Família Saturno - Fundação Jose Augusto
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acabou de se sentar”...<br />
52 de passantes indiferentes uns aos outros,<br />
nos domingos e nos outros dias da<br />
semana (se você não for um daqueles vagabundos<br />
profi ssionais, olhando para o<br />
nada como se olhassem para as portas do<br />
fundo de alguma antiga vida).<br />
Foi então que veio sentar-se, no mesmo<br />
banco, uma senhora também cansada.<br />
“É ela. Eu juro. É ela, sim!” – foi o meu<br />
murmúrio seguinte, para a incrédula<br />
Cristina.<br />
“Quem?”<br />
“Greta. Greta Garbo.”<br />
Eu não podia me enganar com aquele<br />
formato do rosto e com a boca, embora<br />
o nariz... Não, não era nada que se<br />
pudesse apontar: seria, antes, a reminiscência<br />
de uma aura magnética, o resto<br />
do halo da “Divina”, naquela face devastada.<br />
Sei lá por que, mas algo da sua<br />
personalidade misteriosa estava ainda<br />
presente, e não deixava dúvidas sobre<br />
você estar diante da Estrela Absoluta dos<br />
Céus Frios da Perdida Idade de Ouro<br />
do Cinema, persistente nas retinas. Por<br />
falar em retinas, seus olhos – a prova defi<br />
nitiva – estavam infelizmente velados<br />
pelos óculos escuros, de modelo antiquado.<br />
Apoiava-se numa bengala preta,<br />
e se aproximara com a leve hesitação de<br />
uma senhora bem-educada, para se sentar<br />
justo no nosso banco lustroso da tinta<br />
nova onde o ferro estivera, quem sabe,<br />
tão descascado quanto ela própria, Greta<br />
Garbo.<br />
“Greta Garbo?”<br />
Minha mulher não acreditava. Mas, era.<br />
Era a Garbo, aquela anciã em quem ninguém<br />
estava prestando atenção, exceto<br />
nós – com o cuidado extremo dos disfarces<br />
inúteis para olhos talvez implacáveis,<br />
atrás daquelas lentes grossas.<br />
O canto esquerdo de seus lábios, num<br />
ricto, passou a fugidia impressão da pessoa<br />
que fi ca nervosa, ao se saber reconhecida.<br />
“Não olhe assim!”.<br />
Cristina tinha razão. Eu estava a examinar<br />
muito diretamente a estranha que<br />
ela tentava proteger da minha curiosidade.<br />
De pouco adiantava, entretanto:<br />
qualquer um fi caria vidrado na fi gura de<br />
cabelos escorridos, sem estilo (aparados<br />
pela própria?) e sem o brilho que, um<br />
dia, havia ostentado na noite artifi cial<br />
dos estúdios. Estava vestida com o desleixo<br />
de quem saíra apenas para esticar<br />
as pernas e caminhar ao longo das amu-<br />
radas, calçada com uns tênis meio sujos<br />
nos pés talvez grandes demais para uma<br />
mulher.<br />
Minha atenção era, portanto, fascinada<br />
e irreprimível. Ou mal-educada, numa<br />
palavra que são duas (você deixa de saber<br />
contar, diante do fantasma de uma<br />
Diva). E daí? Você só vai estar sentado<br />
junto de Greta Garbo uma vez – se é que<br />
vai estar, alguma vez na vida.<br />
Ficamos ali, portanto, trocando olhares<br />
oprimidos pela certeza de saber quem era<br />
aquela senhora pálida e descolorida como<br />
o casaco machucado que ela usava sobre o<br />
corpo antigamente escultural, com mais<br />
um lenço desbotado na cabeça...<br />
Quando o tirou (para receber o sol atenuado),<br />
eu tive, então, a mais plena certeza:<br />
era, de fato, a atriz retirada do cinema<br />
há 44 anos, puxando do bolso um<br />
saco de milho para dar aos pombos privilegiados,<br />
alguns dos quais acostumados,<br />
acercando-se para se alimentar das mãos<br />
de dedos nodosos – como pequenos galhos<br />
castigados – de um dos seres humanos<br />
mais belos e mais enigmáticos que já<br />
nasceu sobre a superfície do planeta quase<br />
tão exausto quanto a solitária senhora<br />
de Nova York, quem diria, Greta Garbo,<br />
80 anos, acabou de se sentar...<br />
Jan/Fev 2006<br />
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