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Família Saturno - Fundação Jose Augusto

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Natal, RN - N° 16, Janeiro/Fevereiro, 2006<br />

Umarizal<br />

Efervescência e diversidade cultural<br />

São Miguel do Gostoso<br />

Na rota de Gaspar de Lemos<br />

Entrevista<br />

Poeta Iracema Macedo<br />

Ensaio fotográfi co<br />

“Os Cão”<br />

<strong>Família</strong> <strong>Saturno</strong><br />

Paixão e devoção pelo circo se sucedem há três gerações


A Preá está na Internet: www.fja.rn.gov.br<br />

FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO<br />

Rua Jundiaí, 641 - Tirol - CEP 59020-120<br />

Fone/fax: (84) 3232.5327/3232.5304<br />

Governadora<br />

Wilma Maria de Faria<br />

Presidente<br />

François Silvestre de Alencar<br />

Diretor<br />

José Antônio Pinheiro da Câmara Filho<br />

PREÁ - REVISTA DE CULTURA DO<br />

RIO GRANDE DO NORTE<br />

ISSN 1679-4176<br />

ANO IV Nº 16<br />

JANEIRO/FEVEREIRO/2006<br />

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA<br />

PERIODICIDADE<br />

BIMESTRAL<br />

EDITOR<br />

TÁCITO COSTA<br />

tacitocosta@estadao.com.br<br />

EDITOR ASSISTENTE<br />

GUSTAVO PORPINO DE ARAÚJO<br />

gporpino@hotmail.com<br />

ESTAGIÁRIOS<br />

DAVID CLEMENTE E MICHELLI PESSOA<br />

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO<br />

LUCIO MASAAKI<br />

infi nitaimagem@infi nitaimagem.com.br<br />

(84)8805-1004<br />

REVISOR<br />

JOSÉ ALBANO DA SILVEIRA<br />

CAPA<br />

FOTO: ANCHIETA XAVIER<br />

axphotographer@gmail.com<br />

A palavra da casa<br />

François Silvestre<br />

Este número da Preá traz um encarte com a prestação<br />

de contas das nossas ações nestes três anos do Governo<br />

Wilma de Faria. A prestação é nossa; o julgamento e a comparação<br />

fi cam por sua conta, caro leitor.<br />

Nenhum governo do Rio Grande do Norte, em todos os<br />

tempos, investiu tanto na infra-estrutura cultural quanto o<br />

atual. Digo e cobro a negação desta assertiva. O segundo<br />

lugar começa a fi car quase invisível no retrovisor.<br />

Após o fracasso das revoluções sociais e políticas, tanto a<br />

burguesa quanto a socialista, nós enfrentamos um momento<br />

de perplexidade e de angústia ideológica.<br />

O que sobrou dessas revoluções? A revolução burguesa, que<br />

prometia liberdade, igualdade e fraternidade foi derrotada<br />

pela ganância e criou a perversidade capitalista. A revolução<br />

soviética, que preconizava de cada um, conforme a capacidade,<br />

e para cada um de acordo com a necessidade, foi<br />

destruída pela violência política e pela burocracia estatal. O<br />

que sobrou? Sobraram o poder e o vazio.<br />

Do vazio, não temos a divina capacidade de tirar proveito.<br />

Sobra-nos o poder. Esse ente dialeticamente antagônico.<br />

Afi rmação e negação dele mesmo. Dele, saem duas vertentes<br />

principais. Na negação, o poder usado para o domínio dos<br />

poucos que o usufruem. É a sua perversa face de desumanização.<br />

Na afi rmação, o poder pode transformar-se no instrumento<br />

de contenção desse abismo. Pelo controle social<br />

da repartição. Não se confunda isso com assistencialismo.<br />

Não. Esse controle deverá ser feito pela própria sociedade<br />

não detentora do comando econômico. Como? Pelo aprofundamento<br />

da prática democrática. Do exercício cotidiano<br />

e continuado da Democracia. É fácil? Claro que não. É um<br />

aprendizado penoso. Lento e indelegável. Para o aprofundamento<br />

desse processo o povo não pode tirar férias.<br />

E ainda do poder, na sua face de afi rmação, há duas vertentes.<br />

Uma, da transformação. Outra, da conservação. A<br />

transformação tem de atacar os bolsões de miséria, da pobreza<br />

e da violência. É sua obrigação política. A conservação<br />

tem como objeto a identidade cultural e a paisagem. O<br />

que chamo de paisagem não é apenas o cartão-postal. É o<br />

conjunto do meio ambiente com o bom nível de vida em<br />

cada lugar. A identidade cultural é o único veículo capaz da<br />

condução à dignidade humana. Quem não se identifi ca culturalmente<br />

será humanamente incompleto. Por isso vamos<br />

tirar do poder o que ele ainda pode dar. Taí a Preá número<br />

dezesseis. A Preá Leão!


Í n d i c e<br />

O palhaço Pára-choque segue a<br />

carreira do avô e do pai e não<br />

deixa o circo se acabar. Nova<br />

geração de artistas circenses<br />

acredita que o circo ainda tem<br />

muito a oferecer<br />

O premiado fotógrafo<br />

Fernando Pereira<br />

assina ensaio sobre<br />

o famoso bloco<br />

carnavalesco “Os Cão”,<br />

que sai na Praia da<br />

Redinha, em Natal<br />

Expediente / A palavra da casa 3<br />

Cartas 6<br />

Circo <strong>Saturno</strong> - Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor! 8<br />

Volonté - “Do poeta falam tudo” 14<br />

Ensaio fotográfi co - “Os Cão” 18<br />

“Pessoal do Tarará” leva arte à periferia 24<br />

Deífi lo Gurgel - “Escrevo com o coração” 28<br />

O fi lme 31<br />

Músicapoesia - Leito de saudades e lembranças 32<br />

Fogo contra Fogo 34<br />

Poesia Potiguar - Elí Celso de Araujo Dantas da Silveira 35


O jornalista Gustavo Porpino (primeiro à direita), em texto de despedida<br />

e balanço, fala sobre as reportagens que fez no interior do<br />

Estado para a Preá. À esquerda, o fotógrafo Anchieta Xavier, e ao<br />

centro, o motorista Érico Alves<br />

Í n d i c e<br />

O escritor pernambucano Fernando Monteiro escreve<br />

sobre um mito do cinema, a atriz Greta Garbo<br />

AGENDA - 13 POR 1 39<br />

Foco Potiguar - Dois festivais 40<br />

Descobertas e aprendizado pelas veredas do RN 42<br />

O pensamento vivo de Guimarães Rosa 44<br />

“Greta Garbo, quem diria, acabou de se sentar...” 48<br />

O anjo terrível 52<br />

Tratado das intenções com entrelinhas de sabotagem 56<br />

Umarizal - Efervescência e diversidade cultural 58<br />

Entrevista - Poeta Iracema Macedo 73<br />

São Miguel do Gostoso - Na rota de Gaspar de Lemos 80<br />

PS 90


evistaprea@rn.gov.br<br />

CARTAS<br />

Pesquisa<br />

Apreensão<br />

Orgulho<br />

Chega às minhas mãos a PREÁ 14, Recebi com apreensão “A palavra da Parabéns a toda equipe pelo alto nível<br />

editada por essa <strong>Fundação</strong>. Tive opor- casa” na PREÁ 15. Pareceu-me um mis- de informação, divulgação e resgate da<br />

tunidade de apreciar outros exemplato de pedido de socorro, explicitação de cultura e do orgulho que esta revista<br />

res e, diante da qualidade do trabalho, uma situação de abandono e uma despe- desperta nos nordestinos com quem<br />

encaminhei à redação para auxiliar nos dida. Assim, externo minha preocupação tenho contato e que tiveram acesso a<br />

trabalhos diários dos repórteres. Porém,<br />

com a existência em si da PREÁ, de po- alguns números. Parabéns também pela<br />

der perceber, nas entrelinhas, a vulnera-<br />

gostaria de poder agregar o produto ao<br />

agilidade da resposta, insisto na sugestão<br />

bilidade e a transitoriedade dos subsídios<br />

acervo do Setor de Pesquisa do Diário de<br />

que no rodapé das imagens e/ou fotos,<br />

que a mantém. Considero a PREÁ um<br />

Natal. Para tanto, tomo a liberdade de<br />

o leitor de fora ou distante possa locali-<br />

patrimônio do RN. Até quando a elite<br />

consultá-lo sobre a possibilidade de adzar/saber<br />

que por exemplo: o casarão do<br />

governante não perceberá que o investiquirir<br />

a coleção de revistas já publicadas.<br />

tempo de “mil novecentos e vote”, que a<br />

mento do Estado em cultura é a mesma<br />

Quero deixar o meu registro parabeni-<br />

imagem da santa tal, que o cruzeiro das<br />

coisa que o investimento de um pai na<br />

zando a <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> pela ex-<br />

almas de tal, está em tal cidade, povoa-<br />

educação de um fi lho, pois é necessácelente<br />

produção da revista PREÁ.<br />

do, sítio e etc.<br />

rio, custoso, em longo prazo e a fundos<br />

Albimar Furtado<br />

(Diretor-Geral do Diário de Natal)<br />

********************<br />

perdidos... Porém, absolutamente imprescindível.<br />

A PREÁ é uma das poucas<br />

coisas positivas que vi em toda minha<br />

vida, entregue graciosamente pelo ente<br />

Ana Lúcia<br />

(Educadora – Brasília-DF)<br />

********************<br />

público. Por favor, não deixem acabar Nordeste<br />

Viagem<br />

com a PREÁ!!!<br />

Acabo de ler com prazer e interesse a<br />

Já tornei-me um leitor assíduo da PREÁ,<br />

Aristóbulo Lima PREÁ 14. E aqui venho para felicitar<br />

pela excelente qualidade de suas reporta-<br />

(Advogado – Currais Novos-RN) toda a equipe pela excelência da revista.<br />

gens. Entendo que essa revista tornou-<br />

********************<br />

Sem falar na entrevista de Ariano Suasse<br />

uma leitura obrigatória daqueles que<br />

suna, sempre hors-concours, gostei so-<br />

“fazem” a cultura. Fiquei bastante emo- Patronímico<br />

bremodo das reportagens sobre cidades<br />

cionado ao ler a reportagem “São José<br />

Li, com o agrado de sempre, a entrevis- potiguares, como São José de Campestre<br />

do Campestre: a borborema potiguar”<br />

ta com Ariano Suassuna, na PREÁ 14. e Rodolfo Fernandes e sua capela das<br />

(PREÁ 14). Campestre é a minha terra Quanto à etimologia do patronímico “meninas das covinhas”. Elas despertam<br />

natal! Essa reportagem levou-me ao túnel Suassuna, prefi ro fi car com as raízes no minha curiosidade pelo Nordeste, que é<br />

do tempo, através do texto bem elabora- nheengatu, sendo suassuna: o bicho inesgotável, e mostram que em todos os<br />

do e das belas fotos. Foi uma verdadeira grande. O veado é chamado suaçu, por- recantos o brasileiro luta pela sua afi rma-<br />

“viagem” às minhas origens.<br />

que é bicho grande.<br />

ção como povo.<br />

Jerônimo Rafael Medeiros<br />

Ítalo Suassuna<br />

Enéas Athanázio<br />

(Diretor do Museu Câmara Cascudo/UFRN<br />

6 Jan/Fev 2006<br />

(Médico – Rio de Janeiro-RJ)<br />

(Balneário Camboriú-SC)


evistaprea@rn.gov.br<br />

Bicho da terra<br />

leção tão procurada pelas pessoas que Desconhecimento<br />

freqüentam esta Biblioteca. Nem temos<br />

Navegando dia desses, encontrei-o.<br />

Agradeço mais uma vez pela revista<br />

palavras para agradecer-lhe. Deus lhe<br />

Oxente, pensei, peraí: esse é bicho da<br />

PREÁ, mormente o maravilhoso pre-<br />

pague!<br />

terra, do mato; não é bicho do mar.<br />

sente da edição número 14, que traz a<br />

Mas ele estava lá, melhor dizendo, ela, Biblioteca do Centro de Estudos entrevista com Ariano Suassuna. Aqui,<br />

a PREÁ. Adorei a entrevista com o ge-<br />

Geográfi cos e Agrários fi co pasmo de verifi car o quanto não são<br />

nial Ariano Suassuna. Sou de Martins e<br />

(Votuporanga-SP) mostrados valores como ele nas nossas<br />

moro em João Pessoa-PB há 15 anos. Parabéns<br />

pela excelente e belíssima PREÁ.<br />

Corajosa. Inovadora. Independente.<br />

Sem pedantismo, mas também sem falsa<br />

modéstia. É, sem dúvida, uma das melhores<br />

nesta área.<br />

********************<br />

escolas, porquanto de dez amigas de minha<br />

fi lha, todas adolescentes, nenhuma<br />

Design e conteúdo<br />

sabia quem era Ariano Suassuna. Porém,<br />

Sou pesquisador da cultura popular após mostrar e ler para elas, com certeza<br />

e autor de cordel. Há 2 anos tive contato que jamais esquecerão deste maravilhoso<br />

com a PREÁ e o que me chamou logo escritor.<br />

Francisco Júnior Damasceno Paiva<br />

(Professor de Filosofi a – João Pessoa-PB)<br />

********************<br />

a atenção foi o design gráfi co, e depois,<br />

claro, o conteúdo, diga-se de passagem,<br />

maravilhoso. Moro em São Paulo, capital,<br />

a cidade mais nordestina fora do<br />

Ademir Neves<br />

(Jornalista-São Paulo-SP)<br />

********************<br />

Divulgação<br />

Nordeste.<br />

Identidade<br />

Vocês da PREÁ estão de parabéns. Fiquei<br />

maravilhada com o conteúdo da revista.<br />

Cheguei a divulgar através de trabalhos<br />

da universidade as técnicas utilizadas por<br />

vocês. Gostaria de me manter mais informada<br />

sobre a cultura do meu estado e<br />

também de contribuir para o engrandecimento<br />

desse meio de comunicação.<br />

Bartira M Coutinho,<br />

(Estudante de Jornalismo – Ipueira/RN)<br />

Edson Luiz Tenho recebido com regularidade os<br />

(São Paulo-SP) exemplares da PREÁ, que a cada número<br />

******************** se apresenta melhor e mais interessante!<br />

Para quem está fora do Brasil, ler bons<br />

Ariano<br />

textos em português e manter o conta-<br />

Recebi o n° 14 da bem-elaborada PREÁ to com a própria cultura é essencial para<br />

(nome curioso, sui generis). Excelente preservar a identidade brasileira e suprir<br />

entrevista com o fora-de-série, Ariano a “saudade” das nossas coisas. Portanto,<br />

Suassuna. Fotos lindas... Enfi m, uma agradeço a vocês por essa alegria que<br />

publicação cultural excelente, bem ela- aqui chega! Que a PREÁ continue o seu<br />

borada. São Paulo carece de uma revista caminho de sucesso.<br />

********************<br />

Coleção<br />

de cultura deste porte. Magnífi ca, sem<br />

porquês... Ótima. Quem sabe um dia teremos?<br />

Afi nal, temos duas secretarias de<br />

Silvia Costola<br />

(Roma-Itália)<br />

Recebemos o grande presente para 2006.<br />

cultura, Estadual/ Municipal.<br />

Chegaram os sete primeiros volumes da<br />

Renato Braga<br />

revista PREÁ para completar nossa co-<br />

(São Paulo-SP)<br />

Jan/Fev 2006<br />

7


8 Jan/Fev 2006<br />

Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor!


Circo <strong>Saturno</strong><br />

Tácito Costa<br />

Fotos: Anchieta Xavier<br />

O “camarim” onde Naelson Abreu<br />

da Silva se transforma no palhaço Párachoque<br />

é também o local onde ele dorme,<br />

em um colchão de solteiro, com o<br />

irmão, o trapezista Nadelson <strong>Saturno</strong><br />

de Carvalho. O local, uma cobertura de<br />

lona, imitando uma barraca de camping,<br />

é tão apertado que mal cabe uma pessoa.<br />

E para completar ainda está abarrotado<br />

de caixas e um baú com objetos do Circo<br />

<strong>Saturno</strong>. O calor, mesmo à noite, faz<br />

qualquer um que se demore lá dentro alguns<br />

minutos começar a suar. É sentado<br />

no colchão que Naelson, segurando um<br />

minúsculo espelho e com gestos rápidos<br />

e certeiros, em menos de dez minutos se<br />

apronta para entrar em cena.<br />

O espetáculo está marcado para começar<br />

às 21 horas. A velha Kombi passou o dia<br />

anunciando pelo bairro. Mas chega o horário<br />

previsto para o início do espetáculo<br />

e o público não aparece. Do lado de fora<br />

do Circo <strong>Saturno</strong>, armado no antigo e<br />

popular bairro das Rocas, em Natal, em<br />

frente à Ofi cina de Zé de Alaíde, na rua<br />

Luiz Joaquim de M. Filho, dois rapazes e<br />

uma moça conversam sob os fi os de alta<br />

tensão de um poste, de onde saem faíscas<br />

a intervalos intermitentes, que eles ignoram<br />

solenemente.<br />

O pessoal do circo aparenta tranqüilidade<br />

e cada um faz o seu trabalho. A bilheteira,<br />

que é a partner do atirador de<br />

facas, está a postos desde às 20h30. O<br />

engolidor de fogo cuida da portaria. Na<br />

entrada, já estão montadas duas mesinhas,<br />

com pipocas, algodão-doce e um<br />

freezer com água mineral e refrigerantes.<br />

O algodão e a pipoca custam 1 real, cada.<br />

Palhaço Pára-choque (Naelson Abreu da Silva) segue os passos do pai e do avô<br />

A garrafi nha de água fi ca também por 1<br />

real e o refrigerante 1 real e 50 centavos.<br />

Tudo é muito simples e feito com devoção<br />

e seriedade. A dignidade está presente<br />

nos menores gestos. Uma das principais<br />

atrações do espetáculo, “Sheik”, aguarda<br />

tranqüilo a sua vez de entrar em cena.<br />

Pela aparência robusta, deve receber<br />

mesmo tratamento de estrela. O salário<br />

é pago por semana e depende dos números<br />

que cada artista apresenta, mas não<br />

ultrapassa os 100 reais. Em alguns casos,<br />

quando o artista tem família, para melhorar<br />

a renda, ele pode negociar com o<br />

dono a venda de produtos, como “maçã<br />

do amor”, pipocas, picolés e outras mercadorias,<br />

no interior ou nas proximidades<br />

do circo.<br />

Naelson Abreu da Silva, 23 anos, o Párachoque,<br />

fi lho do dono, vai lá fora conversar.<br />

Já são 21h10. Ele explica que o<br />

público só sai de casa depois da novela.<br />

Jan/Fev 2006<br />

9


José Nazareno <strong>Saturno</strong> e o bode “Sheik”<br />

O que se comprova em seguida. Em 15<br />

minutos as pessoas começam a chegar.<br />

Às 21h30 o espetáculo inicia com casa<br />

cheia.<br />

Para uma terça-feira, depois de duas semanas<br />

de espetáculo, é uma bilheteria<br />

surpreendente. Umas 300 pessoas lotam<br />

o <strong>Saturno</strong>, que tem capacidade para receber,<br />

segundo o seu dono, cerca de 400<br />

espectadores. Os preços são convidativos.<br />

A entrada para a arquibancada custa<br />

1 real. Já para as cadeiras o ingresso sai<br />

por 2 reais. Mas o bom do circo é mesmo<br />

a arquibancada, dividida entre crianças,<br />

adultos e idosos.<br />

10 Jan/Fev 2006<br />

José Nazereno (centro) e os fi lhos. Os dois mais velhos já atuam no circo. Naelson Abreu da Silva (à direita)<br />

é o palhaço Pára-choque; Nadelson <strong>Saturno</strong> de Carvalho (à esquerda) é o trapezista<br />

Uma família de artistas<br />

As condições gerais do <strong>Saturno</strong> são boas. Ele é todo coberto. A lona<br />

é nova e foi adquirida recentemente. Custou 4 mil reais. É uma<br />

lona vistosa, amarela, azul e branca, as cores da bandeira brasileira.<br />

A arquibancada, aparentemente, é segura. As cadeiras é que estão<br />

um pouco gastas. Mas nada que impeça o espectador de sentar e<br />

desfrutar com tranqüilidade o espetáculo. O perigo, talvez, venha<br />

do alto, onde o trapezista faz seu número sem nenhuma rede de<br />

proteção.<br />

O <strong>Saturno</strong> é um circo tradicional, que tem na família, sua razão de<br />

existir. Sua história não é muito diferente da história de centenas de<br />

pequenos circos que percorrem as cidades do interior e as periferias<br />

das capitais e cidades maiores.<br />

O seu dono, José Nazareno <strong>Saturno</strong> da Silva, 43 anos, cinco casamentos<br />

e sete fi lhos, nasceu em Açu e, salvo alguns pequenos<br />

períodos de sua vida, sempre esteve ligado ao circo. Em um desses<br />

momentos, por exemplo, trabalhou como fi gurante no fi lme<br />

“O Cangaceiro Trapalhão”, de Renato Aragão, rodado no Ceará.<br />

Ele herdou o amor ao circo do pai, Manoel <strong>Saturno</strong> da Silva, que<br />

em 1965 deixou o Açu em um circo. Tocava guitarra, mas depois<br />

aprendeu a ser palhaço.


Nascia aí a tradição de palhaços na família<br />

<strong>Saturno</strong>, que agora chega à terceira<br />

geração. Nazareno é o palhaço Pára-brisa.<br />

Ele se apresenta na segunda parte do<br />

espetáculo e o fi lho, Naelson, o palhaço<br />

Pára-choque, na primeira. Mas como a<br />

equipe de artistas é pequena todos se revezam<br />

fazendo outros números. Quando<br />

não estão no palco, de terra batida,<br />

vigiam a cerca para os moleques não<br />

entrarem sem pagar, cuidam do som, da<br />

portaria e da bilheteria e ajudam na venda<br />

dos refrigerantes.<br />

Assim é que o palhaço Pára-brisa é também<br />

o atirador de faca e se apresenta ao<br />

lado da grande estrela “Sheik”; o trapezista,<br />

Nadelson <strong>Saturno</strong> de Carvalho,<br />

17 anos, também fi lho de Nazareno, se<br />

traveste para apresentar o personagem<br />

televisivo conhecido como “Lacraia”, o<br />

número mais ovacionado pela platéia;<br />

a bilheteira vira partner do atirador de<br />

facas; o engolidor de fogo (o “Homem<br />

Vulcão”) cuida da portaria e Luiz Eduardo<br />

Júnior, o equilibrista, fi scaliza a cerca<br />

de arame para impedir que as pessoas<br />

entrem sem pagar. É este grupo, de seis<br />

pessoas, que conduz o espetáculo durante<br />

1 hora e 30 minutos.<br />

José Nazareno <strong>Saturno</strong> conta que começou<br />

a trabalhar em circo aos 14 anos,<br />

como o palhaço que saía pelas ruas, em<br />

pernas de pau, chamando o povo para<br />

o espetáculo. Depois deixou o Açu e foi<br />

encontrar com o pai na Bahia, que tinha<br />

montado um circo. A experiência durou<br />

pouco, ele trocou a Bahia pelo Ceará e somente<br />

em 1976 retornou ao Rio Grande<br />

do Norte, onde montou em 1988 o circo<br />

Noveon. O nome é uma homenagem ao<br />

cantor e compositor Raul Seixas, autor<br />

da música “Novo Aeon”.<br />

Três meses depois de criado, o circo estava<br />

armado em Upanema, no Oeste<br />

Potiguar, quando atearam fogo e o que<br />

restou foram apenas os ferros. “Fiquei<br />

com as mãos na cabeça, sem lenço e<br />

sem documento”, relembra Nazareno.<br />

Estava chegando ao fi m o sonho de ter<br />

a sua própria companhia e ele voltou a<br />

trabalhar de empregado em outros circos,<br />

como o Fantástico Circo, Circo Real<br />

Madrid, American Circus, Diorama Circus,<br />

Circo Europeu, Circo Califórnia,<br />

Circo Hatari, Circo Kaoma, Arca Circus<br />

e Circo Mágico Nelson, entre outros.<br />

Neste último foi onde nasceu o palhaço<br />

Pára-choque.<br />

Em 1996, junto com os irmãos, fundou<br />

um novo circo, o primeiro <strong>Saturno</strong>, que<br />

uma ventania intensa, em 2003, quando<br />

estava armado em Ipanguassu, reduziu à<br />

tábua e ferro.<br />

O novo <strong>Saturno</strong> foi montado este ano,<br />

em sociedade com Devaldo Freitas de<br />

Souza, e estreou nas Rocas, onde Devaldo,<br />

que já trabalhava com locação de<br />

som, mora. É a segunda vez que Nazareno<br />

trabalha junto com os fi lhos. Ele conta<br />

que irá percorrer os bairros da cidade<br />

e municípios próximos, de forma que<br />

os fi lhos possam continuar estudando.<br />

Da arte circense ele manja tudo. “Sou<br />

do tempo em que tinha teatro no circo,<br />

com ‘ponto’ atrás da cortina”.<br />

Circo <strong>Saturno</strong><br />

Jan/Fev 2006<br />

11


Palhaço não tem pai nem mãe<br />

Ser palhaço, para ele, é uma das mais<br />

difíceis profi ssões. “Palhaço não tem<br />

pai nem mãe, pode ter morrido a mãe,<br />

mas ele tem de se apresentar com um<br />

sorriso estampado no rosto”. Nazareno<br />

conta que não orienta nenhum fi lho a<br />

seguir carreira no circo. “Não pode ser<br />

o pai que destina o fi lho, ele deve estudar<br />

primeiro e depois seguir a carreira<br />

que escolher”, diz ele, que não chegou a<br />

terminar o primário. O apelido de Párabrisa<br />

surgiu num dos primeiros circos<br />

em que trabalhou, ainda menino, fazendo<br />

fi guração no “Táxi maluco”, que<br />

acabava desmontado em meio a muitas<br />

palhaçadas.<br />

Ao contrário dele, Naelson, o Pára-choque,<br />

lê e escreve com desenvoltura. Trabalhou<br />

recentemente dois anos como cinegrafi<br />

sta de uma TV de Natal e se mostra<br />

antenado com ferramentas modernas<br />

12 Jan/Fev 2006<br />

como a Internet, cita Chaplin, Mr. Bean<br />

e os Três Patetas, como modelos que fazem<br />

rir com simplicidade e que devem<br />

ser adotados.<br />

É possível notar a infl uência “modernizante”<br />

de Naelson antes mesmo de começar<br />

o espetáculo, quando o sistema de<br />

som do circo toca o CD da banda Kid<br />

Abelha e na abertura das apresentações,<br />

quando um locutor faz um resumo didático<br />

da história do circo. É visível o esforço<br />

dele em apresentar um espetáculo<br />

de qualidade. Idéias visando isso ele tem<br />

e cita duas: patrocínios privados ou Leis<br />

de Incentivo à Cultura. Mas enquanto<br />

isso não é viabilizado, o espetáculo é<br />

montado com o que se pode e tem.<br />

A noite abre com o bode “Sheik”, anunciado<br />

no microfone como “o único do<br />

Brasil que joga futebol”. “Sheik” faz a<br />

sua parte. Seu treinador, Nazareno, manda<br />

e ele levanta a pata e cumprimenta o<br />

público; depois paga uma promessa, de<br />

joelhos; dá umas cabeçadas em uma bola<br />

e mostra como se guia um bêbado. Sucesso<br />

estrondoso.<br />

“Sheik” tem dez anos e foi comprado<br />

ainda novo no Alto Oeste potiguar. Nazareno<br />

conta que descobriu a vocação do<br />

bode para “artista”, quando viu o animal<br />

brincar de bola com um dos fi lhos. Começou,<br />

então, a treinar o bicho para se<br />

apresentar no picadeiro.<br />

O espetáculo prossegue com o palhaço<br />

Pára-choque; o equilibrista Júnior, no<br />

“Cilindro Oriental”; a personagem televisiva<br />

“Lacraia”; Pára-choque dubla o<br />

cantor italiano Andrea Bocceli; o atirador<br />

de facas faz o seu número temerário,<br />

convidando uma pessoa da platéia; o trapezista;<br />

o engolidor de fogo; e o palhaço<br />

Pára-brisa encerra a noite.<br />

O público é um espetáculo à parte.<br />

Grita e ri o tempo todo, alguns dizem


Circo <strong>Saturno</strong><br />

palavrões, mas também surgem tiradas<br />

hilariantes, como por exemplo,<br />

um anônimo que chama a “banda”<br />

que acompanha a música de Andrea<br />

Bocceli, dublada por Pára-choque, de<br />

“Banda Diarréia”. É uma platéia politicamente<br />

incorreta. Uma moça um<br />

pouco acima do peso, cai na besteira<br />

de aceitar o convite do atirador de facas,<br />

para participar do número. Ouve<br />

poucas e boas da platéia. Sai rindo!<br />

O espetáculo se encerra por volta das<br />

23 horas, com o bordão, pronunciado<br />

de forma engraçada, pelo palhaço<br />

Pára-brisa: “Gente, volte amanhã”.<br />

Dali a instantes é hora de contar o<br />

apurado, comentar as atuações, avaliar<br />

o que saiu errado e o que pode melhorar<br />

e cada um se recolher ao calor<br />

de suas barracas, para tentar dormir<br />

como pode. Porque no dia seguinte<br />

tem espetáculo, sim senhor!<br />

Origens do circo<br />

Alguns estudiosos afi rmam que o circo<br />

surgiu na Grécia Antiga e no Império<br />

Egípcio, onde já havia animais domados.<br />

As Olimpíadas, que começaram por<br />

volta do século VIII a.C., contavam com<br />

números circenses. Nos anos 70 a.C.,<br />

em Pompéia, no Império Romano, havia<br />

um anfi teatro usado nas exibições de<br />

habilidades incomuns<br />

A versão do circo que conhecemos –<br />

com picadeiro, lona, desfi le de animais<br />

– é recente e foi criada pelo subofi cial<br />

inglês Philip Astley, por volta de 1770.<br />

Na época, ele montou um espetáculo<br />

com cavalos, que contava com saltadores<br />

e palhaços.<br />

O circo com suas características, em geral<br />

itinerante, existe no Brasil a partir dos<br />

fi ns do século XIX. Desembarcavam em<br />

um porto importante, faziam seu espetáculo,<br />

partiam para outras cidades, descendo<br />

pelo litoral até o rio da Prata, indo<br />

para Buenos Aires. O circo brasileiro tropicalizou<br />

algumas atrações. Por exemplo,<br />

o palhaço brasileiro fala muito, ao contrário<br />

do europeu, que é mais mímico.<br />

O Dia do Circo, no Brasil, 27 de março,<br />

está relacionado ao nascimento em<br />

Ribeirão Preto (SP) do palhaço Piolin,<br />

Abelardo Pinto “Piolin” (27.3.1897-<br />

1973). Filho de artistas circenses, Piolin<br />

foi um dos mais queridos palhaços brasileiros.<br />

Outro grande palhaço é George Savalla<br />

Gomes, o Carequinha, que nasceu em<br />

Rio Bonito, RJ, em 1915. Começou a<br />

trabalhar como palhaço aos cinco anos<br />

de idade, passando por vários circos nacionais<br />

e até um internacional, o Circo<br />

Sarrazani.<br />

Jan/Fev 2006<br />

13


VOLONTÉ<br />

Por Gustavo Porpino<br />

Fotos: Areta Luna<br />

Sou um mulato democrático do litoral<br />

a gente precisa ver o luar<br />

(Volonté)<br />

Quem conhece Volonté? Manoel Fernandes<br />

de Souza Júnior, 49 anos, natalense<br />

das Rocas, é uma das fi guras humanas<br />

mais populares de Natal. O poeta<br />

Volonté faz parte da Natal mais provinciana,<br />

em que quase todos compartilhavam<br />

as mesmas amizades, batiam papo<br />

nas calçadas do centro e brincavam no<br />

carnaval de rua de Petrópolis à Ribeira.<br />

A Natal, pacata e boêmia, dos anos 70<br />

e os jogos do escrete de 70, despertaram<br />

em Manoelzinho o gosto pela poesia. O<br />

garoto do Areial, nas Rocas, aceitou ser<br />

poeta e, desde então, espalha seus versos<br />

curtos e cortantes nas esquinas de Natal.<br />

O pseudônimo “Volonté”, que ele diz já<br />

ter explicado a origem “umas cem vezes”,<br />

é uma homenagem ao ator italiano Gian<br />

Maria Volontè, ator principal do fi lme<br />

“Giordano Bruno”, dirigido por Giulia-<br />

14 Jan/Fev 2006<br />

no Montaldo. “É talvez um dos maiores<br />

atores da história do cinema”, salienta.<br />

Volonté é irrequieto, crítico, às vezes impaciente,<br />

leitor voraz de jornais e observador<br />

do cotidiano natalense. Sabe como<br />

ninguém ler as entrelinhas das colunas<br />

e artigos e tem sempre uma opinião<br />

formada. Não suporta os bajuladores e<br />

tem sempre uma crítica dirigida aos que<br />

chama de “canalhas”. Para ser amigo de<br />

Volonté, ou pelo menos ser respeitado<br />

por ele, tem que ter opinião, como disse<br />

certa vez o poeta mineiro Cacaso no início<br />

do poema “Face a face”.<br />

São as trapaças da sorte<br />

são as graças da paixão<br />

pra se combinar comigo<br />

tem que ter opinião<br />

A obra do poeta e ensaísta Antônio<br />

Carlos de Brito (1944-1987), o Cacaso,<br />

parece ter infl uenciado Volonté. O poeta<br />

potiguar admira a “poesia marginal”<br />

de Cacaso e também faz uso da crítica<br />

social nos seus poemas. Outros versos<br />

do poeta mineiro casam perfeitamente<br />

com Volonté.<br />

O meu amor e eu<br />

nascemos um para o outro<br />

agora só falta quem nos apresente<br />

O poeta andarilho é solitário. Gosta de<br />

caminhar pelas ruas como se estivesse à<br />

procura de si mesmo. O artista plástico<br />

Dorian Gray Caldas desvenda bem<br />

Volonté no prefácio do livro “Proemas”,<br />

publicado em 2004. Segundo Dorian,<br />

“o poeta está sempre em trânsito, sempre<br />

com um livro consultando, lendo,<br />

discutindo o texto ou passando a poesia<br />

para alguém”.<br />

Há 15 anos mora sozinho numa quitinete<br />

na Cidade Satélite. Passa longas horas<br />

ouvindo música, lendo e telefonando<br />

sem ser importunado. Adora telefonar<br />

para jornalistas e alguns poucos amigos.<br />

“A melhor conversa que tem é por telefone”.<br />

Na simplicidade da sua morada,<br />

rabisca seus versos em pedaços de papel.<br />

“Só escrevo com lápis, tenho medo de<br />

computador”.<br />

A fi gura de cabelos já grisalhos, cortados<br />

bem curtos, sandálias havaianas,<br />

calça jeans com a bainha dobrada e camiseta,<br />

tem seus pontos de parada favoritos.<br />

Quando não está em casa ou<br />

na sede da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>, de


“Do poeta falam tudo”<br />

onde é funcionário, pode ser facilmente encontrado no<br />

sebo Letra e Música, Café Cirol ou tomando cerveja no<br />

Beco da Lama. “Gosto muito de andar a pé. De ônibus e<br />

de carro é uma tortura. O trânsito de Natal está um câncer<br />

quase incurável”.<br />

Os sebos exercem um fascínio sobre os poetas. Volonté freqüenta<br />

os principais sebos de Natal. Vai sempre ao Sebo<br />

Vermelho conversar com o livreiro Abimael Silva, gosta dos<br />

sebos de Jácio e Amorim, mas é no “Letra e Música”, do<br />

amigo Ary Ramalho, que Volonté parece se sentir em casa.<br />

A música de boa qualidade acalma o poeta, tem sempre um<br />

jornal guardado à sua espera e a companhia de Ary para<br />

trocar idéias sobre música entre um e outro cigarro.<br />

Música, poesia e cerveja são três grandes paixões na vida<br />

do poeta. Os Beatles, preferencialmente interpretado por<br />

Sarah Vaughan, Bob Dylan, Led Zeppelin, Chat Baker,<br />

Luís Gonzaga, Vital Farias, Lenine e Paulinho da Viola formam<br />

o universo musical de Volonté. No mundo das letras<br />

é igualmente exigente. Perde facilmente a paciência com<br />

textos mal escritos.<br />

Conta que já passou dez anos sem ler. De 1988 a 1998.<br />

Entre os anos de 1991 a 1995 viveu a fase mais difícil.<br />

“O percalço da vida”, como defi ne. Diz ter sido salvo por<br />

alguns amigos como os médicos Elmano Marques e Napoleão<br />

Paiva. Vencida a fase de imersão, retomou o olhar<br />

sobre os poemas de Cacaso, Manuel Bandeira, Jorge de<br />

Lima, Fernando Pessoa e Mário Faustino. Também elogia<br />

a “dura poesia concreta dos irmãos Campos (Haroldo e<br />

<strong>Augusto</strong> de Campos)”.<br />

Jan/Fev 2006<br />

15


VOLONTÉ<br />

O culto à cerveja Volonté exerce, preferencialmente,<br />

no Beco da Lama, reduto<br />

de boêmios no centro de Natal, e aceita<br />

até a sofi sticação dos shoppings, desde<br />

que o chope seja bem gelado. Antes mesmo<br />

de publicar o primeiro livro, “Antecedentes<br />

criminais” (1979), Volonté já<br />

freqüentava o Beco da Lama na companhia<br />

do poeta Bosco Lopes, já falecido.<br />

Mais recentemente, gosta de dividir<br />

mesa nos bares do Pedrinho e Nazaré<br />

com o músico Carlança.<br />

Poesia potiguar<br />

Volonté acompanha de perto a produção<br />

poética nas terras potiguares. É fi gura<br />

certa nos lançamentos de livros e saraus<br />

poéticos. Elogia muitos e desconversa<br />

sobre outros. Os poemas dos potiguares<br />

Napoleão Paiva, Demétrio Diniz, Adriano<br />

de Sousa, Alex Nascimento, Plínio<br />

Sanderson, Moacy Cirne, Nei Leandro<br />

e Sanderson Negreiros são celebrados<br />

por Volonté. A explicação pela escolha<br />

é simples. “É gente que escreve bem”,<br />

diz. “Inclua na lista também a fotografi a<br />

poética de Giovanni Sérgio”.<br />

O poeta andarilho prefere falar dos versos<br />

alheios, de elogiar os outros poetas.<br />

Não gosta de comentar sua própria obra,<br />

16 Jan/Fev 2006<br />

nem de escolher rótulos para si mesmo.<br />

Acha até que “não há defi nição para o ser<br />

humano”. Poetas, então, são ainda mais<br />

complexos. “Nem Octávio Paz conseguiu<br />

defi nir o poeta”, diz, recorrendo ao<br />

ensaísta mexicano de quem é admirador<br />

assumido. Mas alguns poemas de “Cara<br />

a cara”, livro reeditado em 2005 com<br />

ilustrações do sobrinho João Felipe, 11<br />

anos, falam por Volonté.<br />

Do poeta<br />

falam tudo<br />

e sei que o mel<br />

lambuza hipocrisia<br />

Volonté acha mesmo é que “a pessoa é<br />

mais persona”. O poeta pretende apresentar<br />

algumas destas fi guras “mascaradas”<br />

em “Perfídia”, livro de crônicas sobre<br />

Natal e alguns personagens da cena<br />

natalense. “Mas utilizo nomes de cidades<br />

americanas e fi ctícios para as pessoas”,<br />

avisa. O novo livro ainda não tem data<br />

para ser lançado.<br />

Copa e carnaval<br />

A Copa de 70 foi “o primeiro alumbramento”<br />

de Volonté. “Foi um momento<br />

sem igual entre poesia, arte e autenticidade<br />

da malandragem brasileira”, descreve.<br />

O futebol-arte de Tostão, Gérson,<br />

Pelé, Rivelino e companhia encantou<br />

tanto Volonté que no ano seguinte nasciam<br />

os primeiros poemas. Marcados<br />

também pela crítica social ao regime da<br />

ditadura. “Vi a Copa todinha na antiga<br />

Confeitaria Atheneu”, relembra. Alguns<br />

anos depois, Volonté fez parte do grupo<br />

fundador do “Comitê norte-rio-grandense<br />

pela anistia”.<br />

A paixão de Volonté por carnavais de rua<br />

vem da infância no Areial. “Quando eu<br />

era criança, esperava sempre a ‘Bagunça<br />

do PV’ passar”. O bloco de rua do carnaval<br />

das Rocas arrastava os canguleiros<br />

pelas ruas do bairro e criava em Volonté<br />

o gosto pela folia. Já crescido, o poeta<br />

passou a acompanhar a Bandagália e<br />

relembra antigos foliões do carnaval de<br />

Natal. “Eugênio Cunha, Jácio Fiúza,<br />

Olinto Rocha, Laércio Bezerra, Ary Ramalho,<br />

todos eles, seguiam as bandinhas<br />

de rua do Tob’s bar, em Petrópolis, até a<br />

Peixada Potengi, na Ribeira”.<br />

Enquanto os antigos carnavais de Natal<br />

não voltam, como deseja Volonté, o<br />

poeta segue andando por aí, colhendo<br />

versos do cotidiano, telefonando para<br />

uns, encontrando outros e espantando<br />

os dândis.


DOIS POEMAS<br />

INÉDITOS DE<br />

VOLONTÉ<br />

Um dia de torres gêmeas<br />

Acordo pela manhã<br />

Acendo um cigarro<br />

Vejo a cor do sol<br />

Diferente<br />

Entre guerras e torres<br />

E terrorismo<br />

Manhattan não será mais a mesma<br />

Somente um começo de século<br />

E milênio<br />

Viajando para o infi nito<br />

E meu velho amigo de tantos anos<br />

Esfumaçando meu pensamento<br />

*************************<br />

Tenho um passado<br />

Dentro de mim<br />

A lira lampeja<br />

Minha poesia<br />

Em versos soltos<br />

Nosferatu<br />

“Do poeta falam tudo”<br />

Jan/Fev 2006<br />

17


18 Jan/Fev 2006


“OS CÃO”<br />

FERNANDO PEREIRA<br />

“Os Cão” é um tradicional bloco<br />

carnavalesco da praia da Redinha,<br />

em Natal, que sai às ruas uma vez<br />

por ano, com os foliões recobertos da<br />

lama do mangue.<br />

Fernando Pereira é jornalista e fotógrafo freelancer. Participou de várias exposições e ganhou concursos de fotografi a no RN,<br />

como “Revele a Vila”, “Visões da Redinha” e “Eu Fotografei as Kengas”. Porém, seu maior feito veio do Japão, com o concurso<br />

fotográfi co promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – 1994/95. Participaram do evento 19.491<br />

fotógrafos, oriundos de 153 países, concorrendo com 44.039 trabalhos. Desses, apenas cem imagens foram selecionadas para<br />

compor o catálogo, entre elas a sua foto “Earthen Men” (“Homens de Barro”). Contatos: (84) 3641-1949, 9984-0899.<br />

Jan/Fev 2006<br />

19


20 Jan/Fev 2006<br />

“OS CÃO”


Jan/Fev 2006<br />

21


22 Jan/Fev 2006<br />

“OS CÃO”


Jan/Fev 2006<br />

23


“Pessoal do Tarará”<br />

leva arte à periferia<br />

24 Jan/Fev 2006<br />

Sérgio Vilar<br />

Fotos: Anchieta Xavier<br />

É com o ideal de disseminar arte<br />

ao público da periferia que o grupo de<br />

teatro de rua “O Pessoal do Tarará”, de<br />

Mossoró, começou suas atividades. Música,<br />

circo, máscaras, barulho, ideologia,<br />

arte, enfi m, tudo aquilo que tem cor,<br />

vida e contrasta com o conceito de que<br />

as ruas são meros fl uxos econômicos de<br />

uma cidade, está presente no teatro de<br />

rua do Tarará. São nesses espaços cinzentos<br />

que o artista fala com seu semelhante<br />

de forma direta e pura.<br />

Tudo começou em novembro de 2002,<br />

com um par de tênis doado. Quando


se cogitou fazer uma rifa para angariar<br />

dinheiro e conseguir o fi gurino e artefatos<br />

para as primeiras apresentações. O<br />

apurado foi pouco, mas quem conhece<br />

a realidade de “O Pessoal do Tarará” reconhece<br />

que com o pouco se faz muito.<br />

O grupo iniciou os ensaios, nas praças<br />

de Mossoró e em um espaço emprestado<br />

por amigos, que funciona como sede<br />

improvisada. O primeiro espetáculo encenado<br />

foi o “Sanduíche de Gente”, do<br />

poeta mossoroense Crispiniano Neto.<br />

Ficou um ano em cartaz e ganhou, inclusive,<br />

as ruas de Natal.<br />

Com a peça, o grupo concorreu ao Prêmio<br />

de Fomento à Cultura, patrocinado<br />

pela Petrobrás e prefeitura de Mossoró.<br />

Venceu e ganhou R$ 15 mil. Foi o bas-<br />

tante para montar o segundo espetáculo:<br />

“O Inspetor Geraldo”, uma livre adaptação<br />

de “O Inspetor Geral”, de Nicolai<br />

Gogol, autor de clássicos da literatura<br />

russa. “Adaptamos à nossa linguagem, à<br />

nossa cultura, com os costumes da nossa<br />

terra”, explica o roteirista do espetáculo,<br />

Dionízio Cosme Neto, o Dionízio do<br />

Apodi. Sentida as difi culdades de locomoção<br />

do primeiro espetáculo, o grupo<br />

decidiu comprar bicicletas para cada<br />

componente e facilitar o transporte das<br />

indumentárias dos shows aos locais de<br />

apresentação.<br />

A necessidade virou marca do grupo.<br />

Chegada a hora da apresentação, lá vai<br />

“O Pessoal do Tarará”, em cima de bicicletas<br />

repletas de adereços variados e<br />

coloridos, em cortejo pelas ruas de Mossoró.<br />

Na frente, o ator Jarllon Azevedo,<br />

20, segura um alto-falante, a chamar<br />

todos ao espetáculo: “Pra você que está<br />

com nome sujo no SPC, está com insônia,<br />

vem para cá que você vai ser um<br />

novo moço, uma nova moça. É o grupo<br />

Tarará...”. E no improviso, acompanhado<br />

por apitos, buzinas e chocalhos dos<br />

outros componentes, o jovem ator guia<br />

um grupo de dez bicicletas até chegar à<br />

travessa Riacho Doce, no bairro Barrocas,<br />

periferia de Mossoró. Era lá a apresentação<br />

do dia.<br />

A presença repentina e barulhenta do<br />

grupo causa surpresa aos moradores<br />

das redondezas. Ao contrário daqueles<br />

que acenavam para o grupo no meio do<br />

Jan/Fev 2006<br />

25


caminho, as pessoas agora fi cam confusas<br />

com todos aqueles jovens, adultos<br />

e crianças com máscaras e pinturas no<br />

rosto, roupas espalhafatosas e um cenário<br />

simples, guardado dentro das maletas<br />

que seguem penduradas no bagageiro<br />

das bicicletas até o local da apresentação.<br />

Em cerca de 10 minutos o “palco” está<br />

montado. “Senhoras e senhores, respeitável<br />

público...”, anuncia o início do espetáculo<br />

o mais jovem componente do<br />

grupo, com apenas 12 anos, em cima de<br />

uma perna de pau.<br />

O espetáculo<br />

A trama da peça original, “O Inspetor<br />

Geral” é respeitada na livre adaptação do<br />

26 Jan/Fev 2006<br />

grupo: as autoridades de uma pequena<br />

aldeia tomam conhecimento de que um<br />

inspetor do governo chegará incógnito<br />

em breve para investigar certos abusos.<br />

Por acaso, um aventureiro passa por ali<br />

e os poderosos do local, achando que ele<br />

é o inspetor, fazem de tudo para suborná-lo.<br />

No entanto, o status de alguns personagens<br />

foi modifi cado. O aventureiro é<br />

um engraxate, que carrega toda a malícia<br />

e o jeitinho brasileiro de se dar bem<br />

em qualquer situação, e aproveita-se do<br />

suborno para dias de luxo. Para não citar<br />

o poeta russo, Punchin, no meio do<br />

roteiro, o grupo prefere os bons nomes<br />

da terra, como Antônio Francisco. A linguagem<br />

empregada é a de rua. E se há<br />

menção a alguma obra clássica, vai para<br />

o popular romance de Romeu e Julieta,<br />

escrito por “Xeiquespeáre”.<br />

Alguns componentes do grupo já realizavam<br />

outros trabalhos ligados ao teatro<br />

amador, mas a maioria se dividia em<br />

atividades distintas e aguardava, mesmo<br />

sem muito acreditar, o desejo de um dia<br />

trabalhar com teatro de rua. É o caso de<br />

Bené Tavares, o mais velho do grupo,<br />

com 46 anos.<br />

Bené largou a atividade de professor para<br />

entrar no grupo Tarará. Lecionava Filosofi<br />

a e Sociologia no Colégio Geo. E veio<br />

do Ceará para Mossoró só para isso, em<br />

1993. Sempre afi cionado pelo teatro de<br />

rua, ao ver a passagem do pessoal do Tarará,<br />

um velho sonho de juventude redi-


mensionou conceitos na mente de Bené.<br />

“Tenho aprendido com essa juventude<br />

a renovar minha mentalidade. Não vejo<br />

idade quando estou aqui (nos ensaios e<br />

nas apresentações). Vejo, sim, espírito e<br />

força de vontade. E isso ajuda até na formação<br />

dos meus fi lhos”, revela.<br />

Mesmo tendo largado a atividade pedagógica<br />

por completo, Bené ainda consegue<br />

tempo para dedicar-se ao rádio,<br />

aonde conduz o programa “Cantada<br />

Brasileira”. Na verdade, foi numa rádio<br />

em Icó, interior do Ceará, que Bené tomou<br />

gosto pela arte teatral, ainda com<br />

15 anos. Ele participava da Companhia<br />

Vassoura de Arte, que encenava apresentações<br />

na rádio. A temporada foi curta,<br />

mas a magia do teatro improvisado per-<br />

maneceu no jovem artista. Hoje, Bené<br />

interpreta a mulher do prefeito, na peça<br />

“O Inspetor Geraldo”. É ele quem arranca<br />

as maiores risadas do público.<br />

Euzimário Macário, 19, é outro exemplo<br />

de dedicação ao ofício. Ainda morador<br />

do sítio Juvenal, no distrito de Baraúna,<br />

Euzimário vem diariamente a Mossoró<br />

para o colégio e os ensaios com o Tarará.<br />

Por vezes, dorme na sede improvisada do<br />

grupo, devido às distâncias. Mas mesmo<br />

antes de entrar para o grupo e interpretar<br />

os protagonistas das peças, Euzimário já<br />

estudava teatro no grupo Arruaça, também<br />

de Mossoró. “Mas quando o Tarará<br />

passou, me chamou atenção o modo<br />

como trabalhava”. Ao deixar o grupo Arruaça,<br />

recebeu um convite de Dionízio<br />

do Apodi, diretor do Tarará, para integrar<br />

o grupo.<br />

“Estamos sempre aprendendo com as situações<br />

das ruas; o improviso leva a isso.<br />

Às vezes tem bêbado atrapalhando, é um<br />

cachorro que não pára de latir... Mas é<br />

tudo em nome da arte”, conclui.<br />

Com apenas três anos de existência, “O<br />

Pessoal do Tarará” já conseguiu gravar<br />

um documentário sobre a rotina do grupo,<br />

desde os ensaios, à saída da sede e<br />

apresentações na rua. O documentário<br />

foi premiado no Festival do Vídeo Potiguar.<br />

Além do documentário, foi feito<br />

o fi lme “Um Chão de Esperança”, de 45<br />

minutos com roteiro e direção de Dionízio<br />

do Apodi.<br />

Jan/Fev 2006<br />

27


DEÍFILO GURGEL<br />

David Clemente<br />

Fotos: Anchieta Xavier<br />

Deífi lo Gurgel, 79 anos, é um dos<br />

mais respeitados estudiosos do folclore<br />

no Rio Grande do Norte. Mas quando<br />

perguntado sobre sua profi ssão, responde<br />

simplesmente: “aposentado do Estado”.<br />

No entanto, essa classifi cação é<br />

vaga demais para quem publicou livros<br />

de poesia e sobre folclore, estudou Direito,<br />

foi bancário, professor, diretor do<br />

Departamento de Cultura da Prefeitura<br />

Municipal do Natal e diretor do Centro<br />

de Promoções Culturais da <strong>Fundação</strong><br />

José <strong>Augusto</strong>. Um currículo considerável<br />

para ser resumido apenas a “aposentado<br />

do Estado”.<br />

O pesquisador da cultura popular nasceu<br />

e viveu toda a infância na cidade de<br />

Areia Branca, a 330 km de Natal. Ele<br />

conta que seu pai era rigoroso em muitas<br />

28 Jan/Fev 2006<br />

coisas, mas quando se tratava de amizade,<br />

não havia restrições. O menino, que<br />

mais tarde seria folclorista, recorda que<br />

costumava brincar de “touro passa” e<br />

“barquinho passará”. As brincadeiras não<br />

infl uenciaram sua carreira, pois ele só<br />

veio a se interessar profi ssionalmente por<br />

folclore a partir dos 44 anos. Antes disso,<br />

sempre teve ligação afetiva com a cultura.<br />

Era poeta. Sua poesia está em quatro<br />

livros de versos inéditos e um quinto<br />

em que reúne os melhores poemas dos<br />

livros anteriores. O primeiro foi intitulado<br />

“Cais da Ausência”, publicado em<br />

1961. O segundo chamava-se “Os Dias<br />

e as Noites”, publicado em 1979. Em<br />

1983 nasceu “7 Sonetos do Rio e Outros<br />

Poemas”. Em 2002, publicou “Areia<br />

Branca, a Terra e a Gente”, no qual além<br />

de poesia há também história e antropologia<br />

e está, como diz o autor, “vendendo<br />

como cocada” porque consta no edital de<br />

um concurso da prefeitura da cidade. O<br />

quinto livro, de 2005, ganhou o nome<br />

de “Os Bens Aventurados”.<br />

Em 1967 ele recebeu o diploma de bacharel<br />

pela Faculdade de Direito de<br />

Natal. Mal teve tempo de praticar sua<br />

formação, pois em 1971 aceitou dirigir<br />

o Departamento de Cultura do Estado<br />

do RN. Foi quando nasceu seu interesse<br />

pelo folclore. Ao se instalar no novo<br />

local de trabalho, encontrou cadernos<br />

com cantigas folclóricas. Primeiro fi cou<br />

curioso, depois apaixonado e pôs-se a<br />

procurar mais registros culturais como<br />

aqueles. “Entrei com toda a força para<br />

o universo do folclore”, diz Deífi lo que<br />

até ensaia uma comparação com o conterrâneo<br />

Câmara Cascudo: “Ele estudou<br />

todos os países. Eu me centrei aqui no<br />

RN”. E quando volta ao assunto do diploma,<br />

ele diz não muito preocupado:<br />

“deve estar numa dessas gavetas da minha<br />

casa”.


“Escrevo com<br />

o coração”<br />

No mesmo ano em que tomou posse no<br />

seu novo cargo, o governador do Estado,<br />

Cortez Pereira, realizou uma grande<br />

festa para celebrar o natal. E lá estavam<br />

as tradicionais apresentações de Pastoril,<br />

Bumba-meu-boi, Chegança e Fandango.<br />

Numa delas, em São Gonçalo do Amarante,<br />

Deífi lo fi cou deslumbrado com a<br />

dança e as marradas do Boi. “Comecei a<br />

comprar livros para estudar o folclore e<br />

hoje tenho uma biblioteca”. Aquele era o<br />

elo entre o antes e o depois. A partir de<br />

então a poesia foi deixada de lado, pois<br />

era a vez do folclore. Apesar disso, ainda<br />

publicou livros de poesia.<br />

Em 1979 vieram dois novos desafi os para<br />

Deífi lo. Num deles teria que administrar,<br />

no outro, lecionar, ambos ligados à cultura.<br />

Nesse ano ele tomou posse como diretor<br />

do Centro de Promoções Culturais da<br />

<strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> e como professor<br />

de Folclore Brasileiro, na UFRN.<br />

Dois anos depois começavam os<br />

lançamentos dos seus livros sobre<br />

folclore. Respectivamente, Danças<br />

Folclóricas do RN; João-Redondo<br />

- Teatro de Bonecos do Nordeste;<br />

Romanceiro de Alcaçuz; Manual do<br />

Boi-Calemba; Espaço e Tempo do<br />

Folclore Potiguar.<br />

O livro com que Deífi lo mais se empolga<br />

para falar é, sem dúvida, Areia<br />

Branca, a Terra e a Gente. Somando<br />

todas as fases, o autor investiu<br />

15 anos para terminar a obra. Dos<br />

quais, dois para concluir a primeira<br />

parte e treze para a segunda, que trata<br />

da árvore genealógica das famílias da<br />

cidade. “Para desvendar a genealogia<br />

areia-branquense, foi necessário visitar<br />

casa por casa para ver as famílias”,<br />

diz. E conta orgulhosamente que no<br />

lançamento, o professor Vingt-un<br />

Rosado disse que dentro de 50 anos<br />

o RN não verá outro livro tão impac-<br />

tante. “Sempre escrevo com o coração.<br />

Mas nesse livro foram uns três ou quatro<br />

corações para escrever”, diz o autor.<br />

Além de todas as profi ssões, Deífi lo também<br />

atende pelo substantivo de pai para<br />

9 fi lhos, o de avô para 15 netos e de bisavô<br />

para quatro bisnetos.Todos frutos<br />

de um único matrimônio com Zoraide<br />

Gurgel, para quem ele compôs o poema<br />

“Musa”, em 1996.<br />

O folclorista cidadão<br />

O lado pesquisador do folclorista, por<br />

vezes se confunde com o cidadão. Deífi<br />

lo conta que muitas de suas fontes de<br />

pesquisa são pessoas comuns, mas que<br />

guardam na sua memória canções, versos<br />

e costumes folclóricos quase extintos.<br />

São geralmente pessoas tão comuns que<br />

sequer sabem o valor que essa memória<br />

tem para a cultura. Para o pesquisador da<br />

cultura popular, não é correto pesquisar,<br />

Jan/Fev 2006<br />

29


DEÍFILO GURGEL<br />

registrar e sumir. “Não é justo. Eles dão<br />

tanto para todos que eu tenho procurado<br />

ajudar”. O primeiro caso que ele relata<br />

é do cantador Chico Antônio. Quando<br />

o coquista foi redescoberto, a TV Globo<br />

o chamou e o Ministério da Cultura<br />

lançou o fi lme “O Herói com Caráter”.<br />

Mas ele queria algo para o artista. Conseguiu,<br />

então, uma aposentadoria de três<br />

salários mínimos.<br />

Em São Gonçalo do Amarante, na Grande<br />

Natal, mora Dona Militana (Militana<br />

Salustino do Nascimento), 80 anos,<br />

mais uma artista nata que Deífi lo descobriu<br />

e a classifi ca como “fenomenal”.<br />

Dona Militana, que recebeu das mãos<br />

do Presidente Lula a Ordem do Mérito<br />

Cultural, é considerada a mais importante<br />

romanceira do Brasil por conhecer<br />

diversas canções dos romanceiros ibéricos<br />

e brasileiros. Algumas delas datam da<br />

época da descoberta do Brasil.<br />

No mundo globalizado de hoje em dia,<br />

as músicas consideradas “da moda” também<br />

chegam aos ouvidos do dedicado<br />

pesquisador de cultura popular. E Deífi -<br />

lo admite que “música, seja ela qual for,<br />

há sempre canção boa”, dos Beatles aos<br />

forrós estilizados. E admite também que<br />

nem todas as cantigas de folclore são tão<br />

boas assim. “Algumas são monótonas,<br />

chatas e só têm valor histórico. Mas há<br />

outras belíssimas”. A proposta do professor<br />

para as apresentações é que sejam<br />

selecionadas as melhores como forma de<br />

agradar o público.<br />

30 Jan/Fev 2006<br />

Folk-lore<br />

A palavra “folclore” é derivada da junção dos termos ingleses “folk” e “lore”. O<br />

primeiro signifi ca povo e o segundo signifi ca saber. Portanto, Folk-lore quer dizer<br />

sabedoria de um povo. Com o passar do tempo a palavra perdeu o hífen (folklore)<br />

e depois adaptou-se ao português e passou a ser escrita folclore, como conhecemos<br />

hoje. Ultrapassando a grafi a, Deífi lo destaca a defi nição do professor paulista<br />

Racine Tavares, quando explica que Folclore é a ciência que estuda a cultura espontânea<br />

da gente do campo e da cidade. Não é adquirida em escolas e nem em<br />

faculdades, pois atinge desde analfabetos até doutores.<br />

Outra forma de entender o que é folclore é conhecer sua história. O professor<br />

Deífi lo explana que no RN, em determinada época, o estudo nessa área era menosprezado,<br />

pois começou com brincadeiras de escravos e pessoas que não tinham<br />

acesso à cultura erudita, quase sempre importada da Europa. Depois os próprios<br />

eruditos passaram a estudá-la e descobriram que naqueles versos espontâneos havia<br />

história e costumes descritos.


O fi lme Para<br />

um livro-em-progresso<br />

Moacy Cirne<br />

Encontro-me na primeira fi la, sentado,<br />

à espera do início da sessão. À espera do<br />

fi lme, qualquer fi lme de categoria, desde<br />

que brasileiro, espanhol, italiano. Ou<br />

francês. Só que o de hoje não é um fi lme<br />

qualquer. Agrada-me fi car na primeira<br />

fi la; sinto com mais intensidade a luz que<br />

vem da tela, o som que me envolve de<br />

forma quase sensual. Aos 35 anos, continuo<br />

amando o cinema, sempre amei.<br />

Desde os tempos de Caicó, no interior<br />

do Rio Grande do Norte. O Paissandu,<br />

hoje, é a minha segunda casa, moro aqui<br />

perto. Depois das sessões, gosto de discutir<br />

com amigos ou conhecidos nas mesas<br />

do Oklahoma, molhando as palavras<br />

sem maiores preocupações, sem maiores<br />

ilusões. Mas com muita paixão sobre<br />

o último Godard, o último Glauber, o<br />

último Antonioni, o próximo Nelson<br />

Pereira, o próximo Joaquim Pedro, o<br />

próximo Luiz Rosemberg. Ou a última<br />

sacanagem do governo. Às vezes, aparece<br />

uma amiga que me acompanha até o<br />

meu apartamento, na Senador Vergueiro.<br />

Mas eis que a sessão começa. Depois<br />

dos primeiros minutos, complementos<br />

inúteis, inicia-se o fi lme, um fi lme ansiosamente<br />

esperado por mim, que ainda<br />

não o conhecia, por incrível que pareça.<br />

Aliás, eu era o único da turma que não<br />

o conhecia. E o fi lme se desenrola, nobre<br />

e solene. Com sua música. Seus ruídos.<br />

Seus diálogos. Tu n’as rien vu à Hiroshima.<br />

Rien. J’ai tout vu. Tout. Non, tu<br />

n’as rien vu à Hiroshima. Ainsi l’hôpital,<br />

je l’ai vu. J’en suis sûre. L’hôpital existe<br />

à Hiroshima. Comment aurais-je pu<br />

éviter de le voir? Sim, a dor me toca, o<br />

passado não me consola, o presente me<br />

abstrai, a paz já não existe em minhas<br />

memórias. Sou Hiroshima, sou Nevers,<br />

sou Caicó, sou Natal. Sou o fi lme que<br />

me completa. Nas sombras do cinema.<br />

Nas sombras das vozes. Nas sombras do<br />

futuro. C’est à Nevers que j’ai été le plus<br />

jeune de toute ma vie... Jeune-à-Ne-vers.<br />

Jeune-à-Ca-i-có. Oui, Jeune à Caicó. Et<br />

puis aussi, une fois, folle à Natal. Viajo<br />

nas minhas idéias, nos meus sentimentos,<br />

nas minhas angústias; o fi lme me<br />

fascina, me consome, me embriaga, me<br />

destrói. Me diz tudo, tudo, tudo. Et la<br />

Loire? C’est un fl euve sans navigation<br />

aucune, toujours vide, à cause de son<br />

cours irrégulier et de ses bancs de sable.<br />

En France, le Seridó passe pour un fl euve<br />

très beau, à cause surtout de sa lumière...<br />

tellement douce, si tu savais. O que fazer<br />

da saudade que tenho do Seridó, da sua<br />

luz quando cheio de barreira a barreira?<br />

O que fazer das minhas desilusões? Das<br />

minhas esperanças desbotadas? O que<br />

fazer do amor que se perdeu no tempo<br />

e no espaço? Não o esquecerei, jamais.<br />

Jamais. Je t’oublierait! Je t’oubli déjá! Regarde,<br />

comme je t’oublie. Regarde-moi!<br />

Hi-ro-shi-ma. Hi-ro-shi-ma. C’est ton<br />

nom. Depois de tudo, a música. Depois<br />

do fi m, o silêncio. Estou exausto. Dilacerado.<br />

Desnorteado. Escuto as pessoas<br />

que se levantam de suas poltronas. Algumas<br />

vozes, alguns vazios. Tomo a minha<br />

bengala e começo a tatear, devagar; não<br />

tenho pressa. O encarnado e o azul há<br />

muito que me escaparam da memória.<br />

Há muito que deixei de sentir os crepúsculos<br />

e as cores do Seridó. Não vejo mais<br />

do que alguns poucos fi apos de sombras,<br />

alguns restos de pequenas certezas. Não<br />

vejo mais do que o nada e uma certa<br />

náusea. Moro perto, já disse. Sei voltar<br />

sozinho para casa. E hoje prefi ro voltar<br />

sozinho.<br />

[ in A palavra e outras palavras, a sair<br />

em 2006 ]<br />

Jan/Fev 2006<br />

31


Leito de saudades e lembranças<br />

Foto: <strong>Augusto</strong> César Bezerra - Arte digital: Venâncio Pinheiro<br />

32 Jan/Fev 2006<br />

Carlos Gurgel Poeta<br />

Acho de extrema importância se constatar,<br />

que na cena cultural da cidade, existem grupos<br />

que escolhem a poesia como base dos<br />

seus trabalhos. Aliás, é importante que se<br />

frise: pronunciar o poema, não é para qualquer<br />

um. Acredito, inclusive, que é necessário<br />

dispor de elementos cênicos, para que a coisa<br />

aconteça.<br />

Desse ângulo, é preciso que a interpretação, a<br />

expressão corporal e a técnica vocal, aqueçam<br />

e consolidem o ritmo de empatia com o que<br />

se quer mostrar.<br />

Falar poesia é difícil. Tem a escolha a ser feita<br />

dos poemas. Tem o ritmo de cada poema, a<br />

química de cada palavra (ao lado da outra). E<br />

tem (o que eu considero o mais importante),<br />

o sentimento, a emoção, o coração.<br />

É imprescindível que se tenha consciência<br />

que toda essa manufatura que se estabelece,<br />

ela é urdida por entre muitas noites de sonhos,<br />

e na maioria das vezes, uma constante<br />

e verossímil ampulheta que separa com suas<br />

lentes, o imaginário do factual.<br />

É como uma energia que alivia e retempera a<br />

verdade que cada palavra encerra. Ainda mais,<br />

se tudo que foi escrito, for dito por quem escreveu.<br />

É o que podemos chamar, a foz autoral.<br />

O próprio poeta dando o tom do seu<br />

sentimento. Do seu ar. Da sua temperatura.<br />

Esses meninos do “Elegia e seus Afl uentes”;<br />

Drika (vocal e poesias), Letto (violão, voz e<br />

arranjos), Maíra (percussão), Rita (percussão)<br />

e Jennifer (fl auta transversal, arranjos), estão<br />

suando e experimentando recados. Emoldu-


am com suas crenças e melodias, um livro<br />

recheado de avisos e apelos.<br />

Quem simpatiza, acolhe e propaga versos<br />

e batuques e que esteja afi nado como um<br />

segredo do coração, é bom fi car atento.<br />

O “Elegia” com seu som acústico, sem<br />

quase nenhuma distorção eletrônica,<br />

permite que a poesia de Drika pouse<br />

como uma chuva de recados. É dessa forma<br />

que o grupo, com seus couros, vozes<br />

e sinos, abre espaço na cena da cidade<br />

para mostrar para que veio. Com sua<br />

sensível veia poética, Drika assume com<br />

seu repertório, lugar de destaque na nova<br />

safra de poetisas da cidade.<br />

Com sua poesia, que chama todos nós<br />

para o diálogo da escolha. Da escolha<br />

de permanecer passivo, indiferente ou<br />

indócil, ou mostrar-se de olhos abertos,<br />

como percebendo que a vida capitula, só<br />

se quisermos.<br />

E assim também o som do “Elegia” acaricia<br />

sambas, lamentos, manhãs, chuvas<br />

e lágrimas. E ressuscita, como o arranjo<br />

de Letto, banhado por suas mãos, verbos<br />

e recados. Belezas e relíquias.<br />

É como se fosse, rimas e sinos. A vazante<br />

de uma infi nidade de possibilidades.<br />

Como uma fl auta que se quer no meio<br />

da noite, e que aponta o caminho que a<br />

música segue, sempre procurando o melhor<br />

inverno de letras. Sempre ao redor<br />

de Maíra com seus cachos de sons, com<br />

Ritinha com sua inabalável introspecção<br />

letra/música, e de Jennifer, sincera e de<br />

extremo bom gosto.<br />

Eu sei, eu acredito na capacidade que<br />

eles têm, de transformar o cotidiano em<br />

pura arte. De irrigar com seus afl uentes,<br />

a chama que alimenta o pão, a poesia, e<br />

da sonoridade que liberta mãos e olhos.<br />

Pois é preciso cada vez mais acreditar em<br />

verdades e vontades poéticas. (Até na zona<br />

desconhecida da criação). Como olhos<br />

que investigam penumbras e sombras.<br />

Como um garimpo de suor, como uma<br />

lanterna que ilumina ao redor do nosso<br />

mundo, a vontade de falar e de revelar o<br />

suspiro que reina entre rios e encostas...<br />

E sobre as veias que insistem em saciar<br />

com seus encantos, trilhas e línguas da<br />

nossa fragilidade humana. Sobre os<br />

aguapés de palavras e tons, instante onde<br />

se celebram pecados e promessas. Verões<br />

e quimeras.<br />

E sobre estalos e sussurros, também.<br />

Sim, sobre estalos. Ou você se esquece<br />

que a maioria do que se fala, nada vale?<br />

Nada vale a pena. E é aí que a poesia entra<br />

em cena.<br />

Portanto, o que se fala sempre está ligado<br />

a estalos. Como se fossem fi lmes<br />

desconhecidos. Onde o cenário é nuvem.<br />

Onde não se tem conhecimento<br />

de nada. Feito a idéia de Buca Dantas,<br />

que está fi lmando sem roteiro. O roteiro<br />

é feito na hora. Parecido com a língua,<br />

com o verbo e com as idéias que nos<br />

tornam cúmplices do desenlace, de tatos<br />

e tratos. E que (também) nos eleva<br />

a mártires, e a salvadores de uma noção<br />

que nada sabemos. E assim somos nós. E<br />

assim é a vida.<br />

Logo, quem, além da poesia, sobrevive<br />

com frases curtas (ou longas), a mesmice<br />

das coisas? Quem, íntegro e inteiro,<br />

procura pela parte que lhe cabe nesse<br />

latifúndio que nos resta? Quem há de<br />

possuir extensas lentes híbridas, e vislumbram<br />

a vastidão da estrada que nos<br />

abocanha?<br />

Poeticamente escrevemos. Poeticamente<br />

podemos falar. E poeticamente pensamos.<br />

A dança em que as palavras se<br />

mostram, os pensamentos que de tão<br />

enormes e vadios, nos transformam em<br />

códigos, sobrenomes, lembranças e temores.<br />

A poesia tem disso. Ela arma senhas e<br />

procura saídas. Às vezes nem tão pródigas.<br />

Outras, o próprio paraíso.<br />

Pois a poesia, às vezes nua, às vezes encoberta<br />

por silhuetas, não tem meio termo.<br />

Ela, com sua língua, de saliva farta<br />

e de longas abas, abocanha quem pensa<br />

que somos somente espelhos bizantinos<br />

e movediços.<br />

E no nosso chão, bem na nossa frente,<br />

poesia e música se fundem. Unem e irmanam<br />

visões de tantos varais. Uma<br />

melancolia que nos salva, recuperando<br />

a janela do espírito tão esquecido. Tão<br />

essência. Tão poesia.<br />

Parecida com a calma que guardamos ao<br />

redor do sol e da espuma do mar. Que<br />

nos lava como se fôssemos ilhotas, prenúncios<br />

de vento e tanta luz.<br />

Por isso que o “Elegia” navega sem pudor<br />

nas margens dos olhos e nas águas que<br />

de tão profundas, desembocam silêncios<br />

e riquezas. E ao redor das palavras que<br />

vão se encaixando como desenhos, rascunhos,<br />

abrigos. E na lenha do son(h)o<br />

verbal, que ressuscita o quebradiço da<br />

vida, que de sã, aceita avulsos acentos.<br />

É como apalpar palavras, que nos querem<br />

próximas de uma avalanche de ritmos.<br />

Embalando a letra tão curva, tão lâmina<br />

e tão frágil, como os pilares de uma<br />

língua que não se parte. E que não se<br />

curva. À espera de um dilúvio de tristes e<br />

aromáticos jardins. Que não se esconde.<br />

Como possuída por lentas e intransponíveis<br />

pepitas. Que não se poupa, como o<br />

prenúncio da espera do que virá. Como<br />

o cordão que alimenta portos e estopins,<br />

vazantes e amantes.<br />

Assim, a elegia que escolhemos, não<br />

passa por nós como uma andorinha que<br />

fenece. Ela assina a vida como um corredor<br />

de fantasias, quermesse de lendas e<br />

truques. Maresias da fútil lembrança das<br />

nossas sombras.<br />

Passageiros somos todos nós. De uma<br />

eterna e preciosa lembrança do passado.<br />

Que passa por cima de morros. Aldeias.<br />

Cardumes. Varreduras.<br />

Assim somos nós. Hóspedes do passado.<br />

Parentes de lentas e tontas agonias. Parceiros<br />

da luz, que organiza circos. E da<br />

imaginação que nos exorta.<br />

E livre de toda e qualquer trapaça que<br />

ainda podemos passar. Guerreiros de uma<br />

louca e desavisada aventura chamada vida.<br />

Recheada de tapumes e dragões. E dos<br />

Jan/Fev 2006<br />

33


Fogo contra fogo<br />

34 Jan/Fev 2006<br />

Rubens Lemos Filho Jornalista<br />

Juntar Al Pacino e Robert de Niro num mesmo fi lme<br />

tem o peso de um duelo entre Patton e Rommel na 2ª<br />

Guerra Mundial. Ou, puxando meu cordão umbilical<br />

com uma bola de futebol, a um confronto acima do<br />

tempo e da lógica entre Pelé e Maradona. Um aos 22<br />

anos, disputando o título intercontinental pelo Santos<br />

contra o Benfi ca. Dieguito aos 26 na Copa do<br />

México, que ganhou sozinho.<br />

Em “Fogo contra Fogo”, de 1995, Pacino vive um<br />

policial atormentado por um péssimo casamento do<br />

qual recebeu de dote uma enteada com tendências<br />

suicidas, e De Niro é o maior bandido de Los Angeles<br />

e redondezas. Frio, sofi sticado, inteligente. Pacino<br />

imbatível como Vincent Hanna, o detetive de Homicídios,<br />

De Niro implacável como Neil McCauley.<br />

É um marco do cinema. Os dois também estavam na<br />

segunda parte da trilogia de “O Poderoso Chefão”.<br />

Mas não contracenaram. De Niro encarnou Dom<br />

Vito Andolini, Dom Corleone, pai de Michael, personagem<br />

de Pacino de crueldade invejável.<br />

”Fogo contra Fogo” é extremamente atual. Pela letalidade<br />

das armas, pelo requinte dos crimes, pela<br />

brutalidade dividida entre policiais e bandidos, rajadas<br />

a granel pelas ruas movimentadas da metrópole.<br />

Ninguém é respeitado nos tiroteios. É bala para quem<br />

puser cara e focinho.<br />

Pacino passa a pesquisar a vida de De Niro. Seus truques<br />

e manhas. McCauley corrompe um tira para sa-<br />

ber mais sobre Vincent Hanna. Os dois<br />

se respeitam como os grandes times, os<br />

generais de batalha.<br />

Até que marcam um encontro. Num<br />

bar. Tomando cafezinho. De frente um<br />

para o outro. Perguntam, um ao outro,<br />

a receita para sobreviver até o juízo fi nal<br />

que será o clássico entre ambos, o duelo<br />

moderno do Curral O.K.<br />

Hanna (Pacino) diz que não hesita<br />

quando a hora exige matar. Pensa nas vítimas<br />

das mortes que investiga. Guarda<br />

um ódio melancólico traduzido por seus<br />

olhos de peixe com sono. E descarrega o<br />

ódio e o pente do seu fuzil com toda a<br />

força. De Niro (McCauley) chega a ser<br />

fi losófi co. Conta que não se deve apegar<br />

a nada que não se possa largar em 30<br />

segundos. Tem o coração seco. Engata<br />

uma paixão por uma webdesigner. Escanteada<br />

quando ele encontra a chance<br />

de matar um delator. Um jura liquidar<br />

o outro.<br />

Só um dos dois sobra no fi m. E é Vincent<br />

Hanna. Mas de McCauley sobra a<br />

maior lição sobre a raça humana: Não<br />

confi e nela. Se livre nos 30 segundos que<br />

lhe restarem.


POESIA POTIGUAR<br />

O poeta potiguar Elí Celso de Araujo Dantas da Silveira<br />

é Doutor em Teoria Literária pela UFRJ e Mestre em<br />

Tecnologia Educacional pela UFRN. Especializou-se em<br />

Filosofi a e foi professor do Departamento de Educação da<br />

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 1991,<br />

em parceria com os poetas Iracema Macedo, Celso Boaventura<br />

Jr. e André Vesne, publicou poemas nas coletâneas<br />

Vale feliz, Gravuras (1995) e Ceia das cinzas (1998). Tem<br />

parceria só com Celso Boaventura Jr. - Reminiscências do<br />

Tártaro/Lamentações, respectivamente. É fi lho dos poetas<br />

Celso da Silveira e Myriam Coeli. Já foi premiado com o<br />

Othoniel Menezes e o Câmara Cascudo, entre outros. Em<br />

2004, ganhou menção honrosa no Concurso de Poesia Luís<br />

Carlos Guimarães, da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>. Os poemas<br />

que seguem foram publicados no livro 15 Poetas do RN,<br />

lançado no ano passado pela FJA, com os poemas vencedores<br />

do Concurso de Poesia LCG 2004. Como saíram com<br />

erros, decidimos publicá-los na Preá, como forma de minimizar<br />

o dano.<br />

PEQUENA INTRODUÇÃO AO LOUCO<br />

Era da maior pureza<br />

vestia camisas brancas<br />

não comia carne<br />

ouvia pela casa uma música silenciosa<br />

de cornetas roucas e fl autinhas fanhas<br />

que só ele ouvia<br />

diziam-no louco<br />

pois cuidava de gaiolas vazias<br />

desperdiçava guardados<br />

e ria mesmo dos pedintes<br />

por fi m atravessava meia cidade<br />

com um ramo de jasmim na mão direita<br />

para jogá-lo no rio<br />

gastava uma tarde na margem<br />

fazia nada<br />

voltando para casa<br />

aceso o candeeiro<br />

o colocava sobre o alqueire<br />

para que iluminasse a treva da casa<br />

O AFOGADO<br />

acordamos todos os dias<br />

eu e meu fantasma<br />

ele me confessa agora tudo<br />

depende de ti: ou imito<br />

o meu tempo ou fujo do teatro<br />

se canto o átimo<br />

ou as rendeirinhas<br />

canto contudo sem força<br />

mal dou meu corpo para o dia<br />

mal elaboro a falsa continuidade<br />

...e logo as mesmas solidões<br />

beijam minha voz cansada<br />

meus braços bons<br />

as rosas pálidas dos jardins públicos<br />

os vasos de guerra<br />

mas seja porque já vai tarde<br />

ou se é por a fl or lamentar a semente<br />

(se a que vem, se a que foi)<br />

passo a olhar nuvens<br />

as cidades armadas no céu<br />

o distante que houver<br />

e além dessa saudade<br />

de não saber de nada<br />

e que me rouba dum futuro absurdo<br />

e pretexta minha volta<br />

em golpadas arremessando<br />

de agora para frente<br />

no molhe da entrada da barra<br />

arremessando arremessando<br />

Jan/Fev 2006<br />

35


LIVRO DOS MORTOS<br />

em antigos jazigos<br />

plantaram três mortos<br />

sementes de trigo<br />

depois desses mortos<br />

depois desse trigo<br />

abriu-se um céu<br />

pão de paraísos<br />

jardim de perigos<br />

se a carne desceu<br />

mas se a carne ardeu<br />

a infernos comigo<br />

meu fruto venceu<br />

os fogos do trigo<br />

co’as minhas raízes<br />

cresceram abismos<br />

tapou-me os ouvidos<br />

um silo de nada<br />

num mundo sem cor<br />

uma boca fechada<br />

fechando meu grito<br />

às margens de nada<br />

negrura rehabito<br />

guardo pelo tempo<br />

terra e escuridão<br />

o ventre emproado<br />

a barca emprenhada<br />

num rio esquecido<br />

e sempre perdido<br />

coração de treva<br />

por raiz cerzido<br />

guardo, ...<br />

guardo aqui comigo<br />

36 Jan/Fev 2006<br />

TÉDIO / ABPAXAΣ<br />

(linhas fecham círculos)<br />

nome e armas da família<br />

foram barco desse engodo<br />

no século dezoito<br />

um senhor de vassalos<br />

fi lho de D. Miguel da Guirlanda<br />

cujo fi lho fi cou viúvo<br />

e alcoólatra consumado<br />

já vivia desordenadamente<br />

entre os seus servos<br />

gestas de enfado<br />

as bandeirolas da Casa<br />

serviam de guardanapo<br />

os lírios caíam ao chão<br />

eram vidro estilhaçado<br />

leões* perdidos em fl ores<br />

abriam-se no mundo errado<br />

os amores atravessavam espinhaços<br />

das senhorias de Vilanova de Tormes<br />

para desagüar no mar frio<br />

outubros abandonando-se em maios<br />

e os perfumes e os calafrios<br />

na fl or que dorme<br />

pesada de pesaδeλoς<br />

suspensa em janeiros<br />

e em cravos de aço<br />

eram guirlandas de dor<br />

e seduções de março<br />

ô tia minha myséria<br />

este homem era eu<br />

elí de araujo o entediado<br />

defronte ao que não acaba<br />

por entre beleza e horror<br />

girei a rosa do calendário<br />

_________________<br />

*o λις


ERRO<br />

(`Éρρω)<br />

nome cálido, inferno branco<br />

ouro de neblina<br />

mina de menina<br />

abrindo-me ao fl anco<br />

segredo de amador<br />

na confusão da fl or<br />

te peço a pôr alma<br />

onde morte mia calma<br />

pelejando noite e enfado<br />

se sabes que é do lado<br />

que esse rio tem brotado<br />

da fonte tua na costa minha,<br />

nome a tal consolo<br />

dá-me um: sou tolo.<br />

nome de rio ou n’alma<br />

guardarei se morte ou fala.<br />

ah, menina do fl anco<br />

aberto ao vento deserto,<br />

me inundo da neblina,<br />

nome cálido, inferno branco<br />

pois és só a que me toca<br />

pó é só o que me sina.<br />

DONJON/NEMÓLITO<br />

Tu és o cavaleiro que conquista.<br />

Que adentra meu castelo<br />

pela ponte levadiça<br />

Que me sobe ao torreão<br />

e abraça-me o peito ninho<br />

Mha senhor, que desespero<br />

eu tinha antes de ti ...<br />

Tu és a amazona que fere<br />

os alvos da minha carne e pele.<br />

Que me rouba de mim<br />

A de pretos cabelos de treliça<br />

Mha senhor, algoz desespero<br />

eu tinha antes de ti<br />

ASTROLÁBIO<br />

O teu sexo é instrumento graduado<br />

que me leva às estrelas,<br />

me ensina<br />

O teu braço é um compasso<br />

que me afaga de leve<br />

e me fulmina<br />

O teu quadril é uma fera<br />

que me recoita marés<br />

e me rumina<br />

A tua ternura é um calor<br />

uma solidão sem dor<br />

me termina<br />

(o teu peito é o pêssego do mundo)<br />

Jan/Fev 2006<br />

37


Sou homem,<br />

dentro da minha<br />

barriga<br />

crio<br />

úteros<br />

fera fútil<br />

faço poemas<br />

gero assim sacrilegamente<br />

pães ou trufas<br />

selas de cavalo/ranúnculos<br />

meu olho é um bornal<br />

o pênis arsenal-arma<br />

os círculos concêntricos<br />

do coração<br />

milícia de involuções<br />

chocam arrecifes<br />

Sou homem,<br />

dentro da minha<br />

cabeça, num planeta balofo<br />

crescem zoológicos<br />

a varejo,<br />

colméias de pequenos anjos<br />

burocratas<br />

e um cristo<br />

humilhadíssimo<br />

38 Jan/Fev 2006<br />

PEQUENO GÊNESIS SEGUNDO ELÍ DE ARAUJO<br />

Onde dorme a mãe do homem?<br />

Entre os braços e os ossos do deus?<br />

A casa do deus é uma fotografi a<br />

tomada a favor do sol<br />

em tarde antiga e pia<br />

A casa do deus tem a granulação dourada<br />

da rosa do deserto<br />

é numa encosta amarelada<br />

que se esboroa esboroa<br />

esboroa<br />

a casa do deus<br />

onde dorme a mãe do homem,<br />

fl or que não murcha ave que não voa?<br />

A casa do deus é no fi rmamento<br />

numa ilha qualquer pendurada ao vento<br />

A habitação do homem é barro<br />

e pulmão e vazio e vento<br />

com um só pavimento<br />

a casa do homem é feita<br />

com traves de carnaúba<br />

nos subúrbios do tempo<br />

Onde mora a mãe do homem?<br />

A que se veste de noite e dias?<br />

Suas janelas, de vidro bisotado<br />

seu dentro de brita e cimento<br />

sua coluna de um ferro de mãe<br />

duras suas mãos de ungüento<br />

Por uma tristeza e um naufrágio<br />

se eu soubesse te diria<br />

mas me falta crer os amargos<br />

desses mitos e da cosmogonia


Agenda<br />

Michelli Pessoa (nyla_br@yahoo.com)<br />

Centro de Formação Teatral<br />

O Centro de Teatro, da <strong>Fundação</strong> José<br />

<strong>Augusto</strong>, oferece em março e abril, ofi -<br />

cinas de Iniciação Teatral, para a faixa<br />

etária a partir dos 14 anos, com os professores<br />

Lenilton Teixeira e João Júnior;<br />

ofi cinas de Jogos Teatrais para crianças,<br />

dos 8 aos 12 anos, com Titina Medeiros,<br />

João Júnior e Quitéria Kelly; Módulo II,<br />

com alunos de Iniciação Teatral em montagem<br />

de espetáculo no segundo módulo<br />

do curso com João Júnior e a Sala de Leituras,<br />

voltada para o exercício da fala, da<br />

palavra e da dramaturgia, com Henrique<br />

Fontes. Informações: (84) 3212-1663.<br />

Site interessante<br />

Em seu blog (http://grandeponto.blogspot.com)<br />

Alexandro Gurgel publica<br />

notas, artigos, crônicas, fotos, poemas e<br />

reportagens sobre diversos temas.<br />

Cidade da Criança<br />

No dia 8 de abril a Cidade da Criança<br />

realiza o I Festival de Viola, com artistas<br />

da Paraíba, Ceará e Rio Grande do<br />

Norte. No mesmo dia e local será aberta<br />

exposição de gravuras de Alcides Sales.<br />

Mais informações: (84)3232-9757.<br />

Seis e Meia<br />

O projeto Seis e Meia será reiniciado no<br />

dia 21 de março com o grupo Delicatto,<br />

no Teatro Alberto Maranhão. Informações:<br />

(84) 3232-3669/3232-9704.<br />

Casas de Cultura Popular<br />

Em março, as Casas de Cultura de<br />

Macau, Currais Novos, Parelhas, Caicó<br />

e Campo Grande realizarão ofi cinas<br />

de teatro, música (fl auta doce e coral),<br />

dança e artesanato. Em abril, a Casa de<br />

Cultura de Martins oferecerá ofi cinas<br />

de Câmara de Cinema e Vídeo (Projeto<br />

“Cinema para Todos”).<br />

13 POR 1<br />

I Concerto Didático da OSRN; dias 30<br />

e 31, às 21 horas, comédia teatral “As<br />

Coroas”, com a Cia. Paraibana de Comédia<br />

e texto de Saulo Queiroz.<br />

Teatro Alberto Maranhão<br />

A programação de março do TAM é a Programação de março do TCP<br />

seguinte: de 09 a 12, às 21 horas, o es- A programação do Teatro de Cultura Popetáculo<br />

“Aluga-se um Namorado”, com pular, da FJA, para março é a seguinte:<br />

Eri Johnson e texto de James Scherman; Dia 8, às 17 horas: “CANTART” - Arte<br />

dia 12, às 17 horas, espetáculo infantil e Poesia para as Mulheres; dia 17, às 15<br />

“Rock Monstro”, com texto de Valeska horas: Espetáculo teatral “A Princesa En-<br />

Picado; dia 14, às 10h e às 15 horas, gasgada ou o Médico Camponês”, texto<br />

Projeto Escola - espetáculo “ A Princesa de Márcia Frederico e direção de Gil-<br />

Engasgada”, com a Cia. de Teatro GRU- berto Brito, com o grupo de teatro de<br />

TUM; dias 15 e 16, às 20 horas, espe- Mossoró GRUTUM; Dia 17, às 20h30,<br />

táculo “Dom Casmurro”, com o grupo show de humor “Descasacando”, com<br />

GRUTUM; dia 19, às 17 horas, espetá- “Casaca de Couro”; Dias 23 e 24, às 20<br />

culo infantil “Chapeuzinho Vermelho”, horas, espetáculo teatral “À Luz da Lua,<br />

com texto e direção de Geraldo Maia; de os Punhais”, texto de Racine Santos, com<br />

24 a 26, às 21 horas, espetáculo “Beijos o grupo de teatro do TCP e direção de<br />

de Verão”, com Bruno Ferrari e texto de Sônia Santos; Dias 25 e 26, às 19 horas,<br />

Domingos Oliveira; dia 26, às 17 horas, espetáculo teatral “Enquanto a Tempes-<br />

espetáculo infantil “O Gatinho Nicolau”, tade não Passa...”, com o grupo Cumbu-<br />

com o grupo Manacá de Teatro, texto ca Teatral, texto e direção de Weid Sousa;<br />

de Mano Macário; dia 28, às 20h30, I Dia 27, às 13 e 20 horas, “À Luz da Lua,<br />

Concerto da OSRN; dia 29, às 15h30, os Punhais”. Informações: 3232-5307.<br />

Marcos Ferreira (escritor)<br />

Romancista: José Humberto Dutra<br />

Poeta: Márcio de Lima Dantas<br />

Livro: Saudades, de Francisco Rodrigues da Costa<br />

Filme: Caldeirão do Diabo<br />

Diretor de cinema: Moacy Góes<br />

Ator/atriz: Carlos José (Contonete)<br />

Pintor: Fábio Eduardo<br />

Cantor/cantora: Genildo Costa<br />

Compositor: Danilo Guanais<br />

Música: Santo de Barro, de Iremar Leite<br />

Peça teatral: Chuva de Bala no País de Mossoró<br />

Intelectual: José Nicodemos<br />

Personalidade cultural do RN: Raimundo Soares de Brito<br />

Jan/Fev 2006<br />

39


FOCO<br />

POTI<br />

GUAR<br />

DOIS FESTIVAIS<br />

40 Jan/Fev 2006<br />

Marcos Aurélio Felipe<br />

aurelio.felipe@uol.com.br<br />

http://focopotiguar.zip.net/<br />

Quando, no último Festival de<br />

Cinema de Natal, me sentei na poltrona<br />

do Centro de Convenções, as expectativas<br />

ultrapassavam toda e qualquer<br />

noção de espaço e tempo – toda lógica<br />

e estética, todo o entendimento possível...<br />

Mas o fato é que todo e qualquer<br />

fi lme do diretor brasileiro Carlos Reichenbach<br />

entraria na minha lista como<br />

algo a ser esperado e, imediatamente,<br />

visto com muita expectativa, já que no<br />

mesmo evento e em uma projeção semelhante<br />

anos atrás tive o prazer diante<br />

da tela como há tempos não sentia<br />

na sala de cinema. Desde “Dois Córregos”<br />

(1999), quando não consegui<br />

conter meu entusiasmo após a sessão<br />

e percorri a cidade do Natal quase que<br />

de uma ponta a outra incorporando<br />

aquela atmosfera lírica e histórica, que<br />

aguardava outro fi lme seu com os nervos<br />

à fl or da pele.<br />

Porque a história de Hermes (Carlos Alberto<br />

Riccelli), que vive clandestino no<br />

Brasil ditatorial após participar da luta<br />

armada, chegou em um momento em<br />

que as coisas estavam sendo defi nidas.<br />

Eu tinha acabado de elaborar o projeto<br />

para a pós-graduação em educação, contactar<br />

alguns personagens da época do<br />

Regime Militar no RN e de ter acesso<br />

aos processos dos presos políticos no arquivo<br />

público do Estado. Afora que, em<br />

“Dois Córregos”, o lirismo que marca<br />

aquele piano, o silêncio daquele homem<br />

preso ao passado político e afetivo e as<br />

cartas que escrevia aos fi lhos mesmo sabendo<br />

que não seriam enviadas, já eram<br />

mais do que sufi cientes. Mas o fato é que<br />

o novo fi lme de Reichenbach não provocou,<br />

em mim, o mesmo entusiasmo<br />

que o seu cinema havia provocado anos<br />

atrás.<br />

Talvez porque “Bens Confi scados”<br />

(2005), ao assemelhar-se a um projétil<br />

estilhaçado, tenha seu núcleo dramático<br />

fragmentado demais, o que acarreta<br />

o deslocamento do seu foco sem muita<br />

precisão e propósito. Assim, o centro da<br />

câmera é dominado ora pela relação de


Serena (Betty Faria) e Luis Roberto (Renan<br />

<strong>Augusto</strong>) ou pela história do caseiro<br />

(Werner Schunemann) e sua jovem esposa,<br />

ora pelo núcleo que se forma em<br />

torno dos personagens do hotel (Marina<br />

Person e Eduardo Dusek) ou pelas relações<br />

entre Serena e Luis Roberto com os<br />

demais personagens – além do assessor e<br />

do político corrupto, que, invisivelmente,<br />

movem a história. Apesar de chegar<br />

uma hora em que é preciso perguntar<br />

sobre “quem?” ou “o quê?” é o fi lme,<br />

vemos a composição de inesquecíveis e<br />

belos momentos.<br />

A abertura de “Bens Confi scados”, assim<br />

como a cena fi nal de “O Pântano”<br />

(2001, de Lucrecia Martel) com toda<br />

aquela atmosfera envolta da queda daquela<br />

escada, trás uma das cenas mais<br />

instigantes do cinema contemporâneo<br />

– a do suicídio da estilista amante do<br />

político corrupto em pleno centro de<br />

São Paulo. Quando, nessa cena, o foco<br />

sobre a relação personagem-espaço inverte<br />

seu ponto de vista para a relação<br />

personagem-história, a inversão em escala<br />

e ângulo da câmera justifi ca a si e ao<br />

próprio fi lme. De modo que, ao sair da<br />

relação da personagem com a metrópole,<br />

o que então passa a interessar às suas<br />

lentes é a relação que os indivíduos estabelecem<br />

com suas vidas. Na escolha do<br />

movimento, da escala e do ângulo dessa<br />

tomada temos toda a história e o que sob<br />

suas cortinas decidem os personagens.<br />

Portanto, apesar da diversidade espacial,<br />

o que fi ca mais evidente são as<br />

decisões que afetam os destinos dos<br />

personagens. O que, em parte, justifi ca<br />

a fragmentação do foco dramático que,<br />

a cada deslocamento de espaço, inverte<br />

a noção de personagem principal e coadjuvante.<br />

Porque, assim como na vida,<br />

a fi cção têm histórias particulares que<br />

também precisam ser consideradas. Mas<br />

a inversão mais signifi cativa está no<br />

diálogo que “Bens Confi scados” mantém<br />

com “Dois Córregos”, quando, por<br />

exemplo, ausenta o Pai que antes estava<br />

presente; dar vida ao “Filho” e a “Mãe”<br />

e a Praia de Cidreiras–RS que apareciam<br />

somente em delírios; e quando, a partir<br />

dos mesmos ângulos, faz reviver imagens<br />

do fi lme anterior – como a estética de<br />

uma contínua e permanente evocação<br />

cinematográfi ca.<br />

Jan/Fev 2006<br />

41


Gustavo Porpino<br />

Foto: Anchieta Xavier<br />

A riqueza cultural do Rio Grande<br />

do Norte é indiscutível. Muito se fala<br />

das danças folclóricas, poetas populares,<br />

violeiros, culinária típica e costumes peculiares<br />

ao sertanejo, mas são escassas as<br />

tentativas de dimensionar a cultura potiguar.<br />

A Preá tem cumprido seu papel de<br />

mostrar as muitas faces das regiões potiguares.<br />

Em três anos desbravando o Rio<br />

Grande do Norte foram mais de 15 mil<br />

quilômetros percorridos entre idas e vindas<br />

de Natal ao interior. Subimos serras,<br />

visitamos sítios arqueológicos, conhecemos<br />

dezenas de tipos populares e vimos<br />

manifestações folclóricas brotarem em<br />

todas as regiões visitadas.<br />

Comemos muito também! A tapioca<br />

feita na casa de farinha do Rosário,<br />

em Portalegre, é imbatível. A autêntica<br />

carne-de-sol de Pau dos Ferros, o bolo<br />

ligado de São Miguel, o caldo de camarão<br />

do Gargalheiras, em Acari, e o guiné<br />

torrado de Lagoa de Velhos ainda atiçam<br />

meu paladar. Queijeiras foram muitas.<br />

Experimentamos de tudo. O chouriço<br />

de Carnaúba dos Dantas, por exemplo,<br />

pode não ser atrativo visualmente, mas<br />

quem saboreia gosta. Às vezes parecíamos<br />

candidato a deputado em campanha<br />

pelo interior. Um convite para tomar um<br />

42 Jan/Fev 2006<br />

Descobertas e aprendizado<br />

pelas veredas do<br />

Rio Grande do Norte<br />

Anchieta Xavier (fotógrafo), Érico Alves (motorista e “faz tudo”) e Gustavo Porpino: quase 15 mil quilômetros rodados em<br />

busca da verdadeira cultura do RN<br />

café com bolo ali, um doce de leite com<br />

queijo de manteiga acolá. E nas conversas<br />

com a gente simples do interior potiguar<br />

surgiam bons personagens e informações<br />

valiosas para enriquecer as matérias.<br />

Comprovamos a receptividade potiguar<br />

e fomos sempre bem recebidos. Depois<br />

da consolidação da revista, lá pela edição<br />

número 5, a chegada da equipe da Preá<br />

foi até motivo de festa em alguns municípios.<br />

Em São José de Campestre, tinha<br />

faixa de boas vindas ao lado da igreja e<br />

uma mesa farta com galinha caipira, feijão<br />

macassar, batata-doce, farofa e arroz<br />

de leite à nossa espera. O motorista Érico<br />

Alves e o fotógrafo Anchieta Xavier,<br />

gulosos assumidos, se deleitavam a cada<br />

banquete.<br />

Paisagens surpreendentes foram muitas.<br />

A vista das serras de Portalegre e Martins<br />

no inverno encanta até mesmo a quem<br />

está acostumado a passar férias na Europa.<br />

A estrada de São Miguel a Venha<br />

Ver, também em época de chuvas, corta<br />

um vale de verde intenso e pequenas<br />

fl ores. Cenário bem diferente do interior<br />

nordestino estereotipado pela mídia. Em<br />

cada lugar visitado, uma surpresa. Personagens<br />

que ainda guardam a sabedoria<br />

do sertanejo e tem muito a contar.<br />

A primeira edição da Preá já trouxe uma<br />

destas fi guras quase extintas pela massifi<br />

cação cultural. Dinho de Zé dos Santos,<br />

o poeta do caderninho azul, teve a<br />

primeira oportunidade de mostrar seus<br />

versos originais nas páginas de uma re-


vista. Descobrimos outros poetas populares,<br />

cordelistas, violeiros, rezadeiras<br />

e até cantadoras de incelências. Quase<br />

todos os artistas têm algo em comum.<br />

São pessoas simples e muito receptivas.<br />

Alguns vivem em condições de pobreza<br />

extrema como o poeta e violeiro mossoroense<br />

Luís Campos. Mas não lembro de<br />

ter encontrado gente infeliz.<br />

A alegria de Dona Aldizes Bessa, dançadeira<br />

de São Gonçalo, no sítio Pega, em<br />

Portalegre, foi marcante. Outras comunidades<br />

de negros também nos receberam<br />

muito bem. Em Patu, fomos surpreendidos<br />

pela riqueza cultural dos negros do<br />

Jatobá com sua louvação a São Benedito.<br />

Comprovamos também a vivacidade da<br />

dança dos Negros do Rosário de Caicó,<br />

e seus compadres nas proximidades de<br />

Parelhas.<br />

Fomos bater na divisa de São Miguel<br />

com Pereiro (CE) para conhecer a dança<br />

de São Gonçalo feita por lá. Ouvimos<br />

cânticos preservados que atravessaram<br />

mais de um século e registramos também<br />

a arte da louceira mais antiga de São<br />

Miguel. Bois-de-reis foram vários. Uns<br />

feitos como antigamente, outros mais<br />

infl uenciados pela modernidade. Mas,<br />

como bem disse Ariano Suassuna, a cultura<br />

popular se transforma. Não temos<br />

o direito de querer que as manifestações<br />

folclóricas permaneçam sempre iguais.<br />

Tivemos muitas conversas curiosas. Destaco,<br />

aqui, duas fi guras pitorescas. O<br />

mestre Antônio da Ladeira, comandante<br />

do Boi-de-reis de Santa Cruz, e Anacreonte,<br />

um seridoense de Cruzeta, homem<br />

humilde e grande conhecedor da genealogia<br />

do povo da sua região. Vencemos a<br />

resistência dos dois em contar um pouco<br />

sobre suas vidas. Antônio é um autêntico<br />

cabra da peste. Durante a conversa,<br />

o mestre do Boi-de-reis não largou, em<br />

nenhum momento, um cacetete de madeira<br />

feito por ele. “Se vier com frescura,<br />

eu dano no pé do ouvido”, disse. Anacreonte,<br />

também desconfi ado, não admitia<br />

ser fotografado. Para ele, a máquina era<br />

“coisa do cão”.<br />

A Preá também acerta ao exibir em suas<br />

páginas a riqueza dos sítios arqueológicos<br />

potiguares. O sítio Xiquexique, em<br />

Carnaúba dos Dantas, foi o que mais<br />

me despertou interesse. Não esperava<br />

encontrar tantas pinturas rupestres ricas<br />

em detalhes e tão nítidas, apesar da falta<br />

de interesse do poder público em preservar<br />

estes locais tão ricos em história. O<br />

Lajedo Soledade, em Apodi, por ter mais<br />

fama e já receber investimentos públicos,<br />

não chegou a me surpreender tanto.<br />

Mas, obviamente, também é um lugar<br />

encantador que merece ser visitado.<br />

Timbaúba dos Batistas, terra dos bordados,<br />

também superou nossas expectativas<br />

com suas inscrições rupestres no<br />

sítio Pintado. Foram várias descobertas<br />

e muito aprendizado. A entrevista com<br />

Ariano, no casarão do bairro Casa Forte,<br />

no Recife, foi uma aula de teatro e cultura<br />

popular.<br />

Também resgatamos fotógrafos importantes<br />

da cena natalense como Jaeci<br />

Emerenciano, destaque da oitava edição,<br />

e convencemos Giovanni Sérgio, um<br />

verdadeiro poeta da imagem, a ganhar<br />

as páginas do número 11. Outro perfi<br />

l, daqueles que todo repórter gosta de<br />

escrever, foi feito com o poeta “galado”<br />

Alex Nascimento. Criativo e sarcástico,<br />

Alex diz tudo que a gente gosta de ouvir.<br />

Quem não leu, pode conferir na Preá 14.<br />

Todas as edições estão disponíveis na página<br />

da FJA na internet (www.fja.rn.gov.<br />

br).<br />

Faria tudo de novo. Conheci o Rio<br />

Grande do Norte e seu povo em sua plenitude.<br />

Vi uma terra culturalmente rica<br />

e de povo humilde. Faltou agradecer a<br />

alguns pela oportunidade. Deixo aqui o<br />

meu agradecimento e a vontade de rever<br />

cada personagem. Vida longa à Preá!<br />

Jan/Fev 2006<br />

43


O pensamento vivo de Guimarães Rosa<br />

44 Jan/Fev 2006<br />

Nei Leandro de Castro Escritor<br />

Em novembro de 1967, no meio do caminho de uma pesquisa<br />

que resultaria no meu livro “Universo e Vocabulário do Grande<br />

Sertão”, estive no Rio de Janeiro para conhecer pessoalmente<br />

João Guimarães Rosa.<br />

Sem combinar antes o encontro (falha imperdoável), fui à Divisão<br />

de Fronteiras do Itamarati, onde o escritor trabalhava,<br />

levando comigo parte da pesquisa. Guimarães Rosa, segundo a<br />

secretária que me atendeu, estava em casa, às voltas com o seu<br />

discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. No momento<br />

não recebia visitas. Adiada desde 1963, sua posse na ABL seria,<br />

fi nalmente, dali a dois dias, 19 de novembro.<br />

As pessoas não morrem, fi cam encantadas, disse Guimarães Rosa<br />

no seu discurso de novo imortal, três dias antes de morrer. Vinte<br />

e oito anos depois desse “encantamento”, 50 anos depois do lançamento<br />

do “Grande Sertão: Veredas” reúno aqui uma pequena<br />

parte do pensamento do romancista mineiro, o maior que o Brasil<br />

já teve, em todos os tempos.<br />

Para os que não lêem Guimarães Rosa,<br />

sob o pretexto de que ele escreveu<br />

numa linguagem ininteligível, devo<br />

acrescentar que foi excluído desta pesquisa,<br />

propositadamente, todo trecho<br />

rosiano onde havia palavras não dicionarizadas.<br />

As citações que se seguem foram extraídas<br />

de “Grande Sertão: Veredas”,<br />

“Corpo de Baile”, “Ave, palavra”, “Em<br />

memória de João Guimarães Rosa”<br />

(Livraria José Olympio Editora) e de<br />

“Literatura deve ser vida” (um diálogo<br />

de Günter W. Lorenz com JGR, em<br />

Gênova, 1965, publicado no católogo<br />

da Exposição do Novo Livro Alemão,<br />

em 1971).


Minha biografi a, antes de tudo minha<br />

biografi a literária, não deveria ser crucifi<br />

cada em datas. Aventuras são sem<br />

tempo, sem começo e fi m. Meus livros<br />

são aventuras. Eles são minha maior<br />

aventura. Escrevendo, descubro sempre<br />

um novo pedaço do infi nito. Eu vivo o<br />

infi nito, o instante não conta. Vou-lhe<br />

revelar um segredo: creio que já vivi uma<br />

vez. Naquele tempo, eu também era brasileiro<br />

e me chamava João Guimarães<br />

Rosa. Quando eu escrevo, repito aquilo<br />

que vivi anteriormente. E para essas duas<br />

vidas meu vocabulário não basta.<br />

*****<br />

Eu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o<br />

português, o latim – talvez até o esquimó<br />

e o tártaro. Queria a língua que se falava<br />

antes de Babel.<br />

*****<br />

O caráter do homem é seu estilo, sua<br />

língua. Isto deve soar naturalmente doutrinário,<br />

mas é apenas uma verdade simples<br />

da vida. Eu não entendo tampouco<br />

isso por elegância ou seleção de estilo da<br />

língua. Elegância demasiada também é<br />

suspeita, porque ela esconde um vazio.<br />

*****<br />

Todos que malmontam o sertão só alcançam<br />

de reger em rédea por uns trechos;<br />

que sorrateiro o sertão vai virando tigre<br />

debaixo da sela.<br />

*****<br />

O sertão é uma espera enorme.<br />

*****<br />

O sertão é onde manda quem é forte,<br />

com as astúcias. Deus mesmo, quando<br />

vier, que venha armado!<br />

*****<br />

Goethe nasceu no sertão, como Dostoievski,<br />

como Tolstoi, como Flaubert e<br />

Balzac; ele foi, como os outros que eu<br />

admiro, um moralista, um homem que<br />

viveu com a língua e que pensou na eternidade.<br />

Eu acho que Goethe foi mesmo<br />

o único poeta da literatura mundial que<br />

não escreveu para o dia, que escreveu<br />

para a infi nidade. Ele era sertanejo. Zola,<br />

como exemplo oposto arbitrário, provinha<br />

apenas de São Paulo. De cem escritores,<br />

um é parente de Goethe, noventa<br />

e nove de Zola.<br />

*****<br />

Deus é paciência. O contrário é o<br />

diabo.<br />

*****<br />

Eu sou místico, pelo menos eu acho.<br />

Que sou também cismador, aí não sei<br />

se isso eu devo lamentar ou alegrar-me,<br />

isso eu reparo no meu trabalho sempre<br />

de novo. Eu posso meditar muito tempo<br />

sobre alguma coisa, posso fi car quieto e<br />

esperar. Nós sertanejos somos muito diferentes<br />

das pessoas cheias de temperamento<br />

do Rio ou da Bahia, que não podem<br />

fi car nem um minuto quietas. Nós<br />

somos tipos especulativos, cismar nos dá<br />

até prazer.<br />

*****<br />

O diabo vige dentro do homem, os crespos<br />

do homem – ou é o homem arruinado,<br />

ou o homem dos avessos.<br />

*****<br />

Sertão é isto: o senhor empurra para trás,<br />

mas de repente ele volta a rodear o senhor<br />

dos lados. Sertão é quando menos<br />

se espera.<br />

*****<br />

Saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo<br />

do vento nas palmas dos buritis<br />

todos, quando é ameaço de tempestade.<br />

Alguém esquece isso? O vento é verde.<br />

Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio<br />

e põe no colo.<br />

*****<br />

Aprendi umas línguas estrangeiras só<br />

para enriquecer a minha própria linguagem.<br />

E porque existem demasiadas<br />

coisas intraduzíveis, pensadas em sonho,<br />

intuitivas, que só se podem encontrar no<br />

som original.<br />

*****<br />

Viver é muito perigoso.<br />

*****<br />

Sertão: é dentro da gente.<br />

*****<br />

Nós temos de aprender de novo a dedicar<br />

muito tempo a uma idéia. Então<br />

seriam escritos de novo melhores livros.<br />

Livros nascem do pensamento: escrever<br />

é técnica e prazer no jogo com palavras.<br />

Jan/Fev 2006<br />

45


O pensamento vivo de Guimarães Rosa<br />

Eu não preciso inventar estórias. Elas<br />

vêm ao meu encontro, aproximam-se<br />

de mim, forçam-me a escrevê-las. Assim<br />

se passa comigo (...) de repente o<br />

diabo me cavalga, que, no caso, se chama<br />

inspiração.<br />

*****<br />

Medo, não, mas perdi a vontade de ter<br />

coragem.<br />

*****<br />

A lógica, meu caro, é a faca com a qual<br />

o homem ainda se matará um dia. Só<br />

quem supera a lógica pensa com justiça.<br />

Refl ita pois uma vez: amor é sempre ilógico,<br />

mas todo crime é cometido segundo<br />

as leis da lógica.<br />

*****<br />

Eu quero a paz, e pago-a com um fervor<br />

de guerra.<br />

*****<br />

A morte é um corisco que sempre já<br />

veio.<br />

*****<br />

Só o epitáfi o é fórmula lapidar.<br />

*****<br />

Eu não sou revolucionário da língua. As<br />

pessoas que afi rmam isso não têm elas<br />

mesmas o sentido da língua, porque julgam<br />

segundo a pura aparência. Se é preciso<br />

absolutamente uma classifi cação, eu<br />

gostaria mais de que me chamassem de<br />

reacionário da língua. Porque eu quero<br />

voltar cada dia à origem da língua, ali,<br />

46 Jan/Fev 2006<br />

onde a palavra ainda está abrigada nas<br />

entranhas da alma, para que eu possa<br />

dar-lhe a luz, segundo minha imagem.<br />

*****<br />

O que não é Deus é estado de demônio.<br />

Deus existe mesmo quando não há. Mas<br />

o demônio não precisa de existir para haver<br />

– a gente sabendo que ele não existe,<br />

aí é que ele toma conta de tudo.<br />

*****<br />

O sertão é do tamanho do mundo.<br />

*****<br />

Mesmo, o espaço é tão calado que ali<br />

passa o sussurro da meia-noite às nove<br />

horas.<br />

*****<br />

O escritor é um descobridor, apenas o<br />

bom escritor, naturalmente. O mau crítico<br />

é seu inimigo porque ele é o inimigo<br />

dos descobridores, daqueles que partem<br />

para mundos estrangeiros. Colombo<br />

deve ter sido sempre ilógico, do contrário<br />

não teria descoberto a América. O<br />

escritor deve ser um Colombo. Mas o<br />

crítico malévolo e não sufi cientemente<br />

instruído faz parte daquela camarilha<br />

que quer impedir sua partida, porque ela<br />

contradiz sua chamada lógica. O bom<br />

crítico vai como piloto a bordo do navio.<br />

*****<br />

Todo buritizal é fl orestal – ramagem e<br />

amar em água.<br />

*****<br />

Mas, por cativa em seu destinozinho de<br />

chão, é que árvore abre tantos braços.<br />

*****<br />

O pássaro que se separa de outro vai voando<br />

adeus o todo tempo.<br />

*****<br />

Quando chegamos cá no acampo, as<br />

ramas d’árvores já iam pegando o pó<br />

da noite.<br />

*****<br />

O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.<br />

*****<br />

Noite redondeou, noite sem boca.<br />

*****<br />

Dia da lua. O luar que põe a noite inchada.<br />

*****<br />

Passarinho que se debruça – o vôo já está<br />

pronto!<br />

*****<br />

Aí quando é tempo de vaga-lume, esses<br />

são mil demais, sobre toda a parte:<br />

a gente mal chega, eles vão se esparramando<br />

de acender, na grama em redor<br />

é uma esteira de luz de fogo verde que<br />

tudo alastra.<br />

*****<br />

Só não existe remédio é para a sede do<br />

peixe.<br />

*****


Toda saudade é uma espécie de velhice.<br />

*****<br />

Coração da gente – o escuro, escuros.<br />

*****<br />

A gente estava desagasalhados na alegria,<br />

feito meninos.<br />

*****<br />

Vingar, digo ao senhor, é lamber, frio, o<br />

que outro cozinhou quente demais.<br />

*****<br />

O vau do mundo é a alegria!<br />

*****<br />

No combate velho do Tamanduátão:<br />

limpamos o vento de quem não tinha<br />

ordem de respirar.<br />

*****<br />

Querer o bem com demais força, de incerto<br />

jeito, pode já estar sendo se querendo<br />

o mal, por principiar.<br />

*****<br />

Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa<br />

com quem a gente gosta de conversar,<br />

do igual o igual, desarmado. O de que<br />

um tira prazer de estar próximo. Só isto,<br />

quase: e os todos sacrifícios.<br />

*****<br />

Medo agarra a gente é pelo enraizado.<br />

*****<br />

O prazer muito vira medo, o medo vai<br />

vira ódio, o ódio vira esses desesperos?<br />

*****<br />

Pobre tem de ter um triste amor à honestidade.<br />

*****<br />

Os sapos gritavam latejado.<br />

*****<br />

O sapo não fecha os olhos: guarda-os,<br />

reentrando-os na caixa da cabeça.<br />

*****<br />

Silêncio tenso – como pausa de araponga.<br />

*****<br />

O peixe vive pela boca.<br />

*****<br />

Perdoar uma cascavel: exercício de santidade.<br />

*****<br />

Pela cascavel, por transparência, vê-se o<br />

pecado mortal.<br />

*****<br />

Pantera negra: na luz esverdeada de seus<br />

olhos, lê-se que a crueldade é uma loucura<br />

tão fria que precisa do calor de sangue<br />

alheio.<br />

*****<br />

A cigarra cheia de ci.<br />

*****<br />

Avista-se o grito das araras.<br />

*****<br />

O arrebol de um pavão.<br />

*****<br />

Os castores – num jeito de quem conta<br />

dinheiro, murmuram segredos aos troncos<br />

das árvores.<br />

*****<br />

Só o cintilante instante sem futuro nem<br />

passado: o beija-fl or.<br />

*****<br />

A coruja não agoura: o que ela faz é saber<br />

os segredos da noite.<br />

*****<br />

O poço nunca é do peixe: é do outro peixe<br />

mais forte.<br />

*****<br />

A zebra se coça contra uma árvore, tão<br />

de leve, que nem uma listra se apaga.<br />

*****<br />

Hoje em dia, um dicionário é, ao mesmo<br />

tempo, a melhor antologia lírica. Cada<br />

palavra é na sua essência um poema.<br />

Pense só na gênese delas. No meu centenário,<br />

publicarei um livro, meu romance<br />

mais importante: um dicionário. Talvez<br />

o faça um pouco mais cedo. Isso será então<br />

a minha autobiografi a.<br />

O pensamento vivo de Guimarães Rosa<br />

Jan/Fev 2006<br />

47


“Greta Garbo, quem diria,<br />

48 Jan/Fev 2006<br />

Fernando Monteiro Escritor<br />

Para Vicente Serejo<br />

Foi essa a frase (“Greta Garbo, quem<br />

diria...”) que, há vinte anos, eu murmurei<br />

para a minha mulher, numa tarde de<br />

julho de 1985. Estávamos caminhando<br />

ao longo das margens do Hudson, num<br />

daqueles passeios arborizados que acompanham<br />

as amuradas do rio novaiorquino,<br />

quando Cristina propôs que sentássemos<br />

um pouco.<br />

Vimos um sólido banco de ferro, repintado<br />

de verde, e esperávamos fi car sós<br />

nele, na quietude daquela área onde os<br />

habitantes da megalópole podem tomar<br />

o sol esquivo entre choupos e tílias. Ali<br />

– mais ou menos da 51 para cima – eram<br />

ruas menos permeadas de turistas, naquela<br />

época, e, suponho, não parecíamos<br />

com eles, sem sacolas de compras e sentados<br />

não para os lanches improvisados<br />

dos cucarachas.<br />

Não me passou pela cabeça, então, a proximidade<br />

de um dos endereços mais gritantes<br />

de silêncio do cinema: o de Greta<br />

Lovisa Gustafsson, número 450 da rua


acabou de se sentar”...<br />

52 de passantes indiferentes uns aos outros,<br />

nos domingos e nos outros dias da<br />

semana (se você não for um daqueles vagabundos<br />

profi ssionais, olhando para o<br />

nada como se olhassem para as portas do<br />

fundo de alguma antiga vida).<br />

Foi então que veio sentar-se, no mesmo<br />

banco, uma senhora também cansada.<br />

“É ela. Eu juro. É ela, sim!” – foi o meu<br />

murmúrio seguinte, para a incrédula<br />

Cristina.<br />

“Quem?”<br />

“Greta. Greta Garbo.”<br />

Eu não podia me enganar com aquele<br />

formato do rosto e com a boca, embora<br />

o nariz... Não, não era nada que se<br />

pudesse apontar: seria, antes, a reminiscência<br />

de uma aura magnética, o resto<br />

do halo da “Divina”, naquela face devastada.<br />

Sei lá por que, mas algo da sua<br />

personalidade misteriosa estava ainda<br />

presente, e não deixava dúvidas sobre<br />

você estar diante da Estrela Absoluta dos<br />

Céus Frios da Perdida Idade de Ouro<br />

do Cinema, persistente nas retinas. Por<br />

falar em retinas, seus olhos – a prova defi<br />

nitiva – estavam infelizmente velados<br />

pelos óculos escuros, de modelo antiquado.<br />

Apoiava-se numa bengala preta,<br />

e se aproximara com a leve hesitação de<br />

uma senhora bem-educada, para se sentar<br />

justo no nosso banco lustroso da tinta<br />

nova onde o ferro estivera, quem sabe,<br />

tão descascado quanto ela própria, Greta<br />

Garbo.<br />

“Greta Garbo?”<br />

Minha mulher não acreditava. Mas, era.<br />

Era a Garbo, aquela anciã em quem ninguém<br />

estava prestando atenção, exceto<br />

nós – com o cuidado extremo dos disfarces<br />

inúteis para olhos talvez implacáveis,<br />

atrás daquelas lentes grossas.<br />

O canto esquerdo de seus lábios, num<br />

ricto, passou a fugidia impressão da pessoa<br />

que fi ca nervosa, ao se saber reconhecida.<br />

“Não olhe assim!”.<br />

Cristina tinha razão. Eu estava a examinar<br />

muito diretamente a estranha que<br />

ela tentava proteger da minha curiosidade.<br />

De pouco adiantava, entretanto:<br />

qualquer um fi caria vidrado na fi gura de<br />

cabelos escorridos, sem estilo (aparados<br />

pela própria?) e sem o brilho que, um<br />

dia, havia ostentado na noite artifi cial<br />

dos estúdios. Estava vestida com o desleixo<br />

de quem saíra apenas para esticar<br />

as pernas e caminhar ao longo das amu-<br />

radas, calçada com uns tênis meio sujos<br />

nos pés talvez grandes demais para uma<br />

mulher.<br />

Minha atenção era, portanto, fascinada<br />

e irreprimível. Ou mal-educada, numa<br />

palavra que são duas (você deixa de saber<br />

contar, diante do fantasma de uma<br />

Diva). E daí? Você só vai estar sentado<br />

junto de Greta Garbo uma vez – se é que<br />

vai estar, alguma vez na vida.<br />

Ficamos ali, portanto, trocando olhares<br />

oprimidos pela certeza de saber quem era<br />

aquela senhora pálida e descolorida como<br />

o casaco machucado que ela usava sobre o<br />

corpo antigamente escultural, com mais<br />

um lenço desbotado na cabeça...<br />

Quando o tirou (para receber o sol atenuado),<br />

eu tive, então, a mais plena certeza:<br />

era, de fato, a atriz retirada do cinema<br />

há 44 anos, puxando do bolso um<br />

saco de milho para dar aos pombos privilegiados,<br />

alguns dos quais acostumados,<br />

acercando-se para se alimentar das mãos<br />

de dedos nodosos – como pequenos galhos<br />

castigados – de um dos seres humanos<br />

mais belos e mais enigmáticos que já<br />

nasceu sobre a superfície do planeta quase<br />

tão exausto quanto a solitária senhora<br />

de Nova York, quem diria, Greta Garbo,<br />

80 anos, acabou de se sentar...<br />

Jan/Fev 2006<br />

49


“Greta Garbo, quem diria,<br />

I want to be alone...<br />

Muitos garantiram que ela nunca disse<br />

isso, “eu quero fi car só”. Sua frase (a um<br />

jornalista), teria sido: I want to be let alone<br />

– “eu quero que me deixem sozinha”.<br />

Ou seja, em paz (ela que tinha horror de<br />

entrevistas e mexericos).<br />

Eu sabia do reparo feito à frase tão famosa,<br />

e podia estar olhando, sendo indiscreto,<br />

até incômodo etc, porém jamais<br />

iria romper com as derradeiras regras da<br />

educação e apresentar-me como cinéfi lo<br />

e perguntar a Greta Garbo: “Por que razão<br />

a senhora abandonou o cinema, no<br />

auge da fama?”<br />

Claro que era humanamente impossível<br />

indagar isso, sem mais nem menos,<br />

à gentil alimentadora de pombos tristes<br />

entre seus pés (ela sorrindo à sombra daquele<br />

sorriso iluminado pelos mais aclamados<br />

mestres da fotografi a).<br />

Tudo que eu fazia era olhá-la, sem tentar<br />

virar o rosto ou disfarçar – como se<br />

olha para o busto da rainha Nefertiti,<br />

no museu egípcio de Berlim. Só que<br />

ali, próximo das águas do Hudson, estava<br />

uma contrafação da beleza imóvel<br />

da genial escultura da 18ª dinastia: um<br />

rosto vivo, e não de pedra calcária, cujas<br />

50 Jan/Fev 2006<br />

linhas devastadas pouco correspondiam<br />

àquelas imortalizadas em 24 quadros por<br />

segundo nas telas e no rio do tempo que<br />

faz escorrerem os minutos, as horas, os<br />

meses, os anos e as décadas sepultando<br />

tudo sobre a pedra-pome de Pompéia há<br />

séculos soterrada.<br />

Greta Garbo – então, você existe? E nasceu<br />

de mulher, como se diz na Bíblia, no<br />

dia 18 de setembro de 1905? Cresceu<br />

num bairro pobre, a terceira fi lha de um<br />

gari de Estocolmo?<br />

Perguntas possíveis. As respostas – bem,<br />

as respostas poderiam variar um pouco,<br />

de acordo com o humor da jovem sueca<br />

cujo primeiro emprego havia sido a mais<br />

que subalterna função de ensaboar os<br />

rostos dos clientes de uma barbearia.<br />

Você ainda se lembra do seu primeiro<br />

fi lme longo?<br />

Eu sei qual foi (caso você já tenha esquecido):<br />

Pedro, o Vagabundo, uma comédia<br />

dirigida por Erick Petschler, em 1922.<br />

Com o pouco dinheiro que ganhou nesse<br />

fi lme ridículo, Senhora dos Pombos<br />

da Paz Impossível, você foi estudar na<br />

Real Academia de Arte Dramática, onde<br />

seu belo rosto anguloso logo chamou a<br />

atenção de Mauritz Stiller (1883-1928),<br />

cineasta nascido na Finlândia, e não na<br />

Suécia, como muitos imaginam.<br />

Foi Stiller quem a dirigiu num fi lme baseado<br />

num livro de Selma Lagërlof – A<br />

Saga de Gösta Berling – que chamou a<br />

atenção para a novata. Mauritz queria<br />

chamá-la “Mona Garbor”, nos letreiros<br />

onde você mesma escolheu chamar-se<br />

Greta Garbo (e não Garbor).<br />

O sucesso de Gösta Berling a levou para<br />

as mãos do diretor alemão G. W. Pabst.<br />

Com ele, você fez o seu segundo fi lme<br />

– Rua das Lágrimas (1925) – porém Stiller<br />

a recuperou para si, quando recebeu,<br />

naquele ano, convite de Louis B. Mayer<br />

para trabalhar em Hollywood. Você se<br />

lembra? O seu descobridor impôs, ao<br />

produtor, uma única condição para viajar<br />

rumo à loucura da América: contratar<br />

também a “querida Greta”, com salário<br />

de 300 dólares por semana.<br />

Quantas “verdinhas” mais você terá ganhado,<br />

minha linda sovina, para aparecer<br />

em mais 24 fi lmes, na maioria grandes<br />

sucessos de bilheteria? O mordomo<br />

Gustav, serviçal na sua mansão de Beverly<br />

Hills, mais tarde iria revelar: “Eu nunca<br />

vi Miss Garbo comprar um vaso para<br />

a casa; ela me dava 100 dólares mensais<br />

para a comida e isso era tudo; se eu com-


acabou de se sentar”...<br />

prasse algo a mais, ela reclamava como<br />

uma caixeirinha”.<br />

É verdade, senhora? E é verdade, também,<br />

que você nunca amou ninguém?<br />

Nem o astro de A Carne e o Diabo, aquele<br />

rapaz de bigodinho chamado John<br />

Pringle? Ídolo da tela com o nome de<br />

John Gilbert, ele chegou a comprar um<br />

palácio em Los Angeles e um iate de 200<br />

mil dólares, para recebê-la na terra e no<br />

mar. Deu em água: você desapareceu,<br />

em 1927, depois que ambos atuaram em<br />

Love, a primeira versão de Ana Karenina.<br />

Gilbert fi cou esperando, durante anos,<br />

até se afogar em uísque, depois de fi lmar<br />

Ana, de novo, consigo, oh Senhora Sempre<br />

Sozinha!<br />

Você não amou nem sequer aquela<br />

amiga íntima, Mercedes de Acosta, roteirista<br />

e aristocrata de luminosa inteligência?<br />

(Você admirava as mentes brilhantes.)<br />

E, confesse, gostava mais das<br />

mulheres do que dos homens. E mais<br />

dos jogos de espírito do que dos prazeres<br />

do corpo? O que sentiu, no fundo,<br />

por “Stoky”? (Se ninguém adivinha,<br />

esse foi o apelido que ela pôs no maestro<br />

Leopold Stokowski, seu amante<br />

vinte e três anos mais velho.)<br />

E o fotógrafo inglês Cecil Beaton – que<br />

todos chamam de o seu “último amor”<br />

– poderia lhe dar prazer? Ele que, sim,<br />

preferia os rapazes, mas viria a abrir exceção,<br />

em 1932, para amar uma única<br />

mulher em toda a sua longa carreira de<br />

paixões masculinas?<br />

Vocês dois nunca foram (todo mundo<br />

sabe) “apenas bons amigos”, por favor.<br />

A senhora passou o fi nal da guerra com<br />

Beaton, e, já envelhecida, fez cruzeiros<br />

seletíssimos com ele, nos mais luxuosos<br />

transatlânticos gregos. Até que acabou<br />

(você acabou).<br />

Senhora Dureza, quantas vezes luziu<br />

o diamante do seu coração gelado do<br />

norte europeu? Cecil, o artista delicado,<br />

fotografou-a como ninguém. Dizem que<br />

você possui todas essas fotos fechadas<br />

num arquivo. E também dizem que Beaton,<br />

para os melhores amigos, reconhecia<br />

ser você “uma excêntrica e uma chata”<br />

que ele amara sem restrições, até sofrer<br />

um derrame em 1974, quando fi cou semiparalítico<br />

e com a fala travada, na Inglaterra.<br />

Um dia, anunciaram-lhe a visita<br />

de Miss Greta. Ele autorizou, e ela subiu<br />

as escadas de mármore, entrou no quarto<br />

do doente, para uma conversa por sinais<br />

e palavras truncadas do homem de robe<br />

de chambre na cama estilo Tudor.<br />

Depois, a atriz de Ana Karenina assinou<br />

o livro de visitas (que o educadíssimo<br />

Beaton disponibilizara no saguão<br />

repleto de obras de arte). E nunca mais<br />

se viram.<br />

Para se livrar de algumas dívidas, a sua<br />

amiga Acosta escreveu um livro de memórias<br />

que consta ter irritado a senhora<br />

profundamente, no seu retiro do apartamento<br />

da rua 52 aqui perto – isso<br />

procede? Você não desejava que fossem<br />

divulgadas coisas como a pequena Greta<br />

se ver como um “homenzinho”, desde a<br />

infância, quando se referia a si mesma na<br />

terceira pessoa, como “ele”...<br />

Enfi m, minha cara senhora, quem é ou,<br />

melhor, quem foi você, mito vivo e incomodado<br />

com meus olhares insistentes?<br />

Mas ela já não estava ali. Com difi culdade<br />

que não pedia por qualquer ajuda,<br />

Greta Garbo havia se levantado do banco<br />

de ferro e partido, com seu caminhar<br />

inseguro, fi rmando a bengala para prosseguir<br />

rumo à solidão escolhida. Cinco<br />

anos depois, iria falecer num hospital de<br />

Nova Iorque, no dia 15 de abril de 1990,<br />

mais só do que jamais havia sido.<br />

Jan/Fev 2006<br />

51


O anjo<br />

terrível<br />

52 Jan/Fev 2006


Gustavo de Castro e Silva<br />

Poeta e escritor. Doutor em Antropologia,<br />

é professor da UCB e da UnB<br />

São muitas as formas que a arte encontra<br />

para falar em nós.<br />

Rubem Alves diz que os verdadeiros artistas<br />

nunca são felizes, mas seres atormentados,<br />

angustiados, terríveis. “Os<br />

felizes, diz ele, não necessitam fazer arte.<br />

Têm de viver a sua felicidade”. De qualquer<br />

forma, os artistas – sejam eles felizes<br />

ou infelizes – são atores sociais ainda<br />

pouco pensados pelos acadêmicos e estudiosos<br />

de plantão. O historiador Victor<br />

Leonardi, no livro Jazz em Jerusalém (Ed.<br />

Nankim, 2001) — indispensável para<br />

quem quer investigar as razões da criação<br />

na arte e no artista — tentou investigar a<br />

produção social do artista através de uma<br />

história cultural da criatividade. Outra<br />

instância pouco pensada, sobretudo pelas<br />

ciências sociais, é a da arte enquanto<br />

produção social do protesto. A revolta<br />

parece ter sido um pouco esquecida pela<br />

arte contemporânea. E quais serão os<br />

motivos desse silenciamento? O Estado<br />

conseguiu, através das diversas leis de<br />

incentivo à produção artística, fi nanciar<br />

obras de todos os tipos. Terá isso afetado<br />

o artista e a sua crítica social? Por outro<br />

lado, os tempos atuais parecem resgatar<br />

o que Aristóteles chamou a seu tempo<br />

de “A Beleza do Feio” ou o belo do<br />

monstruoso. As obras parecem caminhar<br />

para uma estetização em que vale o que é<br />

pior, uma arte desconectada da elevação<br />

espiritual, do protesto social, da verticalidade<br />

subjetiva. Assim, vemos hoje a estetização<br />

da violência (Sin City e as obras<br />

de Quentin Tarantino), a cosmética da<br />

fome (termo criado pela pesquisadora<br />

Ivana Bentes para analisar a produção recente<br />

do cinema nacional), a estetização<br />

do êxodo e da migração (cujo principal<br />

representante é Sebastião Salgado), entre<br />

outros, sem que junto à estética venha a<br />

produção do pensamento. Mas, digamos<br />

em coro, para que pensar?! Os padres<br />

espanhóis da idade média cunharam até<br />

uma máxima que fi cou famosa em seu<br />

país: “Malditos os que incitam ao pensamento”.<br />

Quem ama o conhecimento<br />

que trate de imbecilizar-se ou corre o<br />

risco de fi car sozinho. O jovem escritor<br />

francês, Martin Page, escreveu Como me<br />

Tornei um Estúpido (Rocco, 2005) como<br />

protesto à cultura do superfi cial. O livro<br />

conta a história de um personagem que,<br />

para não fi car ilhado culturalmente, decide<br />

iniciar um projeto de auto-imbecilização.<br />

Assim, começa a investir na bolsa<br />

de valores, compra todas as roupas da<br />

moda, vai constantemente ao shopping,<br />

deixa de ler, de ir a museus, etc. A cena<br />

fi nal é hilariante. Seus amigos, preocupados<br />

com ele, que estava realmente se<br />

tornando um imbecil, decidem seqüestrá-lo.<br />

Amarram-no com cordas e começam<br />

a ler Flaubert, Proust, Balzac, entre<br />

outros, numa tentativa desesperada de<br />

salvá-lo. E ele, fi nalmente, se recupera.<br />

Mas não é fácil escapar de tanto lixo cultural.<br />

Tanto lixo que, quando vejo o consumo<br />

desenfreado de pagode, axé, forró,<br />

funk, sertanejo, entre outras porcarias,<br />

imagino esses consumidores como porcos<br />

que chafurdam no lixo e na lama da<br />

cultura contemporânea.<br />

Talvez por isso é que o livro do escritor<br />

e professor universitário Alex Galeno,<br />

Antonin Artaud – A revolta de um anjo<br />

terrível (Sulina, 2005), seja um bálsamo<br />

contra a miséria cultural dos tempos<br />

atuais. Depois que terminamos de ler<br />

o livro, fi camos com dois sentimentos<br />

distintos: um pelo personagem do livro,<br />

outro pelo que o livro em si incita. No<br />

primeiro caso, somos levados pouco a<br />

pouco a conhecer a alma de um artista<br />

notável: escritor, poeta, desenhista, encenador,<br />

cenógrafo, pintor, que teve (e<br />

tem) papel decisivo na teoria da arte teatral.<br />

Nascido em Marselha, descendente<br />

de uma família de turcos, teve logo no<br />

Jan/Fev 2006<br />

53


início da sua vida, crises profundas. Por<br />

ser hipersensível, esteve sujeito à dor do<br />

mundo e padeceu por isto vida afora: a<br />

perda da irmã, as crises de depressão, a<br />

primeira internação num sanatório, aos<br />

19 anos, o consumo de láudano e ópio,<br />

o misticismo, o eletrochoque que o fez<br />

perder os dentes. Ao chegar a Paris, em<br />

1920, para tratar de sua saúde, rapidamente<br />

insere-se na cena parisiense. Escreve<br />

para uma revista de arte e literatura,<br />

conhece os surrealistas entre os quais<br />

se torna uma das principais referências<br />

do movimento. Monta e atua em diversas<br />

peças teatrais, faz cinema e é reconhecido<br />

internacionalmente como ator.<br />

Por quase vinte anos, tematiza a revolta,<br />

a peste, a crueldade, a injustiça, a revolução<br />

e a dor-do-mundo como arcabouço<br />

estético e conceitual. Não fez concessões<br />

ao pensamento em favor da estética, ao<br />

contrário, arriscou fama, carreira, prestígio,<br />

em favor da revolta e do protesto.<br />

Referindo-se à psicanálise (aliás, o livro<br />

Antonin Artaud – A revolta de um anjo<br />

terrível deveria ser lido por todos os psicanalistas),<br />

diz algo que vale para os que<br />

gostam do encarceramento das idéias,<br />

algo que vale também para a vida e que<br />

vai além da psicanálise: “fugirei de qualquer<br />

tentativa de encarcerar minha consciência<br />

em preceitos ou fórmulas, numa<br />

54 Jan/Fev 2006<br />

organização verbal qualquer” (p.68). É<br />

notável ver no livro a prepotência de Jacques<br />

Lacan ao lidar com o caso Artaud.<br />

Afi rma inclusive que tentará desestimular<br />

algum aluno seu que desejar cuidar<br />

do caso. “O caso Artaud está resolvido”.<br />

Alex Galeno diz que Lacan não estava<br />

preparado para diagnosticar a lucidez da<br />

poesia e o desconcerto estético presentes<br />

em Artaud. De fato, não é fácil mesmo<br />

entender nem a poesia, nem a loucura.<br />

Elas têm às vezes muita sabedoria por<br />

trás para facilitar o entendimento. Têm<br />

sobretudo uma outra visão de mundo.<br />

Têm a força vulcânica do que não se<br />

enquadra. Não é fácil distinguir o que<br />

é clínico do que é místico, o obscuro do<br />

iluminado, o irracional do sapiencial,<br />

ou o que são ambas as coisas ao mesmo<br />

tempo. Sabemos, ao fi nal do livro, que<br />

Artaud realmente sofria de problemas<br />

psíquicos, mas não deixamos de vê-lo<br />

como um gênio artístico. Não é fácil saber<br />

o limite das coisas.<br />

Deleuze e Guattari dirão, no Anti-Édipo,<br />

anos depois: “Artaud é a destruição da<br />

psiquiatria. É a realização da literatura<br />

precisamente por ser esquizofrênico e<br />

não por não o ser”. Se a poesia e a literatura<br />

não tivessem esse não-sei-quê de<br />

coragem, loucura e lucidez não seriam o<br />

que são. Nem faria sentido sê-lo.<br />

Em janeiro de 1936, Artaud inicia uma<br />

viagem ao México, ao país dos Tarahumara.<br />

Conhece Diogo Rivera, prova o<br />

peiote, dá palestras em universidades,<br />

fi ca ali por quase um ano. Ao voltar, no<br />

ano seguinte, vai a Bruxelas e a Dublin,<br />

capital da Irlanda, vaga pelas ruas sem<br />

dinheiro, drogas, e com extrema difi -<br />

culdade para falar inglês, desentende-se<br />

com os padres jesuítas, a polícia local, é<br />

preso e deportado para a França. Chega<br />

à França de camisa-de-força e é internado<br />

num hospital psiquiátrico. É o início<br />

de sua vida asilar, que durará nove anos.<br />

Daí em diante, Artaud é transferido de<br />

hospital em hospital. Isso não o impede<br />

de criar; o vemos sempre desenhando,<br />

escrevendo, pintando. Seus cadernos<br />

hoje valem uma fortuna e sua obra é motivo<br />

de contenda judicial entre a família<br />

e a editora Gallimard. No asilo, Artaud<br />

foi praticamente abandonado pela família.<br />

Após o fi nal da guerra, em 1946, um<br />

grupo de intelectuais se une para tirá-lo<br />

do asilo. Contribuem Georges Bataille,<br />

Pablo Picasso, Jean Paul Sartre, Albert<br />

Camus, Simone de Beauvoir, entre outros.<br />

Em 1948, ele morre de câncer no<br />

reto, no hospital psiquiátrico de Ivry, nos


subúrbios de Paris. É encontrado aos pés<br />

da cama, segurando um sapato.<br />

A cena da morte de Artaud é, a propósito,<br />

a primeira imagem forte do livro de<br />

Alex Galeno. Ela alia-se a outras cenas<br />

desse livro-tese-ensaio que farão o leitor<br />

emocionar-se ao mesmo tempo que<br />

pensar. As cenas das relações sexuais de<br />

Artaud com Anaïs Nin são perfeitas.<br />

O livro do escritor e professor de Ciências<br />

Sociais da UFRN é resultado de<br />

uma pesquisa de doutoramento realizada<br />

na PUC de São Paulo, sob a batuta do<br />

fi lósofo e antropólogo Edgard de Assis<br />

Carvalho. A obra de Galeno, aliás, é o segundo<br />

sentimento que gostaria de ressaltar<br />

nesta crítica. Quanto a isso, sejamos<br />

sinceros: um livro que discute a revolta, a<br />

loucura, o tormento, o despedaçamento<br />

e o desassossego não é fácil de engolir em<br />

tempos que preferem os personagens doces<br />

e meigos, que buscam o entendimento<br />

sem debate, as facilidades da literatura<br />

água com açúcar, entre outras baboseiras.<br />

Galeno foi na direção contrária. Ao<br />

escolher um autor que se insere no seio<br />

dos malditos como Nietzsche, Rimbaud,<br />

Nerval, Van Gogh — os que não aceitam<br />

facilmente as mentalidades de sua época<br />

—, optou pelos que geralmente ninguém<br />

escolhe: os marginais, os suicidados da<br />

sociedade, os esquecidos, os rebeldes e os<br />

inconformados. Bela escolha.<br />

Para construir sua obra, ele visitou um<br />

número considerável de textos, livros,<br />

documentos, teses, cartas e postais de e<br />

sobre o autor francês. Esteve em contato<br />

com pesquisadores na França, adquiriu<br />

catálogos pictóricos e fotográfi cos, viu<br />

fi lmes, leu e assistiu a peças teatrais, leu<br />

fi lósofos preocupados com a idéia da<br />

estrangeiridade e de estranhamento, e,<br />

sobretudo, ao fi nal, conseguiu construir<br />

uma obra viva, no fundo, uma poética<br />

da revolta dramática, elemento que percebe<br />

desde os clássicos, como Sófocles,<br />

passando por Shakespeare, Dostoievsky<br />

até chegar a Artaud, Camus, entre outros.<br />

Talvez, realmente, como disse Rubem<br />

Alves, os verdadeiros artistas não<br />

sejam nunca felizes, mas atormentados,<br />

angustiados, terríveis. Talvez por isso<br />

consigam dizer mais profundamente.<br />

Talvez por isso fi quem como patrimônio<br />

artístico da cultura humana. Talvez por<br />

isso sejam Artistas! Quem vai ler Antonin<br />

Artaud – A revolta de um anjo terrível, se<br />

prepare para encontrar ali uma vida pulsante,<br />

uma escrita encarnada, uma obra,<br />

simultaneamente, leve como um anjo e<br />

terrível como um demônio. Assim como<br />

são as coisas belas da vida.<br />

O anjo<br />

terrível<br />

Jan/Fev 2006<br />

55


Tratado das intenções com<br />

56 Jan/Fev 2006<br />

Josimey Costa Escritora<br />

Ilustração: Isaias Ribeiro<br />

Deseje.<br />

Deseje com força, com urgência. Busque<br />

extremos. Não: torne-se o extremo. Faça<br />

concessão nenhuma, principalmente em<br />

seu desejo. Só o melhor é o bastante para<br />

começar. As meias medidas, o meio de<br />

vida, a meia pataca, o médio oriente, o<br />

meio-fi o, a meia-boca, jogue fora tudo<br />

isso. Rompa os limites, sim, vá além deles.<br />

Encha o êmbolo até o fi m, beba até a última<br />

das gotas, mergulhe no mais fundo do<br />

poço, desça depois do quinto inferno... e<br />

aí você poderá pleitear o seu gozo.<br />

O gozo pleno é uma arte. Exige extrair,<br />

meticulosamente, a essência de todas as<br />

coisas. Macere, pois, os sentimentos para<br />

que sejam sumo e néctar, ácido e bálsamo,<br />

a luz mais cortante e a sombra mais<br />

compacta. Torne isso palavra e, com ela,<br />

engravide os atos. Tantos, tão profundos


entrelinhas de sabotagem<br />

e verdadeiramente signifi cativos – mas<br />

mesmo ainda há o desejo.<br />

Assim, olhe para o que deseja.<br />

Que seja antes de longe, e o desejo se aninhará,<br />

completo. Abrace com o olhar e<br />

traga para mais perto o seu objeto de desejo.<br />

Ouça-o muito bem. Ouça a modulação<br />

do seu som e ouça até o ar que não<br />

vibra quando nada é dito. Ato contínuo,<br />

cheire aquilo que deseja. Toque-o com<br />

o seu olfato e decifre as mensagens que<br />

nem ele sabe que emite. Tatue na memória<br />

de cada célula do corpo, do seu e do<br />

outro, o padrão desse desejo que, enfi m,<br />

se assume molecular. Fractal. Tão entranhado<br />

que nem é mais desejo. É você.<br />

Agora, costure pele nesse desejo.<br />

O que antes o olhar abraçava, empunhe,<br />

sorva, deguste, invada, emaranhe, dedilhe,<br />

mordisque, respire, dissolva e descreva,<br />

esvaia e preencha.<br />

Então, vá para casa.<br />

O seu desejo é mesmo tonto e cego. Não<br />

elege alvos; aciona armadilhas.<br />

Assim, é preciso cuidado e distância. O<br />

terreno é instável; deve ser apenas meio<br />

medido. As pausas são bons anteparos,<br />

prioridades dão ótimo escudo. Qualquer<br />

fervura não queima quando engole água<br />

fria. Evidentemente, há que inciar a fervura,<br />

isso o desejo impõe. O fogo, porém,<br />

deve ser lento e a água, contida. Desejo e<br />

paixão são uma alquimia de morte. Petite<br />

mort. Morte por sufocamento.<br />

Só se morre asfi xiado quando algo ou alguém<br />

chega muito perto, tão perto que<br />

pressiona os sentidos, desacerta a pulsação<br />

e seqüestra a voz. Ah, mas isso só<br />

pode vir por dentro. Como um vampiro,<br />

precisa de convite para entrar e não aceita<br />

nenhuma ordem para sair. Há perigo<br />

e você não constrói discurso sobre isto<br />

senão enquanto dor. O infi nitamente<br />

próximo é também mortiferamente poderoso.<br />

É esta a condição para fazer você<br />

gozar como sonha. Como um animal<br />

com alma. Um anjo. Demoníaco.<br />

Mas você é fl echa. Uma fl echa não comporta<br />

um se. Você é efi ciência e arte fi nal.<br />

Você é a decisão.<br />

Por isso, vá sempre para casa.<br />

Brinque com os extremos que você conhece.<br />

Perca-se em si e todo estranhamento<br />

não ultrapassará os tecidos dos<br />

seus órgãos. Distraia a dor, precisamente<br />

essa dor. As outras, viva-as plenamente,<br />

elas não arrancam você das suas próprias<br />

mãos. Dê-se também o seu próprio prazer.<br />

Quando, onde e como você quiser.<br />

Se isso não for sufi ciente para aquietar o<br />

seu desejo, escolha uma armadilha pronta<br />

como alvo. Qualquer uma; os mecanismos<br />

você adivinha só com o olhar.<br />

Depois, você poderá voltar para casa do<br />

mesmo jeito, com seu discurso pronto e<br />

na ponta da língua.<br />

Para mais do que isso, seria preciso você<br />

se perder muito além de si e sem pressa<br />

alguma de se achar.<br />

Jan/Fev 2006<br />

57


UMARIZAL<br />

Efervescência e diversidade cultural movimentam a cidade<br />

58 Jan/Fev 2006


Sérgio Vilar<br />

Fotos: Anchieta Xavier<br />

Umarizal, a 405 km de Natal, ainda<br />

é uma jovem cidade. Não tem 50 anos.<br />

Somente emancipou-se de Martins em<br />

27 de novembro de 1958. Muitos moradores,<br />

sobretudo os mais antigos, deixaram<br />

sítios e fazendas de criar e plantar<br />

das redondezas para morar na cidade,<br />

que prosperava amparada no ciclo algodoeiro.<br />

Talvez por isso, a receptividade<br />

sertaneja e pura, já escassa em alguns<br />

lugarejos, ainda resista em Umarizal. O<br />

município, que chegou à condição de<br />

terceiro em arrecadação do Estado, hoje<br />

vive em função dos empregos gerados<br />

por uma grande empresa fabricante de<br />

carrocerias. O ciclo do algodão ou a feira<br />

livre da cidade, que aglomeravam visitantes<br />

de todas as regiões são hoje apenas<br />

retratos de um passado rico.<br />

O nome de Umarizal pode ter surgido<br />

em referência à grande quantidade de<br />

árvores chamadas umarizeiras. Hoje o<br />

que se encontra em cada quarteirão da<br />

cidade são as árvores sempre-verdes. São<br />

elas que emprestam alguma sombra às<br />

ruas. Mas Umarizal já colecionou outros<br />

nomes. Antes de se constituir Vila Divinópolis,<br />

em 1938, a região tinha o nome<br />

de Gavião. O nome vem da povoação<br />

que se formou às margens do riacho homônimo.<br />

Como escreveu o escritor Ma-<br />

noel Onofre Júnior, a ocupação daquelas<br />

terras foi no início do século XVIII,<br />

quando foi concedido ao padre Manoel<br />

Pinheiro Teixeira e a <strong>Jose</strong>ph Ferreira,<br />

terras situadas entre as serras da Mãe<br />

D’Água e Catolé, às margens do riacho<br />

Umari. Parte dessas terras pertenciam ao<br />

padre João de Paiva e fi cava na nascente<br />

do riacho Gavião.<br />

Em 1902, escreveu Câmara Cascudo,<br />

no livro Nomes da Terra, o povoado de<br />

Gavião já contava com cemitério, capela<br />

e algumas casas de taipa e palha. E<br />

foi em volta do cemitério, puxada pela<br />

movimentação de uma feira livre que<br />

reunia cantadores, violeiros, folhetos de<br />

cordel, comidas típicas e artesanatos variados<br />

em cerâmica lúdica, utilitária ou<br />

decorativa, que a cidade cresceu. A capela<br />

do Sagrado Coração de Jesus, hoje<br />

igreja matriz, também foi construída em<br />

1902, por iniciativa do padre Abdon<br />

Melibeu. Mas, como tantas outras, está<br />

distante da arquitetura original. O seu<br />

oratório tem pouca semelhança com os<br />

de estilos antigos.<br />

No entanto, muito da história do município<br />

está preservada na memória de<br />

moradores ilustres, como dona Telva<br />

Menezes, de 98 anos. A irreverência em<br />

conjunto com a valentia de seu povo<br />

pode ser retratada pelos depoimentos,<br />

recordações e trejeitos de seu Felipe Gomes<br />

de Souza, de 80 anos, e suas lembranças<br />

de Lampião. O escritor Mário<br />

de Andrade, considerado o papa do Modernismo<br />

brasileiro, quando de passagem<br />

pelos interiores do Nordeste, em 1929,<br />

caracterizou os moradores do povoado<br />

de Gavião como “gente brigona, acangaceirada”.<br />

Mas a julgar pela simplicidade<br />

do empresário mais bem sucedido da<br />

região: Joaquim Suassuna Filho, 70, ou<br />

mesmo pelo silêncio das ruas nas noites<br />

de Umarizal, a verdade é outra.<br />

O estilo pacato ou a riqueza também se<br />

encontram naqueles onde a simplicidade<br />

foi oferecida como sina pelo destino.<br />

O violeiro e cantador Raimundo Praxedes<br />

é um destes. Considerado um dos<br />

nomes mais representativos da cultura<br />

popular de Umarizal, vive sem apoio<br />

ou até estímulo para espalhar sua poesia<br />

pelos recantos nordestinos, como a<br />

maioria dos poetas, cordelistas e cantadores<br />

populares.<br />

A Umarizal de ruas largas, do senador<br />

Zezito, ainda abriga outras expressões<br />

culturais. Mas, a decadência da antiga<br />

feira livre, vitrine para mostra e venda de<br />

produtos artesanais e das artes plásticas<br />

da cidade, contribui para o anonimato<br />

desses personagens. A Casa de Cultura<br />

Popular instalada no município ainda<br />

serve de espaço para algumas exposições<br />

ou apresentações de grupos como o “Relendo<br />

Araruna” e a companhia teatral<br />

“Arte & Riso”, sobretudo durante os<br />

eventos da cidade.<br />

Jan/Fev 2006<br />

59


A história do município em cordel<br />

Desde 2000, o vice-diretor da Escola Estadual 11 de Agosto, Francisco Praxedes,<br />

o professor Chiquito, 49 anos, tenta editar o livro que escreveu sobre a História de<br />

Umarizal, intitulado “A cultura nordestina chega ao terceiro milênio”. No livro, o<br />

professor resgata lembranças dos tempos da Umarizal de ontem e, embasado em<br />

pesquisas, conta a história de fundação e primeiras famílias do município.<br />

Muitas das histórias são contadas em versos de cordel. É que a convivência estreita<br />

do professor com as letras começa já na adolescência, quando produzia literatura de<br />

cordel com temas ligados à pedagogia ou sobre os fatos de Umarizal. Mas, os acontecimentos<br />

no sítio Poço Branco, em Caraúbas, também o infl uenciou. E não poderia<br />

ser diferente. “Os tempos de menino foram difíceis. Não tinha como esquecer”.<br />

O professor Chiquito chegou a Umarizal aos 15 anos. A mudança cultural, segundo<br />

ele, “travou um pouco a inspiração de um matuto vindo de sítio”. Só aos 25 anos<br />

iniciou na escrita do cordel. Foi também nessa idade que iniciou as pesquisas para o<br />

livro. “Existe uma carência de temas voltados para esse resgate da história local. E é<br />

importante deixar imortalizada e também divulgar essa história, essa cultura. É uma<br />

forma de deixar os moradores orgulhosos e conhecedores de sua história”.<br />

60 Jan/Fev 2006<br />

Pioneirismo, criatividade<br />

e trabalho<br />

A necessidade muitas vezes se faz manual<br />

de aprendizado. E no interior, ela alia-se<br />

à criatividade do sertanejo. O empresário<br />

Joaquim Suassuna Filho, cria do<br />

sítio Cajuais, no município de Riacho<br />

da Cruz e que adotou Umarizal como<br />

moradia a partir de 1978, construiu um<br />

império chamado Vicunha, a maior fabricante<br />

de carrocerias para camionetes,<br />

caminhões e carretas do Nordeste, com<br />

fi liais em Fortaleza e Natal. A empresa é<br />

a maior fonte de renda de Umarizal.<br />

Como outros moradores antigos do município,<br />

a cultura ensinada nos sítios impregnou<br />

seu Joaquim de uma simplicidade<br />

sólida. O meio de transporte de que<br />

mais se utiliza é uma bicicleta Monark,<br />

já com 42 anos de estrada. Ao lembrar<br />

os tempos difíceis, no trabalho junto à<br />

madeira cerrada ou planada por duas<br />

máquinas confeccionadas pelo próprio<br />

empresário, seu Joaquim sorri. É que ele<br />

parece viver daquele tempo. Sua casa é<br />

semelhante a muitas outras do município.<br />

Mas seus bens tomam extensos<br />

quarteirões, onde são processadas todas<br />

as etapas de fabricação das carrocerias.<br />

“Vim para Umarizal por causa da educação<br />

dos meus fi lhos. E aqui tinha a<br />

vantagem da feira, que juntava muita<br />

gente. Umarizal estava se desenvolvendo”,<br />

lembra. Joaquim trabalhou por 12


anos em Riacho da Cruz. A tal necessidade,<br />

no início, obrigou também a sua<br />

mulher, Marlene de Amorim Suassuna,<br />

65, a ajudar na produção das carrocerias.<br />

Ela fazia as pinturas, detalhadas em fi nos<br />

traços. O método foi improvisado, fruto<br />

da criatividade necessária: “Não usava<br />

pincel. Eu tirava a parte de dentro de<br />

uma seringa e deixava só a ponta. Pegava<br />

uma agulha mais grossa, cortava um pedaço<br />

e depois pegava uma lã de carneiro<br />

pra fazer um pincel na ponta da agulha.<br />

Depois, amarrava com uma linha. Ali,<br />

colocava a tinta, que ia ensopando a lã<br />

até chegar à ponta da seringa”.<br />

A tecnologia da maquinaria domina<br />

hoje os espaços dos muitos galpões de<br />

Joaquim. Em um deles, uma ofi cina<br />

para jovens da periferia foi formada. É<br />

o orgulho e o passatempo do empresário<br />

nessa altura da vida. A idéia surgiu ao<br />

ver crianças e jovens ao redor da fábrica<br />

em busca de restos de material. Por<br />

questão de espaço, são 22 alunos, selecionados<br />

por critério de idade (12 aos 17<br />

anos) e média escolar. A ofi cina já dura<br />

15 anos. Na produção dos jovens, predomina<br />

a fabricação de colméias, atividade<br />

em expansão no município. Mas há<br />

também garajaus (cestos) para proteção<br />

de plantas e cercas para jardins. Muitos<br />

alunos assumem hoje cargos gerenciais e<br />

de chefi a na empresa. Outros saíram de<br />

lá para trabalhar em outras fábricas. “Do<br />

tolhimento da madeira se faz mil e uma<br />

obras de arte”, comenta Joaquim.<br />

Barba, cabelo,<br />

bigode e poesia<br />

Antônio Márcio Sobrinho, mais conhecido<br />

como Toinho de Otília, 63 anos,<br />

mistura duas profi ssões bem distintas.<br />

No salão em que trabalha desde 1979,<br />

ele faz barba, cabelo e também poesia.<br />

Toinho chegou a Umarizal vindo do sítio<br />

Traíra, em Apodi, no mesmo ano de<br />

1979. Mas a “mania” de escrever começou<br />

há apenas dois anos, com músicas<br />

Jan/Fev 2006<br />

61


de forró e hinos evangélicos para o<br />

irmão que mora em São Paulo.<br />

Muitos clientes ainda desconhecem<br />

e até duvidam que o barbeiro, tão<br />

conhecido na cidade, deu pra poeta.<br />

Mas ele recebe com ironia a desconfi<br />

ança: “Quando dizem: ‘você sabe<br />

fazer nada, homi’. Aí eu mostro o<br />

discurso da missa de primeiro ano de<br />

morte do sanfoneiro Chico de Kival.<br />

Aí o povo se admira”.<br />

Francisco de Assis dos Santos, o Chico<br />

de Kival (1965-2004), foi assassinado<br />

aos 38 anos. Era natural de<br />

Umarizal. O sanfoneiro chegou a tocar<br />

nas bandas de forró Saia Rodada,<br />

Linder Som e Cheiro de Menina. Era<br />

nome expoente na Zona Oeste. Em<br />

16 estrofes, Toinho prestou homenagem<br />

ao seu primo. Alguns trechos:<br />

“Os passarinhos acordaram/ Ali ao<br />

romper da Aurora/ Em vez de cantar<br />

choraram/ Aquela triste sonora/<br />

Dizendo um pro outro/ Nosso artista<br />

foi embora. Chorou toda região/<br />

Inclusive Umarizal/ Toda família<br />

sentiu/ Aquele golpe fatal/ E a notícia<br />

se espalhando/ Morreu Chico de<br />

Kival”.<br />

E completa o barbeiro poeta: “Poesia,<br />

música, não depende do saber. As escolas<br />

até aperfeiçoam, mas se o cara<br />

não nascer pra aquilo, acabou-se”.<br />

62 Jan/Fev 2006<br />

O homem que conheceu Lampião<br />

Felipe Gomes de Souza, 80, nasceu de sete meses. Mas nem precisava dizer. Apesar da<br />

idade, o pernambucano, nascido no município de Floresta, é ativo como um jovem,<br />

e espirituoso como os bons sertanejos de antigamente. Além de ter morado em várias<br />

cidades brasileiras, “por não conseguir parar em nenhuma”, seu Felipe guarda outra<br />

peculiaridade: em sua morada de infância, na Fazenda Betânia, entre os 4 e 5 anos de<br />

idade, em Pernambuco, o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, aparecia<br />

com freqüência.<br />

O cangaceiro era tão íntimo da casa que apadrinhou dois irmãos de seu Felipe. “Lampião<br />

foi criado junto com meu pai”, recorda. Segundo suas lembranças, o cangaceiro<br />

era homem moreno, magro e simpático. Lampião passava até três dias na Fazenda.<br />

“Polícia num ia lá porque tinha medo”. Para a criançada da Fazenda, a presença daquele<br />

cangaceiro de bandoleira carregada de ouro entre uma ponta e outra, as vestimentas<br />

requintadas e brilhantes, embora tipicamente nordestinas, aguçavam o imaginário da<br />

molecada. “Todos nós queríamos ser iguais a ele”, conta.<br />

Outra recordação da presença do cangaceiro e seu bando na Fazenda também perdurou<br />

na memória de seu Felipe: “Maria Bonita foi a mulher mais bonita que eu


já vi. E era valente também. Ela seguiu<br />

Lampião porque o marido lhe deu uma<br />

surra. E ela num era mulher de aceitar<br />

surra de marido”, disse seu Felipe, meio<br />

encabulado ao elogiar a beleza de Maria<br />

Bonita ao lado de sua mulher, Raimunda<br />

Gomes de Souza, Passados 25 anos do<br />

casório, seu Felipe ainda lembra detalhes<br />

dos primeiros contatos, motivo pelo qual<br />

fi ncou morada no município.<br />

“Assim que cheguei em Umarizal, na<br />

casa de meu primo, ela estava lá e logo<br />

me ofereceu água. Depois, foi a primeira<br />

a me oferecer queijo. Aí pensei: Essa<br />

mulher tá me perseguindo”. Seu Felipe<br />

foi embora de Umarizal, mas sentenciou<br />

para dona Raimunda: “Eu volto aqui pra<br />

te buscar”. Voltou e fi cou. E apesar de<br />

ter morado em São Paulo por 27 anos,<br />

onde trabalhou de pedreiro “pra ganhar<br />

o sufi ciente pra fi car dois meses sem<br />

trabalhar”, seu Felipe percorreu vários<br />

municípios Brasil afora. E deixou marcas<br />

em muitos: “Deixei nove mulheres<br />

com aliança, mas só casei mesmo com<br />

Raimunda”, orgulha-se.<br />

O casamento foi acertado através de<br />

carta escrita de São Paulo pelo escritor<br />

François Silvestre. Sem saber ler e escrever,<br />

seu Felipe pediu ao amigo para manter<br />

contato com a noiva, em Umarizal.<br />

Quando retornou a Umarizal para casar,<br />

não lembrava as feições da noiva e pediu<br />

a uma conhecida para apontá-la, porque<br />

temia confundi-la com a irmã.<br />

Quadrinhos com sotaque nordestino<br />

As histórias dos super-heróis em quadrinhos<br />

ou da turma de Maurício de Sousa<br />

foram leituras quase obrigatórias para as<br />

crianças, sobretudo dos anos 80. Mas,<br />

para Rodrigo Fernandes, 26 anos, elas<br />

se mostraram caminho para a futura<br />

profi ssão de arte-fi nalista. Nascido em<br />

Umarizal, Rodrigo costumava desenhar<br />

por hobby já em tenra idade. Ao perceber<br />

um talento peculiar, começou a<br />

estudar arte seqüencial. Ele se julga um<br />

batalhador neste campo da arte. E não é<br />

para menos: Rodrigo precisa retirar do<br />

próprio bolso os custos para a publicação<br />

bimestral dos fanzines produzidos.<br />

O mercado de HQ’s em Umarizal ou<br />

nos interiores do Estado é praticamente<br />

nulo. Por isso, já aos 17 anos Rodrigo<br />

veio para Natal estudar e se profi ssionalizar.<br />

Passou quatro anos. Trabalhou<br />

nos estúdios Reverbo, de estórias em<br />

quadrinhos, e desenhando a arte-fi nal<br />

da revista Brado Retumbante, com personagens<br />

de super-heróis locais. Uma<br />

cooperativa de artistas do gênero era responsável<br />

pela publicação da revista. Os<br />

cooperativados se reuniam na <strong>Fundação</strong><br />

Capitania das Artes para discutir projetos<br />

e roteiros das estórias. Mas o campo<br />

de HQ’s, mesmo na capital, também é<br />

difícil. “Não tem mercado. A cultura<br />

local não favorece. Não fosse o lance da<br />

paixão pura já teria desistido”.<br />

Em 2004, Rodrigo voltou a Natal para<br />

ensinar desenho artístico no ateliê de<br />

Ricardo Tinoco. Mas os planos do artista<br />

em produzir revistas e fanzines não<br />

avançavam. Voltou para Umarizal no<br />

ano seguinte. E desde então tem feito a<br />

arte seqüencial dos personagens do roteirista<br />

Francinildo Senna, como o herói<br />

chamado de Crânio. A tiragem é de 800<br />

exemplares e já possui mercado em Belo<br />

Horizonte e Rio de Janeiro. Mas o sonho<br />

mesmo de Rodrigo é ver seu personagem,<br />

o Bispo, estampado nos fanzines.<br />

A originalidade do personagem está no<br />

ambiente em que vive: uma Natal escu-<br />

Jan/Fev 2006<br />

63


a, nas madrugadas sombrias e violentas<br />

da cidade grande. Na próxima edição do<br />

fanzine, a ser publicado este mês, o Crânio<br />

dividirá atenções com o Bispo. Ambos<br />

serão protagonistas do roteiro.<br />

O Bispo foi inspirado no famoso herói<br />

de Gotham City, Batman. Mas tem lá<br />

um quê de Lampião também. Sem superpoderes<br />

ou maiores incrementos vi-<br />

A nostalgia de um velho agricultor<br />

Raimundo Galdino, 80 anos, é personagem<br />

cotidiano no centro de Umarizal.<br />

Todos os dias ele anda “uma légua”, do<br />

sítio Caiçara onde mora desde que nasceu,<br />

ainda nos limites do município,<br />

até as praças da cidade. No momento<br />

da reportagem, Galdino estava sentado<br />

em um costado de uma churrascaria. A<br />

expressão sonolenta e tranqüila, de observador<br />

passivo, denotava um homem<br />

de histórias guardadas.<br />

Raimundo é dos poucos umarizalenses<br />

ainda moradores de sítio. Muitos apontam<br />

a praga do bicudo e a conseqüente<br />

falência da prática algodoeira como motivo<br />

maior do êxodo para a cidade. No<br />

censo de 1991, as pesquisas mostravam<br />

533 casas na Zona Rural já sem condições<br />

de moradia. O abandono ocasionou<br />

também a falência de uma minindústria<br />

de castanha, mesmo com o produto ainda<br />

em abundância na região.<br />

64 Jan/Fev 2006<br />

suais, o Bispo é um vigilante revoltado<br />

pelo assassinato brutal de sua família. Ele<br />

vive pelas ruas, vigiando as madrugadas<br />

natalenses. “O Bispo não tem dinheiro<br />

como o Batman pra comprar automóveis<br />

ou armas. Ele combate na raça mesmo”.<br />

E nesse caso, criador e criatura se misturam<br />

em uma mesma intenção: vencer as<br />

batalhas na raça e na força de vontade.<br />

As lembranças de Galdino remetem a<br />

uma Umarizal próspera. Agricultor aposentado,<br />

ele lembra ainda do auge do<br />

cultivo do algodão e das famílias ricas do<br />

município. “O algodão acabou por causa<br />

do bicudo, que derrubou tudo, até as<br />

usinas. Em 1985 eu plantei algodão na<br />

propriedade dos Germanos. Em 1 ano<br />

colhi 14 mil quilos de algodão em 10<br />

hectares de terra. Mas o bicudo atrapalhou<br />

tudo”, recorda.<br />

Casado há 53 anos, o agricultor de 14<br />

fi lhos, “todos espalhados mundo afora”,<br />

28 netos e 4 tataranetos não cansa de comentar<br />

as lembranças de outrora: “Trabalhei<br />

em 22 propriedades em Umarizal.<br />

Botei muita renda nessas famílias”,<br />

orgulha-se. Embora continue no campo,<br />

onde passou boa parte da vida, Galdino<br />

é saudosista também da feira livre do<br />

município. “Antigamente as feiras iam<br />

até de noite. Hoje, depois das 14 horas,<br />

o povo vai embora”, reclama o agricultor<br />

de trajes e trejeitos rurais.


“O sertão é tudo”, diz o trovador<br />

Raimundo Praxedes, 51 anos, é um daqueles artistas<br />

que mais parecem uma metáfora perfeita da poesia<br />

popular. Um sertão de pedras e pedregulhos, de horizontes<br />

extensos e cinzas, a dividir paisagem com o<br />

céu limpíssimo, habitam a cabeça do cantador. “O sertão<br />

é tudo”, afi rma, como se nem precisasse adivinhar<br />

que cada um carrega mesmo um sertão dentro de si.<br />

E quando sentencia a universalidade do sertão, Rai-<br />

O hobby que virou profi ssão<br />

Os trabalhos com cera e grafi te são o forte do artista plástico Macson Antônio, 30<br />

anos. A perfeição dos traços e formas de seus quadros e telas impressionam. E tudo<br />

o artista aprendeu na prática. As fi sionomias e as paisagens predominam na obra de<br />

Macson. Como muitos artistas que lidam com desenhos, ele iniciou no mundo da<br />

arte como hobby.<br />

Aos 8 anos Macson já desenhava seus primeiros rabiscos. Segundo ele, a facilidade<br />

no manuseio com os lápis e pincéis logo chamaram atenção de todos. A profi ssionalização<br />

veio em seguida, assim como a desvalorização de seu trabalho devido à falta<br />

de apoio do poder público para os artistas locais.<br />

“Sinceramente, me sinto desestimulado. Já pensei em desistir”, comenta. Macson já<br />

expôs seu trabalho na Zona Oeste e ainda tem recebido algumas encomendas. “Mas<br />

é pouco. Desse jeito não dá para viver só da arte”.<br />

mundo Praxedes confi rma que ninguém melhor que o cantador pode<br />

sentir a variedade de cenários do cotidiano sertanejo.<br />

A voz aguda de repentista confunde-se em afi nação e harmonia com<br />

sua viola desgastada pelo tempo, já com dez anos de estradas nordestinas.<br />

Parecem cantar juntos. É ela quem acompanha as sextilhas do<br />

poeta, que também passeia pelos campos do galope beira-mar ou do<br />

martelo agalopado. Em suas canções e improvisações, Praxedes traz<br />

dos sertões para as cidades o retrato da natureza e do rigor que castiga<br />

peles e mentes. E que também alimenta costumes e cultura.<br />

“O caboré, um pássaro noturno e vigilante/ Quando é de meia-noite<br />

em diante/ Ele voa pra um morro de um sopé/ Dali passa a noite e<br />

num dá fé/ Que ele olha com muita ligeireza/ Uma muralha de pedra<br />

é sua empresa/ Ele olha e vê todo o movimento/ Discursa montado em<br />

rolamento/ O quanto é grande o poder da natureza”, canta Praxedes,<br />

em som misturado ao da viola, do cacarejo da galinha e do silêncio<br />

audível e místico do sertão em volta.<br />

A morada do cantador é simples. Fica no bairro Mutirão, quase zona<br />

rural de Umarizal. O município ainda chamava-se Vila do Gavião<br />

Jan/Fev 2006<br />

65


quando Praxedes nasceu nessa casa de chãos de terra batida.<br />

Ali, ele planta e colhe, cria algum gado, porcos e galinhas.<br />

“Viver só da viola não dá”, lamenta, já acostumado e sabedor<br />

da sina dos poetas populares. Apenas enquanto viveu<br />

na região do Seridó, na década de 80, Praxedes conseguiu<br />

“viver da viola”.<br />

O início na cantoria foi em 1978. O poeta e cordelista mossoroense,<br />

Luiz Campos foi seu primeiro incentivador. Logo,<br />

Praxedes trocaria Umarizal por Caicó, onde viveu cinco anos<br />

“Relendo Araruna”: respeito à tradição<br />

O grupo de danças Araruna é um dos representantes da cultura potiguar. O pessoal<br />

de Umarizal foi buscar inspiração nele para criar o grupo “Relendo Araruna”. A Sociedade<br />

Araruna de Danças Antigas e Semidesaparecidas, que tem à frente o mestre<br />

Cornélio Campina (enfocado em reportagem publicada na PREÁ nº 6 ), foi criada<br />

em 1956.<br />

O grupo “Relendo Araruna”, como o próprio nome confi rma, é uma conseqüência<br />

do Araruna de Natal. A formação do grupo, com 20 integrantes, se deu na 1ª<br />

66 Jan/Fev 2006<br />

e participou de vários programas de rádio. Acabaram com as cantorias<br />

nas rádios, que davam alguma notoriedade aos cantadores.<br />

Os desafi os dos repentistas, antes vistos em praças públicas de<br />

forma costumeira, parece se esvair.<br />

Os CDs independentes, gravados e copiados facilmente a preços<br />

baixos são hoje a mídia dos repentistas do interior. Ainda assim, Praxedes<br />

lamenta: “Até tenho um trabalho gravado, mas falta dinheiro<br />

para copiar”. E dessa forma o poeta segue seu ritmo de vida, vencendo<br />

obstáculos no improviso das necessidades e dos repentes.<br />

Mostra de Cultura Popular na Educação,<br />

promovida pelo Governo do Estado, em<br />

novembro de 2003. A mostra reuniu milhares<br />

de estudantes do ensino médio de<br />

escolas públicas vindos de 50 municípios<br />

do Estado.<br />

Nessa mostra cultural, cada cidade do<br />

RN era representada por um folguedo.<br />

O xaxado, caboclinho, pastoril, malhação<br />

do judas e fandango foram algumas<br />

danças apresentadas. Foi nesse evento<br />

onde os integrantes do “Relendo Araruna”<br />

conseguiram os fi gurinos de casacas<br />

e cartolas, e os longos vestidos de saias<br />

rodadas em preto e branco, a denotar<br />

um estilo aristocrático, infl uente na<br />

origem da Araruna. O aprendizado dos<br />

alunos para a Mostra ocorreu por meio<br />

de um vídeo onde coreografi as da dança<br />

eram praticadas. A professora de artes<br />

Maria da Paz foi quem conseguiu a fi ta<br />

e orientou os alunos. A partir daí, outras<br />

coreografi as foram montadas, sempre<br />

em respeito às normas da dança.


Arte & Riso faz a hora<br />

Em dezembro de 2001, as comemorações<br />

do natal promovidas pela fábrica de<br />

carrocerias Vicunha, de Umarizal, mudariam<br />

a vida de quatro jovens. Para animar<br />

as muitas crianças presentes, fi lhos de<br />

funcionários da empresa, a secretária da<br />

Vicunha procurou o estudante Emanuel<br />

Alves, 18 anos. Ela já conhecia o trabalho<br />

teatral de Emanuel na escola e achou<br />

que, se reunisse outros estudantes ligados<br />

a grupos teatrais, o improviso poderia<br />

dar sucesso. Estava criado ali o embrião<br />

para a “Cia. de Teatro Arte & Riso”.<br />

Os estudantes Jardel Amorim, Francisco<br />

Dias e José Neto foram os outros a<br />

entrarem no grupo para aquela primeira<br />

apresentação. Em princípio ela seria<br />

única, apenas para aquele natal. As rou-<br />

pas foram confeccionadas pela<br />

empresa e emprestadas aos atores<br />

amadores. O show surpreendeu<br />

as crianças e o público em geral.<br />

Como pagamento, os jovens<br />

atores preferiram o fi gurino, até<br />

então emprestado pela empresa.<br />

A partir dali, a empresa apoiou<br />

o grupo em apresentações pela<br />

Zona Oeste e até em Natal e Fortaleza.<br />

Hoje, a companhia conta com<br />

oito integrantes. O teatro de rua<br />

está presente no repertório do<br />

grupo, mas é mesmo a arte circense<br />

que predomina nos espetáculos.<br />

Imitações de personagens da<br />

cidade ou históricos, o malabares<br />

tradicional, entre outras peças são<br />

apresentadas pelo Arte & Riso.<br />

Os líderes do futuro<br />

O grupo de teatro<br />

amador Umaricatu<br />

ensaia suas apresentações<br />

baseado em<br />

roteiros enviados pela<br />

Internet. Os textos<br />

são do professor cearense<br />

Arnaldo Lima,<br />

responsável pela iniciação<br />

dos 25 componentes<br />

do grupo.<br />

Com apenas sete meses<br />

de atuação, o Umaricatu já participou de<br />

projetos de cultura pelo Estado, como o “Leitura<br />

de Texto”, de Racine Santos, e várias apresentações<br />

locais. O novo espetáculo chama-se<br />

“Hoje a banda não sai”, do cearense Severino<br />

Tavares.<br />

O nome Umaricatu é uma junção do nome da<br />

cidade com a palavra caricatura. Os componentes<br />

têm faixa etária entre 12 e 21 anos. O<br />

grupo é vinculado à sociedade maçônica, responsável<br />

por outros projetos sociais em Umarizal.<br />

Segundo o médico e maçom Roberto Alencar,<br />

33 anos, a idéia de patrocinar a atividade<br />

dos jovens é a da preparação social de líderes<br />

comunitários. “Queremos formá-los não só na<br />

arte, mas também pessoalmente, para que produzam<br />

obras sociais”, afi rmou.<br />

Jan/Fev 2006<br />

67


Artesanato: distração e renda<br />

O melhor meio que Aline Maria dos<br />

Santos, 25 anos, arranjou para se distrair<br />

em Umarizal foi produzir arranjos<br />

fl orais em meia de seda. Ela aproveitou<br />

um curso de artes oferecido em escola de<br />

Sumaré, São Paulo, onde morou e desde<br />

então tem produzido peças variadas e<br />

pequeninas, em sua maioria. O produto<br />

encontra boa aceitação em feiras e exposições<br />

de artesanato, afi rma. Mas o motivo<br />

maior da venda, ressalta, é evidenciar<br />

o trabalho produzido.<br />

“Muita gente produz, mas guarda sua<br />

obra em casa ou tem preguiça de expor<br />

nas feiras. Cansei de colocar minhas peças<br />

à venda e ninguém comprar. Mas sei<br />

68 Jan/Fev 2006<br />

que elas foram vistas. Tem que ter iniciativa.<br />

Pretendo reservar o espaço da Casa<br />

de Cultura por uma semana para mostrar<br />

meu trabalho. É assim que se começa”,<br />

aconselha. Aline hoje se orgulha em ter<br />

seu trabalho comprado para ser revendido.<br />

“Os cursos incentivam a população<br />

a produzir arte. Mas vejo também que<br />

quando oferecem cursos por aqui, pouca<br />

gente freqüenta. É uma pena”.<br />

Alexandra Maria dos Santos, 28 anos, foi<br />

das poucas umarizalenses a participar do<br />

curso ministrado na cidade, em agosto<br />

de 2005, pela Estima Artesanato, de Recife.<br />

Hoje, ela produz um trabalho original<br />

no município, com artesanatos em<br />

fl ores e coroas de cetim, trabalhos com<br />

gesso e enfeites em miniatura. Como<br />

Aline, a artesã também procura vender<br />

seu produto em municípios vizinhos ou<br />

mesmo de porta em porta, procurando<br />

mostrar um pouco do artesanato e da<br />

força de vontade de Umarizal.


Os azulejos coloridos<br />

de Zenaide<br />

Depois que Maria Zenaide de Souza, 30<br />

anos, viu na televisão como pintar paisagens<br />

e desenhos variados em azulejos,<br />

decidiu dividir sua profi ssão de fotógrafa<br />

com a nova paixão artística. Com apenas<br />

um ano nessa atividade, ela já adquiriu<br />

agilidade na pintura. E se os muitos detalhes<br />

e a qualidade do trabalho impressionam,<br />

o tempo para completar o desenho<br />

também. Em apenas três minutos<br />

ela começa e dá os últimos retoques no<br />

azulejo.<br />

O material usado é a tinta acrílica, comprada<br />

por encomenda na Internet. O<br />

“grosso” do desenho ela faz com os dedos.<br />

Para os detalhes minuciosos da pintura,<br />

a artista usa palitos e algodão. Zenaide<br />

precisa viajar a Mossoró para comprar<br />

caixas de azulejos. Apesar do esforço da<br />

produção, ela afi rma que acumula seus<br />

trabalhos em casa por falta de mercado.<br />

E lamenta só conseguir expor seu trabalho<br />

em escolas ou na Casa de Cultura de<br />

Umarizal. “Mesmo assim continuo pintando<br />

pra passar o tempo”.<br />

Dona Aurélia luta para<br />

manter quadrilha<br />

Independente das discussões sobre a legitimidade da quadrilha<br />

estilizada como forma de manifestação da cultura<br />

popular, dona Aurélia Alencar, de 59 anos, segue sua labuta<br />

para perpetuar a quadrilha junina de Umarizal por<br />

longos anos. O fi gurino colorido – que lembra o folclore<br />

dos pampas gaúchos – dos 54 componentes é alugado.<br />

A maioria dos integrantes, afi rma dona Aurélia, são pessoas<br />

humildes que precisam esperar apoio da iniciativa<br />

privada ou do poder público para bancar apresentações<br />

Jan/Fev 2006<br />

69


e viagens que o grupo faz para competir<br />

em municípios vizinhos.<br />

Em 2005 conseguiram recursos apenas<br />

para duas viagens. O dinheiro veio de<br />

bingos e eventos. Foi o menor número<br />

desde que começaram há seis anos.<br />

Nunca chegaram a vencer competições.<br />

“Com essa situação fi nanceira não dá. O<br />

apoio tem diminuído”, reclama Aurélia.<br />

Mas os membros da quadrilha são vitoriosos<br />

mesmo assim. Já conseguiram se<br />

apresentar em quase toda a Zona Oeste.<br />

E dona Aurélia, proprietária de uma<br />

pousada em Umarizal, faz parte de forma<br />

intensa nessa história.<br />

70 Jan/Fev 2006<br />

No início as quadrilhas eram matutas (ou<br />

caipiras). Foram criadas quando as comemorações<br />

do São João eram espalhadas<br />

em cada bairro da cidade. Pequenas<br />

quadrilhas improvisadas eram formadas<br />

e por ali festejavam o mês junino. Dona<br />

Aurélia afi rma sempre gostar de festas,<br />

ou “fi lotê”, como chamam em Umarizal.<br />

Ela está sempre envolvida nas organizações<br />

de eventos na cidade. Após dois<br />

anos da iniciativa do ex-prefeito Manoel<br />

Paulo Cavalcanti em criar o São João dos<br />

bairros, dona Aurélia vislumbrou uma<br />

idéia para facilitar o investimento e a organização<br />

do São João em Umarizal.<br />

Um roqueiro cordelista<br />

As cirandas de cordel e o rock progressivo<br />

caminham em estradas opostas, ou pelo<br />

menos distantes. O umarizalense Joelson<br />

de Souto, de 22 anos, quer provocar essa<br />

mistura e produzir um trabalho original<br />

e de qualidade. Ele é hoje acadêmico da<br />

Faculdade de Letras e Artes, estuda literatura,<br />

leciona gramática e redação em<br />

escolas e cursinhos de Mossoró, além de<br />

guitarrista das bandas Cumade Cristina,<br />

Audiobuzz, Projeto Blues e Graciele de<br />

Lima. A mistura dessas atividades que<br />

realiza em Mossoró ainda é um projeto<br />

de vida de Joelson.<br />

Após reunião com representantes dos<br />

bairros, fi cou decidido que o São João<br />

da cidade passaria a ser festejado todo ele<br />

na quadra municipal de esportes, e não<br />

mais de forma fragmentada em bairros.<br />

O resultado foi imediato. Já no primeiro<br />

ano, uma quadrilha estilizada pôde<br />

ser organizada. As coreografi as – uma<br />

das características que diferenciam a<br />

quadrilha tradicional da estilizada – são<br />

elaboradas por coreógrafo de Riacho da<br />

Cruz. Dona Aurélia e seu marido, José<br />

Mário de Morais viraram padrinhos da<br />

quadrilha, com toda satisfação: “Nosso<br />

maior orgulho é ver o desenvolvimento<br />

desses meninos e meninas durante esses<br />

seis anos de trabalho”, afi rma Aurélia.<br />

Desde 1999, quando partiu para Mossoró,<br />

Joelson procura se estabilizar nas<br />

profi ssões de professor e músico. “Para<br />

sobreviver em Umarizal só se for comerciante<br />

ou funcionário público”, comenta.<br />

A batalha na capital do Alto Oeste começou<br />

desde que chegou. Trabalhou como<br />

jardineiro e engraxate. Mas a leitura e as<br />

pesquisas sobre Língua Portuguesa continuavam<br />

como dedicação paralela. Por<br />

falta de tempo Joelson nunca procurou<br />

publicar seus cordéis. Em breve, ele pretende<br />

trabalhar em um projeto autoral<br />

com seus poemas, sejam eles musicados<br />

ou recitados.


A bordadeira de 98 anos<br />

Etelvina Menezes tem 98 anos. Confecciona cobertas, varandas de<br />

rede, detalhes em retalhos, renda de almofadas ou o que a imaginação<br />

e o tempo lhe permitirem. Faz crochê também. “Faço e vendo”,<br />

ressalta. dona Telva, ou Telvinha, é como os umarizalenses a conhecem.<br />

Ela, na verdade, é quem os conhece. A idade, a memória e,<br />

sobretudo, a lucidez de “dona Telva”, atestam o fato.<br />

Ela nasceu em 1908. Seus avós e bisavós também eram umarizalenses,<br />

os primeiros moradores da região. Dona Telva escava da parede<br />

da memória as lembranças da Umarizal de ontem, no início do século<br />

passado: “Só havia quatro ou cinco famílias: a de seu Porcino,<br />

de Joaquim Pinto e seu Manoel Alves. O velho Delmiro morava só,<br />

numa casa aqui perto. E tinha o velho Pachico, meu avô. O nome<br />

dele era José Francisco. A igreja era uma capelinha ainda. O centro<br />

da cidade fi cava ao redor dela e do cemitério. Tinha também<br />

um barracão, onde se fazia feira. O açougue era no<br />

meio do mato. Era só isso que tinha”.<br />

A longevidade de dona Telva parece ser herança de família.<br />

Seu pai morreu com “80 e bote força”, como disse.<br />

Dos cinco irmãos, dois morreram com mais de 90 anos.<br />

Sua irmã Nonata tem 95 anos. As outras duas, 90 e 84<br />

anos. O segredo para a idade longa, dona Telva explica e<br />

aconselha: “Fomos criados comendo, mas comendo bem<br />

muito pra encher a barriga. Agora, nunca nosso pai comprou<br />

quilo de carne de criação pra botar no forno. Só se<br />

comprava um quarto de bode, ou matava três guinés pra<br />

botar como almoço. Mas a gente trabalhava na roça. O<br />

trabalho também é importante. Nunca fomos à escola.<br />

Mas também não tinha escola naquele tempo”.<br />

São dos expedientes “sofridos e alegres” na roça que dona<br />

Telva tem as melhores lembranças. A colheita do feijão e<br />

algodão; as covas para plantação, as faxinas com a enxada<br />

construíram épocas difíceis que escapolem das nostalgias<br />

do “tempo bom” de dona Telva. As noitadas na roça sim,<br />

abrem sorrisos e saudosismos. As lembranças de dona<br />

Telva remetem aos costumes de vida brejeira, sertaneja,<br />

à vida na ainda Vila Divinópolis, ou mesmo na região do<br />

Gavião, primeiros nomes de Umarizal.<br />

“Eram quatro famílias de irmandade morando em volta<br />

do roçado. Quando era de noite se ajuntavam todos. Nem<br />

passava gente nem bicho, porque era tudo cercado. Certa<br />

vez, fi zemos um fogo do lado de fora. Botamos uma panela.<br />

Aí fomos apanhar feijão maduro pra cozinhar. Ganhamos<br />

o roçado e não acertamos voltar. Mamãe sentiu<br />

falta pelo silêncio. Ela foi ao terreiro e viu uma lamparina,<br />

que era no gás. Estávamos num pé podado que tinha no<br />

terreiro da cozinha, com três carreiras de algodão. Mamãe<br />

nos achou ali. Depois do carão, botamos o feijão pra cozinhar.<br />

Era tudo de bom. Nós passamos muita vida boa e<br />

muita vida ruim ali”, disse a senhora matriarca dos quatro<br />

netos e quatro tataranetos.<br />

Jan/Fev 2006<br />

71


Engenhoca de som em miniatura<br />

Um cabo de bicicleta, um compensado,<br />

latas de refrigerante, dobradiças de plástico,<br />

zinco, massa e está feita uma réplica<br />

de carro de som com potência de 160<br />

wats. A engenhoca, que costuma aglomerar<br />

dezenas de pessoas, quando ligado,<br />

foi idéia dos estudantes Misael Amorim,<br />

16 anos, e Alexandro de Oliveira,<br />

19 anos. Tudo começou com cortes de<br />

72 Jan/Fev 2006<br />

papelão no formato do automóvel. Aos poucos<br />

os equipamentos eletrônicos foram sendo<br />

adaptados, montados e colados. “Aprendemos<br />

mexendo mesmo”, revela Misael. Os estudantes<br />

já montaram três miniaturas de carro de<br />

som. Um dos exemplares foi vendido para<br />

uma equipadora. “Vamos levar isso pra frente<br />

e tentar ganhar algum dinheiro com a idéia”,<br />

prevê o estudante.


IRACEMA MACEDOA poesia como intensifi<br />

Por Tácito Costa e Carmen Vasconcelos<br />

Fotos: Anchieta Xavier<br />

cação da vida<br />

A poeta potiguar Iracema Macedo reside há quatro anos em Ouro Preto-MG. Doutora em Filosofi<br />

a, dá aulas na UFMG, em Belo Horizonte. Na década de 90, participou das coletâneas de poesia Vale<br />

Feliz (1991), Gravuras (1995) e Ceia das cinzas (1998), em parceria com os poetas Elí Celso e André<br />

Vesne, antes de estrear carreira solo com Lance de dardos (2000). Em 2004 lançou Invenção de Eurídice.<br />

É autora das obras acadêmicas Idealismo e Amor fati na estética de Nietzsche e Nietzsche, Wagner e a<br />

época trágica dos gregos. Considerada uma das mais importantes poetas do Estado, ganhou os prêmios<br />

Othoniel Menezes, Myriam Coeli e Auta de Souza. Em dezembro último, como faz todos os anos,<br />

ela esteve em Natal, de férias. Em entrevista à Preá, que contou com a participação especial da poeta<br />

Carmen Vasconcelos, Iracema falou sobre sua formação poética; sobre a poesia feita no Rio Grande<br />

do Norte; a relação entre fi losofi a e poesia; entre linguagem e poesia; inspiração e técnica; enalteceu a<br />

poesia feita por mulheres norte-rio-grandenses (“Foi um acaso muito feliz que tivessem nascido aqui<br />

tantas mulheres especiais”) e diz que sua poesia celebra a estetização da existência. “Tento apresentar<br />

uma estetização da existência, na dor, na alegria, na intensidade, no amor, no desamor, enfi m, em todas<br />

as suas instâncias”.<br />

Jan/Fev 2006<br />

73


Preá – Quando e como a poesia entrou<br />

na sua vida?<br />

Iracema Macedo – A poesia entrou na<br />

minha vida através dos cadernos poéticos<br />

que minha mãe fazia na adolescência, na<br />

juventude. Ela copiava sonetos de revistas<br />

e jornais. Quando eu tinha uns doze<br />

anos, tive acesso a esses cadernos. Foi basicamente<br />

com os sonetos copiados com<br />

a letra da minha mãe, que eu comecei a<br />

ter contato com a poesia. A minha lembrança<br />

é de ter feito meus dois primeiros<br />

poemas, em forma de sonetos – mas não<br />

sonetos bem feitos –, nessa época.<br />

Preá – A sua casa tinha livros de<br />

poesia?<br />

Iracema Macedo – Não. Tinha esse<br />

caderno, que foi fundamental, que me<br />

deu uma certa idéia do que era escrever<br />

um poema. Por outro lado, havia muitos<br />

livros de fi losofi a em casa, porque meu<br />

pai foi seminarista e estudou Filosofi a.<br />

Preá – Quando você tomou a decisão<br />

de se tornar poeta?<br />

Iracema Macedo – Com certeza não<br />

houve decisão, foi um acontecimento<br />

inevitável.<br />

74 Jan/Fev 2006<br />

Preá – Em 1992, você com 22 anos de<br />

idade, ganhou dois dos principais prêmios<br />

de poesia de Natal (Myriam Coeli<br />

e Othoniel Menezes). Isso teve alguma<br />

importância na sua vida?<br />

Iracema Macedo – Muita. Foi um<br />

sentimento de reconhecimento, de saber<br />

que estava seguindo o caminho certo,<br />

de que tinha alguma coisa a dizer. Sem<br />

dúvida, esses prêmios nessa época foram<br />

um “batismo”, não um “batismo” social,<br />

mas pessoal, para que eu sentisse mesmo<br />

que era a isso que eu deveria me dedicar<br />

com toda força.<br />

Preá – Naquela época você estava ligada<br />

a algum grupo ou pessoas que faziam<br />

poesia?<br />

Iracema Macedo – Era ligada ao Elí<br />

Celso, ao André Vesne, que tinha sido<br />

meu namorado quando fazíamos o curso<br />

de Filosofi a, e ao Boaventura Júnior.<br />

Nós lançamos em 1991 “Vale feliz”, nesse<br />

movimento coletivo de quatro poetas.<br />

Foi um livro totalmente artesanal, a gente<br />

garimpou o papel, pedimos nas livrarias,<br />

e fi zemos o livro em cópias xerox, com<br />

apoio de alguns setores da universidade.<br />

Lançamos esse livro com esse apoio meio<br />

irreverente, contando também com a<br />

nossa irreverência à época.<br />

Preá – Como você defi niria a poesia, segundo<br />

a poesia que você mesma faz?<br />

Iracema Macedo – É muito difícil<br />

defi nir poesia. Nesse sentido eu vou pedir<br />

o apoio do meu fi lósofo predileto,<br />

Nietzsche, para quem a arte é a intensifi<br />

cação da vida. Então, se eu tivesse que<br />

dizer alguma coisa sobre poesia, sem<br />

dúvida diria que ela é intensifi cação da<br />

vida, no que ela tem de mais lindo e de<br />

mais terrível.<br />

Preá – O poema é uma construção lingüística<br />

pura? E pensando assim, o poema<br />

como uma construção de linguagem,<br />

que tipo de sensação uma palavra produziria<br />

no poeta? Uma palavra sozinha tece<br />

um poema?<br />

Iracema Macedo – Muitas vezes uma<br />

simples palavra, num momento de leitura<br />

ou de lembrança, é a célula que vai gerar<br />

o poema. Portanto, para mim, aquela<br />

palavra guarda um poema inteiro. Isso<br />

eu não tenho dúvida, não só uma palavra,<br />

mas também uma imagem, como<br />

por exemplo, o poema “Canção de amor<br />

para uma moça judia”, que foi gerado<br />

pelo retrato da Rosinha Palatnik, no cemitério<br />

do Alecrim. Apenas um retrato<br />

foi sufi ciente para me mover intensamente,<br />

fazendo com que eu criasse aque-


le poema. Mas há também poemas feitos<br />

a partir de sonhos, pesadelos. Poderia<br />

citar uma palavra, “Carmen”, que resultou<br />

num poema, uma palavra que vem<br />

carregada de todo um signifi cado, por<br />

ser uma cigana, além do bem e do mal.<br />

Essa palavra, por exemplo, me gerou um<br />

poema, chamado “Rito de Carmem”.<br />

No título coloquei o nome de Carmen<br />

com “m” para dar a idéia de uma mulher<br />

mais real e diferenciá-la um pouco<br />

da cigana de Prosper Mérimée. Mas às<br />

vezes algumas palavras também precisam<br />

ser exiladas do poema. Isso faz parte do<br />

meu processo criativo. Tem o título de<br />

um poema, em “Invenção de Eurídice”,<br />

“Anúncio de Antiquário”, inspirado na<br />

visão que eu tenho quando saio de casa<br />

em Ouro Preto, a uns quinhentos metros<br />

de onde moro tem essa loja de Antiguidades<br />

da família Toledo e eu a vejo<br />

e contemplo praticamente todos os dias.<br />

Então, não só a palavra, como a imagem<br />

e a cena geraram o poema inteiro.<br />

E tive a imensa alegria de ter esse poema<br />

musicado pela Valéria Oliveira, que está<br />

com um CD para ser gravado. Ou seja,<br />

de uma palavra, de uma imagem, nasce<br />

o poema e nasceu também uma música.<br />

Penso muito na idéia de que a criação<br />

não é solitária. É nítido para mim isso, a<br />

presença de múltiplas fi guras no que eu<br />

faço. Tudo pode ser irradiação de pessoas<br />

e coisas. Não se ama sozinha e não se faz<br />

poesia sozinha.<br />

Preá – A inspiração é necessária para se<br />

fazer poesia?<br />

Iracema Macedo – Eu não faço coro<br />

com os detratores da inspiração. Para<br />

mim, inspiração e técnica são, ambas,<br />

extremamente necessárias. Ou seja, apolíneo<br />

e dionisíaco são duas formas do fazer<br />

poético, uma sendo a mais elaborada<br />

ou a mais pensada, a mais medida, que<br />

é a apolínea, e a forma dionisíaca, que<br />

seria a forma mais inspirada. Então, de<br />

alguma maneira, pelo menos eu entendo<br />

assim, esses dois movimentos de inspiração<br />

e elaboração fazem parte do poema.<br />

Preá – Então, nada de poema encomendado?<br />

Iracema Macedo – Não sei fazer poema<br />

encomendado. Gostaria de saber.<br />

Não tenho nada contra, mas não sei fazer.<br />

Um dia, quem sabe...<br />

Preá – Como você descreveria para<br />

o leitor o seu trabalho de carpintaria<br />

poética?<br />

Iracema Macedo – Como eu já disse,<br />

não faço poesia sozinha. Faço poesia<br />

com os outros. Com todos que estão ao<br />

meu redor, com as pessoas com quem eu<br />

convivo, com as pessoas com quem eu<br />

tive experiências intensas, com as coisas<br />

que me cercam. As próprias coisas conversam<br />

entre si e com o poeta. Eu diria<br />

que há vários co-autores do meu trabalho<br />

poético, pessoas que viveram comigo ritos,<br />

amores, sensações, que foram poéticas<br />

tanto no sentido do amor quanto no<br />

sentido da amizade, como no sentido da<br />

contemplação estética. Eu não me sinto<br />

uma solitária ao fazer poemas, porque<br />

acho que vários temas me foram oferecidos<br />

por pessoas muito queridas e muito<br />

importantes para mim. Vários poemas<br />

vieram dessas relações. O maior cúmplice<br />

da minha vida e da minha poesia nos<br />

últimos onze anos é o Romã Fernandes<br />

ao lado de quem me permito tudo e que<br />

me inspira muito; ele abre muitas janelas<br />

para mim. Faz com que eu aprenda a<br />

correr riscos.<br />

Preá – Como você escolhe os títulos dos<br />

seus livros?<br />

Iracema Macedo – “Lance de Dardos”<br />

eu devo a Nei Leandro de Castro, foi um<br />

presente dele. Já “Invenção de Eurídice”,<br />

eu devo a Romã Fernandes e Nonato<br />

Gurgel, sendo que a capa deste livro é<br />

de Romã.<br />

Preá – Você aceita críticas, sugestões, no<br />

processo de elaboração dos seus livros?<br />

Iracema Macedo – Sou muito receptiva<br />

a críticas e sugestões. Há três pessoas<br />

que eu concedo que mexam nos meus<br />

poemas. São elas: Romã Fernandes, Nonato<br />

Gurgel e a poeta Maria Dolores<br />

Wanderley. Essas três pessoas lêem meus<br />

poemas antes de serem publicados. E<br />

uma quarta pessoa, especial, é Nei Leandro<br />

de Castro, que teve acesso aos meus<br />

poemas e que eu respeito e ouço muito.<br />

Preá – Quais os poetas que cabem dentro<br />

da sua poesia?<br />

Iracema Macedo – Se a gente for pensar<br />

em termos de quem me infl uenciou,<br />

inicialmente foi Adélia Prado, a ponto<br />

de no primeiro prêmio que eu participei,<br />

em que ganhei menção honrosa, Paulo<br />

de Tarso Correia de Melo {poeta} ter<br />

feito a seguinte observação: “É visível a<br />

infl uência de Adélia Prado, mas será que<br />

ela é tão inescapável assim? É preciso escapar<br />

dessa infl uência”. Adélia Prado foi<br />

realmente um marco, no sentido de que<br />

ela esteve em Natal, quando eu tinha 17<br />

anos, no projeto Encontro Marcado, e foi<br />

a partir desse momento, desse encontro,<br />

que comecei a produzir poesia de forma<br />

mais consciente. Eu ainda não tinha lido<br />

Adélia Prado. A partir daí, passei a produzir<br />

poesia intensamente. Então, ela foi<br />

o meu momento inicial. Depois dela tive<br />

muitos outros encontros: Drummond,<br />

Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Murilo<br />

Mendes, sobretudo poesia brasileira,<br />

incluindo aí a poesia feita por mulheres.<br />

Jan/Fev 2006<br />

75


Preá – Eu queria que você especifi casse<br />

que poesia é essa, que mulheres são<br />

essas?<br />

Iracema Macedo – Começaria com<br />

Adélia Prado, Cecília Meireles, Ana C.,<br />

Hilda Hilst e outras poetas de língua<br />

inglesa: Marianne Moore, Elizabeth<br />

Bishop, Sylvia Plath. Toda a literatura<br />

escrita por mulheres me interessou e me<br />

interessa até hoje.<br />

Preá – Alguns críticos locais questionam<br />

a força da poesia feminina do Rio<br />

Grande do Norte. Como você vê isso?<br />

Iracema Macedo – Sei que existe uma<br />

polêmica muito grande sobre isso. Eu<br />

acho que essas demarcações: literatura<br />

étnica, literatura negra, literatura política,<br />

literatura feminina são demarcações<br />

que resultam em facas de dois gumes.<br />

Por um lado elas estimulam uma refl exão<br />

sobre algo que está sendo produzido,<br />

mas por outro lado elas limitam muito.<br />

Eu respeito quem trabalha com esses<br />

conceitos. É importante trabalhar com<br />

isso, uma vez que se estimula alguma<br />

coisa. Mas não gostaria de ser reduzida,<br />

que se reduzisse o meu trabalho apenas à<br />

literatura feminina.<br />

Preá – Você acha que existe uma supervalorização<br />

da poesia feminina feita no<br />

Rio Grande do Norte?<br />

Iracema Macedo – Acho que existe e é<br />

muito merecida, porque temos mulheres<br />

excepcionais nesse Estado, não há como<br />

negar. Foi um acaso muito feliz que tivessem<br />

nascido aqui tantas mulheres especiais.<br />

Preá – No cenário literário do Rio<br />

Grande do Norte quais autores você destacaria?<br />

76 Jan/Fev 2006<br />

Iracema Macedo – Tenho profunda<br />

admiração pela produção poética do Rio<br />

Grande do Norte e, sem querer defender<br />

uma demarcação da literatura feminina,<br />

acho a sensibilidade das mulheres que escrevem<br />

aqui um caso excepcional.<br />

Preá – Dos poetas do Rio Grande do<br />

Norte com quem você tem ou teve uma<br />

relação mais próxima?<br />

Iracema Macedo – Além da turma<br />

do “Vale Feliz”, eu tenho uma relação<br />

boa, desde os vinte e poucos anos de<br />

idade, com Paulo de Tarso Correia de<br />

Melo, depois tive contato com o pai de<br />

Eli Celso, Celso da Silveira, Luís Carlos<br />

Guimarães, Nei Leandro e Moacy<br />

Cirne e tenho contato também com o<br />

jovem escritor, Pablo Capistrano, que<br />

eu admiro muito. Eu não conheci Zila<br />

Mamede nem Myriam Coeli, mas conheci<br />

o Elí, que era fi lho da Myriam<br />

Coeli, então convivi com ela através do<br />

fi lho. Em relação a Zila, houve um episódio<br />

bonito para mim. No dia que ela<br />

morreu, eu estudava na Aliança Francesa<br />

e um professor chegou recitando<br />

um poema dela, que era a “Canção do<br />

Afogado”. Então estava repercutindo<br />

na cidade inteira a notícia da morte<br />

dela. Eu tinha uns 15, 16 anos de idade<br />

e este foi um momento de convivência<br />

com ela, no momento da morte.<br />

A partir de então eu procurei conhecer<br />

a obra dela, porque eu era muito<br />

nova ainda e não conhecia. Das poetas<br />

atuais eu tenho uma convivência mais<br />

próxima e afetiva com Ana Paula de<br />

Oliveira e Maria Dolores Wanderley,<br />

das pessoas que vivem em Natal, com<br />

Carmen Vasconcelos e com Marize<br />

Castro, que fez um livro muito lindo<br />

esse ano {2005}, “Esperado Ouro”, é<br />

um livro que eu brindo como um dos<br />

mais belos dela.<br />

Preá – Do que você gosta na poesia<br />

contemporânea brasileira?<br />

Iracema Macedo – Hoje em dia o poeta<br />

brasileiro vivo que eu mais admiro é<br />

Eucanaã Ferraz. A obra dele, que é um<br />

jovem poeta, me tocou intensamente.<br />

Preá – O próprio Nietzsche escreveu<br />

poemas. Qual a sua relação com a poesia<br />

dele?<br />

Iracema Macedo – Com os poemas<br />

eu tenho pouquíssima relação. Não tenho<br />

nenhuma infl uência dos poemas de<br />

Nietzsche. Mas como os poemas expressam<br />

também o pensamento dele, aí sim a<br />

relação é visível. É inevitável que haja de<br />

alguma maneira uma presença dele em<br />

minha poesia.<br />

Preá – Vários textos críticos sobre a sua<br />

obra ressaltam ou o lirismo ou o desejo<br />

e o erotismo. A sua poética, de certo<br />

modo, sempre foi a do desejo?<br />

Iracema Macedo – Sobretudo no<br />

início, no despertar da sexualidade, foi<br />

muito a poética do desejo. Hoje eu talvez<br />

esteja fazendo uma poética menos<br />

desejante, mais ponderada, menos apaixonada.<br />

Preá – É possível observar nos seus livros<br />

uma evolução que a aproxima de mitos<br />

e deuses. Suas primeiras obras quase não<br />

têm referências a isso.<br />

Iracema Macedo – Isso é plenamente<br />

verdadeiro. Houve um momento de desejo,<br />

não de desejo apenas em relação ao<br />

erotismo, mas um erotismo em sentido<br />

amplo, que você vê no primeiro livro,<br />

que desvela sensações muito importantes,<br />

com coisas simples, como cajueiros,<br />

caldeirões de alumínio, coisas que eu<br />

vivi quando descobri em 1991 a vila<br />

de Ponta Negra como cenário poético.


Esses tipos de experiências estéticas e<br />

sensíveis estão muito presentes. Em “Invenção<br />

de Eurídice” há como que uma<br />

elaboração das experiências, que fi cam<br />

mascaradas, mais camufl adas, talvez<br />

mais apolíneas se a gente for pensar em<br />

termos nietzscheanos.<br />

Preá – “Invenção de Eurídice” é também<br />

um livro importante, mas teve uma<br />

fortuna crítica menor que o “Lance de<br />

Dardos”. A que você atribui isso?<br />

Iracema Macedo – Sem dúvida. Talvez<br />

a intensidade de paixão menor, que<br />

eu reconheço que é nítida em “Invenção<br />

de Eurídice” com relação a “Lance<br />

de Dardos”, que a meu ver é um livro<br />

intensamente apaixonado. “Invenção de<br />

Eurídice” é um livro mais sóbrio, mais<br />

pensado, mais mascarado, ou seja, essa<br />

presença de deuses e mitos, que você<br />

fala, na realidade foi uma maneira de<br />

fi ltrar experiências minhas, para não parecerem<br />

experiências tão biográfi cas, e<br />

parecerem experiências mais universais.<br />

Tentei transcender muito o pessoal em<br />

“Invenção de Eurídice” e talvez por isso<br />

ele não tenha comovido tanto as pessoas<br />

como “Lance de Dardos”. Mas isso é bem<br />

relativo, já ouvi muitos leitores dizerem<br />

que gostaram muito mais do segundo<br />

livro. Eu gosto dos dois, são dois fi lhos<br />

igualmente queridos, cada um com seu<br />

ritmo e sua diferença.<br />

Preá – O professor e pesquisador de literatura<br />

Nonato Gurgel diz que a sua poesia<br />

celebra uma estetização da existência.<br />

Você concorda com essa afi rmação?<br />

Iracema Macedo – Plenamente. Tento<br />

apresentar uma estetização da existência,<br />

na dor, na alegria, na intensidade, no<br />

amor, no desamor, Enfi m, em todas as<br />

suas instâncias.<br />

Preá – Por que você não usa ponto fi nal<br />

nos seus poemas?<br />

Iracema Macedo – Nunca foi intencional,<br />

não foi uma proposta estética.<br />

Isso aconteceu a partir da coletânea coletiva<br />

lançada em 1995. Foi um movimento<br />

espontâneo, sem nenhuma pretensão.<br />

No entanto, eu acho que não é algo irrelevante<br />

deixar de colocar um ponto fi nal,<br />

faz sentido porque a poesia não tem um<br />

ponto fi nal.<br />

Preá – Você hoje é considerada uma das<br />

poetas mais importantes do Rio Grande<br />

do Norte. Isso mexe, de alguma forma,<br />

com a sua vaidade?<br />

Iracema Macedo – Vaidade todo<br />

mundo tem. Mas, no sentido mais profano<br />

de vaidade, realmente essa é uma<br />

experiência que eu não consigo ter muito,<br />

não porque eu tenha fugido disso, ou<br />

tenha feito um movimento ou alguma<br />

coisa para fugir da vaidade. É porque as<br />

minhas sensações, minhas experiências<br />

de vida, toda a minha história, tanto<br />

pela minha educação familiar, sobretudo<br />

pela minha educação familiar, nunca<br />

me levou para qualquer sentimento de<br />

vaidade profana. Eu considero a vaidade<br />

um sentimento afi rmativo, se ela é produtiva,<br />

geradora, se não, é um sentimento<br />

que pode ser infrutífero e afastar as<br />

pessoas de você.<br />

Preá – Quais autores você lê sempre?<br />

Iracema Macedo – Sobretudo os autores<br />

brasileiros ou de língua portuguesa.<br />

Não por nenhum nacionalismo, mas<br />

simplesmente pela questão da língua,<br />

por ser a língua em que escrevo. Como<br />

já disse um dos maiores poetas de língua<br />

portuguesa: “a pátria é minha língua”.<br />

Preá – Como você vê o trabalho da<br />

crítica?<br />

Jan/Fev 2006<br />

77


Iracema Macedo – Eu não tenho do<br />

que me queixar da crítica, porque eu sei<br />

que tudo é muito difícil. Conseguir uma<br />

crítica, ser aceito como verdadeiro poeta,<br />

conseguir ser reconhecido, tudo isso é<br />

resultado de um trabalho muito grande.<br />

Nós estamos em um país em que a cultura,<br />

infelizmente, não é a prioridade, a<br />

gente sabe disso. Não tenho nem muita<br />

ilusão a respeito disso, nem muita decepção.<br />

Acho que nesse ponto a gente tem<br />

que ser realista.<br />

Preá – O que é que sendo humano ainda<br />

é capaz de lhe causar espanto?<br />

Iracema Macedo – Se eu disser que<br />

não me espanto mais seria terrível, mas<br />

chegou um momento em que, apesar da<br />

curta vida que eu vivi, tem coisas que<br />

não me surpreendem, eu acho que tudo<br />

é possível. Acredito cada vez mais em<br />

milagres, surpresas e mistérios.<br />

Preá – É possível ser feliz depois de perdida<br />

a inocência?<br />

Iracema Macedo – É sempre possível<br />

restaurar a inocência. Então, é possível<br />

ser feliz restaurando a inocência. Agora<br />

há muitas controvérsias sobre a noção de<br />

felicidade, sobre o que é realmente ser<br />

feliz. Sou sacerdotisa da alegria, mas não<br />

acredito em vida plena sem dor e sem<br />

saudade, por exemplo.<br />

Preá – Há coisas existentes entre céu<br />

e terra que a Filosofi a não pressente. A<br />

poesia é capaz de pressentir?<br />

Iracema Macedo – Eu vejo que a<br />

poesia consegue ir muito mais além da<br />

Filosofi a. A Literatura está intensamente<br />

mais à frente da Filosofi a nesse sentido,<br />

porque navega pelo território do<br />

inconsciente, do mistério, da escuridão.<br />

Mas ainda assim, a poesia não pode di-<br />

78 Jan/Fev 2006<br />

zer tudo, uma vez que ela já é linguagem<br />

e nem tudo no mundo é decifrável por<br />

palavras. Há também um território insondável,<br />

que nem a poesia consegue<br />

pressentir.<br />

Preá – Qual é o território da Filosofi a?<br />

Iracema Macedo – O território da<br />

Filosofi a, a meu ver, é o território do<br />

sondável.Que pode ser pensado. O território<br />

da poesia é um território que vai<br />

além do que pode ser pensado.<br />

Preá – Como a Filosofi a entra na sua<br />

poesia?<br />

Iracema Macedo – A Filosofi a entra<br />

na minha poesia da mesma forma que<br />

todas as outras coisas entram, como inspiração.<br />

Eu diria que a poesia é uma pitada<br />

essencial no meu trabalho fi losófi co.<br />

Há muito mais poesia na fi losofi a que eu<br />

faço do que, conscientemente, fi losofi a<br />

na poesia que eu escrevo. Por exemplo,<br />

na minha experiência de professora eu<br />

sinto que estou tentando ser uma professora<br />

poética também, é uma maneira<br />

que eu tenho de conciliar as duas coisas.<br />

Preá – Qual é a maior de todas as artes?<br />

Iracema Macedo – Essa é uma resposta<br />

que pode variar de tempos em tempos<br />

na vida de cada um. Neste momento,<br />

neste ano de 2005, para mim a maior<br />

de todas as artes é a música. Em 2005<br />

eu ouvi intensamente música, cheguei<br />

ao êxtase musical. Esse ano me marcou<br />

pela música. Então, em 2005 diria que<br />

a arte mais importante foi a música, mas<br />

talvez em outro momento, eu dissesse<br />

outra coisa.<br />

Preá – Em um mundo tomado por<br />

guerras, terrorismo, fome... ainda há lugar<br />

para a poesia neste mundo? Para que<br />

serve a poesia?<br />

Iracema Macedo – Essa pergunta é<br />

feita para muitos poetas. Eu ouço essa<br />

pergunta, por exemplo, no documentário<br />

sobre Leminski. Ele respondeu:<br />

“Mas então para que serve o orgasmo?”.<br />

Eu ouvi essa pergunta sendo feita para<br />

Marina Colassanti e ela disse: “Eu não<br />

quero essa pergunta, essa pergunta é doente,<br />

é uma pergunta de uma sociedade<br />

doente”. Só sabe para que serve a poesia<br />

quem é poeta, quem lê poesia, quem ama<br />

poesia, quem escreve poesia. Ou seja, os<br />

leitores e os autores.<br />

Preá – O verso ou a prosa?<br />

Iracema Macedo – O verso é mais<br />

próximo de mim, eu não consigo me exprimir<br />

em prosa como consigo em verso.<br />

Não digo que para todo mundo, mas<br />

para mim, inevitavelmente é o verso.<br />

Preá – O que é necessário para ser poeta?<br />

A pessoa já nasce poeta ou aprende<br />

a ser poeta?<br />

Iracema Macedo – Comigo foram<br />

decisivos os cadernos da minha mãe, a<br />

coisa foi acontecendo, eu começando a<br />

escrever com doze anos. Mas, como uma<br />

criança com doze anos, pré-adolescente,<br />

pode dizer que escolheu? Não escolheu,<br />

aconteceu, veio. O caminho é pesado,<br />

alguma força se apodera de você. Agora,<br />

depois que a força se apodera, então<br />

vamos lapidá-la. Claro, não acredito em<br />

espontaneidade. Há uma força que se<br />

apodera de você e você não pode mais<br />

fugir dela, porque ela tomou conta do<br />

seu ser e chega um momento de lucidez,<br />

de maturidade que pode acontecer<br />

a cada um em idades diferentes; então é<br />

necessário lapidar essa força, essa energia


que está tomando conta do seu corpo.<br />

Eu não teria receita nenhuma, assim<br />

como na minha vida não tenho receita<br />

nenhuma.<br />

Preá – O mar ou a montanha?<br />

Iracema Macedo – Eu saí de Natal há<br />

quatro anos, num movimento que foi literalmente<br />

uma fuga. Fugi do mar para<br />

a montanha e a montanha me acolheu.<br />

Digamos que vivi intensamente o mar,<br />

vivi a ponto de ter contato direto com<br />

o mar, praticamente todos os dias, um<br />

contato religioso. Chegou um momento<br />

em que precisei me afastar. Para falar<br />

em termos de metáfora, era como se o<br />

mar estivesse exigindo de mim mais do<br />

que eu poderia dar. Eu tinha que me<br />

salvar. Fui embora. E a montanha me<br />

acolheu. Agora, eu me sinto plenamente<br />

salva e posso voltar com toda tranqüilidade.<br />

Então, eu fi co com os dois, o mar<br />

e a montanha. São duas plenitudes, duas<br />

fontes de força para mim, duas necessidades<br />

minhas.<br />

Preá – Existe a possibilidade de você retornar<br />

a Natal? Isso está nos seus planos?<br />

Iracema Macedo – Claro que sim. Mas<br />

é como diz Cazuza, “o seu futuro é duvidoso”.<br />

O meu futuro é completamente<br />

duvidoso. Também aprendi a conviver<br />

com a dúvida, aliás, se eu não soubesse<br />

conviver com a dúvida não teria escolhido<br />

o caminho profi ssional da Filosofi<br />

a. Eu aceito a dúvida, convivo com a<br />

dúvida, quero a dúvida e eu vou continuar<br />

com a dúvida como minha sombra<br />

e minha luz. Eu nunca planejei morar em<br />

Minas, foi algo assim meio que do destino.<br />

Se eu tiver de voltar, também será<br />

uma decisão do destino. Mas nenhuma<br />

cigana me disse nada até agora.<br />

Preá – Você está produzindo algum<br />

novo livro?<br />

Iracema Macedo – Estou vivendo um<br />

dos melhores momentos na minha vida<br />

profi ssional, vou lançar o livro “Nietzs-<br />

che, Wagner e a época trágica dos gregos”,<br />

em 2006, pela editora Annablume e lancei<br />

um livro de poemas no ano passado.<br />

O próximo nascerá quando for o tempo<br />

dele. Estou passando por um momento<br />

de menos intensidade das paixões, estou<br />

muito cautelosa e eu não sou uma pessoa<br />

cerebral. Gostaria de ser, seria ótimo se<br />

eu fosse, mas eu não sou. Meu sonho é<br />

chegar a uma certa maturidade contemplativa.<br />

Talvez eu chegue a essa maturidade<br />

algum dia. Tenho esse desejo. Por<br />

enquanto, preciso viver intensamente<br />

o que escrevo e de alguma maneira tive<br />

necessidade de uma racionalização das<br />

coisas que estavam acontecendo comigo.<br />

Não signifi ca que eu não vá me arriscar<br />

de novo, mas eu preciso estar no momento<br />

propício, com âncoras, com segurança.<br />

Quando eu escrevi os poemas de<br />

“Lance de Dardos” eu não tinha as responsabilidades<br />

que tenho hoje, eu estava<br />

literalmente numa vida muito “mansa”,<br />

sem muito trabalho, então eu pude viver<br />

e escrever plenamente os poemas de<br />

“Lance de Dardos”. Hoje em dia, eu não<br />

posso viver certas coisas, que me inspirariam<br />

fortemente, porque simplesmente<br />

eu tenho que dar aula no outro dia, tenho<br />

compromissos sérios no outro dia e<br />

por incrível que pareça, eu sinto na pele<br />

uma antinomia entre a vida séria e a vida<br />

poética. Pretendo superar isso e conciliar<br />

melhor os dois mundos, mas descobri<br />

que isso foi um confl ito até para o grande<br />

e fantástico Goethe, foi um confl ito também<br />

para Sylvia Plath, quanto mais para<br />

uma mera professora brasileira que precisa<br />

ganhar o pão com o suor do trabalho.<br />

Fazer um pacto com a poesia é fazer um<br />

pacto com o perigo. Platão que o diga.<br />

Os poetas são extremamente perigosos.<br />

Se algum poeta atravessar sua vida, tome<br />

muito cuidado. Eu, por exemplo, tenho<br />

que ter muito cuidado com uma certa<br />

poeta que vive dentro de mim.<br />

Jan/Fev 2006<br />

79


SÃO MIGUEL DO GOSTOSO<br />

Na rota da expedição de Gaspar de Lemos<br />

80 Jan/Fev 2006


David Clemente<br />

Fotos: Anchieta Xavier<br />

Localizado a 100 km de Natal, na<br />

“esquina do continente” onde, para a<br />

alegria dos praticantes de Windsurfe e<br />

Kite surfe, o vento faz a curva, São Miguel<br />

do Gostoso tem população estimada<br />

pelo Instituto Brasileiro de Geografi a<br />

e Estatística (IBGE) em 8.600 pessoas.<br />

Cada um o chama como prefere. Alguns<br />

de São Miguel, outros apenas de Gostoso<br />

e no site do IBGE está a denominação<br />

de São Miguel de Touros. A última nomenclatura<br />

é dada porque Gostoso era<br />

distrito do município de Touros. Quando<br />

emancipou-se, há quase nove anos, a<br />

cidade adotou o apelido nada modesto<br />

e vem fazendo jus a ele. Sua população<br />

vive da pesca, agricultura e turismo.<br />

O município também inscreveu o seu<br />

nome na História do Rio Grande do<br />

Norte para sempre. Foi lá, na Praia do<br />

Marco, que a expedição portuguesa de<br />

Gaspar de Lemos, em 1501, chantou o<br />

Marco Colonial do Brasil. Atualmente,<br />

o Marco está guardado no Forte dos Reis<br />

Magos, em Natal.<br />

Mas, há quem tenha outra versão, bem<br />

diferente, para a história do Marco. O<br />

escritor norte-rio-grandense Lenine Pinto,<br />

com base em pesquisas históricas, defende<br />

que foi em São Miguel do Gostoso<br />

onde a frota de Pedro Álvares Cabral<br />

primeiro chegou ao Brasil. Em seus dois últimos livros Ainda a<br />

questão do Descobrimento e Reinvenção do Descobrimento, afi rma<br />

ser impossível chegar ao Sul da Bahia em 40 dias navegando<br />

contra ventos e correntes marítimas. Municiado de provas,<br />

aponta que as armas do brasão português que estão talhadas no<br />

marco de pedra que serviu de altar à primeira missa, segundo a<br />

descrição de Caminha, são as mesmas que estão no marco em<br />

exposição na Fortaleza dos Reis Magos.<br />

Os padrões, que são marcos trabalhados em pedra, foram criados<br />

por Diogo Cão em sua primeira viagem ao continente africano<br />

com a fi nalidade de substituir as cruzes de madeira. Lenine Pinto<br />

revela em seus livros, que a costa norte do RN já era utilizada<br />

antes do descobrimento do Brasil como local de abastecimento<br />

dos navios que se destinavam à Índia – uma pista extra-ofi cial<br />

da presença portuguesa em terras brasileiras antes de 22 de abril<br />

de 1500.<br />

A prova está na existência do marco talhado em pedra lioz, o<br />

mármore de Lisboa, tendo o primeiro terço a cruz da Ordem de<br />

Cristo, em relevo, e abaixo as armas do Rei de Portugal, originalmente<br />

chantado na divisa dos municípios de São Miguel e Pedra<br />

Grande. No livro Reinvenção do Descobrimento, Lenine defende<br />

que o Monte Pascoal que Cabral viu das caravelas, no litoral da<br />

Bahia, seria na verdade o pico do Cabugi, localizado entre os<br />

municípios de Lajes e Angicos, no Rio Grande do Norte.<br />

Jan/Fev 2006<br />

81


“Escolhi o paraíso para morar”<br />

Numa casa com sete gatos adultos e cinco fi lhotes, dois cachorros, um coelho e muitas<br />

plantas, mora Maria de Fátima Adelino, 45 anos, mais conhecida como Fátima<br />

Artesã. Ela nasceu em João Câmara-RN, onde quando era criança, brincava de fazer<br />

panela de barro com sua avó. Tomou gosto pelo que suas mãos poderiam moldar<br />

e começou a produzir animais da sua região como burrinhos e vacas. Aos poucos a<br />

sua criatividade ganhou as mais variadas formas. Até os quadros que produz não são<br />

pintados, são esculpidos, estatuetas rodeadas por uma moldura.<br />

No pequenino ateliê montado na varanda da sua casa, onde um dos gatos descansava<br />

despreocupadamente sobre a mesa de trabalho, se misturam as matérias-primas<br />

como cabaças, cuités, cordas, cocos e pedaços de chita. É lá que Fátima Artesã cria<br />

cerca de 50 peças por mês. “Tudo que faço é com amor”, afi rma. E vende, principalmente,<br />

de duas formas: como ambulante na praia de Ponta Negra, em Natal, e<br />

como exportadora, através da fi lha que mora na Itália.<br />

Mas moldar não é a única habilidade que Fátima tem. Deixando a modéstia à parte,<br />

ela conta que cozinha muito bem e por causa dos seus dotes culinários já viajou<br />

82 Jan/Fev 2006<br />

bastante. Mudou-se de João Câmara<br />

para Natal e já passou pelos Estados de<br />

Goiás e Rio de Janeiro. No último, fez<br />

um curso de arte culinária para registrar<br />

no seu currículo. Com novos convites<br />

para cozinhar, ainda passou pelo Uruguai<br />

e pela Argentina. Em São Miguel<br />

do Gostoso ela chegou com o marido<br />

francês, Daniel Santiago, 57 anos, em<br />

procura de tranqüilidade. “Escolhi o paraíso<br />

para morar”, diz Fátima.<br />

Tudo vira arte pelas<br />

mãos de Elvira Artesã<br />

Na fachada da casa simples, uma placa<br />

pintada à mão anuncia que ali mora Elvira<br />

(Néri) Artesã. A ex-dona-de-casa de<br />

40 anos de idade aprendeu a fazer seu<br />

artesanato no ano 2000. Segundo a artista,<br />

natural de Gostoso, uma cooperativa<br />

chegou à cidade e formou um grupo<br />

de 17 alunos interessados em aprender<br />

aquela arte. Ela foi a única a persistir no<br />

aprendizado. Suas obras são quase todas<br />

produzidas a partir de materiais naturais,<br />

encontrados em Gostoso. Fibras<br />

de coqueiro e pequenas conchas do mar<br />

são os principais, que se transformam<br />

em bolsas, abajures e outras luminárias,<br />

cortinas e várias formas decorativas, que


Elvira põe à venda em lojas da própria cidade onde mora. Ela conta<br />

que em 2003 foi convidada para mostrar seu trabalho na França,<br />

numa feira de artesanato, mas preferiu mandar apenas as peças.<br />

Conversando com a artesã é fácil notar o quanto sua simplicidade é<br />

forte. Provavelmente o ingrediente principal para garantir o toque<br />

rústico à sua arte.<br />

Sem enfado para tocar forró<br />

Quando nasceu, em 1945, o fi lho de Francisco Cândido recebeu o<br />

nome de José Cândido da Silva. Em pouco tempo ganhou o apelido<br />

de Dedé de Chico Cândido, como é mais conhecido. O apelido,<br />

que foi adotado como nome artístico, tem o adjetivo “cândido” por<br />

causa do nome próprio do pai. Mas já nos primeiros cinco minutos<br />

de conversa com Dedé, fi ca a impressão de que a palavra caracteriza<br />

sua simplicidade e timidez.<br />

O sanfoneiro, com 43 anos de música, economiza muito nas palavras<br />

para falar, mas para tocar sanfona não tem enfado. Seu primeiro<br />

instrumento foi de 80 baixos, que ele comprou sem saber tocar,<br />

juntando seu sacrifi cado dinheiro ganho no roçado e na feira. Dedé<br />

tinha 18 anos e diz que não teve professor: “O dom foi<br />

Deus quem me deu”, conta o sanfoneiro, que não sabe<br />

ler partituras e da língua portuguesa assina somente seu<br />

nome.<br />

Para aprender a manusear o instrumento, Dedé usa a<br />

audição e a concentração. “Toco de ouvido”, conta ele,<br />

para explicar que primeiro escuta a melodia depois a<br />

reproduz com a sanfona. No comecinho de tudo, sua<br />

família era a principal platéia, depois estendeu para os<br />

amigos e diz que “agora a vergonha desapareceu mais”.<br />

Tanto que já tocou em Ponta Negra e aceita convites<br />

para tocar em festas. Entre as músicas preferidas pelo<br />

sanfoneiro estão os forrós de Luiz Gonzaga. Seu público<br />

sempre pede “as mais antigas”. E mesmo cândido como<br />

Dedé aparenta ser, se estiver com o domínio da sanfona,<br />

o forró se sobressai.<br />

Jan/Fev 2006<br />

83


A “ministra do lixo da ordem praieira”<br />

O que levaria uma pessoa a deixar seu país de origem, passar a<br />

morar numa cidade onde não conhecia ninguém e se envolver<br />

com os problemas do lugar para ajudar? A enfermeira Ana Rabul,<br />

60 anos, suíça dos Alpes, descreve sua ação como cidadania.<br />

Ela está no Brasil há 16 anos e durante todo esse tempo mantém<br />

residência em São Miguel do Gostoso. Ela procurava um trabalho<br />

de campo que envolvesse o lazer das pessoas e escolheu<br />

Gostoso porque era onde um irmão seu possuía uma casa.<br />

Antes de morar defi nitivamente, fi cou cerca de oito meses conhecendo<br />

o local, a cultura, as doenças e como eram tratadas.<br />

Depois começou a prestar serviço que, por sinal, é celebrado<br />

por todos na cidade. Ela não precisou descrever o que fez para<br />

mudar a cultura de tratamento do lixo doméstico. Os próprios<br />

moradores, ao ouvirem o nome de Ana Rabul, começam a falar<br />

imediatamente o que ela ensinou.<br />

O trabalho, que deu à enfermeira o título de “Ministra do Lixo<br />

da Ordem Praieira” começou quando Ana visitava casa por casa,<br />

abria o lixo e mostrava para os moradores como aquele depósito<br />

de restos poderia prejudicar a qualidade de vida. Aos poucos, a<br />

cidade aceitou seus conselhos. Hoje em dia é fácil de perceber<br />

isso, basta notar a grande quantidade de lixeiras que há espalhadas<br />

pelas ruas. As praias também são muito limpas e o bom<br />

aspecto da areia é graças aos mutirões de limpeza regulares.<br />

84 Jan/Fev 2006


Resgates da cultura e cidadania<br />

Mas não só na área de ecologia Ana contribuiu para a melhoria de São Miguel<br />

do Gostoso. Apesar de ser estrangeira, ela ajudou a estimular a preservação<br />

folclórica do lugar. Ana Rabul, Francisca Gomes Pinheiro - mais<br />

conhecida como Nenê - e Rubens de Oliveira sempre estiveram à frente da<br />

Associação Sociocultural e Desportiva Gostosense – ASDEG.<br />

Os três começaram sozinhos abordando os moradores, buscando patrocínio<br />

e trabalhando para que a cultura de Gostoso não se resumisse a receber turistas.<br />

Agora, a Associação tem apoio da prefeitura e de Organizações Não-<br />

Governamentais estrangeiras. O primeiro grupo que nasceu foi um Bumbameu-boi.<br />

Assim como o Boi-de-reis, a ASDEG trabalha em favor de grupos<br />

de Pastoril, Capelinha, Papangus, Coco-de-roda, Capoeira, Futebol e da<br />

Banda de Música Cecília Gomes. Graças a esse trabalho, a cidade realiza em<br />

agosto uma Semana do Folclore.<br />

O trabalho da ASDEG não só ajuda a preservar a cultura popular de São<br />

Miguel do Gostoso e movimentar o calendário cultural, como também<br />

inibe a violência no campo e incentiva a freqüência escolar. “Havia meninos<br />

que eram rebeldes. Agora são atletas. Ocupar o tempo livre com lazer é<br />

muito importante”, destaca Nenê. E não só as crianças são o público-alvo,<br />

os adultos também. O grupo de Boi-de-reis é<br />

todo composto por adultos que estudam. Os<br />

integrantes do Boi-de-reis relatam que aprenderam<br />

a tradicional dança ensinada pelos pais. O<br />

pescador Luiz Tenório, 64 anos, e o agricultor<br />

Eusébio Idalino, 75 anos, foram quem confeccionaram<br />

a roupa do Bumba-meu-boi. Levaram<br />

cinco dias, se revezando, para montar o boneco.<br />

E falam com prazer sobre sua apresentação: “É<br />

só alegria, é bonito, agrada a quem assiste e faz<br />

bem ao coração”.<br />

Apesar de os projetos estarem funcionando bem,<br />

seus idealizadores lamentam a falta de estrutura<br />

fi nanceira para os grupos, pois gostariam de ter<br />

ajuda que fi nanciasse instrutores. “O grupo de<br />

Boi-de-reis, por exemplo, é quase todo formado<br />

por idosos que estão fi cando cansados. Um<br />

instrutor ajudaria a formar um grupo de menor<br />

idade”, argumentam Ana, Nenê e Rubens. Para<br />

a banda, a ajuda poderia vir como investimento<br />

na aquisição e manutenção dos equipamentos.<br />

Bolsas de estudo para músicos que se destacassem<br />

também seriam bem-vindas. E por falar em<br />

destaque, na Banda de Música Cecília Gomes<br />

isso é comum. Sete dos seus alunos já tocam em<br />

bandas profi ssionais. Como é o caso de Maicon<br />

Nascimento, 17 anos, da Banda Arrocha o Nó<br />

e Welington França, 19 anos, que é membro da<br />

Banda Substância Zero.<br />

Jan/Fev 2006<br />

85


A música chega ao assentamento<br />

Considerando que os cidadãos gostosenses não estão apenas na cidade de São Miguel,<br />

mas também nos distritos e arredores, viajamos 12 quilômetros por uma estrada<br />

de barro, com muita poeira, para chegar até ao assentamento Antônio Conselheiro.<br />

Era o 12º dia de fevereiro, domingo, e primeiro dia de aula de música para os<br />

jovens da comunidade. O encontro com os 32 alunos recém-inscritos é um exemplo<br />

do que faz o Projeto Manga Rosa de educação pela música, ligado à ASDEG.<br />

O professor de música Gabriel Ribeiro, 47 anos, visitará o assentamento três vezes<br />

por mês, sempre nos fi ns de semana, para as aulas. Ele ensinará os jovens a tocarem<br />

violão, fl auta, percussão e canto em coral. Todos com instrumentos cedidos pelo<br />

projeto. “Dependendo do interesse de cada um, em três meses eles estarão aptos e<br />

em quatro anos estarão com o domínio do instrumento”, prevê Gabriel.<br />

O professor também relata que em Tabua, distrito de São Miguel do Gostoso, o<br />

mesmo projeto tem bons resultados. A turma começou com 13 alunos, dos quais<br />

quatro já tocam de ouvido e ele começa a inserir partituras. O grupo já recebeu a<br />

visita do regente da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal de Minas Gerais,<br />

o maestro Eduardo Ribeiro.<br />

86 Jan/Fev 2006<br />

Culinária ganha<br />

prêmios nacionais<br />

Tudo em São Miguel é gostoso. Os habitantes<br />

poderiam ser gostosenses, mas<br />

se apresentam como “gostosos”. Lá tem<br />

mercadinho Hiper Gostoso, Farmácia<br />

Gostosa, Padaria Gostosa, Pousada do<br />

Gostoso e uma culinária deliciosa. A<br />

gastronomia de Gostoso é conhecida em<br />

todo o país, sobretudo por ter recebido<br />

seguidas vezes a estrela de indicação da<br />

revista Quatro Rodas.<br />

O responsável pela estrela chama-se Leonardo<br />

Godoy Vasconcelos, 65 anos, “natalense<br />

e potiguar papa-jerimum”, como<br />

ele mesmo diz. Morou na capital do<br />

Estado até seus 18 anos, onde estudou<br />

Engenharia Mecânica na Escola Técnica<br />

(antiga ETFRN, atual CEFET) e resolveu<br />

“tentar a vida” na capital de São Paulo.<br />

Na terra da garoa ele fi cou por dois<br />

anos apenas. Voltou a subir o país nas<br />

férias e aportou em Salvador-BA, onde<br />

logo conseguiu uma proposta de emprego<br />

como gerente de uma concessionária<br />

Ford. O prazo, que seria de 15 dias, du-


ou nada menos que 28 anos. Período<br />

esse em que ele concluiu a faculdade de<br />

Engenharia Mecânica e montou seu próprio<br />

negócio, a Motorphine.<br />

A idéia inicial era que o empreendimento<br />

comercializasse peças e equipamentos<br />

para carros. Mas conheceu amigos possuidores<br />

de barcos que, eventualmente,<br />

pediam para fazer um reparo. Resistiu ao<br />

mar por um tempo, mas quando se rendeu<br />

foi de vez: “Nunca havia velejado. Aí<br />

um amigo me chamou para andar de barco<br />

e eu comprei o barco no mesmo dia<br />

do passeio”, conta Godoy, que aprendeu<br />

a cozinhar depois de uma viagem marítima.<br />

O destino era a Europa, o caminho<br />

era o mar e o meio de transporte era um<br />

veleiro.<br />

A aventura de Leonardo Godoy durou<br />

três meses. Ele fazia parte da muito resumida<br />

tripulação que levou um casal<br />

de holandeses para o outro lado do<br />

Atlântico. Nesse tempo, ele gastou sua<br />

inquietude testando receitas culinárias.<br />

“Não tinha restaurante na esquina e eu<br />

tinha que misturar as frutas e as sobras<br />

para fazer as refeições”. Dessas misturas<br />

surgiu o “Peixe à moda do pescador”, o<br />

“peixe com manga” e o premiado “arroz<br />

de polvo”.<br />

Leonardo Godoy chegou a São Miguel<br />

do Gostoso em 1986, que na época<br />

ainda pertencia a Touros. Ele conta que<br />

chegou pela beira mar de buggy, encantou-se<br />

com a enseada, comprou um lote<br />

do terreno e decidiu contruir a Pousada<br />

do Gostoso. Segundo Godoy, na época<br />

que ele se instalou em São Miguel do<br />

Gostoso não havia sequer onde comprar<br />

prego. Mas o esforço valeu a pena. Depois<br />

de cinco anos a cozinha da Pousada<br />

foi descoberta pela revista Quatro Rodas<br />

e fi cou pelos seis anos seguintes recebendo<br />

a renovação do mérito.<br />

Em 1998, Leonardo decidiu que era hora<br />

de mudar de ramo, pois buscava menos<br />

preocupações. Vendeu a Pousada e abriu<br />

um restaurante na beira da praia. Decorado<br />

com nós de marinheiro e considerado<br />

um infl uenciador do cardápio local, o<br />

restaurante foi batizado de Brisa do Mar.<br />

Sua esposa Creuza Ribeiro, 34 anos, gostosense,<br />

o ajuda o cozinhar. Mas quando<br />

o prato chega à mesa qualquer um fi ca<br />

em dúvida se é melhor apreciar a vista do<br />

mar ou o sabor da refeição.<br />

Jan/Fev 2006<br />

87


O cachacista que recita <strong>Augusto</strong> dos Anjos<br />

Antes de chegar de fato à cidade de São Miguel do Gostoso, é preciso atenção para<br />

as atrações preliminares. As dunas, as lagoas que ladeiam a estrada, a vegetação<br />

quase virgem... Já na areia da costa, uma pedra enorme e imponente se destaca. É a<br />

chamada “Pedra do Cabaço”, que fi ca em frente a uma pousada de nome também<br />

sugestivo: Enseada dos Amores. Para explicar o porquê do nome da pedra, Michele<br />

Tinôco, a proprietária da pousada, explica educadamente que muitos amores nasceram<br />

naquela pedra. Mais uma boa razão para um monumento natural da praia<br />

de Gostoso.<br />

Ao lado dali, uma placa convida para conhecer outro estabelecimento comercial.<br />

É a Urca do Tubarão. Poderia ser apenas mais um bar dentre muitos, com cadeiras<br />

de plástico e um som que tocasse qualquer música que seus clientes pedissem. Mas<br />

a Urca do Tubarão é uma cachaçaria absolutamente irreverente. A começar pelo<br />

proprietário Edson Oliveira, 40 anos, dono do título de “Ministro da Cachaça”.<br />

Ele já recebe seus clientes recitando poesias de <strong>Augusto</strong> dos Anjos e aos poucos<br />

apresenta cada um dos apetrechos decorativos do lugar. Tem a “bichada” que é<br />

88 Jan/Fev 2006<br />

uma enxada com um cabo que se bifurca<br />

(semelhante à forma de estilingue)<br />

com metal nas duas pontas para arar a<br />

terra em dois lugares ao mesmo tempo.<br />

Há também a “cesta básica etílica” que<br />

é um caixote repleto de garrafas de cachaça<br />

antigas não abertas; o “martelo<br />

português” com um cabo e duas extremidades<br />

vizinhas de metal. “Tem gente<br />

que quando vai martelar sempre bate no<br />

dedo primeiro e depois no prego. Com<br />

esse martelo dá para atingir os dois ao<br />

mesmo tempo. Ou seja, é mais prático”,<br />

explica Edson. Ele ainda apresenta mais<br />

criações: “tem bar que oferece carta de<br />

vinhos. Aqui nós não temos carta, nem<br />

e-mail de vinho e nem bilhete de vinho.<br />

Nós temos é mala direta”, fala apresentando<br />

uma antiga mala de madeira que<br />

ele usa como ade-ga.<br />

Por toda a cachaçaria há peças engraçadas,<br />

curiosas e muitas antigas. Das quais<br />

apenas 20% foram compradas, o restante<br />

ele achou no lixo ou chegou como<br />

presente. A mais antiga é uma bala de<br />

canhão que ele comprou numa sucata


por três reais. A geladeira que funciona<br />

a querosene “se for nova, tem 67 anos”,<br />

diz Edson. O “telefone portátil” é um<br />

aparelho tão antigo que não tem disco<br />

com os números e, quando funcionava,<br />

efetuava ligações por uma manivela. Do<br />

“baú de lançamentos” ele tira um vinil<br />

de Emilinha Borba e diz brincando que é<br />

a nova parceira musical de Sandy, depois<br />

mostra um disco de Nelson Ned dizendo<br />

que é do tempo em que o cantor era<br />

pequeno. O detalhe é que na Urca do<br />

Tubarão só se toca vinil. “Uma vez veio<br />

um cliente pedindo para tocar Zezo. Eu<br />

disse que tocaria desde que fosse em vinil.<br />

Ele perguntou o que era vinil. Se ele<br />

não sabe o que é vinil, imagine música<br />

boa”, conta o inusitado empresário, que<br />

coleciona cerca de 1.200 discos. “Recebi<br />

de uma só vez uma encomenda de 40 kg<br />

de discos de música clássica”.<br />

Quando se aproxima da pilha de barris<br />

que ele cuida com esmero, colhe um<br />

pouco de cachaça na concha da mão e<br />

esfrega no braço dele e de cada um de<br />

nossa equipe. “Espere secar”, pede. Enquanto<br />

isso explica os princípios para se<br />

identifi car e apreciar uma boa dose da<br />

bebida. Primeiro coloque-a num copo,<br />

aguarde fazer uma marca, preste atenção<br />

na cor, cheire fazendo movimentos circulares<br />

com o copo e deguste aos poucos.<br />

“Os dois princípios básicos são não<br />

ter pressa para fazer, nem para tomar. A<br />

boa desce suave”. Quando o braço seca,<br />

a ordem é para cheirá-lo. Surpresa. Exala<br />

um cheiro bom de mel de rapadura e o<br />

braço não fi ca pegajoso.<br />

O Ministro da Cachaça não produz a<br />

bebida que vende. Seu fornecedor é o<br />

engenho Olho D’água, que passa para<br />

a Urca do Tubarão o líquido recém-preparado.<br />

Com o conhecimento que Edson<br />

adquiriu quando cursava faculdade<br />

de Química, ele dá tratamento próprio<br />

à cachaça que posteriormente recebe o<br />

rótulo com o nome Urca do Tubarão.<br />

O bar que ainda completará seis anos já<br />

recebeu a visita de Luiz Carlos Prestes<br />

Filho e de um embaixador da Bulgária<br />

que elogiou dizendo que um lugar como<br />

aquele poderia ser indicado até para<br />

um rei. Também tem público fi el que<br />

sempre lota o estabelecimento em datas<br />

como o carnaval e o Dia da Poesia, 14<br />

de março. Edson e sua esposa Lila também<br />

costumam organizar exposições de<br />

artistas plásticos, saraus e apresentações<br />

de cantores ao vivo. “Quando trazemos<br />

músicos, deixamos o cantor tocar letras<br />

de sua autoria ou o que ele gosta”, esclarece<br />

Edson.<br />

O nome do estabelecimento é Urca do<br />

Tubarão porque funcionaria nas redondezas<br />

da cidade de Macau. Mais precisamente<br />

no distrito de Diogo Lopes, onde<br />

existe um lugar com o mesmo nome.<br />

Mas São Miguel do Gostoso acabou re-<br />

cebendo o empresário por ter, segundo<br />

ele, mais infra-estrutura, mais beleza e<br />

ser mais perto de Natal, onde seu fi lho<br />

Pedro Carvalho, 19 anos, cursa Administração<br />

na UFRN. Mesmo assim<br />

Edson não descarta a possibilidade de<br />

mudar-se. Nas previsões que ele faz, em<br />

dez anos Gostoso estará muito movimentado<br />

turisticamente e ele deseja morar<br />

num lugar calmo. Seu plano é que<br />

seu fi lho Pedro fi que gerindo a Urca do<br />

Tubarão e ele possa abrir outro estabelecimento<br />

onde haja calmaria.<br />

Entre uma dose e outra, um verso de<br />

<strong>Augusto</strong> dos Anjos e outro, ele tem<br />

respostas para tudo. Quando oferece<br />

cachaça prefere que aceitem. Dizer que<br />

se está trabalhando é um bom motivo<br />

para ouvir: “aqui você está fora da área<br />

de serviço ou temporariamente desligado.<br />

Pode beber que aqui você não pega”.<br />

E quando questionado por que algumas<br />

garrafas do seu bar têm o pescoço torto,<br />

ele responde que “as garrafas não estão<br />

tortas, você é que já bebeu”.<br />

Jan/Fev 2006<br />

89


Ao contrário do que muitos<br />

imaginavam (eu, inclusive) existe<br />

vida inteligente e cultural na maioria<br />

dos municípios do RN. E foi a série<br />

de reportagens que a PREÁ fez desde<br />

a sua criação que me mostrou isso.<br />

Jamais a nossa equipe retornou de<br />

uma das viagens ao interior sem boas<br />

histórias para contar. Relatos de luta,<br />

resistência, e exemplares do que pode<br />

ser feito, muitas vezes contra tudo e<br />

todos. O que tenho observado é que<br />

não existe uma relação automática<br />

entre o tamanho ou a riqueza econômica<br />

do município e sua força cultural.<br />

Aqui e ali municípios pequenos<br />

e jovens nos surpreendem. E outros,<br />

grandes, de que esperávamos muito,<br />

nos deixam frustrados. Por exemplo,<br />

eu jamais apostaria que Umarizal<br />

tivesse uma diversidade cultural tão<br />

grande, com atividades que vão do<br />

cordel ao rock, passando pelos quadrinhos<br />

e quadrilha estilizada.<br />

Quem morou no interior até o<br />

fi nal dos anos setenta, deve ter boas<br />

recordações dos circos que visitavam<br />

as cidades uma vez ou outra. Movido<br />

por essa nostalgia escrevi a reportagem<br />

sobre o <strong>Saturno</strong>. Foi legal constatar<br />

que quase tudo continua igual.<br />

Eu ainda alcancei o palhaço de perna<br />

de pau que saía pela rua anunciando<br />

o espetáculo e os dramas encenados,<br />

duas atrações que não resistiram ao<br />

tempo. Infelizmente não guardei os<br />

90 Jan/Fev 2006<br />

nomes desses circos que apareciam<br />

esporadicamente em Santana do Matos,<br />

minha cidade. Mas, não tenho<br />

dúvidas, deviam ter nomes tão bonitos<br />

e pomposos como <strong>Saturno</strong>.<br />

Todos os anos, geralmente em<br />

dezembro, a poeta Iracema Macedo<br />

passa alguns dias de férias em Natal,<br />

revendo amigos e familiares. Sabendo<br />

disso, entrei em contato com ela,<br />

por e-mail, e marquei a entrevista<br />

desta edição, que contou com ajuda<br />

da também poeta Carmen Vasconcelos,<br />

nossa amiga comum. A entrevista<br />

foi feita numa noite calorenta de<br />

dezembro na casa de Carmen e teve<br />

momentos bem descontraídos. Na<br />

entrevista o leitor fi ca conhecendo<br />

o pensamento e a trajetória da poeta,<br />

mas tenho dúvida se a entrevista<br />

passa a grandeza humana, ancorada<br />

na generosidade, humildade e no<br />

caráter, desta grande poeta potiguar.<br />

Na dúvida, fi ca o meu testemunho<br />

pessoal disso.<br />

A reportagem sobre o “Pessoal<br />

do Tarará” deveria ser publicada<br />

junto com a de Mossoró, na edição<br />

passada. Mas enfrentamos difi culdades<br />

devido ao volume de material<br />

produzido (o maior, entre os municípios,<br />

até agora) e decidimos guardar<br />

para esta edição.<br />

Acertei com Elí Celso que publicaria<br />

os poemas dele nesta edição<br />

porque saíram com erros no livro<br />

“15 Poetas do RN”, que reúne os<br />

poemas vencedores do Concurso de<br />

Poesia Luís Carlos Guimarães, da<br />

FJA, coordenado por mim. Ele havia<br />

sugerido uma errata, mas como<br />

a edição, de mil livros, já tinha sido<br />

quase toda distribuída, eu propus - e<br />

ele aceitou - publicar os poemas na<br />

PREÁ. Não foi a solução ideal, mas<br />

a possível, levando-se em conta as<br />

circunstâncias. Minhas desculpas,<br />

públicas, ao poeta.<br />

Com o texto de Nei Leandro,<br />

iniciamos as homenagens aos 50 anos<br />

de publicação de Grande Sertão: Veredas,<br />

de Guimarães Rosa. Na minha<br />

opinião, o livro mais importante da<br />

literatura brasileira.<br />

A PREÁ sofreu a sua primeira<br />

baixa desde que foi criada há três<br />

anos. O editor-assistente Gustavo<br />

Porpino, aprovado em concurso público,<br />

se mudou para Brasília, onde<br />

atuará como jornalista na Embrapa.<br />

Sobre a competência e profi ssionalismo<br />

de Gustavo, não falarei nada.<br />

Seria chover no molhado. As reportagens<br />

que ele escreveu ao longo dos<br />

últimos três anos falam por si, quem<br />

tiver alguma dúvida é só consultar<br />

todas as edições. Gostaria de ressaltar<br />

e dá o meu testemunho sobre o<br />

caráter, honestidade e lealdade de<br />

Gustavo. Em três anos de convivência<br />

diária, pude conhecê-lo melhor<br />

e desconheço qualquer ato dele que<br />

não seja ético e honrado. Foi uma<br />

convivência enriquecedora, baseada<br />

na honestidade de propósitos e amizade,<br />

que se foi consolidando com o<br />

tempo. Numa equipe pequena como<br />

a nossa, uma perda dessa dimensão,<br />

não deixa de abalar. Mas não podemos<br />

desanimar, as velas estão içadas<br />

e com ou sem vento é preciso ir em<br />

frente.<br />

No lugar de Gustavo entrou<br />

Sérgio Vilar, em quem eu levo muita<br />

fé. Sérgio já vinha fazendo reportagens<br />

e artigos e acompanhou Gustavo<br />

em algumas viagens pelo interior<br />

do Estado. Tem a mesma índole boa<br />

do grande Gustavo. Boa sorte para<br />

ambos!<br />

Até a próxima!


3 ANOS FAZENDO O RIO<br />

GRANDE DO NORTE MELHOR


O Rio Grande do Norte tá melhor<br />

Prestando contas<br />

Este encarte da PREÁ é um informativo das nossas ações à frente da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>,<br />

nestes três anos do Governo Wilma de Faria. Seria uma injustiça negar que sem a decisão política<br />

da Governadora este trabalho não poderia ser mostrado.<br />

Criação do Programa Casas de Cultura Popular, com 14 em funcionamento, 12 em obras avançadas<br />

e mais 14 que serão edifi cadas até o fi nal do ano. Num total de 40 Casas de Cultura, espalhadas<br />

pelo interior do Estado. Ação que não tem comparação nem similaridade com nenhum<br />

outro trabalho, na área de cultura, realizado por qualquer outro Governo, na História do Rio<br />

Grande do Norte.<br />

Edição da Revista PREÁ, que por ela mesma já se divulga e se defi ne. Basta ler a quantidade e<br />

qualidade de cartas recebidas do Brasil e do exterior.<br />

Recuperação dos equipamentos da Fortaleza dos Reis Magos, com ampliação do acesso e conservação.<br />

Devolução da Cidade da Criança às crianças de Natal, além do projeto de sua recuperação defi -<br />

nitiva.<br />

Reestruturação da Orquestra Sinfônica e do Coral Canto do Povo, com abertura de concursos<br />

públicos.<br />

Recuperação do Memorial Monsenhor Expedito, em São Paulo do Potengi; Restauração do Museu<br />

do Capitão Antas, em Pedro Avelino; recuperação da Gráfi ca Manimbu, em Natal.<br />

Consolidação do Projeto Seis e Meia e do Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães.<br />

Realização do concurso nacional de arquitetura para escolha do projeto do Teatro de Natal.<br />

Elaboração de projetos para reestruturação do Instituto de Música Waldemar de Almeida e do<br />

Caldeirão da Cultura, no prédio onde funciona a Penitenciária João Chaves, na Zona Norte de<br />

Natal.<br />

Criação e edifi cação do Teatro de Cultura Popular, com espaços para ofi cinas e galerias.<br />

Restauração do Teatro Alberto Maranhão; Restauração do Teatro Lauro Monte Filho, em Mossoró,<br />

e Adjuto Dias, em Caicó; Restauração do prédio-sede da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>, com a<br />

criação do Auditório Franco Jasiello, Galeria Newton Navarro e Espaço Cultural Odilon Ribeiro<br />

Coutinho. Reequipamento das salas, com condições dignas de trabalho para os servidores da<br />

casa. Praça Emmanuel Bezerra, Largo Jornalista Ubirajara Macedo e Praça do TCP Olavo de<br />

Medeiros Filho.<br />

Não está tudo neste resumo. Você, caro leitor, verá mais no próprio encarte que esta PREÁ lhe<br />

oferece. Testemunhe o nosso trabalho e não permita que ele seja interrompido pelo medo da<br />

comparação, que é fi lhote da inveja.<br />

Com o nosso abraço amigo,<br />

François Silvestre de Alencar<br />

Presidente da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>


Casa de Cultura Popular de Parelhas<br />

Casa de Cultura Popular de Santa Cruz<br />

Casas de<br />

Cultura<br />

Casa de Cultura Popular de Martins<br />

O Governo do Estado, através da FJA, investiu<br />

R$ 2 milhões 289 mil para construir<br />

treze Casas de Cultura Popular no interior<br />

do RN. Outras 27 serão entregues até o fi -<br />

nal do ano, num programa inédito e original<br />

de interiorização da cultura<br />

- Criação do Programa Casas de Cultura Popular<br />

- Edição da revista PREÁ<br />

- Recuperação da Fortaleza dos Reis Magos<br />

- Recuperação da Cidade da Criança<br />

- Recuperação do Memorial Monsenhor Expedito, em São Paulo do Potengi<br />

- Reestruturação da Orquestra Sinfônica e do Coral Canto do Povo, com realização de concursos públicos<br />

- Recuperação do Centro de Formação Teatral


O Rio Grande do Norte tá melhor<br />

Com circulação bimestral, tiragem de 5 mil<br />

exemplares, distribuída gratuitamente, e<br />

edição on line, a revista Preá leva a produção<br />

cultural do RN para o Brasil e o mundo<br />

- Restauração do Museu do Capitão Antas, em Pedro Avelino<br />

- Criação e edifi cação do Teatro de Cultura Popular<br />

- Restauração do Teatro Alberto Maranhão<br />

- Criação do programa de Auxílio Montagem Teatral<br />

- Programa Ribeira das Artes<br />

- Restauração do Teatro Lauro Monte Filho, em Mossoró<br />

- Restauração do Teatro Adjuto Dias, em Caicó<br />

Revista Preá


Um Presente<br />

de Natal<br />

Depois do sucesso na capital, o espetáculo<br />

Um Presente de Natal, realizado no mês de<br />

dezembro, foi levado a várias cidades do interior<br />

do Estado. O projeto é totalmente produzido<br />

e encenado por artistas potiguares<br />

- Restauração do prédio da FJA, com a criação de Auditório; Galeria de Arte; Espaço Cultural; Praças e Largo<br />

- Projeto Seis e Meia<br />

- Semana de Cultura Popular<br />

- Encontro do Teatro Nordestino<br />

- Prêmio de Poesia Luís Carlos Guimarães<br />

- Prêmio Nacional de Arquitetura para escolha do projeto do Teatro de Natal<br />

- Edição dos livros “Poetas do RN”, com os poemas vencedores do Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães


O Rio Grande do Norte tá melhor<br />

<strong>Fundação</strong><br />

José <strong>Augusto</strong><br />

A <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> foi restaurada e<br />

reequipada e ganhou o Auditório Franco<br />

Jasiello; Galeria Newton Navarro; Espaço<br />

Cultural Odilon Ribeiro Coutinho; Praça<br />

Emmanuel Bezerra; Largo Jornalista Ubirajara<br />

Macedo e Praça do TCP Olavo de<br />

Medeiros Filho<br />

- Edição do livro “<strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> – 40 Anos (1963-2003)”<br />

- Apresentação da EDTAM (Escola de Danças do Teatro Alberto Maranhão) em Londrina-PR<br />

- Edição do livro sobre os cem anos do Teatro Alberto Maranhão<br />

- Co-edição, com a USP, do livro “Dicionário Crítico Câmara Cascudo”<br />

- Apoio à Feira de Sebos<br />

- Comemoração do centenário do Teatro Alberto Maranhão<br />

- Elaboração de nova Lei de Cultura, com criação do Fundo de Cultura e a Lei Orgânica da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>


Presidente da FJA François Silvestre e a governadora Wilma de Faria inauguram o novo teatro<br />

Teatro de<br />

Cultura<br />

Popular<br />

Natal, depois de décadas, ganhou um<br />

novo teatro. O TCP tem 680 metros<br />

quadrados de área construída, capacidade<br />

para 200 lugares sentados e custou<br />

400 mil reais<br />

- Projeto de reestruturação do Instituto de Música Waldemar de Almeida<br />

- Encontro de agentes das Casas de Cultura Popular<br />

- Criação do site da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong><br />

- Projeto de criação do “Caldeirão da Cultura”, na Penitenciária João Chaves, Zona Norte de Natal<br />

- Apoio, com recursos fi nanceiros, para gravação de CDs, edições de livros, shows e exposições<br />

- Interiorização do projeto “Um Presente de Natal”, que também chegou à Zona Norte<br />

- Lei de Incentivo à Cultura Luís da Câmara Cascudo, que destinou 12 milhões para o setor cultural


O Rio Grande do Norte tá melhor<br />

Fortaleza<br />

dos Reis<br />

Magos<br />

O mais antigo e importante monumento<br />

histórico e arquitetônico do Rio Grande do<br />

Norte, a Fortaleza dos Reis Magos, passou<br />

por reforma que custou R$ 600 mil. Foram<br />

construídos boxes para artesanato e o estacionamento<br />

foi ampliado<br />

- Realização dos seguintes seminários, através do Centro de Documentação Cultural Eloy de Souza: “Bom-dia Café”<br />

(sobre o Presidente da República Café Filho); “Bom-dia Padre João Maria”; e “1935 setenta anos depois”<br />

- Projetos aprovados, no valor de R$ 512 mil, junto ao MINC, para preservar e equipar os museus do RN<br />

- Realização do Dia Internacional do Museu; Encontro do Museu Potiguar; Fórum Museu Potiguar<br />

- Reativação do Sistema Estadual de Bibliotecas<br />

- Realização da Conferência Estadual de Cultura<br />

- Projeto aprovado de criação, em 2006, de 14 bibliotecas públicas no interior do Estado


Concurso<br />

de Poesia<br />

Concurso revelou novos valores da<br />

poesia potiguar, como Karina Grace<br />

(foto), além de oferecer prêmios<br />

em dinheiro e publicar livro com<br />

os poemas dos vencedores<br />

Sinfônica fez excursão, inédita, pelo interior do Estado, e<br />

no ano passado iniciou reestruturação, com realização de<br />

concurso para contratação de novos componentes<br />

Cidade da Criança<br />

Cidade da Criança foi totalmente restaurada, ganhou novos<br />

brinquedos, um circo cultural e manutenção permanente<br />

Orquestra<br />

Sinfônica


3 ANOS FAZENDO O RIO<br />

GRANDE DO NORTE MELHOR

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