eu<br />
acho que essas demarcações: literatura<br />
étnica, literatura negra, literatura política,<br />
literatura feminina são demarcações<br />
que resultam em facas de dois gumes.<br />
Por um lado elas estimulam uma refl exão<br />
sobre algo que está sendo produzido,<br />
mas por outro lado elas limitam muito.<br />
Eu respeito quem trabalha com esses<br />
conceitos. É importante trabalhar com<br />
isso, uma vez que se estimula alguma<br />
coisa. Mas não gostaria de ser reduzida,<br />
que se reduzisse o meu trabalho apenas à<br />
literatura feminina.<br />
Preá – Você acha que existe uma supervalorização<br />
da poesia feminina feita no<br />
Rio Grande do Norte?<br />
Iracema Macedo – Acho que existe e é<br />
muito merecida, porque temos mulheres<br />
excepcionais nesse Estado, não há como<br />
negar. Foi um acaso muito feliz que tivessem<br />
nascido aqui tantas mulheres especiais.<br />
Preá – No cenário literário do Rio<br />
Grande do Norte quais autores você destacaria?<br />
76 Jan/Fev 2006<br />
Iracema Macedo – Tenho profunda<br />
admiração pela produção poética do Rio<br />
Grande do Norte e, sem querer defender<br />
uma demarcação da literatura feminina,<br />
acho a sensibilidade das mulheres que escrevem<br />
aqui um caso excepcional.<br />
Preá – Dos poetas do Rio Grande do<br />
Norte com quem você tem ou teve uma<br />
relação mais próxima?<br />
Iracema Macedo – Além da turma<br />
do “Vale Feliz”, eu tenho uma relação<br />
boa, desde os vinte e poucos anos de<br />
idade, com Paulo de Tarso Correia de<br />
Melo, depois tive contato com o pai de<br />
Eli Celso, Celso da Silveira, Luís Carlos<br />
Guimarães, Nei Leandro e Moacy<br />
Cirne e tenho contato também com o<br />
jovem escritor, Pablo Capistrano, que<br />
eu admiro muito. Eu não conheci Zila<br />
Mamede nem Myriam Coeli, mas conheci<br />
o Elí, que era fi lho da Myriam<br />
Coeli, então convivi com ela através do<br />
fi lho. Em relação a Zila, houve um episódio<br />
bonito para mim. No dia que ela<br />
morreu, eu estudava na Aliança Francesa<br />
e um professor chegou recitando<br />
um poema dela, que era a “Canção do<br />
Afogado”. Então estava repercutindo<br />
na cidade inteira a notícia da morte<br />
dela. Eu tinha uns 15, 16 anos de idade<br />
e este foi um momento de convivência<br />
com ela, no momento da morte.<br />
A partir de então eu procurei conhecer<br />
a obra dela, porque eu era muito<br />
nova ainda e não conhecia. Das poetas<br />
atuais eu tenho uma convivência mais<br />
próxima e afetiva com Ana Paula de<br />
Oliveira e Maria Dolores Wanderley,<br />
das pessoas que vivem em Natal, com<br />
Carmen Vasconcelos e com Marize<br />
Castro, que fez um livro muito lindo<br />
esse ano {2005}, “Esperado Ouro”, é<br />
um livro que eu brindo como um dos<br />
mais belos dela.<br />
Preá – Do que você gosta na poesia<br />
contemporânea brasileira?<br />
Iracema Macedo – Hoje em dia o poeta<br />
brasileiro vivo que eu mais admiro é<br />
Eucanaã Ferraz. A obra dele, que é um<br />
jovem poeta, me tocou intensamente.<br />
Preá – O próprio Nietzsche escreveu<br />
poemas. Qual a sua relação com a poesia<br />
dele?<br />
Iracema Macedo – Com os poemas<br />
eu tenho pouquíssima relação. Não tenho<br />
nenhuma infl uência dos poemas de<br />
Nietzsche. Mas como os poemas expressam<br />
também o pensamento dele, aí sim a<br />
relação é visível. É inevitável que haja de<br />
alguma maneira uma presença dele em<br />
minha poesia.<br />
Preá – Vários textos críticos sobre a sua<br />
obra ressaltam ou o lirismo ou o desejo<br />
e o erotismo. A sua poética, de certo<br />
modo, sempre foi a do desejo?<br />
Iracema Macedo – Sobretudo no<br />
início, no despertar da sexualidade, foi<br />
muito a poética do desejo. Hoje eu talvez<br />
esteja fazendo uma poética menos<br />
desejante, mais ponderada, menos apaixonada.<br />
Preá – É possível observar nos seus livros<br />
uma evolução que a aproxima de mitos<br />
e deuses. Suas primeiras obras quase não<br />
têm referências a isso.<br />
Iracema Macedo – Isso é plenamente<br />
verdadeiro. Houve um momento de desejo,<br />
não de desejo apenas em relação ao<br />
erotismo, mas um erotismo em sentido<br />
amplo, que você vê no primeiro livro,<br />
que desvela sensações muito importantes,<br />
com coisas simples, como cajueiros,<br />
caldeirões de alumínio, coisas que eu<br />
vivi quando descobri em 1991 a vila<br />
de Ponta Negra como cenário poético.
Esses tipos de experiências estéticas e<br />
sensíveis estão muito presentes. Em “Invenção<br />
de Eurídice” há como que uma<br />
elaboração das experiências, que fi cam<br />
mascaradas, mais camufl adas, talvez<br />
mais apolíneas se a gente for pensar em<br />
termos nietzscheanos.<br />
Preá – “Invenção de Eurídice” é também<br />
um livro importante, mas teve uma<br />
fortuna crítica menor que o “Lance de<br />
Dardos”. A que você atribui isso?<br />
Iracema Macedo – Sem dúvida. Talvez<br />
a intensidade de paixão menor, que<br />
eu reconheço que é nítida em “Invenção<br />
de Eurídice” com relação a “Lance<br />
de Dardos”, que a meu ver é um livro<br />
intensamente apaixonado. “Invenção de<br />
Eurídice” é um livro mais sóbrio, mais<br />
pensado, mais mascarado, ou seja, essa<br />
presença de deuses e mitos, que você<br />
fala, na realidade foi uma maneira de<br />
fi ltrar experiências minhas, para não parecerem<br />
experiências tão biográfi cas, e<br />
parecerem experiências mais universais.<br />
Tentei transcender muito o pessoal em<br />
“Invenção de Eurídice” e talvez por isso<br />
ele não tenha comovido tanto as pessoas<br />
como “Lance de Dardos”. Mas isso é bem<br />
relativo, já ouvi muitos leitores dizerem<br />
que gostaram muito mais do segundo<br />
livro. Eu gosto dos dois, são dois fi lhos<br />
igualmente queridos, cada um com seu<br />
ritmo e sua diferença.<br />
Preá – O professor e pesquisador de literatura<br />
Nonato Gurgel diz que a sua poesia<br />
celebra uma estetização da existência.<br />
Você concorda com essa afi rmação?<br />
Iracema Macedo – Plenamente. Tento<br />
apresentar uma estetização da existência,<br />
na dor, na alegria, na intensidade, no<br />
amor, no desamor, Enfi m, em todas as<br />
suas instâncias.<br />
Preá – Por que você não usa ponto fi nal<br />
nos seus poemas?<br />
Iracema Macedo – Nunca foi intencional,<br />
não foi uma proposta estética.<br />
Isso aconteceu a partir da coletânea coletiva<br />
lançada em 1995. Foi um movimento<br />
espontâneo, sem nenhuma pretensão.<br />
No entanto, eu acho que não é algo irrelevante<br />
deixar de colocar um ponto fi nal,<br />
faz sentido porque a poesia não tem um<br />
ponto fi nal.<br />
Preá – Você hoje é considerada uma das<br />
poetas mais importantes do Rio Grande<br />
do Norte. Isso mexe, de alguma forma,<br />
com a sua vaidade?<br />
Iracema Macedo – Vaidade todo<br />
mundo tem. Mas, no sentido mais profano<br />
de vaidade, realmente essa é uma<br />
experiência que eu não consigo ter muito,<br />
não porque eu tenha fugido disso, ou<br />
tenha feito um movimento ou alguma<br />
coisa para fugir da vaidade. É porque as<br />
minhas sensações, minhas experiências<br />
de vida, toda a minha história, tanto<br />
pela minha educação familiar, sobretudo<br />
pela minha educação familiar, nunca<br />
me levou para qualquer sentimento de<br />
vaidade profana. Eu considero a vaidade<br />
um sentimento afi rmativo, se ela é produtiva,<br />
geradora, se não, é um sentimento<br />
que pode ser infrutífero e afastar as<br />
pessoas de você.<br />
Preá – Quais autores você lê sempre?<br />
Iracema Macedo – Sobretudo os autores<br />
brasileiros ou de língua portuguesa.<br />
Não por nenhum nacionalismo, mas<br />
simplesmente pela questão da língua,<br />
por ser a língua em que escrevo. Como<br />
já disse um dos maiores poetas de língua<br />
portuguesa: “a pátria é minha língua”.<br />
Preá – Como você vê o trabalho da<br />
crítica?<br />
Jan/Fev 2006<br />
77
Iracema Macedo – Eu não tenho do<br />
que me queixar da crítica, porque eu sei<br />
que tudo é muito difícil. Conseguir uma<br />
crítica, ser aceito como verdadeiro poeta,<br />
conseguir ser reconhecido, tudo isso é<br />
resultado de um trabalho muito grande.<br />
Nós estamos em um país em que a cultura,<br />
infelizmente, não é a prioridade, a<br />
gente sabe disso. Não tenho nem muita<br />
ilusão a respeito disso, nem muita decepção.<br />
Acho que nesse ponto a gente tem<br />
que ser realista.<br />
Preá – O que é que sendo humano ainda<br />
é capaz de lhe causar espanto?<br />
Iracema Macedo – Se eu disser que<br />
não me espanto mais seria terrível, mas<br />
chegou um momento em que, apesar da<br />
curta vida que eu vivi, tem coisas que<br />
não me surpreendem, eu acho que tudo<br />
é possível. Acredito cada vez mais em<br />
milagres, surpresas e mistérios.<br />
Preá – É possível ser feliz depois de perdida<br />
a inocência?<br />
Iracema Macedo – É sempre possível<br />
restaurar a inocência. Então, é possível<br />
ser feliz restaurando a inocência. Agora<br />
há muitas controvérsias sobre a noção de<br />
felicidade, sobre o que é realmente ser<br />
feliz. Sou sacerdotisa da alegria, mas não<br />
acredito em vida plena sem dor e sem<br />
saudade, por exemplo.<br />
Preá – Há coisas existentes entre céu<br />
e terra que a Filosofi a não pressente. A<br />
poesia é capaz de pressentir?<br />
Iracema Macedo – Eu vejo que a<br />
poesia consegue ir muito mais além da<br />
Filosofi a. A Literatura está intensamente<br />
mais à frente da Filosofi a nesse sentido,<br />
porque navega pelo território do<br />
inconsciente, do mistério, da escuridão.<br />
Mas ainda assim, a poesia não pode di-<br />
78 Jan/Fev 2006<br />
zer tudo, uma vez que ela já é linguagem<br />
e nem tudo no mundo é decifrável por<br />
palavras. Há também um território insondável,<br />
que nem a poesia consegue<br />
pressentir.<br />
Preá – Qual é o território da Filosofi a?<br />
Iracema Macedo – O território da<br />
Filosofi a, a meu ver, é o território do<br />
sondável.Que pode ser pensado. O território<br />
da poesia é um território que vai<br />
além do que pode ser pensado.<br />
Preá – Como a Filosofi a entra na sua<br />
poesia?<br />
Iracema Macedo – A Filosofi a entra<br />
na minha poesia da mesma forma que<br />
todas as outras coisas entram, como inspiração.<br />
Eu diria que a poesia é uma pitada<br />
essencial no meu trabalho fi losófi co.<br />
Há muito mais poesia na fi losofi a que eu<br />
faço do que, conscientemente, fi losofi a<br />
na poesia que eu escrevo. Por exemplo,<br />
na minha experiência de professora eu<br />
sinto que estou tentando ser uma professora<br />
poética também, é uma maneira<br />
que eu tenho de conciliar as duas coisas.<br />
Preá – Qual é a maior de todas as artes?<br />
Iracema Macedo – Essa é uma resposta<br />
que pode variar de tempos em tempos<br />
na vida de cada um. Neste momento,<br />
neste ano de 2005, para mim a maior<br />
de todas as artes é a música. Em 2005<br />
eu ouvi intensamente música, cheguei<br />
ao êxtase musical. Esse ano me marcou<br />
pela música. Então, em 2005 diria que<br />
a arte mais importante foi a música, mas<br />
talvez em outro momento, eu dissesse<br />
outra coisa.<br />
Preá – Em um mundo tomado por<br />
guerras, terrorismo, fome... ainda há lugar<br />
para a poesia neste mundo? Para que<br />
serve a poesia?<br />
Iracema Macedo – Essa pergunta é<br />
feita para muitos poetas. Eu ouço essa<br />
pergunta, por exemplo, no documentário<br />
sobre Leminski. Ele respondeu:<br />
“Mas então para que serve o orgasmo?”.<br />
Eu ouvi essa pergunta sendo feita para<br />
Marina Colassanti e ela disse: “Eu não<br />
quero essa pergunta, essa pergunta é doente,<br />
é uma pergunta de uma sociedade<br />
doente”. Só sabe para que serve a poesia<br />
quem é poeta, quem lê poesia, quem ama<br />
poesia, quem escreve poesia. Ou seja, os<br />
leitores e os autores.<br />
Preá – O verso ou a prosa?<br />
Iracema Macedo – O verso é mais<br />
próximo de mim, eu não consigo me exprimir<br />
em prosa como consigo em verso.<br />
Não digo que para todo mundo, mas<br />
para mim, inevitavelmente é o verso.<br />
Preá – O que é necessário para ser poeta?<br />
A pessoa já nasce poeta ou aprende<br />
a ser poeta?<br />
Iracema Macedo – Comigo foram<br />
decisivos os cadernos da minha mãe, a<br />
coisa foi acontecendo, eu começando a<br />
escrever com doze anos. Mas, como uma<br />
criança com doze anos, pré-adolescente,<br />
pode dizer que escolheu? Não escolheu,<br />
aconteceu, veio. O caminho é pesado,<br />
alguma força se apodera de você. Agora,<br />
depois que a força se apodera, então<br />
vamos lapidá-la. Claro, não acredito em<br />
espontaneidade. Há uma força que se<br />
apodera de você e você não pode mais<br />
fugir dela, porque ela tomou conta do<br />
seu ser e chega um momento de lucidez,<br />
de maturidade que pode acontecer<br />
a cada um em idades diferentes; então é<br />
necessário lapidar essa força, essa energia
que está tomando conta do seu corpo.<br />
Eu não teria receita nenhuma, assim<br />
como na minha vida não tenho receita<br />
nenhuma.<br />
Preá – O mar ou a montanha?<br />
Iracema Macedo – Eu saí de Natal há<br />
quatro anos, num movimento que foi literalmente<br />
uma fuga. Fugi do mar para<br />
a montanha e a montanha me acolheu.<br />
Digamos que vivi intensamente o mar,<br />
vivi a ponto de ter contato direto com<br />
o mar, praticamente todos os dias, um<br />
contato religioso. Chegou um momento<br />
em que precisei me afastar. Para falar<br />
em termos de metáfora, era como se o<br />
mar estivesse exigindo de mim mais do<br />
que eu poderia dar. Eu tinha que me<br />
salvar. Fui embora. E a montanha me<br />
acolheu. Agora, eu me sinto plenamente<br />
salva e posso voltar com toda tranqüilidade.<br />
Então, eu fi co com os dois, o mar<br />
e a montanha. São duas plenitudes, duas<br />
fontes de força para mim, duas necessidades<br />
minhas.<br />
Preá – Existe a possibilidade de você retornar<br />
a Natal? Isso está nos seus planos?<br />
Iracema Macedo – Claro que sim. Mas<br />
é como diz Cazuza, “o seu futuro é duvidoso”.<br />
O meu futuro é completamente<br />
duvidoso. Também aprendi a conviver<br />
com a dúvida, aliás, se eu não soubesse<br />
conviver com a dúvida não teria escolhido<br />
o caminho profi ssional da Filosofi<br />
a. Eu aceito a dúvida, convivo com a<br />
dúvida, quero a dúvida e eu vou continuar<br />
com a dúvida como minha sombra<br />
e minha luz. Eu nunca planejei morar em<br />
Minas, foi algo assim meio que do destino.<br />
Se eu tiver de voltar, também será<br />
uma decisão do destino. Mas nenhuma<br />
cigana me disse nada até agora.<br />
Preá – Você está produzindo algum<br />
novo livro?<br />
Iracema Macedo – Estou vivendo um<br />
dos melhores momentos na minha vida<br />
profi ssional, vou lançar o livro “Nietzs-<br />
che, Wagner e a época trágica dos gregos”,<br />
em 2006, pela editora Annablume e lancei<br />
um livro de poemas no ano passado.<br />
O próximo nascerá quando for o tempo<br />
dele. Estou passando por um momento<br />
de menos intensidade das paixões, estou<br />
muito cautelosa e eu não sou uma pessoa<br />
cerebral. Gostaria de ser, seria ótimo se<br />
eu fosse, mas eu não sou. Meu sonho é<br />
chegar a uma certa maturidade contemplativa.<br />
Talvez eu chegue a essa maturidade<br />
algum dia. Tenho esse desejo. Por<br />
enquanto, preciso viver intensamente<br />
o que escrevo e de alguma maneira tive<br />
necessidade de uma racionalização das<br />
coisas que estavam acontecendo comigo.<br />
Não signifi ca que eu não vá me arriscar<br />
de novo, mas eu preciso estar no momento<br />
propício, com âncoras, com segurança.<br />
Quando eu escrevi os poemas de<br />
“Lance de Dardos” eu não tinha as responsabilidades<br />
que tenho hoje, eu estava<br />
literalmente numa vida muito “mansa”,<br />
sem muito trabalho, então eu pude viver<br />
e escrever plenamente os poemas de<br />
“Lance de Dardos”. Hoje em dia, eu não<br />
posso viver certas coisas, que me inspirariam<br />
fortemente, porque simplesmente<br />
eu tenho que dar aula no outro dia, tenho<br />
compromissos sérios no outro dia e<br />
por incrível que pareça, eu sinto na pele<br />
uma antinomia entre a vida séria e a vida<br />
poética. Pretendo superar isso e conciliar<br />
melhor os dois mundos, mas descobri<br />
que isso foi um confl ito até para o grande<br />
e fantástico Goethe, foi um confl ito também<br />
para Sylvia Plath, quanto mais para<br />
uma mera professora brasileira que precisa<br />
ganhar o pão com o suor do trabalho.<br />
Fazer um pacto com a poesia é fazer um<br />
pacto com o perigo. Platão que o diga.<br />
Os poetas são extremamente perigosos.<br />
Se algum poeta atravessar sua vida, tome<br />
muito cuidado. Eu, por exemplo, tenho<br />
que ter muito cuidado com uma certa<br />
poeta que vive dentro de mim.<br />
Jan/Fev 2006<br />
79
SÃO MIGUEL DO GOSTOSO<br />
Na rota da expedição de Gaspar de Lemos<br />
80 Jan/Fev 2006
David Clemente<br />
Fotos: Anchieta Xavier<br />
Localizado a 100 km de Natal, na<br />
“esquina do continente” onde, para a<br />
alegria dos praticantes de Windsurfe e<br />
Kite surfe, o vento faz a curva, São Miguel<br />
do Gostoso tem população estimada<br />
pelo Instituto Brasileiro de Geografi a<br />
e Estatística (IBGE) em 8.600 pessoas.<br />
Cada um o chama como prefere. Alguns<br />
de São Miguel, outros apenas de Gostoso<br />
e no site do IBGE está a denominação<br />
de São Miguel de Touros. A última nomenclatura<br />
é dada porque Gostoso era<br />
distrito do município de Touros. Quando<br />
emancipou-se, há quase nove anos, a<br />
cidade adotou o apelido nada modesto<br />
e vem fazendo jus a ele. Sua população<br />
vive da pesca, agricultura e turismo.<br />
O município também inscreveu o seu<br />
nome na História do Rio Grande do<br />
Norte para sempre. Foi lá, na Praia do<br />
Marco, que a expedição portuguesa de<br />
Gaspar de Lemos, em 1501, chantou o<br />
Marco Colonial do Brasil. Atualmente,<br />
o Marco está guardado no Forte dos Reis<br />
Magos, em Natal.<br />
Mas, há quem tenha outra versão, bem<br />
diferente, para a história do Marco. O<br />
escritor norte-rio-grandense Lenine Pinto,<br />
com base em pesquisas históricas, defende<br />
que foi em São Miguel do Gostoso<br />
onde a frota de Pedro Álvares Cabral<br />
primeiro chegou ao Brasil. Em seus dois últimos livros Ainda a<br />
questão do Descobrimento e Reinvenção do Descobrimento, afi rma<br />
ser impossível chegar ao Sul da Bahia em 40 dias navegando<br />
contra ventos e correntes marítimas. Municiado de provas,<br />
aponta que as armas do brasão português que estão talhadas no<br />
marco de pedra que serviu de altar à primeira missa, segundo a<br />
descrição de Caminha, são as mesmas que estão no marco em<br />
exposição na Fortaleza dos Reis Magos.<br />
Os padrões, que são marcos trabalhados em pedra, foram criados<br />
por Diogo Cão em sua primeira viagem ao continente africano<br />
com a fi nalidade de substituir as cruzes de madeira. Lenine Pinto<br />
revela em seus livros, que a costa norte do RN já era utilizada<br />
antes do descobrimento do Brasil como local de abastecimento<br />
dos navios que se destinavam à Índia – uma pista extra-ofi cial<br />
da presença portuguesa em terras brasileiras antes de 22 de abril<br />
de 1500.<br />
A prova está na existência do marco talhado em pedra lioz, o<br />
mármore de Lisboa, tendo o primeiro terço a cruz da Ordem de<br />
Cristo, em relevo, e abaixo as armas do Rei de Portugal, originalmente<br />
chantado na divisa dos municípios de São Miguel e Pedra<br />
Grande. No livro Reinvenção do Descobrimento, Lenine defende<br />
que o Monte Pascoal que Cabral viu das caravelas, no litoral da<br />
Bahia, seria na verdade o pico do Cabugi, localizado entre os<br />
municípios de Lajes e Angicos, no Rio Grande do Norte.<br />
Jan/Fev 2006<br />
81
“Escolhi o paraíso para morar”<br />
Numa casa com sete gatos adultos e cinco fi lhotes, dois cachorros, um coelho e muitas<br />
plantas, mora Maria de Fátima Adelino, 45 anos, mais conhecida como Fátima<br />
Artesã. Ela nasceu em João Câmara-RN, onde quando era criança, brincava de fazer<br />
panela de barro com sua avó. Tomou gosto pelo que suas mãos poderiam moldar<br />
e começou a produzir animais da sua região como burrinhos e vacas. Aos poucos a<br />
sua criatividade ganhou as mais variadas formas. Até os quadros que produz não são<br />
pintados, são esculpidos, estatuetas rodeadas por uma moldura.<br />
No pequenino ateliê montado na varanda da sua casa, onde um dos gatos descansava<br />
despreocupadamente sobre a mesa de trabalho, se misturam as matérias-primas<br />
como cabaças, cuités, cordas, cocos e pedaços de chita. É lá que Fátima Artesã cria<br />
cerca de 50 peças por mês. “Tudo que faço é com amor”, afi rma. E vende, principalmente,<br />
de duas formas: como ambulante na praia de Ponta Negra, em Natal, e<br />
como exportadora, através da fi lha que mora na Itália.<br />
Mas moldar não é a única habilidade que Fátima tem. Deixando a modéstia à parte,<br />
ela conta que cozinha muito bem e por causa dos seus dotes culinários já viajou<br />
82 Jan/Fev 2006<br />
bastante. Mudou-se de João Câmara<br />
para Natal e já passou pelos Estados de<br />
Goiás e Rio de Janeiro. No último, fez<br />
um curso de arte culinária para registrar<br />
no seu currículo. Com novos convites<br />
para cozinhar, ainda passou pelo Uruguai<br />
e pela Argentina. Em São Miguel<br />
do Gostoso ela chegou com o marido<br />
francês, Daniel Santiago, 57 anos, em<br />
procura de tranqüilidade. “Escolhi o paraíso<br />
para morar”, diz Fátima.<br />
Tudo vira arte pelas<br />
mãos de Elvira Artesã<br />
Na fachada da casa simples, uma placa<br />
pintada à mão anuncia que ali mora Elvira<br />
(Néri) Artesã. A ex-dona-de-casa de<br />
40 anos de idade aprendeu a fazer seu<br />
artesanato no ano 2000. Segundo a artista,<br />
natural de Gostoso, uma cooperativa<br />
chegou à cidade e formou um grupo<br />
de 17 alunos interessados em aprender<br />
aquela arte. Ela foi a única a persistir no<br />
aprendizado. Suas obras são quase todas<br />
produzidas a partir de materiais naturais,<br />
encontrados em Gostoso. Fibras<br />
de coqueiro e pequenas conchas do mar<br />
são os principais, que se transformam<br />
em bolsas, abajures e outras luminárias,<br />
cortinas e várias formas decorativas, que
Elvira põe à venda em lojas da própria cidade onde mora. Ela conta<br />
que em 2003 foi convidada para mostrar seu trabalho na França,<br />
numa feira de artesanato, mas preferiu mandar apenas as peças.<br />
Conversando com a artesã é fácil notar o quanto sua simplicidade é<br />
forte. Provavelmente o ingrediente principal para garantir o toque<br />
rústico à sua arte.<br />
Sem enfado para tocar forró<br />
Quando nasceu, em 1945, o fi lho de Francisco Cândido recebeu o<br />
nome de José Cândido da Silva. Em pouco tempo ganhou o apelido<br />
de Dedé de Chico Cândido, como é mais conhecido. O apelido,<br />
que foi adotado como nome artístico, tem o adjetivo “cândido” por<br />
causa do nome próprio do pai. Mas já nos primeiros cinco minutos<br />
de conversa com Dedé, fi ca a impressão de que a palavra caracteriza<br />
sua simplicidade e timidez.<br />
O sanfoneiro, com 43 anos de música, economiza muito nas palavras<br />
para falar, mas para tocar sanfona não tem enfado. Seu primeiro<br />
instrumento foi de 80 baixos, que ele comprou sem saber tocar,<br />
juntando seu sacrifi cado dinheiro ganho no roçado e na feira. Dedé<br />
tinha 18 anos e diz que não teve professor: “O dom foi<br />
Deus quem me deu”, conta o sanfoneiro, que não sabe<br />
ler partituras e da língua portuguesa assina somente seu<br />
nome.<br />
Para aprender a manusear o instrumento, Dedé usa a<br />
audição e a concentração. “Toco de ouvido”, conta ele,<br />
para explicar que primeiro escuta a melodia depois a<br />
reproduz com a sanfona. No comecinho de tudo, sua<br />
família era a principal platéia, depois estendeu para os<br />
amigos e diz que “agora a vergonha desapareceu mais”.<br />
Tanto que já tocou em Ponta Negra e aceita convites<br />
para tocar em festas. Entre as músicas preferidas pelo<br />
sanfoneiro estão os forrós de Luiz Gonzaga. Seu público<br />
sempre pede “as mais antigas”. E mesmo cândido como<br />
Dedé aparenta ser, se estiver com o domínio da sanfona,<br />
o forró se sobressai.<br />
Jan/Fev 2006<br />
83
A “ministra do lixo da ordem praieira”<br />
O que levaria uma pessoa a deixar seu país de origem, passar a<br />
morar numa cidade onde não conhecia ninguém e se envolver<br />
com os problemas do lugar para ajudar? A enfermeira Ana Rabul,<br />
60 anos, suíça dos Alpes, descreve sua ação como cidadania.<br />
Ela está no Brasil há 16 anos e durante todo esse tempo mantém<br />
residência em São Miguel do Gostoso. Ela procurava um trabalho<br />
de campo que envolvesse o lazer das pessoas e escolheu<br />
Gostoso porque era onde um irmão seu possuía uma casa.<br />
Antes de morar defi nitivamente, fi cou cerca de oito meses conhecendo<br />
o local, a cultura, as doenças e como eram tratadas.<br />
Depois começou a prestar serviço que, por sinal, é celebrado<br />
por todos na cidade. Ela não precisou descrever o que fez para<br />
mudar a cultura de tratamento do lixo doméstico. Os próprios<br />
moradores, ao ouvirem o nome de Ana Rabul, começam a falar<br />
imediatamente o que ela ensinou.<br />
O trabalho, que deu à enfermeira o título de “Ministra do Lixo<br />
da Ordem Praieira” começou quando Ana visitava casa por casa,<br />
abria o lixo e mostrava para os moradores como aquele depósito<br />
de restos poderia prejudicar a qualidade de vida. Aos poucos, a<br />
cidade aceitou seus conselhos. Hoje em dia é fácil de perceber<br />
isso, basta notar a grande quantidade de lixeiras que há espalhadas<br />
pelas ruas. As praias também são muito limpas e o bom<br />
aspecto da areia é graças aos mutirões de limpeza regulares.<br />
84 Jan/Fev 2006
Resgates da cultura e cidadania<br />
Mas não só na área de ecologia Ana contribuiu para a melhoria de São Miguel<br />
do Gostoso. Apesar de ser estrangeira, ela ajudou a estimular a preservação<br />
folclórica do lugar. Ana Rabul, Francisca Gomes Pinheiro - mais<br />
conhecida como Nenê - e Rubens de Oliveira sempre estiveram à frente da<br />
Associação Sociocultural e Desportiva Gostosense – ASDEG.<br />
Os três começaram sozinhos abordando os moradores, buscando patrocínio<br />
e trabalhando para que a cultura de Gostoso não se resumisse a receber turistas.<br />
Agora, a Associação tem apoio da prefeitura e de Organizações Não-<br />
Governamentais estrangeiras. O primeiro grupo que nasceu foi um Bumbameu-boi.<br />
Assim como o Boi-de-reis, a ASDEG trabalha em favor de grupos<br />
de Pastoril, Capelinha, Papangus, Coco-de-roda, Capoeira, Futebol e da<br />
Banda de Música Cecília Gomes. Graças a esse trabalho, a cidade realiza em<br />
agosto uma Semana do Folclore.<br />
O trabalho da ASDEG não só ajuda a preservar a cultura popular de São<br />
Miguel do Gostoso e movimentar o calendário cultural, como também<br />
inibe a violência no campo e incentiva a freqüência escolar. “Havia meninos<br />
que eram rebeldes. Agora são atletas. Ocupar o tempo livre com lazer é<br />
muito importante”, destaca Nenê. E não só as crianças são o público-alvo,<br />
os adultos também. O grupo de Boi-de-reis é<br />
todo composto por adultos que estudam. Os<br />
integrantes do Boi-de-reis relatam que aprenderam<br />
a tradicional dança ensinada pelos pais. O<br />
pescador Luiz Tenório, 64 anos, e o agricultor<br />
Eusébio Idalino, 75 anos, foram quem confeccionaram<br />
a roupa do Bumba-meu-boi. Levaram<br />
cinco dias, se revezando, para montar o boneco.<br />
E falam com prazer sobre sua apresentação: “É<br />
só alegria, é bonito, agrada a quem assiste e faz<br />
bem ao coração”.<br />
Apesar de os projetos estarem funcionando bem,<br />
seus idealizadores lamentam a falta de estrutura<br />
fi nanceira para os grupos, pois gostariam de ter<br />
ajuda que fi nanciasse instrutores. “O grupo de<br />
Boi-de-reis, por exemplo, é quase todo formado<br />
por idosos que estão fi cando cansados. Um<br />
instrutor ajudaria a formar um grupo de menor<br />
idade”, argumentam Ana, Nenê e Rubens. Para<br />
a banda, a ajuda poderia vir como investimento<br />
na aquisição e manutenção dos equipamentos.<br />
Bolsas de estudo para músicos que se destacassem<br />
também seriam bem-vindas. E por falar em<br />
destaque, na Banda de Música Cecília Gomes<br />
isso é comum. Sete dos seus alunos já tocam em<br />
bandas profi ssionais. Como é o caso de Maicon<br />
Nascimento, 17 anos, da Banda Arrocha o Nó<br />
e Welington França, 19 anos, que é membro da<br />
Banda Substância Zero.<br />
Jan/Fev 2006<br />
85
A música chega ao assentamento<br />
Considerando que os cidadãos gostosenses não estão apenas na cidade de São Miguel,<br />
mas também nos distritos e arredores, viajamos 12 quilômetros por uma estrada<br />
de barro, com muita poeira, para chegar até ao assentamento Antônio Conselheiro.<br />
Era o 12º dia de fevereiro, domingo, e primeiro dia de aula de música para os<br />
jovens da comunidade. O encontro com os 32 alunos recém-inscritos é um exemplo<br />
do que faz o Projeto Manga Rosa de educação pela música, ligado à ASDEG.<br />
O professor de música Gabriel Ribeiro, 47 anos, visitará o assentamento três vezes<br />
por mês, sempre nos fi ns de semana, para as aulas. Ele ensinará os jovens a tocarem<br />
violão, fl auta, percussão e canto em coral. Todos com instrumentos cedidos pelo<br />
projeto. “Dependendo do interesse de cada um, em três meses eles estarão aptos e<br />
em quatro anos estarão com o domínio do instrumento”, prevê Gabriel.<br />
O professor também relata que em Tabua, distrito de São Miguel do Gostoso, o<br />
mesmo projeto tem bons resultados. A turma começou com 13 alunos, dos quais<br />
quatro já tocam de ouvido e ele começa a inserir partituras. O grupo já recebeu a<br />
visita do regente da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal de Minas Gerais,<br />
o maestro Eduardo Ribeiro.<br />
86 Jan/Fev 2006<br />
Culinária ganha<br />
prêmios nacionais<br />
Tudo em São Miguel é gostoso. Os habitantes<br />
poderiam ser gostosenses, mas<br />
se apresentam como “gostosos”. Lá tem<br />
mercadinho Hiper Gostoso, Farmácia<br />
Gostosa, Padaria Gostosa, Pousada do<br />
Gostoso e uma culinária deliciosa. A<br />
gastronomia de Gostoso é conhecida em<br />
todo o país, sobretudo por ter recebido<br />
seguidas vezes a estrela de indicação da<br />
revista Quatro Rodas.<br />
O responsável pela estrela chama-se Leonardo<br />
Godoy Vasconcelos, 65 anos, “natalense<br />
e potiguar papa-jerimum”, como<br />
ele mesmo diz. Morou na capital do<br />
Estado até seus 18 anos, onde estudou<br />
Engenharia Mecânica na Escola Técnica<br />
(antiga ETFRN, atual CEFET) e resolveu<br />
“tentar a vida” na capital de São Paulo.<br />
Na terra da garoa ele fi cou por dois<br />
anos apenas. Voltou a subir o país nas<br />
férias e aportou em Salvador-BA, onde<br />
logo conseguiu uma proposta de emprego<br />
como gerente de uma concessionária<br />
Ford. O prazo, que seria de 15 dias, du-
ou nada menos que 28 anos. Período<br />
esse em que ele concluiu a faculdade de<br />
Engenharia Mecânica e montou seu próprio<br />
negócio, a Motorphine.<br />
A idéia inicial era que o empreendimento<br />
comercializasse peças e equipamentos<br />
para carros. Mas conheceu amigos possuidores<br />
de barcos que, eventualmente,<br />
pediam para fazer um reparo. Resistiu ao<br />
mar por um tempo, mas quando se rendeu<br />
foi de vez: “Nunca havia velejado. Aí<br />
um amigo me chamou para andar de barco<br />
e eu comprei o barco no mesmo dia<br />
do passeio”, conta Godoy, que aprendeu<br />
a cozinhar depois de uma viagem marítima.<br />
O destino era a Europa, o caminho<br />
era o mar e o meio de transporte era um<br />
veleiro.<br />
A aventura de Leonardo Godoy durou<br />
três meses. Ele fazia parte da muito resumida<br />
tripulação que levou um casal<br />
de holandeses para o outro lado do<br />
Atlântico. Nesse tempo, ele gastou sua<br />
inquietude testando receitas culinárias.<br />
“Não tinha restaurante na esquina e eu<br />
tinha que misturar as frutas e as sobras<br />
para fazer as refeições”. Dessas misturas<br />
surgiu o “Peixe à moda do pescador”, o<br />
“peixe com manga” e o premiado “arroz<br />
de polvo”.<br />
Leonardo Godoy chegou a São Miguel<br />
do Gostoso em 1986, que na época<br />
ainda pertencia a Touros. Ele conta que<br />
chegou pela beira mar de buggy, encantou-se<br />
com a enseada, comprou um lote<br />
do terreno e decidiu contruir a Pousada<br />
do Gostoso. Segundo Godoy, na época<br />
que ele se instalou em São Miguel do<br />
Gostoso não havia sequer onde comprar<br />
prego. Mas o esforço valeu a pena. Depois<br />
de cinco anos a cozinha da Pousada<br />
foi descoberta pela revista Quatro Rodas<br />
e fi cou pelos seis anos seguintes recebendo<br />
a renovação do mérito.<br />
Em 1998, Leonardo decidiu que era hora<br />
de mudar de ramo, pois buscava menos<br />
preocupações. Vendeu a Pousada e abriu<br />
um restaurante na beira da praia. Decorado<br />
com nós de marinheiro e considerado<br />
um infl uenciador do cardápio local, o<br />
restaurante foi batizado de Brisa do Mar.<br />
Sua esposa Creuza Ribeiro, 34 anos, gostosense,<br />
o ajuda o cozinhar. Mas quando<br />
o prato chega à mesa qualquer um fi ca<br />
em dúvida se é melhor apreciar a vista do<br />
mar ou o sabor da refeição.<br />
Jan/Fev 2006<br />
87
O cachacista que recita <strong>Augusto</strong> dos Anjos<br />
Antes de chegar de fato à cidade de São Miguel do Gostoso, é preciso atenção para<br />
as atrações preliminares. As dunas, as lagoas que ladeiam a estrada, a vegetação<br />
quase virgem... Já na areia da costa, uma pedra enorme e imponente se destaca. É a<br />
chamada “Pedra do Cabaço”, que fi ca em frente a uma pousada de nome também<br />
sugestivo: Enseada dos Amores. Para explicar o porquê do nome da pedra, Michele<br />
Tinôco, a proprietária da pousada, explica educadamente que muitos amores nasceram<br />
naquela pedra. Mais uma boa razão para um monumento natural da praia<br />
de Gostoso.<br />
Ao lado dali, uma placa convida para conhecer outro estabelecimento comercial.<br />
É a Urca do Tubarão. Poderia ser apenas mais um bar dentre muitos, com cadeiras<br />
de plástico e um som que tocasse qualquer música que seus clientes pedissem. Mas<br />
a Urca do Tubarão é uma cachaçaria absolutamente irreverente. A começar pelo<br />
proprietário Edson Oliveira, 40 anos, dono do título de “Ministro da Cachaça”.<br />
Ele já recebe seus clientes recitando poesias de <strong>Augusto</strong> dos Anjos e aos poucos<br />
apresenta cada um dos apetrechos decorativos do lugar. Tem a “bichada” que é<br />
88 Jan/Fev 2006<br />
uma enxada com um cabo que se bifurca<br />
(semelhante à forma de estilingue)<br />
com metal nas duas pontas para arar a<br />
terra em dois lugares ao mesmo tempo.<br />
Há também a “cesta básica etílica” que<br />
é um caixote repleto de garrafas de cachaça<br />
antigas não abertas; o “martelo<br />
português” com um cabo e duas extremidades<br />
vizinhas de metal. “Tem gente<br />
que quando vai martelar sempre bate no<br />
dedo primeiro e depois no prego. Com<br />
esse martelo dá para atingir os dois ao<br />
mesmo tempo. Ou seja, é mais prático”,<br />
explica Edson. Ele ainda apresenta mais<br />
criações: “tem bar que oferece carta de<br />
vinhos. Aqui nós não temos carta, nem<br />
e-mail de vinho e nem bilhete de vinho.<br />
Nós temos é mala direta”, fala apresentando<br />
uma antiga mala de madeira que<br />
ele usa como ade-ga.<br />
Por toda a cachaçaria há peças engraçadas,<br />
curiosas e muitas antigas. Das quais<br />
apenas 20% foram compradas, o restante<br />
ele achou no lixo ou chegou como<br />
presente. A mais antiga é uma bala de<br />
canhão que ele comprou numa sucata
por três reais. A geladeira que funciona<br />
a querosene “se for nova, tem 67 anos”,<br />
diz Edson. O “telefone portátil” é um<br />
aparelho tão antigo que não tem disco<br />
com os números e, quando funcionava,<br />
efetuava ligações por uma manivela. Do<br />
“baú de lançamentos” ele tira um vinil<br />
de Emilinha Borba e diz brincando que é<br />
a nova parceira musical de Sandy, depois<br />
mostra um disco de Nelson Ned dizendo<br />
que é do tempo em que o cantor era<br />
pequeno. O detalhe é que na Urca do<br />
Tubarão só se toca vinil. “Uma vez veio<br />
um cliente pedindo para tocar Zezo. Eu<br />
disse que tocaria desde que fosse em vinil.<br />
Ele perguntou o que era vinil. Se ele<br />
não sabe o que é vinil, imagine música<br />
boa”, conta o inusitado empresário, que<br />
coleciona cerca de 1.200 discos. “Recebi<br />
de uma só vez uma encomenda de 40 kg<br />
de discos de música clássica”.<br />
Quando se aproxima da pilha de barris<br />
que ele cuida com esmero, colhe um<br />
pouco de cachaça na concha da mão e<br />
esfrega no braço dele e de cada um de<br />
nossa equipe. “Espere secar”, pede. Enquanto<br />
isso explica os princípios para se<br />
identifi car e apreciar uma boa dose da<br />
bebida. Primeiro coloque-a num copo,<br />
aguarde fazer uma marca, preste atenção<br />
na cor, cheire fazendo movimentos circulares<br />
com o copo e deguste aos poucos.<br />
“Os dois princípios básicos são não<br />
ter pressa para fazer, nem para tomar. A<br />
boa desce suave”. Quando o braço seca,<br />
a ordem é para cheirá-lo. Surpresa. Exala<br />
um cheiro bom de mel de rapadura e o<br />
braço não fi ca pegajoso.<br />
O Ministro da Cachaça não produz a<br />
bebida que vende. Seu fornecedor é o<br />
engenho Olho D’água, que passa para<br />
a Urca do Tubarão o líquido recém-preparado.<br />
Com o conhecimento que Edson<br />
adquiriu quando cursava faculdade<br />
de Química, ele dá tratamento próprio<br />
à cachaça que posteriormente recebe o<br />
rótulo com o nome Urca do Tubarão.<br />
O bar que ainda completará seis anos já<br />
recebeu a visita de Luiz Carlos Prestes<br />
Filho e de um embaixador da Bulgária<br />
que elogiou dizendo que um lugar como<br />
aquele poderia ser indicado até para<br />
um rei. Também tem público fi el que<br />
sempre lota o estabelecimento em datas<br />
como o carnaval e o Dia da Poesia, 14<br />
de março. Edson e sua esposa Lila também<br />
costumam organizar exposições de<br />
artistas plásticos, saraus e apresentações<br />
de cantores ao vivo. “Quando trazemos<br />
músicos, deixamos o cantor tocar letras<br />
de sua autoria ou o que ele gosta”, esclarece<br />
Edson.<br />
O nome do estabelecimento é Urca do<br />
Tubarão porque funcionaria nas redondezas<br />
da cidade de Macau. Mais precisamente<br />
no distrito de Diogo Lopes, onde<br />
existe um lugar com o mesmo nome.<br />
Mas São Miguel do Gostoso acabou re-<br />
cebendo o empresário por ter, segundo<br />
ele, mais infra-estrutura, mais beleza e<br />
ser mais perto de Natal, onde seu fi lho<br />
Pedro Carvalho, 19 anos, cursa Administração<br />
na UFRN. Mesmo assim<br />
Edson não descarta a possibilidade de<br />
mudar-se. Nas previsões que ele faz, em<br />
dez anos Gostoso estará muito movimentado<br />
turisticamente e ele deseja morar<br />
num lugar calmo. Seu plano é que<br />
seu fi lho Pedro fi que gerindo a Urca do<br />
Tubarão e ele possa abrir outro estabelecimento<br />
onde haja calmaria.<br />
Entre uma dose e outra, um verso de<br />
<strong>Augusto</strong> dos Anjos e outro, ele tem<br />
respostas para tudo. Quando oferece<br />
cachaça prefere que aceitem. Dizer que<br />
se está trabalhando é um bom motivo<br />
para ouvir: “aqui você está fora da área<br />
de serviço ou temporariamente desligado.<br />
Pode beber que aqui você não pega”.<br />
E quando questionado por que algumas<br />
garrafas do seu bar têm o pescoço torto,<br />
ele responde que “as garrafas não estão<br />
tortas, você é que já bebeu”.<br />
Jan/Fev 2006<br />
89
Ao contrário do que muitos<br />
imaginavam (eu, inclusive) existe<br />
vida inteligente e cultural na maioria<br />
dos municípios do RN. E foi a série<br />
de reportagens que a PREÁ fez desde<br />
a sua criação que me mostrou isso.<br />
Jamais a nossa equipe retornou de<br />
uma das viagens ao interior sem boas<br />
histórias para contar. Relatos de luta,<br />
resistência, e exemplares do que pode<br />
ser feito, muitas vezes contra tudo e<br />
todos. O que tenho observado é que<br />
não existe uma relação automática<br />
entre o tamanho ou a riqueza econômica<br />
do município e sua força cultural.<br />
Aqui e ali municípios pequenos<br />
e jovens nos surpreendem. E outros,<br />
grandes, de que esperávamos muito,<br />
nos deixam frustrados. Por exemplo,<br />
eu jamais apostaria que Umarizal<br />
tivesse uma diversidade cultural tão<br />
grande, com atividades que vão do<br />
cordel ao rock, passando pelos quadrinhos<br />
e quadrilha estilizada.<br />
Quem morou no interior até o<br />
fi nal dos anos setenta, deve ter boas<br />
recordações dos circos que visitavam<br />
as cidades uma vez ou outra. Movido<br />
por essa nostalgia escrevi a reportagem<br />
sobre o <strong>Saturno</strong>. Foi legal constatar<br />
que quase tudo continua igual.<br />
Eu ainda alcancei o palhaço de perna<br />
de pau que saía pela rua anunciando<br />
o espetáculo e os dramas encenados,<br />
duas atrações que não resistiram ao<br />
tempo. Infelizmente não guardei os<br />
90 Jan/Fev 2006<br />
nomes desses circos que apareciam<br />
esporadicamente em Santana do Matos,<br />
minha cidade. Mas, não tenho<br />
dúvidas, deviam ter nomes tão bonitos<br />
e pomposos como <strong>Saturno</strong>.<br />
Todos os anos, geralmente em<br />
dezembro, a poeta Iracema Macedo<br />
passa alguns dias de férias em Natal,<br />
revendo amigos e familiares. Sabendo<br />
disso, entrei em contato com ela,<br />
por e-mail, e marquei a entrevista<br />
desta edição, que contou com ajuda<br />
da também poeta Carmen Vasconcelos,<br />
nossa amiga comum. A entrevista<br />
foi feita numa noite calorenta de<br />
dezembro na casa de Carmen e teve<br />
momentos bem descontraídos. Na<br />
entrevista o leitor fi ca conhecendo<br />
o pensamento e a trajetória da poeta,<br />
mas tenho dúvida se a entrevista<br />
passa a grandeza humana, ancorada<br />
na generosidade, humildade e no<br />
caráter, desta grande poeta potiguar.<br />
Na dúvida, fi ca o meu testemunho<br />
pessoal disso.<br />
A reportagem sobre o “Pessoal<br />
do Tarará” deveria ser publicada<br />
junto com a de Mossoró, na edição<br />
passada. Mas enfrentamos difi culdades<br />
devido ao volume de material<br />
produzido (o maior, entre os municípios,<br />
até agora) e decidimos guardar<br />
para esta edição.<br />
Acertei com Elí Celso que publicaria<br />
os poemas dele nesta edição<br />
porque saíram com erros no livro<br />
“15 Poetas do RN”, que reúne os<br />
poemas vencedores do Concurso de<br />
Poesia Luís Carlos Guimarães, da<br />
FJA, coordenado por mim. Ele havia<br />
sugerido uma errata, mas como<br />
a edição, de mil livros, já tinha sido<br />
quase toda distribuída, eu propus - e<br />
ele aceitou - publicar os poemas na<br />
PREÁ. Não foi a solução ideal, mas<br />
a possível, levando-se em conta as<br />
circunstâncias. Minhas desculpas,<br />
públicas, ao poeta.<br />
Com o texto de Nei Leandro,<br />
iniciamos as homenagens aos 50 anos<br />
de publicação de Grande Sertão: Veredas,<br />
de Guimarães Rosa. Na minha<br />
opinião, o livro mais importante da<br />
literatura brasileira.<br />
A PREÁ sofreu a sua primeira<br />
baixa desde que foi criada há três<br />
anos. O editor-assistente Gustavo<br />
Porpino, aprovado em concurso público,<br />
se mudou para Brasília, onde<br />
atuará como jornalista na Embrapa.<br />
Sobre a competência e profi ssionalismo<br />
de Gustavo, não falarei nada.<br />
Seria chover no molhado. As reportagens<br />
que ele escreveu ao longo dos<br />
últimos três anos falam por si, quem<br />
tiver alguma dúvida é só consultar<br />
todas as edições. Gostaria de ressaltar<br />
e dá o meu testemunho sobre o<br />
caráter, honestidade e lealdade de<br />
Gustavo. Em três anos de convivência<br />
diária, pude conhecê-lo melhor<br />
e desconheço qualquer ato dele que<br />
não seja ético e honrado. Foi uma<br />
convivência enriquecedora, baseada<br />
na honestidade de propósitos e amizade,<br />
que se foi consolidando com o<br />
tempo. Numa equipe pequena como<br />
a nossa, uma perda dessa dimensão,<br />
não deixa de abalar. Mas não podemos<br />
desanimar, as velas estão içadas<br />
e com ou sem vento é preciso ir em<br />
frente.<br />
No lugar de Gustavo entrou<br />
Sérgio Vilar, em quem eu levo muita<br />
fé. Sérgio já vinha fazendo reportagens<br />
e artigos e acompanhou Gustavo<br />
em algumas viagens pelo interior<br />
do Estado. Tem a mesma índole boa<br />
do grande Gustavo. Boa sorte para<br />
ambos!<br />
Até a próxima!
3 ANOS FAZENDO O RIO<br />
GRANDE DO NORTE MELHOR
O Rio Grande do Norte tá melhor<br />
Prestando contas<br />
Este encarte da PREÁ é um informativo das nossas ações à frente da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>,<br />
nestes três anos do Governo Wilma de Faria. Seria uma injustiça negar que sem a decisão política<br />
da Governadora este trabalho não poderia ser mostrado.<br />
Criação do Programa Casas de Cultura Popular, com 14 em funcionamento, 12 em obras avançadas<br />
e mais 14 que serão edifi cadas até o fi nal do ano. Num total de 40 Casas de Cultura, espalhadas<br />
pelo interior do Estado. Ação que não tem comparação nem similaridade com nenhum<br />
outro trabalho, na área de cultura, realizado por qualquer outro Governo, na História do Rio<br />
Grande do Norte.<br />
Edição da Revista PREÁ, que por ela mesma já se divulga e se defi ne. Basta ler a quantidade e<br />
qualidade de cartas recebidas do Brasil e do exterior.<br />
Recuperação dos equipamentos da Fortaleza dos Reis Magos, com ampliação do acesso e conservação.<br />
Devolução da Cidade da Criança às crianças de Natal, além do projeto de sua recuperação defi -<br />
nitiva.<br />
Reestruturação da Orquestra Sinfônica e do Coral Canto do Povo, com abertura de concursos<br />
públicos.<br />
Recuperação do Memorial Monsenhor Expedito, em São Paulo do Potengi; Restauração do Museu<br />
do Capitão Antas, em Pedro Avelino; recuperação da Gráfi ca Manimbu, em Natal.<br />
Consolidação do Projeto Seis e Meia e do Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães.<br />
Realização do concurso nacional de arquitetura para escolha do projeto do Teatro de Natal.<br />
Elaboração de projetos para reestruturação do Instituto de Música Waldemar de Almeida e do<br />
Caldeirão da Cultura, no prédio onde funciona a Penitenciária João Chaves, na Zona Norte de<br />
Natal.<br />
Criação e edifi cação do Teatro de Cultura Popular, com espaços para ofi cinas e galerias.<br />
Restauração do Teatro Alberto Maranhão; Restauração do Teatro Lauro Monte Filho, em Mossoró,<br />
e Adjuto Dias, em Caicó; Restauração do prédio-sede da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>, com a<br />
criação do Auditório Franco Jasiello, Galeria Newton Navarro e Espaço Cultural Odilon Ribeiro<br />
Coutinho. Reequipamento das salas, com condições dignas de trabalho para os servidores da<br />
casa. Praça Emmanuel Bezerra, Largo Jornalista Ubirajara Macedo e Praça do TCP Olavo de<br />
Medeiros Filho.<br />
Não está tudo neste resumo. Você, caro leitor, verá mais no próprio encarte que esta PREÁ lhe<br />
oferece. Testemunhe o nosso trabalho e não permita que ele seja interrompido pelo medo da<br />
comparação, que é fi lhote da inveja.<br />
Com o nosso abraço amigo,<br />
François Silvestre de Alencar<br />
Presidente da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>
Casa de Cultura Popular de Parelhas<br />
Casa de Cultura Popular de Santa Cruz<br />
Casas de<br />
Cultura<br />
Casa de Cultura Popular de Martins<br />
O Governo do Estado, através da FJA, investiu<br />
R$ 2 milhões 289 mil para construir<br />
treze Casas de Cultura Popular no interior<br />
do RN. Outras 27 serão entregues até o fi -<br />
nal do ano, num programa inédito e original<br />
de interiorização da cultura<br />
- Criação do Programa Casas de Cultura Popular<br />
- Edição da revista PREÁ<br />
- Recuperação da Fortaleza dos Reis Magos<br />
- Recuperação da Cidade da Criança<br />
- Recuperação do Memorial Monsenhor Expedito, em São Paulo do Potengi<br />
- Reestruturação da Orquestra Sinfônica e do Coral Canto do Povo, com realização de concursos públicos<br />
- Recuperação do Centro de Formação Teatral
O Rio Grande do Norte tá melhor<br />
Com circulação bimestral, tiragem de 5 mil<br />
exemplares, distribuída gratuitamente, e<br />
edição on line, a revista Preá leva a produção<br />
cultural do RN para o Brasil e o mundo<br />
- Restauração do Museu do Capitão Antas, em Pedro Avelino<br />
- Criação e edifi cação do Teatro de Cultura Popular<br />
- Restauração do Teatro Alberto Maranhão<br />
- Criação do programa de Auxílio Montagem Teatral<br />
- Programa Ribeira das Artes<br />
- Restauração do Teatro Lauro Monte Filho, em Mossoró<br />
- Restauração do Teatro Adjuto Dias, em Caicó<br />
Revista Preá
Um Presente<br />
de Natal<br />
Depois do sucesso na capital, o espetáculo<br />
Um Presente de Natal, realizado no mês de<br />
dezembro, foi levado a várias cidades do interior<br />
do Estado. O projeto é totalmente produzido<br />
e encenado por artistas potiguares<br />
- Restauração do prédio da FJA, com a criação de Auditório; Galeria de Arte; Espaço Cultural; Praças e Largo<br />
- Projeto Seis e Meia<br />
- Semana de Cultura Popular<br />
- Encontro do Teatro Nordestino<br />
- Prêmio de Poesia Luís Carlos Guimarães<br />
- Prêmio Nacional de Arquitetura para escolha do projeto do Teatro de Natal<br />
- Edição dos livros “Poetas do RN”, com os poemas vencedores do Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães
O Rio Grande do Norte tá melhor<br />
<strong>Fundação</strong><br />
José <strong>Augusto</strong><br />
A <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> foi restaurada e<br />
reequipada e ganhou o Auditório Franco<br />
Jasiello; Galeria Newton Navarro; Espaço<br />
Cultural Odilon Ribeiro Coutinho; Praça<br />
Emmanuel Bezerra; Largo Jornalista Ubirajara<br />
Macedo e Praça do TCP Olavo de<br />
Medeiros Filho<br />
- Edição do livro “<strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> – 40 Anos (1963-2003)”<br />
- Apresentação da EDTAM (Escola de Danças do Teatro Alberto Maranhão) em Londrina-PR<br />
- Edição do livro sobre os cem anos do Teatro Alberto Maranhão<br />
- Co-edição, com a USP, do livro “Dicionário Crítico Câmara Cascudo”<br />
- Apoio à Feira de Sebos<br />
- Comemoração do centenário do Teatro Alberto Maranhão<br />
- Elaboração de nova Lei de Cultura, com criação do Fundo de Cultura e a Lei Orgânica da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>
Presidente da FJA François Silvestre e a governadora Wilma de Faria inauguram o novo teatro<br />
Teatro de<br />
Cultura<br />
Popular<br />
Natal, depois de décadas, ganhou um<br />
novo teatro. O TCP tem 680 metros<br />
quadrados de área construída, capacidade<br />
para 200 lugares sentados e custou<br />
400 mil reais<br />
- Projeto de reestruturação do Instituto de Música Waldemar de Almeida<br />
- Encontro de agentes das Casas de Cultura Popular<br />
- Criação do site da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong><br />
- Projeto de criação do “Caldeirão da Cultura”, na Penitenciária João Chaves, Zona Norte de Natal<br />
- Apoio, com recursos fi nanceiros, para gravação de CDs, edições de livros, shows e exposições<br />
- Interiorização do projeto “Um Presente de Natal”, que também chegou à Zona Norte<br />
- Lei de Incentivo à Cultura Luís da Câmara Cascudo, que destinou 12 milhões para o setor cultural
O Rio Grande do Norte tá melhor<br />
Fortaleza<br />
dos Reis<br />
Magos<br />
O mais antigo e importante monumento<br />
histórico e arquitetônico do Rio Grande do<br />
Norte, a Fortaleza dos Reis Magos, passou<br />
por reforma que custou R$ 600 mil. Foram<br />
construídos boxes para artesanato e o estacionamento<br />
foi ampliado<br />
- Realização dos seguintes seminários, através do Centro de Documentação Cultural Eloy de Souza: “Bom-dia Café”<br />
(sobre o Presidente da República Café Filho); “Bom-dia Padre João Maria”; e “1935 setenta anos depois”<br />
- Projetos aprovados, no valor de R$ 512 mil, junto ao MINC, para preservar e equipar os museus do RN<br />
- Realização do Dia Internacional do Museu; Encontro do Museu Potiguar; Fórum Museu Potiguar<br />
- Reativação do Sistema Estadual de Bibliotecas<br />
- Realização da Conferência Estadual de Cultura<br />
- Projeto aprovado de criação, em 2006, de 14 bibliotecas públicas no interior do Estado
Concurso<br />
de Poesia<br />
Concurso revelou novos valores da<br />
poesia potiguar, como Karina Grace<br />
(foto), além de oferecer prêmios<br />
em dinheiro e publicar livro com<br />
os poemas dos vencedores<br />
Sinfônica fez excursão, inédita, pelo interior do Estado, e<br />
no ano passado iniciou reestruturação, com realização de<br />
concurso para contratação de novos componentes<br />
Cidade da Criança<br />
Cidade da Criança foi totalmente restaurada, ganhou novos<br />
brinquedos, um circo cultural e manutenção permanente<br />
Orquestra<br />
Sinfônica
3 ANOS FAZENDO O RIO<br />
GRANDE DO NORTE MELHOR