O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
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“Seria eu o culpa<strong>do</strong> <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>?... Não teria cumpri<strong>do</strong> com os meus <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> bom esposo?.. Seriam<br />
insuficientes os meus carinhos?..” interrogava ele à própria consciência; esta respondia opon<strong>do</strong>-lhe duvidas<br />
que valiam acusações. Ele <strong>de</strong>fendia-se, explicava os fatos, citava provas em favor, lembrava a sua <strong>de</strong>dicação e<br />
a sua amiza<strong>de</strong> pela <strong>de</strong>funta; mas a maldita rezingueira não se acomodava e não aceitava razões. E José abriu a<br />
chorar como um perdi<strong>do</strong>.<br />
Surpreen<strong>de</strong>u-se neste esta<strong>do</strong>; quis fugir <strong>de</strong> si mesmo, e cravou as esporas no cavalo. Correu muito, à<br />
ré<strong>de</strong>a solta como se fugira persegui<strong>do</strong> pela própria sombra.<br />
“E se eu o matasse?...”<br />
Era a maldita idéia que vinha <strong>de</strong> novo à superfície <strong>do</strong>s seus pensamentos.<br />
“Não! Não!” E ele a repelia <strong>de</strong> novo empurran<strong>do</strong>-a para o fun<strong>do</strong> da sua imaginação, como o assassino<br />
que repele no mar o cadáver da sua vítima; ela mergulhava com o impulso, mas logo reaparecia, boian<strong>do</strong>.<br />
“E se eu o matasse?...”<br />
— Não! não! exclamou, <strong>de</strong>sferin<strong>do</strong> um grito no silêncio da floresta. Já basta a outra!<br />
E assanhavam-se-lhe os remorsos.<br />
Nesse momento uma nuvem escon<strong>de</strong>ra a lua. Espectros surgiam no caminho; José suava e tremia sobre a<br />
sela; o mais leve mexer <strong>de</strong> galhos eriçava-lhe os cabelos.<br />
No entanto - corria.<br />
Pouco lhe faltava já para chegar à fazenda, muito pouco, uma miserável distancia, e, contu<strong>do</strong>, mais lhe<br />
custava esse pouco <strong>do</strong> que to<strong>do</strong> o resto da viagem. Fechou os olhos e <strong>de</strong>ixou que o cavalo corresse à toa,<br />
galopan<strong>do</strong> rui<strong>do</strong>samente na terra úmida <strong>de</strong> orvalho. Ele ofegava, acossa<strong>do</strong> por fantasmas Via a sua vitima.<br />
com a boca muito aberta, os olhos convulsos, a falar-lhe coisas estranhas numa voz <strong>de</strong> moribunda, a língua <strong>de</strong><br />
fora, enorme e negra, entre gorgolhões <strong>de</strong> sangue. E via também surgir aquele padre infame, bater-lhe no<br />
ombro, apresentar-lhe, sorrin<strong>do</strong>, um alvitre, propor uma condição e passar logo à ameaça brutal: “Tenho-te na<br />
mão, assassino! Se quiseres punir-me, entrego-te à justiça! “<br />
E José gritou, como <strong>do</strong>i<strong>do</strong>, soluçan<strong>do</strong>:<br />
— E eu aceitei, diabo! Eu aceitei!<br />
Nisto, o cavalo acuou. Um vulto negro agitou-se por <strong>de</strong>trás <strong>do</strong> tronco <strong>de</strong> um ingazeiro, e uma bala,<br />
seguida pela <strong>de</strong>tonação <strong>de</strong> um tiro, varou o peito <strong>de</strong> José da Silva.<br />
Os negros <strong>de</strong> São Brás viram aparecer lá o animal as soltas, e to<strong>do</strong> salpica<strong>do</strong> <strong>de</strong> sangue, tinham ouvi<strong>do</strong><br />
um tiro para as bandas da estrada, correram to<strong>do</strong>s nessa direção à procura da vítima.<br />
Foi Domingas que a <strong>de</strong>scobriu, e, num <strong>de</strong>lito, precipitou-se contra o cadáver, a beijar-lhe as mãos e as<br />
faces.<br />
— Meu senhor! meu queri<strong>do</strong>' meus amores! exclamava ela, a soluçar convulsivamente.<br />
Mas, tomada <strong>de</strong> uma idéia súbita, ergueu-se, e gritou, apontan<strong>do</strong> vagamente para o la<strong>do</strong> da vila.<br />
— Foi ele! Não foi outro! Foi aquele malva<strong>do</strong>! Foi aquele padre <strong>do</strong> diabo!<br />
E pôs-se a rir e a dançar, baten<strong>do</strong> palmas e cantan<strong>do</strong>. Era a loucura que voltava.<br />
O crime foi atribuí<strong>do</strong> aos mocambeiros e o corpo <strong>de</strong> José da Silva enterra<strong>do</strong> junto à sepultura da mulher,<br />
ao la<strong>do</strong> da capela, que principiava a <strong>de</strong>smoronar com a mingua <strong>do</strong>s antigos cuida<strong>do</strong>s.<br />
A fazenda aos poucos se converteu em tapera e lendas e superstições <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o gênero se inventaram para<br />
explicar-lhe o aban<strong>do</strong>no. O vigário <strong>do</strong> lugar, pessoa insuspeita e criteriosa, nem só confirmava o que diziam,<br />
como aconselhava a que não fossem lá. ''Aquilo eram terras amaldiçoadas!”<br />
Anos <strong>de</strong>pois, contavam que nas ruínas <strong>de</strong> São Brás vivia uma preta feiticeira, que, por alta noite, saia<br />
pelos campos a imitar o canto da mãe-da-lua.