12.04.2013 Views

O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante

O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante

O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

E quantas recordações não lhe <strong>de</strong>spertavam aquelas carnaubeiras solitárias, aqueles pin<strong>do</strong>vais ermos e<br />

silenciosos e aqueles trêmulos horizontes <strong>de</strong> verdura! Quantas vezes, perseguin<strong>do</strong> uma paca ou um vea<strong>do</strong>, não<br />

atravessou ele, a galope, aqueles barrancos perigosos que se perdiam da estrada!<br />

Pungia-lhe agora <strong>de</strong>ixar tu<strong>do</strong> isso; aban<strong>do</strong>nar o encanto selvagem das florestas brasileiras O europeu<br />

sentia-se americano, familiar às vozes misteriosas daqueles caités sempre ver<strong>de</strong>jantes, habitua<strong>do</strong> à companhia<br />

austera daquelas árvores seculares, às sestas preguiçosas da fazenda, ao viver amplo da roga, <strong>de</strong>scalço, o peito<br />

nu, a re<strong>de</strong> embalada pela viração cheirosa das matas, o sono vigia<strong>do</strong> por escravos.<br />

E tinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar tu<strong>do</strong> isso!<br />

“Para que negar? Havia <strong>de</strong> custar-lhe muito!” consi<strong>de</strong>rou ele, fazen<strong>do</strong> estacar o seu animal. Havia anda<strong>do</strong><br />

quatro léguas e precisava comer alguma coisa.<br />

No interior <strong>do</strong> Maranhão o viajante, <strong>de</strong> ordinário, “pousa” e come nas fazendas que vai encontran<strong>do</strong> pelo<br />

caminho, tanto que todas elas, contan<strong>do</strong> já com isso, têm sempre cômo<strong>do</strong>s especiais, <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s<br />

exclusivamente aos hóspe<strong>de</strong>s adventícios; mas com José da Silva, que, aliás muitas e muitas vezes pernoitara<br />

em diversas e conhecia <strong>de</strong> perto a hospitalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s seus vizinhos, a coisa mudava agora <strong>de</strong> figura: não queria<br />

<strong>de</strong> forma alguma suportar a companhia <strong>de</strong> ninguém; receava que o interrogassem sobre a morte da mulher.<br />

Preferiu pois jantar mesmo ao relento, e seguir logo sua viagem.<br />

Não obstante, ia já escurecen<strong>do</strong>, as cigarras estridulavam em coro; ouvia-se o lamentoso piar das rolas<br />

que se aninhavam para <strong>do</strong>rmir; toda a natureza se embuçava em sombras, bocejan<strong>do</strong>.<br />

Anoitecia lentamente.<br />

Então, José da Silva sentiu mais negra por <strong>de</strong>ntro a sua viuvez; sentiu um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> chegar a casa,<br />

mas queria encontrar uma boa mesa, on<strong>de</strong> comesse e bebesse à vonta<strong>de</strong>, como dantes; queria a sua cama<br />

larga, <strong>de</strong> casa<strong>do</strong>s, o seu cachimbo, o seu trajo <strong>de</strong> casa.<br />

Ah! Nada disso encontraria!... O quarto, em que ele, durante tantos anos, <strong>do</strong>rmia feliz, <strong>de</strong>via ser àquela<br />

hora um ermo pavoroso; a cozinha <strong>de</strong>via estar gelada, os armários vazios, a horta murcha, os potes secos, o<br />

leito sem mulher!<br />

Que <strong>de</strong>sconsolo!<br />

Apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> sentia fundas sauda<strong>de</strong>s da esposa.<br />

— Como o homem precisa <strong>de</strong> família! .. lamentava ele no seu isolamento. Ah padre! Aquele maldito<br />

padre! E daí, quem sabe?... se eu per<strong>do</strong>asse?... ela talvez se arrepen<strong>de</strong>sse e viesse ainda a dar uma boa<br />

companheira, virtuosa e dócil!... Mas... e ele?... Oh nunca! Ele existiria! A duvida continuava na mesma! Ele,<br />

só ele é que eu <strong>de</strong>via ter mata<strong>do</strong>!<br />

E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> refletir um instante:<br />

— Não! antes assim! Assim foi melhor!<br />

Esta conclusão, arrancada só pelo seu espírita religioso, foi seguida <strong>de</strong> um movimento rápi<strong>do</strong> <strong>de</strong> esporas.<br />

O cavalo disparou. Fez-se então um correr vertiginoso, em que José, to<strong>do</strong> verga<strong>do</strong> sobre a sela, parecia <strong>do</strong>rmir<br />

na ca<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> galope. Mas, <strong>de</strong> súbito, contraiu as ré<strong>de</strong>as e o animal estacou.<br />

O cavaleiro torceu a cabeça, conchean<strong>do</strong> a mão atrás da orelha. Vinha <strong>de</strong> longe uma toada estranha <strong>de</strong><br />

vozes sussurrantes, e um confuso tropel <strong>de</strong> cavalgaduras.<br />

A noite exalava da floresta. Sentiam-se ainda as <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras clarida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> dia e já também um crescente<br />

acumular <strong>de</strong> sombras. A lua erguia se, brilhan<strong>do</strong> com a altivez <strong>de</strong> um novo monarca que inspeciona os seus<br />

<strong>do</strong>mínios, e o céu ainda estava to<strong>do</strong> ensangüenta<strong>do</strong> da púrpura <strong>do</strong> último sol, que fugia no horizonte, trêmulo.<br />

como um rei expulso e envergonha<strong>do</strong>.<br />

José da Silva, entregue to<strong>do</strong> aos seus tormentos. assistia, sem apreciar, ao espetáculo maravilhoso <strong>de</strong> um<br />

crepúsculo <strong>de</strong> verão no extremo norte <strong>do</strong> Brasil.<br />

O sol <strong>de</strong>scambava no ocaso, retocan<strong>do</strong> <strong>de</strong> tons quentes e vigorosos, com a minuciosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um pintor<br />

flamengo, tu<strong>do</strong> aquilo que o cercava. Desse la<strong>do</strong>, montes e vales tinham orlas <strong>de</strong> ouro; era tu<strong>do</strong> vermelho e

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!