O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
seu fumo <strong>do</strong> Codó. Em casa muito obsequia<strong>do</strong>r. Passava à farta.<br />
Com a vinda <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is, a reunião tornou-se mais animada. Reclamou-se logo o violão, e seu Casusa,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito roga<strong>do</strong>, afinou o instrumento e principiou a cantar Gonçalves Dias:<br />
“Se queres saber o meio Por que às vezes me arrebata Nas asas <strong>do</strong> pensamento A poesia tão grata;”<br />
Nisto, rebentou uma corda <strong>do</strong> violão.<br />
— Ora pistolas!... resmungou o trova<strong>do</strong>r. E gritou: - Ó D. Anica! a senhora não terá uma prima?<br />
Ana Rosa foi ver se tinha, an<strong>do</strong>u remexen<strong>do</strong> lá por <strong>de</strong>ntro da casa, e voltou com uma segunda. “Era o que<br />
havia.” O Casusa arranjou-se com a segunda e prosseguiu, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> repetir os versos já canta<strong>do</strong>s; ao passo<br />
que o Freitas, na janela, importunava Raimun<strong>do</strong>, a propósito <strong>do</strong> autor daquela poesia e <strong>de</strong> outros vultos<br />
notáveis <strong>do</strong> Maranhão “da sua Atenas brasileira” como a <strong>de</strong>nominava ele. O cônego fugiu logo para a<br />
varanda, covar<strong>de</strong>mente, com me<strong>do</strong> à seca.<br />
— Não sou bairrista. não senhor... dizia o maçante, mas o nosso Maranhãozinho é um torrão<br />
privilegia<strong>do</strong>!...<br />
E citava, com orgulho, “os Cunha, os O<strong>do</strong>rico Men<strong>de</strong>s, os Pindaré e os Sotero etcetera! etcetera!'' O seu<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> dizer etcetera era esplêndi<strong>do</strong>!<br />
— Temos os nossos faustos, temos!<br />
Passou então a falar nas belezas da sua Atenas: no dique das Mercês, “estava em construção, mas havia<br />
<strong>de</strong> ficar obra muito <strong>de</strong> se ver e gostar...” afiançava ele cheio <strong>de</strong> gestos respeitosos. Falou <strong>do</strong> Cais da Sagração,<br />
“também não estava concluí<strong>do</strong>” <strong>do</strong>s Quartéis, “iam entrar em conserto”, na igreja <strong>de</strong> Santo Antônio, “nunca<br />
chegaram a terminá-la, mas se o conseguissem, seria um belo templo!” Elogiou muito o teatro São Luís.<br />
“Dizia o cônego que era o São Carlos <strong>de</strong> Lisboa, em ponto pequeno!” Lembrou respeitosamente a companhia<br />
lírica <strong>do</strong> Ramonda, o Remorini o tenor “morrera <strong>de</strong> febre amarela, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser muito aplaudi<strong>do</strong> na Gemma<br />
<strong>de</strong> Vergi. Ah, como aquela, jurava não voltaria outra companhia ao Maranhão! Mas que, mesmo na província<br />
havia moços <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>...” Referia-se a uma socieda<strong>de</strong> particular, <strong>de</strong> curiosos. “Tinham seu jeito,<br />
sim senhor!” E, engrossan<strong>do</strong> a voz, com muita autorida<strong>de</strong>: “Representavam Os Sete Infantes <strong>de</strong> Lara! - Os<br />
Renega<strong>do</strong>s! - O Homem da Máscara Negra, e outras peças <strong>de</strong> igual merecimento! Tinham a sua queda para a<br />
coisa, tinham!... Não se po<strong>de</strong> negar!...” E assoava-se, menean<strong>do</strong> a cabeça, convenci<strong>do</strong> “Principalmente a<br />
dama... sim! o moço que fazia <strong>de</strong> dama!... Não havia que <strong>de</strong>sejar - o pegar <strong>do</strong> leque, o revirar <strong>do</strong>s olhos, certos<br />
requebros, certas faceirices!... Enfim, senhores! era perfeito, perfeito, perfeito!”<br />
Raimun<strong>do</strong> bocejava.<br />
E o Freitas nem cuspia. Acudiam-lhe fatos engraça<strong>do</strong>s sobre o teatrinho. soltava as ane<strong>do</strong>tas em rebanho,<br />
sem intervalos. Raimun<strong>do</strong> já não achava posição na janela; virava-se da esquerda. da direita, firmava-se ora<br />
numa perna, ora na outra <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> afinal pen<strong>de</strong>r a cabeça e olhan<strong>do</strong> para os pés entristeci<strong>do</strong> pelo tédio. “Que<br />
maçante!...” pensava.<br />
Entretanto, o Freitas a sacudir-lhe a manga <strong>do</strong> fraque, que Raimun<strong>do</strong> sujara na caliça da janela, ia<br />
confessan<strong>do</strong> que “estavam em vazante <strong>de</strong> divertimentos; que a sua distração única era cavaquear um boca<strong>do</strong><br />
com os amigos...”<br />
— Ah! exclamou, minto! minto! Há uma festa nova! - a <strong>de</strong> Santa Filomena! Mas não será como a <strong>do</strong>s<br />
Remédios, isso, tenham paciência!...<br />
— Sim, <strong>de</strong>certo, balbuciou Raimun<strong>do</strong>, fingin<strong>do</strong> prestar atenção.<br />
E espreguiçou-se.<br />
— A festa <strong>do</strong>s Remédios!... repetiu o outro, estalan<strong>do</strong> os <strong>de</strong><strong>do</strong>s e assovian<strong>do</strong> prolongadamente, como<br />
quem diz: “Vai longe!”<br />
Raimun<strong>do</strong> estremeceu, ficou gela<strong>do</strong> ate a raiz <strong>do</strong>s cabelos, percebeu aquela tremenda ameaça e mediu<br />
instivamente a altura da janela, como se premeditasse uma fuga.<br />
— O nosso João Lisboa... disse o Freitas. E meteu profundamente as mãos nas algibeiras das calças. O