O Mulato, de Aluísio de Azevedo Fonte - Canal do Estudante
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<strong>de</strong> brim par<strong>do</strong>, mosquea<strong>do</strong>s nas espáduas e nos sovacos por gran<strong>de</strong>s manchas <strong>de</strong> suor. Os corretores <strong>de</strong><br />
escravos examinavam à plena luz <strong>do</strong> sol, os negros e moleques que ali estavam para ser vendi<strong>do</strong>s; revistavamlhes<br />
os <strong>de</strong>ntes, os pés e as virilhas; faziam-lhes perguntas sobre perguntas; batiam-lhes com a biqueira <strong>do</strong><br />
chapéu nos ombros e nas coxas, experimentan<strong>do</strong>-lhes o vigor da musculatura como se estivessem a comprar<br />
cavalos. Na Casa da Praça, <strong>de</strong>baixo das amen<strong>do</strong>eiras, nas portadas <strong>do</strong>s armazéns, entre pilhas <strong>de</strong> caixões <strong>de</strong><br />
cebolas e batatas portuguesas discutiam-se o câmbio, o prego <strong>do</strong> algodão, a taxa <strong>do</strong> açúcar, a tarifa <strong>do</strong>s<br />
gêneros nacionais; volumosos comenda<strong>do</strong>res resolviam negócios, faziam transações perdiam, ganhavam<br />
tratavam <strong>de</strong> embarrilar uns aos outros, com muita manha <strong>de</strong> gente <strong>de</strong> negócios falan<strong>do</strong> numa gíria só <strong>de</strong>les<br />
trocan<strong>do</strong> chalaças pesadas, mas em plena confiança <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> Os leiloeiros cantavam em voz alta o preço<br />
das merca<strong>do</strong>rias, com um abrimento afeta<strong>do</strong> <strong>de</strong> vogais; diziam: “Mal-rais” em vez <strong>de</strong> mil-réis. À porta <strong>do</strong>s<br />
leilões aglomeravam-se os que queriam comprar e os simples curiosos. Corria um quente e grosseiro zunzum<br />
<strong>de</strong> feira.<br />
O leiloeiro tinha piscos <strong>de</strong> olhos significativos; <strong>de</strong> martelo em punho, entusiasma<strong>do</strong>, o ar trágico,<br />
mostrava com o braço ergui<strong>do</strong> um cálice <strong>de</strong> cachaça, ou, comicamente acocora<strong>do</strong> esbrocava com o fura<strong>do</strong>r os<br />
paneiros <strong>de</strong> farinha e <strong>de</strong> milho. E, quan<strong>do</strong> chegava a ocasião <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r a fazenda, repetia o preço muitas vezes,<br />
gritan<strong>do</strong>, e afinal batia o martelo com gran<strong>de</strong> barulho, arrastan<strong>do</strong> a voz em um tom canta<strong>do</strong> e estri<strong>de</strong>nte.<br />
Viam-se <strong>de</strong>slizar pela praça os imponentes e monstruosos ab<strong>do</strong>mens <strong>do</strong>s capitalistas; viam-se cabeças<br />
escarlates e <strong>de</strong>scabeladas, gotejan<strong>do</strong> suor por <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong> chapéu <strong>de</strong> pelo; risinhos <strong>de</strong> proteção, bocas sem<br />
bigo<strong>de</strong> dilatadas pelo calor, perninhas espertas e suadas na calça <strong>de</strong> brim <strong>de</strong> Hamburgo. E toda esta ativida<strong>de</strong>,<br />
posto que um tanto fingida, era geral e comunicativa; até os ricos ociosos, que iam para ali encher o dia, e os<br />
caixeiros, que “faziam cera” até os próprios vadios <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>s, aparentavam diligência e prontidão.<br />
A varanda <strong>do</strong> sobra<strong>do</strong> <strong>de</strong> Manuel Pescada, uma varanda larga e sem forro no teto, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> ver as ripas e<br />
os caibros que sustentavam as telhas. tinha um aspecto mais ou menos pitoresco com a sua bela vista sobre o<br />
rio Bacanga e as suas rótulas pintadas <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>-paris. Toda ela abria para o quintal, estreito e longo, on<strong>de</strong>, à<br />
mingua <strong>de</strong> sol, se minavam duas tristes pitangueiras e passeava solenemente um pavão da terra.<br />
As pare<strong>de</strong>s, barradas <strong>de</strong> azulejos portugueses e, para o alto, cobertas <strong>de</strong> papel pinta<strong>do</strong>, mostravam, nos<br />
seus <strong>de</strong>senhos repeti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> assuntos <strong>de</strong> caça, alguns lugares sem tinta, cujas manchas brancacentas traziam à<br />
idéia joelheiras <strong>de</strong> calças surradas. Ao la<strong>do</strong>, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> a mesa <strong>de</strong> jantar, aprumava-se um velho armário <strong>de</strong><br />
jacarandá poli<strong>do</strong>, muito bem trata<strong>do</strong>, com as vidraças bem limpas, expon<strong>do</strong> as pratas e as porcelanas <strong>de</strong> gosto<br />
mo<strong>de</strong>rno; a um canto <strong>do</strong>rmia, esquecida na sua caixa <strong>de</strong> pinho enverniza<strong>do</strong>, uma máquina <strong>de</strong> costura <strong>de</strong><br />
Wilson, das primeiras que chegaram ao Maranhão; nos intervalos das portas simetrizavam-se quatro estu<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> Julien, representan<strong>do</strong> em litografia as estações <strong>do</strong> ano; <strong>de</strong>fronte <strong>do</strong> guarda-louça um relógio <strong>de</strong> corrente<br />
embalava melancolicamente a sua pêndula <strong>do</strong> tamanho <strong>de</strong> um prato e apontava para as duas horas. Duas horas<br />
da tar<strong>de</strong>.<br />
Não obstante, ainda permanecia sobre a mesa a louça que servira ao almoço. Uma garrafa branca, com<br />
uns restos <strong>de</strong> vinho <strong>de</strong> Lisboa cintilava à clarida<strong>de</strong> reverberante que vinha <strong>do</strong> quintal. De uma gaiola,<br />
<strong>de</strong>pendurada entre as janelas <strong>de</strong>sse la<strong>do</strong>, chilreava um sabiá.<br />
Fazia preguiça estar ali. A viração <strong>do</strong> Bacanga refrescava o ar da varanda e dava ao ambiente um tom<br />
momo e aprazível. Havia a quietação <strong>do</strong>s dias inúteis, uma vonta<strong>de</strong> lassa <strong>de</strong> fechar os olhos e esticar as<br />
pernas. Lá <strong>de</strong>fronte, nas margens apostas <strong>do</strong> <strong>do</strong>, a silenciosa vegetação <strong>do</strong> Anjo da Guarda estava a provocar<br />
boas sestas sobre o capim, <strong>de</strong>baixo das mangueiras; as árvores pareciam abrir <strong>de</strong> longe os braços, chaman<strong>do</strong> a<br />
gente para a calma tepi<strong>de</strong>z das suas sombras.<br />
— Então, Ana Rosa, que me respon<strong>de</strong>s?... disse Manuel estican<strong>do</strong> se mais na ca<strong>de</strong>ira em que se achava<br />
assenta<strong>do</strong>, à cabeceira da mesa, em frente da filha Bem sabes que te não contrario... <strong>de</strong>sejo este casamento,<br />
<strong>de</strong>sejo... mas. em primeiro lugar, convém saber se ele e <strong>do</strong> teu gosto... Vamos.., fala!<br />
Ana Rosa não respon<strong>de</strong>u e continuou muito embebida, como estava, rolar sob a ponta cor-<strong>de</strong>-rosa <strong>do</strong>s seus<br />
<strong>de</strong><strong>do</strong>s as migalhas <strong>de</strong> pão que ia encontran<strong>do</strong> sobre a toalha.<br />
Manuel Pedro da Silva, mais conheci<strong>do</strong> por Manuel Pescada, era um português <strong>de</strong> uns cinqüenta anos,<br />
forte, vermelho e trabalha<strong>do</strong>r. Diziam-no afila<strong>do</strong> para o comércio e amigo <strong>do</strong> Brasil. Gostava da sua leitura<br />
nas horas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso, assinava respeitosamente os jornais sérios da província e recebia alguns <strong>de</strong> Lisboa. Em