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Família Saturno - Fundação Jose Augusto

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O fi lme Para<br />

um livro-em-progresso<br />

Moacy Cirne<br />

Encontro-me na primeira fi la, sentado,<br />

à espera do início da sessão. À espera do<br />

fi lme, qualquer fi lme de categoria, desde<br />

que brasileiro, espanhol, italiano. Ou<br />

francês. Só que o de hoje não é um fi lme<br />

qualquer. Agrada-me fi car na primeira<br />

fi la; sinto com mais intensidade a luz que<br />

vem da tela, o som que me envolve de<br />

forma quase sensual. Aos 35 anos, continuo<br />

amando o cinema, sempre amei.<br />

Desde os tempos de Caicó, no interior<br />

do Rio Grande do Norte. O Paissandu,<br />

hoje, é a minha segunda casa, moro aqui<br />

perto. Depois das sessões, gosto de discutir<br />

com amigos ou conhecidos nas mesas<br />

do Oklahoma, molhando as palavras<br />

sem maiores preocupações, sem maiores<br />

ilusões. Mas com muita paixão sobre<br />

o último Godard, o último Glauber, o<br />

último Antonioni, o próximo Nelson<br />

Pereira, o próximo Joaquim Pedro, o<br />

próximo Luiz Rosemberg. Ou a última<br />

sacanagem do governo. Às vezes, aparece<br />

uma amiga que me acompanha até o<br />

meu apartamento, na Senador Vergueiro.<br />

Mas eis que a sessão começa. Depois<br />

dos primeiros minutos, complementos<br />

inúteis, inicia-se o fi lme, um fi lme ansiosamente<br />

esperado por mim, que ainda<br />

não o conhecia, por incrível que pareça.<br />

Aliás, eu era o único da turma que não<br />

o conhecia. E o fi lme se desenrola, nobre<br />

e solene. Com sua música. Seus ruídos.<br />

Seus diálogos. Tu n’as rien vu à Hiroshima.<br />

Rien. J’ai tout vu. Tout. Non, tu<br />

n’as rien vu à Hiroshima. Ainsi l’hôpital,<br />

je l’ai vu. J’en suis sûre. L’hôpital existe<br />

à Hiroshima. Comment aurais-je pu<br />

éviter de le voir? Sim, a dor me toca, o<br />

passado não me consola, o presente me<br />

abstrai, a paz já não existe em minhas<br />

memórias. Sou Hiroshima, sou Nevers,<br />

sou Caicó, sou Natal. Sou o fi lme que<br />

me completa. Nas sombras do cinema.<br />

Nas sombras das vozes. Nas sombras do<br />

futuro. C’est à Nevers que j’ai été le plus<br />

jeune de toute ma vie... Jeune-à-Ne-vers.<br />

Jeune-à-Ca-i-có. Oui, Jeune à Caicó. Et<br />

puis aussi, une fois, folle à Natal. Viajo<br />

nas minhas idéias, nos meus sentimentos,<br />

nas minhas angústias; o fi lme me<br />

fascina, me consome, me embriaga, me<br />

destrói. Me diz tudo, tudo, tudo. Et la<br />

Loire? C’est un fl euve sans navigation<br />

aucune, toujours vide, à cause de son<br />

cours irrégulier et de ses bancs de sable.<br />

En France, le Seridó passe pour un fl euve<br />

très beau, à cause surtout de sa lumière...<br />

tellement douce, si tu savais. O que fazer<br />

da saudade que tenho do Seridó, da sua<br />

luz quando cheio de barreira a barreira?<br />

O que fazer das minhas desilusões? Das<br />

minhas esperanças desbotadas? O que<br />

fazer do amor que se perdeu no tempo<br />

e no espaço? Não o esquecerei, jamais.<br />

Jamais. Je t’oublierait! Je t’oubli déjá! Regarde,<br />

comme je t’oublie. Regarde-moi!<br />

Hi-ro-shi-ma. Hi-ro-shi-ma. C’est ton<br />

nom. Depois de tudo, a música. Depois<br />

do fi m, o silêncio. Estou exausto. Dilacerado.<br />

Desnorteado. Escuto as pessoas<br />

que se levantam de suas poltronas. Algumas<br />

vozes, alguns vazios. Tomo a minha<br />

bengala e começo a tatear, devagar; não<br />

tenho pressa. O encarnado e o azul há<br />

muito que me escaparam da memória.<br />

Há muito que deixei de sentir os crepúsculos<br />

e as cores do Seridó. Não vejo mais<br />

do que alguns poucos fi apos de sombras,<br />

alguns restos de pequenas certezas. Não<br />

vejo mais do que o nada e uma certa<br />

náusea. Moro perto, já disse. Sei voltar<br />

sozinho para casa. E hoje prefi ro voltar<br />

sozinho.<br />

[ in A palavra e outras palavras, a sair<br />

em 2006 ]<br />

Jan/Fev 2006<br />

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