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Boletim 97 - Câmara Municipal de Santo Tirso

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A Poesia está na rua…<br />

nicar nada <strong>de</strong> essencial, ou inventaram uma linguagem nova,<br />

suficientemente estranha para conseguir que pelo menos alguns<br />

leitores parassem para pensar, ou apostaram em associá-las <strong>de</strong><br />

tal modo que, como quem une dois fios <strong>de</strong> cobre que não era<br />

suposto unir, provocassem um choque eléctrico, um curto-circuito.<br />

No início dos anos 80, quando a poesia <strong>de</strong> António Osório se tornou<br />

mais conhecida, havia, na poesia portuguesa, representantes<br />

<strong>de</strong> todas estas opções. Escandalosamente, ele não seguira<br />

nenhuma <strong>de</strong>las.<br />

O que ele nos veio mostrar é que estamos todos <strong>de</strong>satentos, e que<br />

o mundo está longe <strong>de</strong> se esgotar no que vemos na televisão ou<br />

nos chega pelas manchetes dos jornais. E que, como escreve em<br />

Adão, Eva e o Mais, “o tempo só estrangula/ quem não ama”. Essa<br />

foi uma das coisas que primeiro me <strong>de</strong>slumbrou na poesia <strong>de</strong><br />

Osório. Quem a escrevia era alguém que tinha tempo para sentir.<br />

Os sentimentos mais fortes: a paixão erótica, a raiva, o sofrimento<br />

extremo, o <strong>de</strong>sespero, mesmo a intensa felicida<strong>de</strong>, lera-os em<br />

muitos outros poetas. Mas a poesia <strong>de</strong> António Osório trazia<br />

consigo toda uma gama <strong>de</strong> sentimentos intermédios, mais tranquilos<br />

e, por isso mesmo, mais complexos e mais difíceis <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir:<br />

o afecto por uma tia, o espanto <strong>de</strong> ver os filhos crescer, a gratidão<br />

do doente que ouve cantar um rouxinol na cerca do<br />

hospital, a mistura <strong>de</strong> alegria e sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguém que percorre<br />

os lugares on<strong>de</strong> os pais namoraram, a amabilida<strong>de</strong>, essa coisa<br />

tão singularmente humana e tão <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rada. E po<strong>de</strong>ria<br />

acrescentar muitas discretas cambiantes da sentimentalida<strong>de</strong><br />

humana que, <strong>de</strong> tão pouco expressas, até <strong>de</strong> nós para nós mesmos,<br />

nem nome têm. E também os adivinhados sentimentos dos<br />

bichos e das próprias coisas inanimadas.<br />

A serenida<strong>de</strong> também não era coisa que abundasse na poesia<br />

portuguesa contemporânea, apesar da célebre invocação <strong>de</strong><br />

Raul <strong>de</strong> Carvalho no poema “Vem Serenida<strong>de</strong>” - Osório <strong>de</strong>dica<br />

aliás, a este poeta um belíssimo texto no livro “Vozes Íntimas”, que<br />

é hoje aqui lançado. No entanto, num mundo rendido à vertigem<br />

e ao frenesi, a lição da serenida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> tornar-se um imperativo<br />

ético. Um dos poemas mais breves <strong>de</strong> António Osório diz<br />

apenas isto: “O contrário/ da histeria, da barbárie.// Ave migrando/<br />

discretamente/ sobre continentes”.<br />

Uma das coisas que a sua poesia nos ensina é até que ponto<br />

uma serena disponibilida<strong>de</strong> para vermos e ouvirmos o mundo,<br />

com tudo o que nele existe, incluindo nós próprios, po<strong>de</strong> resultar<br />

numa experiência <strong>de</strong> extrema intensida<strong>de</strong>. Os versos <strong>de</strong> António<br />

Osório são, entre outras coisas, um hino à diversida<strong>de</strong>, e um lamento<br />

por tudo o que contribui para a diminuir. É, no mais rigoroso<br />

sentido do termo, uma poesia ecológica. Só que Osório não<br />

se penaliza apenas com o risco <strong>de</strong> extinção do lince da Malcata,<br />

Em Destaque<br />

mas também, por exemplo, com o progressivo <strong>de</strong>saparecimento<br />

<strong>de</strong> ofícios humil<strong>de</strong>s e dignos que o progresso tornou anacrónicos,<br />

e até com queda em <strong>de</strong>suso <strong>de</strong> algumas palavras.<br />

A sua compaixão, num sentido do termo que não se confun<strong>de</strong><br />

com o da pieda<strong>de</strong>, esten<strong>de</strong>-se mesmo a esses primeiros cúmplices<br />

da revolução tecnológica que não tardaram a tornar-se suas<br />

vítimas, como o velho tractor, que veio substituir o arado, e é<br />

agora um corpo enferrujado e <strong>de</strong>stinado à sucata. Sempre tive<br />

uma predilecção por esse poema que se chama “Fala o Tractor”, e<br />

que acaba assim: Custa levar <strong>de</strong> rojo/ uma vaca à cova// Esmaguei<br />

já/ uma perna. Detesto o peso do reboque. // Cinco anos e<br />

ainda não percebo estas/ sujas peças que rodam em mim.// A<br />

escavadora, ao menos, uiva// (amo-a). Não me agrada a sucata.”<br />

Escrever um poema genuinamente comovente – a mim, pelo<br />

menos, comove-me – sobre um tractor não é, acreditem, dom<br />

que esteja ao alcance <strong>de</strong> qualquer um. É claro que neste tractor<br />

po<strong>de</strong>mos ver o símbolo <strong>de</strong> todos os que o <strong>de</strong>stino con<strong>de</strong>na a executar<br />

ofícios que abominam, ou os que se sentem presos num<br />

corpo que <strong>de</strong>testam. Talvez seja legítimo vê-lo. Mas a presença<br />

do tractor, o modo como somos imediatamente levados a visualizá-lo<br />

na sua concretu<strong>de</strong>, é tão forte, que evita que este se transforme<br />

numa mera metáfora.<br />

Se me perdoam a auto-citação, escrevi há muito tempo que esta<br />

poesia era “uma espécie <strong>de</strong> arca <strong>de</strong> Noé on<strong>de</strong> encontram refúgio<br />

o cão <strong>de</strong> quinta, o coelho doméstico, o pirilampo das noites rurais<br />

– aos quais, se a memória não me falha, Osório chama algures<br />

“amáveis guardas-nocturnos” –, mas também as árvores,<br />

sempre <strong>de</strong>signadas pelo seu nome específico, os parentes mortos,<br />

os artesãos <strong>de</strong> ofícios quase <strong>de</strong>saparecidos… Num programa<br />

que <strong>de</strong>corre sob o signo dos ofícios, não há dúvida <strong>de</strong> que<br />

está aqui o poeta certo. Osório escreveu muitos poemas sobre<br />

ofícios. Engraxadores, calceteiros, vedores, mas também o médico<br />

anestesista, o pintor, o baterista. Seduzem-no todos os que<br />

fazem, tão bem quanto sabem, o que lhes coube ou <strong>de</strong>cidiram<br />

fazer. Até a um par <strong>de</strong> testemunhas <strong>de</strong> Jeová que lhe tocaram à<br />

porta, <strong>de</strong>certo para o tentar converter, <strong>de</strong>dica palavras <strong>de</strong> apreço,<br />

lamentando que sejam “perseguidas por implacáveis porteiros<br />

e pelos obesos cães domésticos, e enxovalhadas por empregadas<br />

malignas, que lhes perguntavam: ‘Querem passar a ferro?<br />

E coser meias?”<br />

Outra característica que tornava a poesia <strong>de</strong> António Osório<br />

uma quase absoluta singularida<strong>de</strong> no contexto em que surgiu<br />

era a sua linguagem, o modo como a usava, mas também as<br />

próprias palavras que escolhia. Des<strong>de</strong> logo, Osório não se limitava<br />

a querer escrever poemas que a maioria das pessoas pu<strong>de</strong>sse<br />

perceber. Muitos o quiseram, e alguns até afirmaram querê-lo<br />

nos seus próprios poemas. A diferença é que ele o conseguiu. Dispor<br />

<strong>de</strong> certas referências culturais po<strong>de</strong> ser útil para ler alguns<br />

Informação <strong>Municipal</strong> <strong>97</strong>

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