Família Saturno - Fundação Jose Augusto
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Minha biografi a, antes de tudo minha<br />
biografi a literária, não deveria ser crucifi<br />
cada em datas. Aventuras são sem<br />
tempo, sem começo e fi m. Meus livros<br />
são aventuras. Eles são minha maior<br />
aventura. Escrevendo, descubro sempre<br />
um novo pedaço do infi nito. Eu vivo o<br />
infi nito, o instante não conta. Vou-lhe<br />
revelar um segredo: creio que já vivi uma<br />
vez. Naquele tempo, eu também era brasileiro<br />
e me chamava João Guimarães<br />
Rosa. Quando eu escrevo, repito aquilo<br />
que vivi anteriormente. E para essas duas<br />
vidas meu vocabulário não basta.<br />
*****<br />
Eu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o<br />
português, o latim – talvez até o esquimó<br />
e o tártaro. Queria a língua que se falava<br />
antes de Babel.<br />
*****<br />
O caráter do homem é seu estilo, sua<br />
língua. Isto deve soar naturalmente doutrinário,<br />
mas é apenas uma verdade simples<br />
da vida. Eu não entendo tampouco<br />
isso por elegância ou seleção de estilo da<br />
língua. Elegância demasiada também é<br />
suspeita, porque ela esconde um vazio.<br />
*****<br />
Todos que malmontam o sertão só alcançam<br />
de reger em rédea por uns trechos;<br />
que sorrateiro o sertão vai virando tigre<br />
debaixo da sela.<br />
*****<br />
O sertão é uma espera enorme.<br />
*****<br />
O sertão é onde manda quem é forte,<br />
com as astúcias. Deus mesmo, quando<br />
vier, que venha armado!<br />
*****<br />
Goethe nasceu no sertão, como Dostoievski,<br />
como Tolstoi, como Flaubert e<br />
Balzac; ele foi, como os outros que eu<br />
admiro, um moralista, um homem que<br />
viveu com a língua e que pensou na eternidade.<br />
Eu acho que Goethe foi mesmo<br />
o único poeta da literatura mundial que<br />
não escreveu para o dia, que escreveu<br />
para a infi nidade. Ele era sertanejo. Zola,<br />
como exemplo oposto arbitrário, provinha<br />
apenas de São Paulo. De cem escritores,<br />
um é parente de Goethe, noventa<br />
e nove de Zola.<br />
*****<br />
Deus é paciência. O contrário é o<br />
diabo.<br />
*****<br />
Eu sou místico, pelo menos eu acho.<br />
Que sou também cismador, aí não sei<br />
se isso eu devo lamentar ou alegrar-me,<br />
isso eu reparo no meu trabalho sempre<br />
de novo. Eu posso meditar muito tempo<br />
sobre alguma coisa, posso fi car quieto e<br />
esperar. Nós sertanejos somos muito diferentes<br />
das pessoas cheias de temperamento<br />
do Rio ou da Bahia, que não podem<br />
fi car nem um minuto quietas. Nós<br />
somos tipos especulativos, cismar nos dá<br />
até prazer.<br />
*****<br />
O diabo vige dentro do homem, os crespos<br />
do homem – ou é o homem arruinado,<br />
ou o homem dos avessos.<br />
*****<br />
Sertão é isto: o senhor empurra para trás,<br />
mas de repente ele volta a rodear o senhor<br />
dos lados. Sertão é quando menos<br />
se espera.<br />
*****<br />
Saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo<br />
do vento nas palmas dos buritis<br />
todos, quando é ameaço de tempestade.<br />
Alguém esquece isso? O vento é verde.<br />
Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio<br />
e põe no colo.<br />
*****<br />
Aprendi umas línguas estrangeiras só<br />
para enriquecer a minha própria linguagem.<br />
E porque existem demasiadas<br />
coisas intraduzíveis, pensadas em sonho,<br />
intuitivas, que só se podem encontrar no<br />
som original.<br />
*****<br />
Viver é muito perigoso.<br />
*****<br />
Sertão: é dentro da gente.<br />
*****<br />
Nós temos de aprender de novo a dedicar<br />
muito tempo a uma idéia. Então<br />
seriam escritos de novo melhores livros.<br />
Livros nascem do pensamento: escrever<br />
é técnica e prazer no jogo com palavras.<br />
Jan/Fev 2006<br />
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