O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>de</strong>ixou cair a seus pés a camisa servida e conchegou a outra à pele, afagan<strong>do</strong> os seus peitos virgens num<br />
estremecimento <strong>de</strong> rola. Depois suspirou baixinho e <strong>de</strong>u uma carreira para a re<strong>de</strong>, na pontinha <strong>do</strong>s pés, como<br />
se neo quisesse tocar no chão.<br />
A cafuza ajuntou zelosamente a roupa dispersa pelo quarto e guar<strong>do</strong>u as jóias.<br />
— laiá quer mais alguma coisa?<br />
— Água, disse a moça, aninhan<strong>do</strong>-se já nos lençóis <strong>de</strong>fuma<strong>do</strong>s <strong>de</strong> alfazema. Só se lhe via a graciosa<br />
cabeça, sain<strong>do</strong> <strong>de</strong>spenteada <strong>de</strong>ntre nuvens <strong>de</strong> pano branco.<br />
A cafuza trouxe-lhe uma bilha <strong>de</strong> água, e a senhora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> servida, beijou-lhe a mão.<br />
— Boas noites mãe-pretinha. Abaixe a luz e feche a porta.<br />
— Deus te faça uma santa! respon<strong>de</strong>u Mônica, traçan<strong>do</strong> no ar uma cruz com a mão aberta.<br />
E retirou-se humil<strong>de</strong>mente, toda bons mo<strong>do</strong>s e gestos carinhosos.<br />
Mônica orçava pelos cinqüenta anos; era gorda, sadia e muito asseada; tetas gran<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>scaidas <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong> cabeção Tinha ao pescoço um barbante, com um crucifixo <strong>de</strong> metal, uma pratinha <strong>de</strong> 200 réis, uma fava <strong>de</strong><br />
cumaru, um <strong>de</strong>nte <strong>de</strong> cão e um pedaço <strong>de</strong> lacre encastoa<strong>do</strong> em ouro. Des<strong>de</strong> que amamentara Ana Rosa,<br />
<strong>de</strong>dicara-lhe um amor maternalmente extremoso, uma <strong>de</strong>dicação <strong>de</strong>sinteressada e passiva. Iaiá fora sempre o<br />
seu í<strong>do</strong>lo, o seu único 'querer bem”, porque os próprios filhos esses lhos arrancaram e ven<strong>de</strong>ram para o Sul.<br />
Dantes, nunca vinha da fonte, on<strong>de</strong> passava os dias a lavar, sem lhe trazer frutas e borboletas, o que, para a<br />
pequenina, constituía o melhor prazer <strong>de</strong>sta vida. Chamava-lhe “sua filha, seu cativeiro” e todas as noites, e<br />
todas as manhãs, quan<strong>do</strong> chegava ou quan<strong>do</strong> saia para o trabalho, lançava lhe a bênção, sempre com estas<br />
mesmas palavras: “Deus te faça uma santa! - Deus te aju<strong>de</strong>! Deus te abençoe!” Se Ana Rosa fazia em casa<br />
qualquer diabrura, que <strong>de</strong>sagradasse a mãe-preta, esta a repreendia imediatamente, com autorida<strong>de</strong>; <strong>de</strong>s<strong>de</strong>,<br />
porém, que a acusação ou a reprimenda partissem <strong>de</strong> outro, fosse embora <strong>do</strong> pai ou da avó, punia logo pela<br />
menina e voltava-se contra os mais.<br />
Havia seis anos que era forra. Manuel <strong>de</strong>ra-lhe a carta a pedi<strong>do</strong> da filha, o que muita gente <strong>de</strong>saprovou,<br />
“terás o pago!...” diziam-lhe. Mas a boa preta <strong>de</strong>ixou-se ficar em casa <strong>do</strong>s seus senhores e continuou a<br />
<strong>de</strong>svelar-se pela laia melhor que até então, mais cativa <strong>do</strong> que nunca.<br />
Ana Rosa, mal ficou sozinha, no aconchego confi<strong>de</strong>ncial da sua re<strong>de</strong>, intima tranqüilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> seu quarto<br />
frouxamente ilumina<strong>do</strong> à luz mortiça <strong>do</strong> can<strong>de</strong>eiro <strong>de</strong> azeite, principiou a passar em revista to<strong>do</strong>s os<br />
acontecimentos <strong>de</strong>sse dia. Raimun<strong>do</strong> avultava <strong>de</strong>ntre a multidão <strong>do</strong>s fatos como uma letra maiúscula no meio<br />
<strong>de</strong><br />
um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> Lucena; aquele rosto quente, <strong>de</strong> olhos sombrios, olhos feitos <strong>do</strong> azul <strong>do</strong> mar em dias <strong>de</strong><br />
tempesta<strong>de</strong>, aqueles lábios vermelhos e fortes, aqueles <strong>de</strong>ntes mais brancos que as presas <strong>de</strong> Uma fera,<br />
impressionavam-na profundamente. “Que espécie <strong>de</strong> homem estaria ali!...”<br />
Procurava com insistência recordar-se <strong>de</strong>le em algum <strong>do</strong>s episódios da sua infância—nada! diziam-lhe.<br />
entretanto, que brincara com ela em pequenino, e que foram amigos, companheiros <strong>de</strong> berço cria<strong>do</strong>s juntos,<br />
que nem irmãos. E todas estas coisas lhe produziam no espírito um efeito muito estranho e singular. As meias<br />
sombras, as reservas e as reticências, com que a me<strong>do</strong> lhe falavam <strong>de</strong>le, ainda mais interessante o tomavam<br />
aos olhos <strong>de</strong>la. “Mas, afinal, quem seria ao certo aquele belo moço?... Nunca '“o explicaram; paravam em<br />
certos pontos, saltavam sobre outros como por cima <strong>de</strong> brasas; e tu<strong>do</strong> isto, to<strong>do</strong>s estes claros que <strong>de</strong>ixavam<br />
abertos a respeito <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> <strong>de</strong> Raimun<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s esses véus em que o envolviam como a Uma estátua que se<br />
não po<strong>de</strong> ver emprestavam-lhe atrações magnéticas, Um encanto irresistível e perigoso <strong>de</strong> mistério, uma<br />
fascinação romântica <strong>de</strong> abismo.<br />
Entontecia <strong>de</strong> pensar nele. O hibridismo daquela figura, em que a distinção e a fidalguia <strong>do</strong> porte se<br />
harmonizavam caprichosamente com a ru<strong>de</strong> e orgulhosa franqueza <strong>de</strong> um selvagem produzia-lhe na razão o<br />
efeito <strong>de</strong> Um vinho forte, mas <strong>de</strong> Uma <strong>do</strong>çura irresistível e trai<strong>do</strong>ra ficava estonteada; perturbava-se toda com<br />
a lembrança <strong>do</strong> contraste daquela fisionomia, com a expressão contraditória daqueles olhos, suplicantes e<br />
<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res a Um tempo; sentia-se vencida, humilhada <strong>de</strong>fronte daquele mito; reconhecia-lhe certo império,<br />
certa prepon<strong>de</strong>rância que jamais <strong>de</strong>scobrira em ninguém; quanto mais o comparava aos outros, mais o achava