O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Manuel foi à noite ao quarto <strong>do</strong> caixeiro. Falou-lhe com brandura paternal; lamentou-o com palavras<br />
amigáveis, e <strong>de</strong>satou um protesto, em forma <strong>de</strong> sermão contra o clima e os costumes <strong>do</strong> Brasil.<br />
— Uma terrinha com que é preciso cuida<strong>do</strong>! Perigosa! Perigosa! dizia ele. Aqui a gente tem a vida por<br />
um fio <strong>de</strong> cabelo!<br />
Tratou <strong>de</strong>pois, com entusiasmo, <strong>de</strong> Portugal; lembrou as boas comezainas portuguesas: “As cal<strong>de</strong>iradas<br />
d'eirozes, a orelheira <strong>de</strong> porco com feijão branco, a acorda, o cal<strong>do</strong> gor<strong>do</strong>, o famoso bacalhau <strong>do</strong> Algarve!”<br />
— Ai! o pesca<strong>do</strong>! suspirou o Dias, sau<strong>do</strong>so pela terra. Que rico pitéu!<br />
— E os nossos figos <strong>de</strong> comadre, e as nossas castanhas assadas, e o vinho ver<strong>de</strong>?<br />
Dias escutava com água<br />
— Ai! a terra! .<br />
O patrão falou-lhe também das comodida<strong>de</strong>s, <strong>do</strong>s ares, das frutas e por fim <strong>do</strong>s divertimentos <strong>de</strong> Lisboa,<br />
terminan<strong>do</strong> por contar fatos <strong>de</strong> moléstia; casos idênticos ao <strong>do</strong> Dias; transportou-se rin<strong>do</strong> ao seu tempo <strong>de</strong><br />
rapaz, e, já <strong>de</strong> pé, pronto para sair, bateu-lhe no ombro, carinhosamente:<br />
— Você, homem, o que <strong>de</strong>via era casar!...<br />
E jurou-lhe que o casamento lhe estava mesmo calhan<strong>do</strong>. “O Dias, com aquele gênio e com aquele<br />
méto<strong>do</strong>, dava por força um bom mari<strong>do</strong>!... Que se casasse, e havia <strong>de</strong> ver se neo teria outra importância!...”<br />
— Olhe! concluiu, digo-lhe agora como o <strong>do</strong>utor “Banhos! banhos, meu amigo” mas que sejam <strong>de</strong> igreja,<br />
compreen<strong>de</strong>?<br />
E, rin<strong>do</strong> com a própria pilhéria e to<strong>do</strong> cheio <strong>de</strong> sorrisos <strong>de</strong> boa intenção, saiu <strong>do</strong> quarto na ponta <strong>do</strong>s pés,<br />
cautelosamente, para que os outros caixeiros, a quem ele não dava a honra <strong>de</strong> uma visita daquelas, não lhe<br />
ouvissem as pisadas.<br />
Quan<strong>do</strong> Ana Rosa acabou <strong>de</strong> cortar as unhas <strong>de</strong> Manuelzinho <strong>de</strong>u-lhe <strong>de</strong> conselho que estudasse alguma<br />
coisa; prometeu que arranjaria com o pai metê-lo em uma aula noturna <strong>de</strong> primeiras letras, e recomen<strong>do</strong>u-lhe<br />
que to<strong>do</strong>s os dias <strong>de</strong> manhã tomasse o seu banho <strong>de</strong>baixo da bomba <strong>do</strong> poço.<br />
— Faça isso, que serei por você, rematou a moça, afastan<strong>do</strong>-o com uma ligeira palmada na cabeça.<br />
O menino retirou-se, muito comovi<strong>do</strong>, para o andar <strong>de</strong> cima, mas o Dias, <strong>de</strong> pé, no tope da escada,<br />
esperava por ele, furioso.<br />
— Que estava fazen<strong>do</strong>, seu traste?<br />
— Nada, respon<strong>de</strong>u a criança, a tremer. Fora a senhora que o chamara!...<br />
Dias, com um muno, explicou que o maroto não podia pôr-se <strong>de</strong> palestra na varanda, em vez <strong>de</strong> cuidar<br />
das obrigações.<br />
— E se me constar, acrescentou, cada vez mais zanga<strong>do</strong>, que você me toma a ir com lamúrias para o la<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> D. Anica, comigo se tem <strong>de</strong> haver, Seu mariola! Vai tu<strong>do</strong> aos ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> patrão!<br />
Manuelzinho arre<strong>do</strong>u-se dali, convenci<strong>do</strong> <strong>de</strong> que havia pratica<strong>do</strong> uma tremenda falta; no íntimo, porém,<br />
ia muito satisfeito com a idéia <strong>de</strong> que já neo estava tão <strong>de</strong>sampara<strong>do</strong>, e sentin<strong>do</strong> renascer-lhe, na obscura<br />
mágoa <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>sterro, um <strong>de</strong>sejo alegre <strong>de</strong> continuar a viver.<br />
A reunião em casa <strong>do</strong> Freitas esteve animada. Houve violão, cantoria, muita dança Chegaram a <strong>de</strong>itar<br />
chora<strong>do</strong> da Bahia.<br />
Mas, pela volta da meia-noite, Ana Rosa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma valsa fora acometida <strong>de</strong> um ataque <strong>de</strong> nervos.<br />
Era o terceiro que lhe dava assim, sem mais nem menos.<br />
Felizmente o médico, chama<strong>do</strong> a toda a pressa afiançou que aquilo não valia nada. “Distrações e bom<br />
passadio!” receitou ele, e, ao <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong> Manuel, segre<strong>do</strong>u-lhe sorrin<strong>do</strong>:<br />
— Se quiser dar saú<strong>de</strong> á sua filha, trate <strong>de</strong> casá-la...<br />
— Mas o que tem ela, <strong>do</strong>utor?...