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Culpa e graça – Paul Tournier – Cap

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<strong>Culpa</strong> e <strong>graça</strong><br />

<strong>Paul</strong> <strong>Tournier</strong><br />

Os textos que se seguem são os capítulos excluídos da edição brasileira do livro <strong>Culpa</strong><br />

e Graça, do médico suíço <strong>Paul</strong> <strong>Tournier</strong>, publicado no Brasil em 1985 pela ABU<br />

(Aliança Bíblica Universitária).<br />

Foram traduzidos por Antônio Augusto Martins Ribeiro.<br />

1


<strong>Cap</strong>ítulo 22<br />

Amor incondicional<br />

Foi isto que Jesus nos mostrou na Parábola do Filho Pródigo. Quando o<br />

filho volta para casa, o pai já está à sua espera. Já o havia perdoado. Ele vê<br />

o filho ao longe, corre ao seu encontro abraçando-o fervorosamente, antes<br />

mesmo que o filho tenha tempo de dizer qualquer coisa. O gesto é<br />

espontâneo e incondicional.<br />

Durante o exílio, atormentado pelo sofrimento e pelo remorso, o filho<br />

imaginava seu pai zangado, aborrecido. Perguntava-se como poderia tocar a<br />

sua piedade e, então, elaborou uma confissão submissa, servil. Uma<br />

confissão que levaria seu pai a perdoá-lo. No entanto, nunca sonhou com<br />

um perdão total que fosse capaz de restabelecer a sua condição de filho,<br />

com todas as honras. Pensava simplesmente em ser aceito como um servo.<br />

Aconteceu justamente o contrário. Ele fez a sua confissão, mas seu pai já o<br />

havia perdoado, acolhido em seus braços, de maneira que aquela confissão<br />

tornou-se uma resposta ao abraço dopai, ao invés de ser sua pré-condição<br />

para a acolhida.<br />

A proclamação de Jesus Cristo é sobre o amor de Deus, um amor que<br />

abrange tudo e é incondicional. E aqui nós nos encontramos com um dos<br />

mais importantes temas da psicologia moderna. Freud mostrou que o<br />

sentimento de culpa é despertado na mente da criança ainda pequena pelo<br />

medo de perder o amor dos pais; mostrou também que todos os traumas ao<br />

longo de sua vida mental estão ligados com a dúvida de ser amado.<br />

A criança sente que esta sendo rejeitada e que não é mais amada. A<br />

ansiedade da culpa é justamente esta ansiedade de não ser mais amada. A<br />

criança tem a sensação que o amor dos pais é condicional, de que irão amála<br />

apenas se ela for boazinha.<br />

A verdade é que, no zelo de educá-la e protegê-la, os pais dão à criança<br />

essa impressão. Às vezes chegam mesmo a dizer coisas como: “Eu não vou<br />

mais gostar de você. Você tem sido má”. Não é verdade. Eles amam o filho,<br />

mesmo nos maus momentos, e o próprio cuidado que tomam ao protegê-lo<br />

dos perigos do cotidiano é, em si mesmo, uma garantia de seu amor. E,<br />

2


mesmo quando os pais evitam comentários deste tipo, as crianças, ainda<br />

assim, atribuem a eles esta ideia e sentem que só serão amadas sob a<br />

condição de serem boazinhas.<br />

O homem, em todas as épocas, projetou em Deus precisamente esta ideia.<br />

Imagina que Deus vai amá-lo somente se for bom e que irá recusar o seu<br />

amor se for culpado. O medo de perder o amor de Deus <strong>–</strong> esta é a essência<br />

do problema da humanidade e da psicologia. Mesmo aquele que não<br />

acredita em Deus teme perder o Seu amor. Foi exatamente dessa falsa ideia<br />

de Deus, tão difundida ainda hoje pelo Seu povo, que Jesus veio nos<br />

libertar. Jesus nos mostra que Deus nos ama incondicionalmente. Nos ama,<br />

não pela nossa espiritualidade ou pelas nossas virtudes, mas sim pela nossa<br />

miséria e nossa culpa.<br />

Apesar disso, quantos permanecem sobrecarregados e oprimidos na própria<br />

igreja cristã: “Que solidão”, escreve <strong>Paul</strong> Ricoeur (33), “ou melhor, que<br />

castelo de Kafka torna-se a vida do cristão que perde a noção do perdão e<br />

mantém a noção do pecado”. Nenhum psicólogo irá contradizer estas<br />

palavras do filósofo. Ah! Precisamos admitir, com toda franqueza, que é<br />

esta situação em que a maioria dos cristãos parece estar hoje em dia.<br />

E na sua mente, leitor, lendo estas palavras não surgem reservas? Você<br />

aceita sem qualquer reserva esta afirmação do amor incondicional de Deus<br />

e de Seu perdão incondicional? Será que o arrependimento não é uma<br />

condição?<br />

Não me parece que nas palavras de Jesus Cristo o arrependimento tenha a<br />

força de condição, mas sim de um caminho. Jesus me parece ser um<br />

observador penetrante e realístico do homem, descrevendo as coisas<br />

conforme vão acontecendo. Certamente, na parábola do Filho Pródigo, o<br />

que aconteceu foi que o filho se arrependeu e, como consequência do seu<br />

arrependimento, voltou para casa; descobriu então que seu pai já o havia<br />

perdoado antecipadamente e sem qualquer condição. Aí está a diferença! O<br />

pai não fez do arrependimento do filho uma condição para o seu amor. Ele<br />

não disse que o havia perdoado porque a condição do perdão havia sido<br />

satisfeita, que tinha merecido o perdão por causa do arrependimento. O<br />

perdão brota espontaneamente do coração do pai porque nunca deixou de<br />

estar lá.<br />

3


Considere a parábola do fariseu e do publicano no templo (Lc 18:9-14). O<br />

fariseu enumera todas as suas virtudes, mas não o faz com arrogância,<br />

como em geral se pensa; ele não fala de suas boas obras como se fosse<br />

mérito pessoal, mas sim como <strong>graça</strong>s recebidas de Deus. O publicano bate<br />

no peito, dizendo: “Ó, Deus, tem misericórdia de mim pecador”. Jesus<br />

conclui: “Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não<br />

aquele...” Estas palavras também podem ser entendidas no sentido que<br />

acabei de dar. “Digo-vos...” é o comentário de um observador que quer<br />

dizer: “eis como se passou”.<br />

O mesmo pode ser dito quanto ao perdão aos nossos semelhantes. Na<br />

oração do Pai Nosso Jesus nos convida a pedir o perdão de Deus, “assim<br />

como perdoamos aos nossos devedores” (Mateus 6:12). E Ele ainda<br />

continua: “Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também<br />

vosso Pai celestial vos perdoará a vós; se, porém, não perdoardes aos<br />

homens as suas ofensas, também vosso Pai não vos perdoará as vossas<br />

ofensas” (Mateus 6:14-15). Estas palavras poderiam ser entendidas como<br />

uma condição, um direito ou a necessidade de merecimento através do<br />

perdão que nós mesmos damos aos outros.<br />

Que tragédia isso seria para nós! Que fardo pesaria sobre nós! Somente os<br />

psicólogos sabem como o perdão é raro e como a agressividade pode estar<br />

reprimida por trás do falso perdão. Aqui temos, novamente, todo o drama<br />

do moralismo. Pois, se o perdão aos outros é a condição para termos o amor<br />

de Deus, então precisamos aparentar perdoar, precisamos chegar a<br />

extremos para perdoar, precisamos camuflar ou reprimir nossa<br />

agressividade com palavras bondosas. A agressividade reprimida corrói o<br />

interior da alma, torna-se a fonte de falsas culpas e ansiedade mórbida;<br />

impede o caminho para a salvação.<br />

Este pensamento me faz arrepiar. Que drama este! Por que falso amor, por<br />

que falsos perdões entre os homens <strong>–</strong> particularmente nas igrejas e nas<br />

famílias religiosas <strong>–</strong> e por que ansiedades são responsáveis estas<br />

repressões! Ansiedades das quais somos testemunhas secretas! E tudo isto<br />

acontece porque aquele trecho do ensinamento de Cristo foi visto por um<br />

lado infantil. A Deus foi creditado um amor condicional que coloca de<br />

4


volta em nossos próprios esforços para atender a esta condição e, quando<br />

não conseguimos, nós fingimos!<br />

Mas estas palavras de Cristo podem ser entendidas como uma descrição<br />

realística da maneira como as coisas acontecem, do caminho que é seguido.<br />

Foi o nosso medo infantil de não sermos amados que nos tornou agressivos<br />

e que nos impediu de verdadeiramente perdoar aos outros, a despeito de<br />

toda nossa determinação moral em fazê-lo. Livre desse medo, quando<br />

percebemos que o amor de Deus é incondicional, encontramos o poder para<br />

perdoar os outros; Deus não nos ama porque nós o amamos, obedecemos e,<br />

desta maneira, atendemos a alguma condição, mas, como diz São João,<br />

“porque Ele nos amou primeiro” (I João 4 :19).<br />

Quando o arrependimento, a metanoia e o perdão aos outros estão em<br />

questão, podemos entender que estas são as condições ditadas por Deus, ou,<br />

ao contrário, que estão entendidas como o estender de Sua mão para nos<br />

conduzir à <strong>graça</strong>.<br />

Entre estas duas interpretações existe a mesma diferença que os juristas<br />

atribuem para as expressões “de jure” e “de facto”. “De jure” tem o<br />

significado de legitimidade formal. “De facto” denota o simples<br />

reconhecimento daquilo que acontece na prática ou da maneira pela qual<br />

acontece. Há sempre um elemento de chantagem contido na “condição”. O<br />

tipo de “chantagem” que os pais às vezes usam com seus filhos ou que os<br />

filhos atribuem a eles. É igualmente forte a tentação para aqueles que<br />

servem a Deus e, mesmo com boa fé, nós todos podemos cair no uso da<br />

chantagem, mesmo sem termos consciência disto, ao tornarmos este tesouro<br />

singular que possuímos <strong>–</strong> a certeza da <strong>graça</strong> de Deus <strong>–</strong> em um meio de<br />

exercer pressão sobre os homens para afastá-los da imoralidade. A<br />

chantagem envolvendo a salvação pode facilmente insinuar-se na mais<br />

sincera exortação do bom comportamento, no preenchimento de deveres<br />

religiosos, ou na conversão.<br />

Outros fazem uma distinção entre o amor de Deus e Seu perdão, como se<br />

Ele nos amasse sempre e sem nenhuma condição, mas impusesse certas<br />

condições para o perdão. A distinção é sutil, intelectual, não encontra<br />

guarida no coração do homem, como o conhecemos, nem subsiste face às<br />

escrituras.<br />

5


Para o ser humano, preso nesse drama da culpa, um Deus que não perdoa<br />

não pode ser entendido como um Deus que ama incondicionalmente; e um<br />

Deus que dita condições para o Seu perdão faz o mesmo com relação ao<br />

Seu amor. Sob o ponto de vista das Escrituras, Ele seria um Deus que teria<br />

renegado a si próprio: “Se formos infiéis, Ele permanece fiel <strong>–</strong> não pode<br />

negar-se a si mesmo”, escreve São <strong>Paul</strong>o (II Timóteo 2:13). Não é por<br />

nossa causa, mas por causa dele mesmo é que Deus nos perdoa. Eis o que o<br />

profeta Isaías descreve, com todo vigor, quando ouviu Deus dizer a ele:<br />

“Eu, eu mesmo, sou o que apaga as tuas transgressões por amor de mim, e<br />

dos teus pecados não me lembro” (Isaías 43:25).<br />

Portanto, insisto na palavra “incondicionalmente”, porque ela me parece<br />

muito importante na prática. A maioria das pessoas admite que, se há um<br />

Deus, Ele deve nos amar. Mas existe uma diferença decisiva entre um<br />

grande amor, ou um amor muito grande, ou um amor muito, muito grande e<br />

um amor que é incondicional. É à distância que existe entre o que é finito,<br />

seja tão grande quanto for, e o que é infinito.<br />

Veja o que acontece com os nossos pacientes. Frequentemente são levados<br />

por um forte impulso interno a aumentar sua agressividade contra nós ou<br />

insistem em suas dúvidas e negativismos, para nos testar. Eles encontram<br />

em nós um tipo de atitude compreensiva, cheia de amor que eles tanto<br />

precisam. Mas, até onde vai esse amor? É natural que nós mesmos,<br />

enquanto eles mostram-se confiantes em nós, permaneçamos generosos e<br />

agradáveis. Mas isso mudaria se eles se mostrassem insolentes,<br />

incomunicativos, céticos? Se fossem rudes, passassem dos limites, se<br />

prolongassem a consulta após a hora?<br />

É como um desafio que nos lançam e que levam cada vez mais adiante,<br />

como que para ver se finalmente não atingem mesmo um limite, se não<br />

perdemos o humor, zangamos com eles, se os julgamos e perdemos a<br />

paciência. É preciso ficar claro que as barreiras são enormes. Eles têm que<br />

saber se a ponte sobre a qual estão aventurando as suas vidas é firme. Da<br />

mesma maneira, para testar uma ponte nova, passa-se uma fila de grandes<br />

vagões. Quando um paciente pergunta: “Você me perdoaria se eu<br />

cometesse o suicídio?”, isto quer dizer: “Você tem um amor sem restrições<br />

por mim?”.<br />

6


Certamente este não é o caso. Nenhum homem pode amar<br />

incondicionalmente como Deus ama. Aquele que diz amar sem limites não<br />

sabe o que é o amor. Aquele que verdadeiramente conhece o amor admite<br />

que é incapaz de fazê-lo incondicionalmente. Mas este comportamento dos<br />

pacientes mostra a necessidade vital que todos temos de encontrar algo<br />

absoluto, com o qual possamos contar incondicionalmente, algo perfeito,<br />

sem falhas, que dê um desmentido a todas as relatividades que a vida nos<br />

ensina através de inúmeros sofrimentos, onde cada crença tem seu limite,<br />

cada esperança o seu desapontamento, cada amizade o seu eclipse. Esse<br />

absoluto é Deus; e oque os nossos pacientes procuram quando nos testam<br />

desta maneira é, pelo menos, algum reflexo de Deus, de um amor que vá<br />

além das meras convenções; e é uma prova de que todos eles buscam a<br />

Deus, mesmo sem ter consciência disto.<br />

Nós também, sem termos sofrido tanto quanto eles, aprendemos que não há<br />

luz sem sombra e que não há tesouro pelo qual, de uma maneira ou outra,<br />

não se tenha que pagar o preço. Então, subitamente, resplandece sobre nós<br />

o grandioso e completo dom do amor e do perdão gratuitos de Deus e o dos<br />

da reconciliação. Ele nos oferece isto através de Jesus Cristo. É isto que nos<br />

move, que nos liberta do fardo da culpa, nos transforma, provoca metanoia.<br />

Esta é a descoberta que tem sempre que ser renovada, a despeito da<br />

pregação das igrejas. É esta a descoberta que periodicamente, através da<br />

historia, dá início a uma explosão contagiosa de fé, conversões em massa e<br />

irrepreensível alegria.<br />

Isto ocorreu na igreja primitiva. O apóstolo Pedro anunciou esta certeza da<br />

salvação no Pentecostes: “Porque a promessa vos diz respeito a vós, a<br />

vossos filhos e a todos que estão longe; a tantos quantos Deus, nosso<br />

Senhor, chamar” (Atos 2.39). E o apóstolo <strong>Paul</strong>o voltou ao assunto com<br />

persistência: “Porque pela <strong>graça</strong> sois salvos, por meio da fé; e isto não vem<br />

de vós, é dom de Deus” (Efésios 2.8). Ele ainda afirma com mais<br />

determinação: a <strong>graça</strong> não é computada como um direito nem merecida<br />

como um pagamento (Romanos 4.4). “Porque todos pecaram e destituídos<br />

estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela Sua <strong>graça</strong>,<br />

pela redenção que há em Cristo Jesus” (Romanos 3.23-24).<br />

7


Mas, é comum, na igreja, que esta prodigiosa nova da salvação gratuita se<br />

torne obscura, devido aos esforços despendidos para exortar o homem a<br />

obedecer, a ser virtuoso e a praticar boas obras. De maneira que, pouco a<br />

pouco, estas parecem ser as condições para a salvação. Então, a ansiedade<br />

da condenação levanta-se novamente no horizonte.<br />

Entretanto, também de maneira periódica, a igreja é renovada por homens<br />

que redescobrem a dádiva gratuita de Deus e a proclamam. Assim foram<br />

Santo Agostinho, São Francisco de Assis e muitos outros.<br />

Assim era Lutero. Nada ilustra melhor esta oscilação periódica de pontos de<br />

vista do que a história do protestantismo. Lutero, um homem impetuoso,<br />

levado ao desespero pelo sentimento de culpa, após retirar-se, em vão, em<br />

penitências e mortificações, redescobriu que a salvação não é alcançada por<br />

merecimento, mas é uma dádiva de Deus, gratuita e oferecida por<br />

antecipação ao pecador e que é suficiente aceitá-la pela fé. Deste grito de<br />

alívio nasceu a Reforma, como uma explosão, em uma época em que a<br />

igreja insistia em obras, méritos e indulgências, todas elas depositando o<br />

preço da salvação na alma do próprio homem.<br />

Graças a Deus, apesar do cisma, a Reforma influenciou profundamente a<br />

própria igreja católica que foi, por sua vez, reformada neste aspecto. Mas, à<br />

medida que o tempo passou, o moralismo, a religião das boas obras,<br />

reentraram gradualmente no coração do protestantismo. Insinuaram-se e,<br />

por um longo período, não foram notadas. Agora, reinam na maioria das<br />

igrejas que se originaram da Reforma.<br />

É significativo o que um dos meus pacientes protestantes tenha dito: “O<br />

protestantismo me parece com um enorme esforço para se ganhar a <strong>graça</strong><br />

pela boa conduta, enquanto que o catolicismo distribui esta mesma <strong>graça</strong> a<br />

todo aquele que a procura com um padre”. O paciente não estava errado. O<br />

moralismo restabeleceu a ideia de mérito, de uma <strong>graça</strong> que é condicional.<br />

E, em certos círculos protestantes, estas condições se proliferaram tanto e<br />

ficaram tão rígidas que se tornaram opressivas. Conheço uma moça que foi<br />

repreendida pelas autoridades de sua igreja porque conversava com uma<br />

mulher trajando um conjunto esportivo vermelho; tal vestimenta foi<br />

considerada como um sinal de frivolidade e era censurável ter algo a ver<br />

com uma pessoa assim.<br />

8


Em um dos círculos intelectuais católicos, um teólogo, Jean Guitton, afirma<br />

que “uma das implicações da doutrina cristã da <strong>graça</strong> é a natureza gratuita<br />

dos dons que são oferecidos a nós”. Fico agradavelmente surpreso ao vê-lo<br />

acrescentar que “esta é uma implicação sobre a qual os protestantes<br />

pensam, talvez com mais frequência do que nós”. Infelizmente, tenho a<br />

impressão que esta homenagem ao protestantismo seja imprecisa. Hoje, na<br />

verdade, esta não é mais uma questão confessional, mas sim psicológica.<br />

No coração de todas as igrejas existem homens de mentalidade normalista<br />

que querem impor aos outros as condições para a salvação e há outros que<br />

vivem alegremente com a maravilhosa certeza da salvação gratuita.<br />

Esta é uma questão psicológica que diz respeito a uma tendência inerente à<br />

mente humana, um mecanismo para encobrir a culpa, tal como descrevi,<br />

que faz a extinção de seus méritos, virtude, abstinências, visando a auto<br />

justificação e as mostra avidamente para os outros como a condição para<br />

alcançar a <strong>graça</strong>.<br />

Tenho uma paciente que me visita semanalmente há alguns anos. Ao<br />

cumprimentá-la na entrada do consultório eu disse, de maneira brincalhona:<br />

“Aqui está você em sua pequena peregrinação a Genebra. Seu prêmio<br />

semanal.” Ela respondeu imediatamente: “Um prêmio que não mereci”.<br />

“Mas não merecemos nada neste mundo”, repliquei. É precisamente isto<br />

que nos deixa perplexos <strong>–</strong> que Deus nos concede bênçãos que não<br />

merecemos. E se as merecêssemos, onde estaria nossa alegria, nossa<br />

felicidade?<br />

Minha paciente continua sua reflexão: “Em última análise”, me diz ela após<br />

um momento, “isto fere nosso amor próprio <strong>–</strong> o fato de recebermos o que<br />

não merecemos. É por isto que temos dificuldade de aceitar. Preferiríamos<br />

ter merecido. Nós disputamos com Deus pelo mérito”. Sim, não podemos<br />

esconder de nós mesmos que esta extraordinária afirmação da salvação<br />

gratuita encontra fortes resistências dentro de cada um de nós. É paradoxal<br />

porque a desejamos com todo nosso coração <strong>–</strong> Deus a oferece a nós <strong>–</strong> e<br />

somos relutantes em aceitá-la! Até mesmo com os crentes, que a<br />

proclamam em seus hinos, liturgias e missas, há íntimos protestos, mais ou<br />

menos inconscientes, mais ou menos declarados. Porque esta afirmação<br />

ofende nossa concepção lógica de justiça.<br />

9


Então é apenas isto. As pessoas que fazem o maior e mais sincero esforço<br />

moral para serem fieis a Deus em suas condutas, são as mesmas que têm a<br />

maior dificuldade em admitir que Deus também concede, generosamente a<br />

sua <strong>graça</strong> para os outros que não se privaram do prazer e da extravagância,<br />

quer mentindo, trapaceando ou prejudicando seu semelhante.<br />

Então é apenas isto! Esta é a reação do irmão mais velho do “filho pródigo”<br />

que fica indiferente às festividades e, portanto, se exclui do grande júbilo<br />

divino (Lucas 15.24-32). Uma trágica inversão das coisas! O filho que<br />

havia sido prudentemente submisso entra em conflito com o pai pela<br />

primeira vez e enfurece-se. Encontramos a mesma reação rancorosa entre<br />

os trabalhadores da vinha, na parábola, que resmungam contra o patrão<br />

quando vêm que ele pagou ao companheiro que trabalhou apenas uma hora<br />

fresca da tarde, a mesma quantia que receberam pelo trabalho no calor do<br />

dia (Mateus 20.1-16). Como Jesus compreende o coração humano!<br />

Os melhores servos de Deus não estão livres de uma tendência de revolta<br />

semelhante. Jonas é o meu profeta preferido! Em uma época em que estava<br />

ressentido, Jonas sentiu que Deus o chamava para ir e pregar o<br />

arrependimento a Nínive, uma cidade consumida pela imoralidade, uma<br />

grande cidade onde havia mais de cento e vinte mil homens que não sabiam<br />

discernir a mão direita da mão esquerda, e também muitos animais (Jonas<br />

4:1-11). Com o pressentimento que Deus, na Sua bondade, poderia perdoar<br />

Nínive, Jonas tenta escapar da ingrata incumbência e foge em um navio.<br />

A Jonas, no entanto, não faltava fé, nem coragem, nem humildade e,<br />

quando a tempestade chega, ele confessa fracamente sua fé e seu erro em<br />

querer esconder-se da face de Deus. Diz a seus companheiros de navio:<br />

“Levantai-me e lançai-me ao mar e o mar se aquietará” (Jonas1. 12). Todos<br />

sabem como o peixe enorme salvou a Jonas, engolindo-o e expelindo-o na<br />

praia no terceiro dia. Um fantástico símbolo que o próprio Jesus Cristo<br />

interpretou, como se fosse um analista junguiano, antevendo aí sua própria<br />

morte e ressurreição (Lucas 11. 29-32).<br />

Jonas, então, decide ser obediente e Deus até transforma sua desobediência<br />

em benefício, pois, o milagre do qual foi objeto impressiona os habitantes<br />

de Nínive e diz: “Ainda quarenta dias e Nínive será destruída!” (Jonas 3.4).<br />

10


Mas Nínive não foi destruída; arrependeu-se e proclamou um jejum, do rei<br />

até o povo e o rebanho! E Deus perdoou.<br />

Mas Jonas não é capaz de perdoar a Deus pela Sua bondade, uma bondade<br />

que desmente a ameaça que ele havia sido encarregado de revelar. Jonas<br />

tem uma grande depressão nervosa. “Peço-te, pois, Senhor”, diz ele, “tirame<br />

a minha vida, porque melhor me é morrer do que viver” (Jonas 4.33).<br />

Felizmente, Deus era capaz de reanimar sua moral. Ele fez brotar uma<br />

aboboreira e depois a fez murchar. O desgosto de Jonas atinge o clímax e,<br />

então, Deus diz a ele: “Tiveste compaixão da aboboreira... e não hei eu de<br />

ter compaixão de Nínive?”.<br />

Temos hoje uma enorme necessidade de recuperar o espírito que levou<br />

Calvino ao grito apaixonado: “Apenas a Deus seja a glória!”. Após estes<br />

quatro séculos nos encontramos em um período sombrio da História, um<br />

período em que a igreja contribui mais para a opressão das almas do que<br />

para sua libertação. Fomos lançados nesta situação, no mínimo, desde o<br />

começo do século e, desta vez, foram os psicólogos que deram o grito de<br />

alerta. E já, teólogos <strong>–</strong> protestantes, bem como católicos e ortodoxos <strong>–</strong><br />

esforçam-se vigorosamente contra a deturpação moralista e ativista da<br />

igreja.<br />

Contudo, noto uma maior proporção de pessoas oprimidas por esta<br />

deturpação entre os protestantes do que entre os católicos. O cumprimento<br />

do dever, a renúncia a todos os prazeres, boas ações, o esforço diário para<br />

subjugar suas falhas, a vergonha de seus instintos, o medo da repressão, do<br />

julgamento, da incompreensão <strong>–</strong> tudo isto é substituído pelo prazer do amor<br />

de Deus. E, por todos estes pontos, pode-se permanecer continuamente em<br />

erro, para sempre sem esperança, com frustração após a frustração,<br />

constantemente e, a cada vez mais, atormentado pela culpa.<br />

Este moralismo multiplica a frustração, pois a desesperança arrasta para a<br />

derrota. É precisamente deste inexorável círculo vicioso que Deus nos livra<br />

pelo seu perdão incondicional. É trágico ver aqueles que acreditam nele e<br />

que procuram servi-lo, levando vidas esmagadas por esta sinistra espiral <strong>–</strong><br />

ainda pior do que aqueles que não creem <strong>–</strong> até não serem mais capazes de<br />

amar um Deus que lhes parece tão duro e tão cruel.<br />

11


Você agora pode ver nosso objetivo, sua santidade, sua urgência. Assim<br />

como o profeta Isaías, temos necessidade de clamar pela <strong>graça</strong> (Isaías 40.2-<br />

2).<br />

“Consolai, consolai meu povo”, diz o vosso Deus. “Falai benignamente a<br />

Jerusalém, e bradai-lhe que já a sua malicia é acabada, que a sua iniquidade<br />

está expiada, e que já recebeu em dobro da mão do Senhor, por todos os<br />

seus pecados”.<br />

O Dr. Baruk citou uma outra passagem do mesmo profeta (Isaías 60:1), que<br />

parece a ele definir a vocação do médico:<br />

“O espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para<br />

pregar boas novas aos aflitos; enviou-me a restaurar os contritos de<br />

coração, a proclamar liberdade aos cativos”<br />

12


<strong>Cap</strong>ítulo 23<br />

O caminho da confissão<br />

Somos os instrumentos da <strong>graça</strong> salvadora quando prescrevemos os<br />

remédios que Deus nos deu, quando manejamos o bisturi, quando usamos<br />

as forças da natureza sobre as quais Deus nos deu domínio (Gênesis 1.28) e<br />

quando trabalhamos para o desenvolvimento da ciência, para o qual Ele<br />

próprio nos chamou (Gênesis 2.19). Novamente, somos os instrumentos de<br />

Sua <strong>graça</strong> quando as doenças da mente encontram alívio através das nossas<br />

técnicas em psicologia.<br />

Mas devemos permanecer em silêncio quando a questão é o mal supremo<br />

do homem? Sua maior angústia? Sua doença existencial? Quando a questão<br />

é o sentimento de culpa, com o qual todos os colegas não crentes estão<br />

envolvidos nos dias de hoje, movidos, como são, pela compaixão e piedade<br />

pelo sofrimento humano?<br />

Devemos esconder a grande resposta que Deus nos dá porque os teólogos<br />

nos acusam de exceder nossa função de médicos e de invadir seu território?<br />

(39). Não! Se o fizéssemos, nos tornaríamos como um clínico que hesita em<br />

extirpar um tumor muito avançado porque o cirurgião tem maior<br />

experiência com o bisturi.<br />

Vocês perceberam que não podemos entrar no campo da psicologia sem,<br />

cedo ou tarde, chegarmos, imperceptivelmente, mas inexoravelmente,<br />

mesmo antes de nos darmos conta, aos problemas humanos relativos ao<br />

significado da vida, perdição e salvação, desespero e esperança, o<br />

sentimento moral da culpa e o perdão de Deus. Não há fronteira. O Dr.<br />

Naeder, em especial, trouxe à luz o tema da transição inevitável da<br />

psicoterapia para a cura da alma. Inesperadamente, durante uma consulta,<br />

sentimos nas palavras do paciente uma ênfase, uma pausa, ou até mesmo<br />

sem nenhum sinal aparente que, na realidade, ele está em um momento de<br />

confissão, que esta vivendo a metanoia, que está cônscio de seu sentimento<br />

de culpa, que está amedrontado pela sua infelicidade e precisa de uma<br />

resposta.<br />

13


Esta resposta vem de Deus, que incumbiu a igreja de dá-la. Não é uma<br />

questão de interferir com os valores dos sacramentos, mas sim de fazer<br />

nossos pacientes cientes destes sacramentos novamente. Que os católicos<br />

façam a sua confissão e recebam a absolvição do padre; que os membros da<br />

igreja ortodoxa confessem com mais liberdade e recebam a absolvição em<br />

comunhão; que os protestantes confessem a seu pastor e participem em<br />

culto público da confissão de pecado e da absolvição solene. Mas,<br />

proclamar a certeza da <strong>graça</strong> de Deus e a mensagem de seu perdão, isto diz<br />

respeito a todos nós e, mais particularmente, a nós, médicos, que nos<br />

envolvemos com tantas almas aflitas.<br />

Nota-se uma tendência clerical no seio do protestantismo, assim como no<br />

seio da igreja católica. Por exemplo, um teólogo que se empenha, com<br />

sucesso, em restaurar o respeito à confissão auricular na igreja protestante,<br />

de acordo com as normas dos próprios reformadores, considera, no entanto,<br />

que esta confissão só pode ser feita por um clérigo.<br />

Não me diz respeito discutir este assunto no campo teológico, embora não<br />

ache qualquer referência bíblica que justifique esta afirmação e embora me<br />

pareça contradizer o ensinamento dos reformadores sobreo sacerdócio<br />

universal dos crentes. Me parece claro que os teólogos consideram a<br />

questão de maneira muito teórica e formal. É praticamente impossível<br />

interromper uma pessoa que, no transcorrer de uma consulta ou de uma<br />

simples conversa, passa das confidências para a confissão e, ainda mais,<br />

quando passa da falsa ou mórbida confissão para a confissão de culpas<br />

reais.<br />

Já mostrei amplamente que a falsa culpa e a culpa verdadeira estão<br />

entrelaçadas e que há uma “continuidade” entre elas, como afirma o Dr.<br />

Serano. Ninguém questiona o fato de que o médico seja qualificado para<br />

ouvir confissões mórbidas e tentar aliviar o paciente através de seus<br />

conhecimentos. Esta é, precisamente, a entrada para o campo da culpa<br />

genuína, para a qual a falsa culpa agiu como camuflagem e, ao mesmo<br />

tempo, como sinal. Já vimos que classificar o tipo de culpa ou tentar<br />

demarcá-la é impossível e, certamente ainda mais impossível, se a<br />

diferenciação tivesse que ser feita antes de o paciente falar, de modo que se<br />

pudesse encaminhá-lo ao clérigo em tempo, caso apenas este fosse<br />

qualificado para ouvi-lo.<br />

14


O ponto central da questão é, ao que me parece, que a palavra “confissão”<br />

tem o sentido de um evento psicológico para o médico e, para o clérigo,<br />

denota um ato de piedade. Nós, médicos, consideramos que a confissão está<br />

ocorrendo toda vez que há aquele estremecimento de vergonha e<br />

humilhação que surge pelo reconhecimento daquilo que o homem sabe ser<br />

culpado e que ocultou até aquele momento com a maior determinação. De<br />

maneira que, o que caracteriza a confissão é um estar da mente.<br />

Por outro lado, a confissão clerical é uma cerimônia, uma ocasião separada<br />

precisamente para este fim e na qual o penitente, assim como o clérigo,<br />

sabe que estão procedendo a um ato solene. Tenho o maior cuidado de não<br />

desaprovar o valor religioso e também psicológico desta solenidade, que<br />

muitas pessoas da igreja precisam para se garantir do perdão de Deus <strong>–</strong> me<br />

refiro aos protestantes, pois, para os católicos esta é uma solenidade natural.<br />

Porém os teólogos concordam conosco a respeito da importância doestado<br />

mental. A contrição pode estar ausente por ocasião da confissão a um<br />

pastor ou padre no confessionário e, contudo, pode ser a motivação de uma<br />

pessoa em meu consultório, mesmo sem que perceba que está de fato<br />

fazendo uma confissão. Nota-se isto particularmente entre os católicos<br />

praticantes, que fazem regularmente a confissão ritual com absoluta<br />

sinceridade, com fé e com toda a humildade e contrição possíveis, sem<br />

sentirem, contudo <strong>–</strong> ou pelo menos raramente <strong>–</strong> a mesma perturbação que<br />

sentem em meu consultório.<br />

Isto acontece porque o transcorrer da entrevista faz despertar,<br />

inesperadamente, um sentido profundo de consciência e um<br />

reconhecimento que nunca pensaram possíveis durante uma confissão. E<br />

isto, sem que haja da parte deles qualquer intenção de esquivar-se da<br />

sinceridade e honestidade da confissão. Preparam-se conscientemente para<br />

o ato da confissão, sem que ocorra em suas mentes aquilo que tão<br />

espontaneamente ocorre quando estão em meu consultório.<br />

Vou mais longe: um paciente não religioso, no consultório de um psicólogo<br />

igualmente não religioso, pode passar exatamente pela mesma experiência,<br />

pela mesma emoção, confessando aquilo de que é culpado e sentir o mesmo<br />

alívio. É isto que o próprio Jesus Cristo diz na parábola do fariseu e do<br />

15


publicano, de uma maneira muito geral, quando diz que o publicano<br />

“desceu para sua casa justificado e não aquele” (Lc 18.14). Jesus não pede<br />

qualquer cerimônia ou ritual na parábola. Nem mesmo há um confessor. É<br />

o estado de espírito do publicano que importa. E Jesus acrescenta que<br />

“qualquer que a si mesmo se exalta, será humilhado e qualquer que a si<br />

mesmo se humilha, será exaltado”. Quer saibamos ou não, é sempre Deus<br />

que perdoa. Consequentemente, é Deus que abençoa o trabalho do<br />

psicólogo não o crente que mencionei; é Deus que o fez instrumento de sua<br />

<strong>graça</strong> para o paciente não crente.<br />

Por outro lado, pode acontecer que uma pessoa me fale sobre seus erros<br />

pensando que está se confessando, mas o faz em tom calmo, neutro, que tira<br />

de suas palavras toda a essência da confissão. O importante não é o que se<br />

diz, mas sim o estado de espírito. Em um silêncio, um suspiro, um olhar,<br />

pode estar uma confissão mais autêntica do que em longas dissertações.<br />

A mesma questão que examinamos em relação ao arrependimento e perdão<br />

aos outros surge novamente: se a confissão é a condição para o perdão de<br />

Deus ou não. Mais uma vez, minha resposta é que a confissão é, antes, um<br />

caminho para o perdão. Discutir condições seria, no mínimo, querer<br />

restringir a soberana liberdade de Deus a fórmulas humanas e, de qualquer<br />

modo, significa levantar um problema religioso com padrões racionais, o<br />

que diverge da Bíblia, pois, a Bíblia relata acontecimentos que foram<br />

vividos, assim como nós médicos relatamos os casos como foram vividos<br />

na realidade e dos quais somos testemunhas: “foi assim que aconteceu”.<br />

A Bíblia nos mostra um caminho, não na teoria, mas através do exemplo<br />

daqueles que viveram. Ela nos mostra reis que fizeram sua confissão; por<br />

exemplo, o rei Davi, a quem Deus enviou o profeta Natã para comovê-lo<br />

com uma parábola (II Samuel 12.1-14). Pelas suas palavras Davi toma<br />

consciência de sua culpa e diz: “Pequei contra o Senhor”. A Bíblia nos<br />

conta do rei Ezequias, a quem Deus enviou o profeta Isaías para curá-lo. No<br />

entanto, ao invés de ser grato, o rei se encheu de vaidade: atraiu sobre si a<br />

fúria do Todo Poderoso. “Porém, Ezequias se humilhou pela soberba do seu<br />

coração...” (II Crônicas32:24-26).<br />

A Bíblia nos mostra uma multidão de pessoas tomando consciência da sua<br />

culpa à medida em que redescobrem a lei de Deus e confessam seus<br />

16


pecados por uma quarta parte do dia (Neemias 9:3). Mostra-nos Esdras, que<br />

poderia perfeitamente se orgulhar das boas obras que fez por inspiração de<br />

Deus, identificando-se com seu povo e suspirando: “Meu Deus! Estou<br />

confuso e envergonhado, para levantar a ti a minha face... Desde os dias de<br />

nossos pais até aos dias de hoje, estamos em grande culpa...” (Esdras 9:6-<br />

7).<br />

O livro dos Salmos nos passa, em tom vibrante, a experiência do rei Davi e<br />

de muitos outros crentes. Ao entrar em meu consultório, um paciente me<br />

diz que estava lendo o Salmo 32 e que isto o fez decidir a vir e se confessar<br />

(Salmo 32.1,3,5):<br />

“Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada, e cujo<br />

pecado é coberto... Enquanto eu me calei, envelhecera meus ossos,<br />

pelo meu bramido em todo dia...Confessei-te o meu pecado, e a<br />

minha maldade não encobri. Dizia eu: “Confessarei ao Senhor as<br />

minhas transgressões; e Tu perdoaste a maldade do meu pecado”.<br />

A Bíblia é viva. E é viva, sobretudo, pelos exemplos daqueles que acharam<br />

o caminho do perdão e que nos fazem, por nossa vez, seguir seus passos.<br />

Mostra-nos a multidão que foi a João Batista “confessando os seus<br />

pecados” (Mateus 3.6), e viram nesta grande onda de arrependimento o<br />

sinal anunciando o ministério de Jesus Cristo que estava se aproximando.<br />

O apóstolo Tiago escreve: “Confessai as vossas culpas uns aos outros, e<br />

orai uns pelos outros, para que sareis; a oração feita por um justo pode<br />

muito em seus efeitos” (Tiago 5.16). Estas últimas palavras indicam o<br />

sentido inteiramente prático da sua exortação, a importância prática que<br />

caracteriza a totalidade de sua epístola. Ele, portanto, não pretende formular<br />

uma condição para o perdão e para a cura, mas sim expressar uma verdade<br />

experimental que era muito espontânea e muito comum na igreja primitiva.<br />

O Dr. Bovet relata-nos uma série de passagens bíblicas nas quais ocorre a<br />

experiência do arrependimento sem confissão.<br />

Mas se a confissão não é uma condição, é um caminho que inúmeras<br />

pessoas seguiram a seu tempo, sempre com o mesmo resultado. Eu próprio<br />

tive, por um longo tempo, uma vida religiosa que era muito mais intelectual<br />

e teórica; eu era um membro militante da igreja, realmente acreditava, não<br />

17


apenas em Deus e Jesus Cristo, mas também no Espírito Santo, na<br />

comunhão dos santos, no perdão dos pecados e na sagrada igreja católica.<br />

Mas isto tudo era para mim muito mais uma crença do que uma vivência,<br />

até o dia que encontrei pessoas que confessavam seus pecados com<br />

simplicidade e honestidade.<br />

Aquelas pessoas me mostraram o caminho, não pela exortação, mas pelos<br />

exemplos em minha presença. Atirei-me de todo o coração na prática<br />

regular da confissão, movido por um impulso interno e não mais para<br />

preencher uma condição. Todo o clima da minha vida mudou. Eu disse:<br />

“Agora entendo o que significa, na realidade, a ação do Espírito Santo, o<br />

reconhecimento do pecado e a experiência da <strong>graça</strong>”.<br />

Imediatamente abriu-se para mim um ministério espiritual. Eu vi um grande<br />

numero de pessoas vindo até mim e encontrando a verdadeira libertação,<br />

como resultado de uma confissão absoluta e definida de suas falhas.<br />

Certamente todos nós sabemos que “não somos melhores que os outros”,<br />

como se diz usualmente. Mas uma expressão vaga como esta não tem a<br />

natureza de uma confissão; serve, isto sim, para dar uma desculpa para a<br />

nossa falta e escondê-la, muito mais do que para confrontá-la. Falar de uma<br />

maneira genérica sobre nossa falta de honestidade ou amor, ou então de<br />

nossa impureza, não é, de maneira nenhuma, uma experiência de confissão.<br />

São apenas vagas referências, uma espécie de índice, ao passo que é o texto<br />

do livro que interessa, o relato detalhado daquilo que pensamos, dissemos<br />

ou fizemos em tais e tais circunstâncias. É inclusive muito frequente que na<br />

precisão rigorosa de uma determinada palavra que gostaríamos de evitar e<br />

esconder sob uma expressão mais velada, estejam contidos a sinceridade de<br />

uma confissão e seu efeito.<br />

Nós todos sentimos uma formidável resistência interna para entrar em<br />

confissão verdadeira, aquela que realmente nos humilha. Custa-nos muito e<br />

podemos compreender os dizeres de Levítico, que nos apresenta a<br />

verdadeira confissão como um meio de pagar nossas iniquidades (Lev<br />

26.41).<br />

Falar muito é um jogo sutil que o homem usa na sua vacilação entre a<br />

intensa necessidade de se confessar e sua resistência interna. Um paciente<br />

18


me fala por um longo tempo a respeito de uma pequena aflição sua. Eu<br />

estava errado em me surpreender por ele retornar ao assunto com tanta<br />

insistência. Na realidade, ao prolongar sua consulta comigo ele está<br />

tentando superar sua resistência interna. A sua pequena aflição foi apenas<br />

uma desculpa para vir, ele me diria logo depois. Seu verdadeiro propósito<br />

ao vir é a confissão, que ele não sabe como começar e que adia o máximo<br />

possível.<br />

Outro paciente declara, de princípio, que é de temperamento reservado e,<br />

no entanto, fala sem parar, numa enxurrada de palavras, fala de todos os<br />

detalhes de sua vida, de tudo que sofreu e até mesmo de muitos de seus<br />

erros. Eu, finalmente, digo: “Parece-me que, para um homem reservado,<br />

você começou especialmente bem!”. E ele retruca: “Isto é porque não<br />

contei o mais importante”. E, então, se envolve na confissão real. Uma<br />

paciente me fala durante horas a respeito das suspeitas que alimenta com<br />

relação ao marido antes de ousar, de repente, a falar sobre os erros que<br />

comete em relação a ele.<br />

Nunca interrompa um paciente em meio às suas confissões, mesmo que<br />

pareçam inofensivas. São como a corrida que os atletas fazem para, no<br />

final, conseguirem dar um salto particularmente difícil. Você também não<br />

deve quebrar o pungente silêncio que pode, inesperadamente, favorecer à<br />

conversação. Neste momento uma grande luta está agitando a alma do<br />

paciente e você pode comprometer sua exteriorização ao dar uma<br />

oportunidade para a digressão. Algumas vezes tive que esperar por quase<br />

uma hora pelo resultado.<br />

Talvez você possa, às vezes, ajudar alguém a entrar em confissão ao<br />

estimulá-lo a confessar; mas este não é o meu jeito. Acho que nunca disse a<br />

alguém: “Confesse”. Se ouço tantas confissões, pode ser porque eu nem<br />

mesmo as espere, porque não suspeite de sua iminência, porque sempre me<br />

pegam de surpresa, por assim dizer, como se eu nunca tivesse escutado uma<br />

antes, como se não soubesse o quanto todos precisam de uma confissão.<br />

Muito frequentemente, após uma confissão, as pessoas me dizem que por<br />

meses ficaram abismadas de eu nunca tê-las convidado a fazerem uma<br />

confissão.<br />

19


Mas, o que me surpreende ainda mais é o efeito prodigioso que uma<br />

confissão verdadeira pode ter. Frequentemente a confissão não é apenas a<br />

experiência religiosa decisiva na libertação da culpa, mas “também”<br />

(Mateus 6.33), a cura imediata de problemas psíquicos ou psicológicos. Às<br />

vezes, em menos de uma hora, acontece a pacientes que estou vendo pela<br />

primeira vez e aos quais não disse mais que algumas palavras, um alívio<br />

das tensões psicológicas que poderia me dar muito orgulho se o obtivesse<br />

após meses de terapia. De qualquer maneira, isto facilita sempre, e no mais<br />

alto grau, o contato pessoal, que é o fator decisivo em toda cura<br />

psicológica.<br />

Muito já se escreveu sobre a relação entre a confissão psicológica e a<br />

confissão religiosa. As pessoas têm sido cuidadosas ao estabelecerem seus<br />

limites teóricos recíprocos e ao tomarem critérios específicos para<br />

distingui-las. Uma busca a cura e a outra a reconciliação com Deus. Eu não<br />

discuto. Todos estes estudos são justos e criteriosos.<br />

Mas na prática toda confissão psicológica tem significa religioso e toda<br />

confissão religiosa, seja ritual e sacramental ou livre, tem seus efeitos<br />

psicológicos. É talvez neste fato que podemos perceber mais claramente a<br />

unidade do ser humano, e o quanto é impossível dissociar os aspectos<br />

físico, psicológico e religioso de sua vida. Todo médico, mesmo sem se<br />

especializar em psicologia, na medida em que tem a compreensão do que é<br />

humano e gosta do contato com seres humanos, pode, inesperadamente,<br />

ver-se promovido a sacerdote confessor, sem ter procurado por isso.<br />

Isto coloca, de imediato, um problema que é ainda mais delicado, isto é, o<br />

problema da absolvição. É óbvio que um católico romano não pode se<br />

satisfazer com a absolvição leiga sem se sentir culpado com relação à igreja<br />

e, portanto, com relação a Deus. Um católico praticante que, no meu<br />

consultório, se torna consciente de um sentimento profundo de culpa,<br />

apressa-se espontaneamente em ir a seu confessor. Outros que tinham<br />

abandonado a confissão ritual retornam por sua própria vontade. Nunca<br />

podemos deixar de recomendar que os católicos romanos, por razões<br />

psicológicas, bem como por respeito à igreja, vão pedir pela absolvição<br />

sacramental.<br />

20


Mesmo com protestantes admito ter-me comportado, por um longo tempo,<br />

com timidez e vacilante, pelo meu embaraço (e isto, sem dúvida, devido à<br />

persistência de uma mentalidade tabu que nos faz, homens leigos, hesitar<br />

em ter qualquer envolvimento com coisas sagradas) diante do que estaria<br />

reservado para aqueles que foram ordenados oficialmente. Senti,<br />

claramente, que uma confissão autêntica pede necessariamente por uma<br />

resposta, por uma absolvição que eu ainda não ousava pronunciar<br />

explicitamente. Livrei-me disto lembrando-me de algumas promessas<br />

bíblicas sobre a fidelidade de Deus em perdoar todo aquele que admite seus<br />

erros, ou então, sugerindo à pessoa que se abriu com tanta confiança que eu<br />

gostaria de orar com ela de maneira a expressar, através do coração, nossa<br />

gratidão a Jesus Cristo pela sua obra de reconciliação.<br />

Tornei-me mais simples, mais verdadeiro, mais arrojado e isto por motivos,<br />

ambos, religiosos e psicológicos. Afirmações genéricas sobre o perdão de<br />

Deus não tem nem um pouco do efeito que possui uma palavra categórica,<br />

pessoal, individualizada, pronunciada com convicção, em nome de Deus e<br />

dirigida à pessoa que confessou seu pecado. Na verdade, a vontade de Deus<br />

produz alívio e a firme convicção pessoal de que o pecado confessado foi<br />

lavado. Se, por timidez, eu fugir a esta tarefa, sou eu que me faço culpado<br />

perante Deus, por esquivar-se da missão que Ele me confiou e da<br />

responsabilidade com a qual me encarregou ao induzir esta pessoa a tomarme<br />

como testemunha de sua confissão.<br />

Um pastor me contou recentemente que, após uma pregação pública que<br />

fez, um padre jesuíta perguntou-lhe em particular o seguinte: “Quem, na<br />

sua opinião, pastor, está autorizado a dar a absolvição?”. Meu amigo<br />

respondeu abrindo o evangelho. Após sua ressurreição, Jesus apareceu aos<br />

discípulos e lhes disse: “A paz seja convosco; assim como o Pai me enviou,<br />

também eu vos envio a vós. E, havendo dito isto, assoprou sobre eles e<br />

disse-lhes: recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados<br />

lhes serão perdoados; e àqueles a quem retiverdes lhes serão retidos” (João<br />

20: 21-23).<br />

Assim, numa igreja que professa não ter outra regra senão a da revelação<br />

bíblica, é óbvio que é o Espírito Santo quem dá aos homens a autoridade<br />

para absolver em nome de Deus. Todos aqueles a quem Jesus deu Sua paz<br />

são enviados, por sua vez, para transmiti-la a todos os homens. Este é o<br />

21


sacerdócio daqueles a quem o Espírito Santo foi dado. Mas, o Espírito<br />

Santo não é um monopólio dos clérigos. No dia de Pentecostes o Espírito<br />

Santo desceu sobre centenas de pessoas, sem qualquer distinção (Atos<br />

2.33). Pouco mais tarde o apóstolo <strong>Paul</strong>o viu o Espírito Santo descer sobre<br />

os gentios <strong>–</strong> toda sua família (Atos 11.15).Foi o cumprimento das<br />

promessas indicadas pelos profetas: “E há de ser que, naqueles dias,<br />

derramarei o meu espírito sobre toda a carne”.(Joel 2:28), como o próprio<br />

São Pedro afirmou (Atos 2:16).<br />

22


<strong>Cap</strong>ítulo 24<br />

A ordem de Melquisedeque<br />

Gostaria de despertar em vocês uma visão mais ampla do problema humano<br />

e de nossa tarefa, como médicos, diante deste problema; uma visão<br />

profundamente bíblica da universalidade da culpa e da universalidade do<br />

perdão. Gostaria de encorajá-los a pensarem e a agirem em uma escala<br />

universal, independente de todas as particularidades dos ritos e dogmas da<br />

igreja. São <strong>Paul</strong>o escreve que Deus, nosso Senhor, “quer que todos os<br />

homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade. Porque há um só<br />

Deus e um só Mediador entre Deus e os homens <strong>–</strong> Jesus Cristo homem, o<br />

qual se seu a si mesmo em preço de redenção por todos...” (I Timóteo 2.4-<br />

6).<br />

Os clérigos recebem com frequência os membros de suas respectivas<br />

igrejas; porém, às vezes, pessoas mais ou menos sem ligação com a igreja<br />

mas que trazem seu testemunho, procuram o clérigo e acabam por<br />

aproximar-se, de uma certa maneira, da igreja que representa e de suas<br />

instituições e ritos. É óbvio que o clérigo precisa responder à essas pessoas<br />

nos termos prescritos pela igreja a que pertence e oferecer a salvação de<br />

acordo com os ritos instituídos.<br />

Mas nós, médicos, acolhemos indiscriminadamente as pessoas aflitas em<br />

toda a sua diversidade. Alguns são devotos e precisamos respeitar a sua<br />

forma de devoção, sejam católicos, ortodoxos, protestantes, judeus,<br />

maometanos ou budistas. Muitos são religiosos sem serem devotos, não<br />

estão certos a respeito de suas próprias atitudes, confusos talvez pelos<br />

argumentos que dividem as igrejas. Há alguns cujas vidas espirituais<br />

prendem-se a meras lembranças de alguma leitura ou de uma conversa que<br />

os comoveram ou de uma oração que suas mães diziam quando eram<br />

crianças.<br />

Há aqueles que dizem não poder orar e, no entanto, fazem revelações que<br />

são orações mais autênticas do que qualquer outra oração que jamais<br />

aprenderam (Romanos 8.26). Há alguns que não sabem o que buscam e<br />

que, no entanto, procuram impetuosamente. Há também alguns que dizem<br />

ser indiferentes e que são precisamente os mais ansiosos, escondendo sua<br />

23


ansiedade sob a indiferença. Há alguns que dizem que são despojados de<br />

qualquer crença e que, de repente, revelam uma alma profundamente<br />

religiosa. E há aqueles que são agressivos com relação à igreja e Deus e que<br />

provam, precisamente por sua agressividade, que levam a sério estes<br />

assuntos.<br />

No entanto, por mais diferentes que sejam, são também<br />

extraordinariamente semelhantes. Todos sofrem. Todos carregam<br />

problemas, desapontamentos, aspirações e esperanças em suas vidas.<br />

Mesmo quando cometem o suicídio, tal ação revela uma suprema esperança<br />

em alguma coisa, quando tudo na terra já os havia desiludido, como mostra<br />

o Dr. Plügge. É um número enorme de pessoas, uma multidão atormentada,<br />

uma multidão buscando uma resposta, uma certeza, arrastando<br />

penosamente seu passado e querendo descansar seu fardo.<br />

Eles nos falam de suas doenças, seus sintomas, seus conflitos; na verdade,<br />

de tudo que podem descrever com clareza. Mas todos esperam de nós algo<br />

mais do que nossa dedicação técnica. Não apenas nossa simpatia, nossa<br />

solicitude pessoal ou nosso estímulo, mas também, um sopro da <strong>graça</strong><br />

divina, da forma que for, que por si só pode dissipar a culpa.<br />

Aqui a vida tem precedência sobre a forma. À vida seguem as formas<br />

instituídas pela igreja, os dogmas, os ritos, para concretizar e solenizar esta<br />

magnífica reconciliação com Deus. Esses têm seu mérito, mas seu valor<br />

recai justamente em expressar através de uma forma definida uma realidade<br />

primária, uma verdade universal, a saber, a intervenção de Deus na miséria<br />

humana, a reconciliação que Ele oferece e a benção que nos dá e que nos<br />

pede para transmitir a todos os homens em seu nome. É um sacerdócio<br />

espiritual para o qual nos chama; ao praticá-lo não estamos competindo<br />

com a igreja, mas sim colaborando com ela.<br />

Não é sacerdócio eclesiástico. Não é a nossa tarefa ensinar a verdade<br />

universal em fórmulas teológicas particulares. Não temos que conduzir<br />

nenhum rito. Cedo ou tarde, aqueles a quem ajudamos a aproximarem-se de<br />

Deus irão sentir a necessidade de se integrarem a uma igreja ou a uma<br />

comunidade e expressar sua devoção de acordo com os dogmas e ritos<br />

prescritos. Ensiná-los nisso é tarefa dos clérigos e não nossa.<br />

24


Talvez eu possa dizer que somos como o porteiro no jardim de Deus,<br />

postados no portão para saudar aqueles que procuram entrar. No jardim há<br />

vários caminhos e indicações para os visitantes. No entanto, foi preciso<br />

primeiro terem passado pelo portão e nós termos sido sinceros ao mostrar<br />

que este era o caminho para suas vidas errantes e que é realmente nesse<br />

jardim que acharão a resposta para seus problemas.<br />

Entretanto, muitos médicos ficam constrangidos por esta função de<br />

mediadores, para a qual não foram preparados, nem pela universidade nem<br />

pela igreja. Não sabem como definir ou praticar este ministério espiritual. A<br />

tragédia é que, frequentemente, são justamente os médicos crentes os mais<br />

tímidos. Enquanto que os colegas ateus não se constrangem em discutir<br />

assuntos religiosos com seus pacientes, os crentes mostram-se prudentes e<br />

reservados, por uma espécie de respeito excessivo pelo sagrado ou um<br />

medo de ser acusado por roubar um sacerdócio que não é deles.<br />

Mas, o clero também é frequentemente detido por uma ansiedade<br />

semelhante, a de não exceder os limites de suas funções, de imitar o médico<br />

e o psicólogo que não são. Um campo de responsabilidade comum a ambos,<br />

como este da culpa, que pertence ao mesmo tempo ao psicólogo e à<br />

religião, assemelha-se, de certo modo, à terra-de-ninguém, uma zona<br />

evacuada, respeitada pelos dois exércitos como que para evitar o conflito.<br />

A comparação é, sem dúvida, muito militar, pois, se por um lado, médicos e<br />

teólogos têm um ligeiro medo recíproco, por outro, respeitam-se, admiramse<br />

e raramente brigam! Digamos melhor, ficam em lados opostos da rua e, à<br />

distancia, cumprimentam-se cortesmente. Mas o medo de interferir com o<br />

território alheio impede-os de chegarem ao mesmo caminho, como se diz,<br />

de se misturarem com as outras pessoas, de entrarem pela vida, a vida como<br />

é vivida, a realidade da vida que constantemente traz problemas espirituais,<br />

mas não em termos dogmáticos ou rituais. A imensa e desamparada<br />

multidão passa pelo leito da rua, entre estes dois bem intencionados grupos<br />

de observadores que se contemplam mutuamente de seus pontos de vista<br />

particulares, tanto psicológicos como eclesiásticos. Portanto, parece-me<br />

importante fixar um lugar de encontro, um ministério espiritual universal,<br />

isento de todas particularidades denominacionais e de qualquer espírito<br />

faccioso. E isto, acredito, tem uma base bíblica.<br />

25


Em certos aspectos, o Antigo Testamento parece impregnado com um<br />

nacionalismo judeu que monopoliza a salvação para um único povo<br />

escolhido. E, não obstante, o Antigo Testamento mostra a natureza<br />

universal da salvação. Antes do pacto especial que Deus concluiu com<br />

Abrão e sua descendência, há um primeiro pacto proclamado por Deus para<br />

todos os homens, após o dilúvio. Um pacto eterno, não apenas com todos os<br />

homens “por todas as gerações futuras” mas, também, com “toda alma<br />

vivente de toda carne” (Gen 9.8-17).<br />

A partir daí, o pacto de Deus com Abrão a o povo escolhido é firmado<br />

dentro de uma estrutura de um pacto universal. O segundo pacto não<br />

contradiz a afirmação do primeiro pacto, não restringe a salvação, mas<br />

focaliza-a e traça um caminho para sua completa execução em Jesus Cristo.<br />

Então a <strong>graça</strong> de Deus, antes de ser encarnada em um povo em particular,<br />

numa igreja, em formas e ritos específicos, é endereçada a todos os homens<br />

tornando-se uma benção universal.<br />

É esta também a mensagem impressionante de Melquisedeque, Rei de<br />

Salém (Gênesis 14:18-20). Abrão já havia sido escolhido por Deus para a<br />

realização do seu plano. Ele era o homem a quem Deus tinha falado<br />

pessoalmente e chamado para deixar o paraíso da burocracia que era Ur dos<br />

Caldeus e lançar-se na aventura sob orientação divina. Ele já era um crente,<br />

o pai dos crentes, que obedeceu e deixou sua terra sem saber para onde<br />

Deus o guiava.<br />

No entanto, foi um estranho, Melquisedeque, que Deus enviou para<br />

abençoá-lo. Melquisedeque levou pão e vinho, símbolos do pacto que Jesus<br />

Cristo usou mais tarde para fundar sua igreja. E Abrão, após ter sido<br />

abençoado, deu a décima parte de tudo que tinha ao “sacerdote do Deus<br />

Altíssimo”. Melquisedeque surge, então, como símbolo do mensageiro da<br />

salvação universal (nossos colegas junguianos o chamariam de “arquétipo”)<br />

<strong>–</strong> salvador universal que excede Abrão no tempo e no espaço e excede<br />

também o pacto específico que Deus selou em seguida com ele e seus<br />

descendentes.<br />

Deve ficar claro que esta sequência tem um significado: antes do pacto<br />

específico de Deus com Abrão e seus descendentes, já havia uma afirmação<br />

mais geral de sua benção, que foi conduzida por este estranho personagem,<br />

26


Melquisedeque. Seu nome significa “rei da probidade” e ele é o Rei de<br />

Salém. “Salém” significa paz, salvação. Melquisedeque prefigura Cristo, o<br />

Príncipe da paz, salvação. Melquisedeque prefigura Cristo, o Príncipe da<br />

Paz. Isto fica claro no salmo em que o Rei Davi refere-se profeticamente a<br />

Jesus Cristo, seu“Senhor”, que se senta à direita de Deus e afirma que Deus<br />

consagrou-o por juramento (Sal 110):<br />

“Jurou o Senhor...Tu és um sacerdote eterno, segundo a ordem de<br />

Melquisedeque”.<br />

O próprio Jesus Cristo identifica-se como o “Senhor” de Davi, o “sacerdote<br />

segundo a ordem de Melquisedeque”, quando se refere a este salmo de<br />

Davi e emprega-o a si próprio, proclamando-se, portanto, o Cristo<br />

anunciado no salmo (Mateus 22.41-45). Porque esta referencia ao pacto<br />

universal de Deus, ao pacto que precede o pacto específico com o povo<br />

escolhido e que o abrange, é uma afirmação do cumprimento, por Jesus<br />

Cristo, de ambas as promessas feitas por Deus<strong>–</strong> a promessa ao seu povo e a<br />

promessa universal para toda a sua criação.<br />

Portanto, há um elo que liga as primeiras páginas da Bíblia com as últimas;<br />

é um elo da universalidade passando através do que é particular de maneira<br />

a, finalmente, atingir o geral.<br />

É isto que o autor da epístola aos Hebreus afirma quando se refere a este<br />

salmo de Davi por três vezes (Hebreus 6:20, 7:1, 17:21): “Onde Jesus,<br />

nosso precursor, entrou por nós, feito eternamente sumo sacerdote, segundo<br />

a ordem de Melquisedeque”.<br />

O autor da epístola certamente considera Melquisedeque usa figura<br />

simbólica, pois, diz dele que é “sem pai, sem mãe, sem genealogia”<br />

(Hebreus 7.3). Assim ele proclama o símbolo da universalidade da salvação<br />

encarnada em Jesus Cristo.<br />

Portanto, há uma “ordem de Melquisedeque”, uma ordem universal que<br />

contém e excede as ordens particulares e todos os pactos específicos.<br />

Nossas igrejas individualizam a salvação. Cada uma delas tem o seu lugar<br />

no plano de Deus para o cumprimento da salvação universal. Suas<br />

particularidades, portanto, não contradizem o seu universalismo, mas<br />

27


também não os limitam. O que cada uma delas oferece a seus membros, em<br />

varias formas diferentes, é a mesma viva e universal realidade <strong>–</strong> a<br />

reconciliação do homem com Deus.<br />

Pergunto, então, a meus colegas: nós todos que, por dez anos, temos<br />

buscado caminhos para um renascimento espiritual universal, não podemos<br />

apelar para a “ordem de Melquisedeque”? Nós nos chamamos de médicos<br />

da personalidade completa. Do ponto de vista médico, a expressão<br />

“medicina integrativa” é própria porque significa que encaramos o homem<br />

no seu todo, na sua unidade, como um ser espiritual e também um animal.<br />

Isto significa necessariamente que aceitamos nossa vocação espiritual. Quer<br />

dizer que entendemos que somos chamados para socorrer nossos pacientes<br />

não apenas em dificuldades físicas e psicológicas, mas, também, em suas<br />

dificuldades espirituais e, no entanto, sem proselitismos. Pertencemos às<br />

mais variadas igrejas <strong>–</strong> Ortodoxa, Católica e Protestantes de todas as<br />

denominações <strong>–</strong> somos filhos submissos de nossas respectivas igrejas, mas<br />

temos um ministério espiritual comum. Se precisarmos de uma referencia<br />

bíblica para este nosso ministério, podemos nos chamar de “médicos<br />

segundo a ordem de Melquisedeque”.<br />

O nome soa bárbaro? Ora! Em uma época em que novos termos surgem<br />

todos os dias, precisamos, certamente, nos familiarizar com palavras mais<br />

difíceis de pronunciar do que esta! Ela te parece orgulhosa? Como se fosse<br />

uma super igreja que pretende ser mais universal do que as outras, vindo<br />

para abarcá-las ou suplantá-las? Como para distribuir a salvação a todos,<br />

independentemente delas?<br />

Não! Trata-se, isto sim, uma questão de “infraestrutura” e é neste aspecto<br />

que diz respeito a nós médicos. É uma questão deste aspecto humano, deste<br />

problema humano que estamos estudando; o problema universal da culpa e<br />

a necessidade universal do perdão, comum a todos os homens, e da benção<br />

universal que Deus oferece a todos, antes mesmo de qualquer igreja em<br />

particular transmiti-la através de suas formas próprias. Então, entendo<br />

como “infraestrutura” a essência do homem, tal qual Deus o criou, um ser<br />

ao mesmo tempo animal e espiritual, livre e responsável, tal como se tornou<br />

após a Queda: culpado, atormentado pela culpa e, no entanto, perdoado.<br />

28


Sempre me lembro de uma paciente que, logo ao marcar a primeira<br />

consulta, disse que não estava interessada em assuntos religiosos e que<br />

esperava que isso não fosse obstáculo para um bom relacionamento entre<br />

nós, apesar de saber que eu era crente. Vocês podem imaginar como me<br />

ative cuidadosamente à minha função e cuidei para não falara ela sobre a<br />

minha fé.<br />

Ela sofria de inibição psicológica. Então, inesperadamente, um dia, ela me<br />

disse: “Eu fico pensando se não é a vaidade que me paralisa deste jeito”.<br />

“Todo mundo é vaidoso”, retruquei, “todos são igualmente vaidosos; sou<br />

tão vaidoso como você. Mas, há pessoas que são estimuladas pela vaidade e<br />

outras que são paralisadas, conforme seus complexos psicológicos”.<br />

Ela mostrou a mais viva surpresa: “Você não é vaidoso”, disse-me<br />

amavelmente. Eu tive que desiludi-la, pois, este é, sem dúvida, o pecado<br />

mais inarredável que tenho. “A prova”, disse-lhe, “é que faço um esforço<br />

enorme para te curar; a vaidade me impele. Vou ficar muito humilhado se<br />

falhar. Posso me empenhar o quanto quiser contra a vaidade, mas ela está<br />

sempre lá”.<br />

Houve uma pausa. Então, ela expressou seus pensamentos em voz alta: “O<br />

que você está querendo dizer é assustador! Se todos são vaidosos a despeito<br />

do que façam, então, não há solução”. “Sim, há uma solução. Uma única,<br />

mas não posso lhe dizer porque é uma solução religiosa e você me pediu<br />

para não falar sobre religião com você”. “Me diga qual é a solução, apesar<br />

disso”, replicou. “A solução é que eu sou um homem vaidoso que foi<br />

perdoado. Se somos todos vaidosos, somos também todos uns vaidosos que<br />

foram perdoados”.<br />

Veja que mudamos inesperadamente do assunto psicológico para o<br />

espiritual, apesar da reserva que havia. Isto porque a questão da culpa surge<br />

para todas as pessoas e precisa de uma resposta. A resposta é de natureza<br />

religiosa, mas pode ser dada de um modo muito geral que, de maneira<br />

nenhuma, compromete o encaminhamento religioso que irá dar esta<br />

resposta de uma maneira definida e explícita através dos dogmas da igreja.<br />

Este elemento básico, esta certeza do perdão de Deus e de sua benção, não<br />

seria o suficiente para edificar e nutrir uma vida religiosa, para nós ou para<br />

29


nossos pacientes. A paciente a que me referi não demorou a pedir para ser<br />

instruída na fé cristã e receber o batismo, o que não era mais minha função<br />

como médico. Por outro lado, pela proibição auto imposta de não se referir<br />

a qualquer aspecto espiritual, a medicina foi condenada a encarar o homem<br />

por um ângulo parcial. Pode-se dizer que atualmente a medicina não tem<br />

nem mesmo um conceito de homem.<br />

Mas, se a referencia aos aspectos espirituais for reintroduzida na medicina,<br />

há também o risco de se reintroduzir as controvérsias filosóficas e<br />

teológicas das quais teve que se libertar há três ou quatro séculos atrás.<br />

Portanto, temos que elaborar para nossa própria geração um conceito do<br />

homem que o considere como um todo, incluindo seu lado espiritual, mas,<br />

que seja um conceito valido e comum a todos os homens, sejam eles crentes<br />

ou não e a qualquer igreja a que pertençam.<br />

Foi a este trabalho que o Dr. Anton de Mol van Otterio dedicou-se, um<br />

conjunto com todos os colaboradores que agrupou à sua volta. A este<br />

trabalho deu o nome de “Antropologia Básica” ou “Antropologia Prédogmática”,<br />

isto é, um conceito do homem em sua integridade, segundo a<br />

realidade de sua vida, da maneira como ele vive, fisicamente,<br />

psicologicamente e espiritualmente, antes mesmo de qualquer doutrina<br />

filosófica ou qualquer dogma teológico dar uma fórmula específica e<br />

definida.<br />

Na vida, todas as coisas estão combinadas e a Bíblia continuamente retrataa<br />

em sua unidade e complexidade. Não trata a vida religiosa à parte, como<br />

uma especialidade reservada aos teólogos, mas constantemente liga os mais<br />

concretos acontecimentos da vida física <strong>–</strong> refeições, cansaço, doenças <strong>–</strong><br />

com as mais altas experiências espirituais. Sugere a unidade do homem<br />

através de imagens e símbolos. Eu próprio sou particularmente sensível à<br />

poesia da Bíblia e falo sem inibição desta poesia a outros médicos, já que<br />

C. G. Jung reintroduziu os mitos e a poesia na medicina. O relato do Jardim<br />

do Éden, a figura enigmática de Melquisedeque encontrando a benção de<br />

Deus e todas as parábolas de Jesus expressam verdades humanas<br />

universais.<br />

Deste modo, a metanoia de que falamos, esta mudança de mentalidade que<br />

marca a entrada no Reino de Deus, é, para os teólogos, uma formada<br />

30


conversão religiosa e da integração do homem na igreja. Mas, de uma<br />

maneira geral, é também uma lei da vida, cuja natureza universal nós,<br />

médicos e psicólogos, podemos constatar. Existem apenas tormentos<br />

infindáveis e o circulo vicioso do infortúnio quando o homem reprime sua<br />

culpa e revela a dos outros. A paz consigo próprio e com os outros esta em<br />

aceitar a própria culpa e confessá-la.<br />

Assim uma parábola como aquela do Filho Pródigo exprime uma verdade<br />

religiosa que a igreja formula através de dogmas ou de sacramentos de<br />

punição ou de absolvição. Mas exprime também, de uma maneira bem<br />

geral, a condição do homem, tal como nós, médicos, o vemos. Todos os<br />

homens são marginalizados, caem e sentem se culpados; todos anseiam<br />

pelo aconchego do lar que abandonaram e pelo perdão.<br />

A culpa é, portanto, um problema religioso de interesse para os teólogos,<br />

um problema social de interesse para os sociólogos e um problema<br />

psicológico de interesse para os psicólogos. Mas a culpa não se deixa<br />

dissecar. É um problema humano, uma forma de sofrimento peculiar ao<br />

homem e de interesse para o médico, porque sua vocação é o alívio de todo<br />

o sofrimento.<br />

Fim.<br />

31


O parágrafo suprimido da página 179 é o seguinte:<br />

É conhecida a observação do Abade Mugnier que, quando lhe perguntaram<br />

se acreditava no inferno, respondeu: “Certamente acredito nele; mas<br />

também acredito que não há ninguém lá.” Isso me parece mais do que um<br />

lampejo espirituoso. É um ponto de vista que é inerente a toda a perspectiva<br />

da Bíblia, de que a severidade e as ameaças de Deus <strong>–</strong> ou o que o homem<br />

em seu remorso atribuem a Deus <strong>–</strong> são destinadas a nada menos que a sua<br />

salvação e a conservá-lo fora do abismo.<br />

Conforme página 155 da edição norte-americana, Guilt and Grace, New<br />

York, Harper & Row, 1962. Não há, na edição brasileira, nenhuma<br />

indicação de que tenha havido a supressão.<br />

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