TRAMAS E RESISTÊNCIAS DA DIFERENÇA
TRAMAS E RESISTÊNCIAS DA DIFERENÇA
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interessa a porosidade da memória produzindo desejo e poder. O incômodo diante da prótese de<br />
silicone ofuscando a “alma brasileira” ignora sombras remotas que rondam o bairro moderno de<br />
Mussolini. As ambigüidades das próteses também lhe são desconhecidas. Algumas são<br />
pacíficas: limitando-se a decorar, citam outros corpos ou hibridismos inofensivos; são próteses<br />
ornamentais, coladas ao mundo fixado no presente eterno. Para elas, reduzidas à emblema, a<br />
história está morta. A que o incomodou, subvertendo o zoológico urbano das multiplicidades do<br />
mercado, destoa dos artifícios untados de paz. É prótese que transgride o inexorável fincado no<br />
pensamento único do presente desencantado. O acontecimento tenso da noite romana denota à<br />
prótese de silicone o sentido de insurreição. Atento às diversidades dos balcões do mercado<br />
global, o antropólogo aproxima-se dos decretos do fim da história, afastando-se de tudo que<br />
possa fazer das misérias do mundo uma outra coisa.<br />
O capitalismo globalizado do jovem pesquisador do multiculturalismo incentiva-o ao elogio da<br />
multiplicidade (Bauman, 2000), mas o faz ignorar as práticas que a produzem, amortecendo a<br />
inventividade política da história. Para o admirador do presente eterno, bastam tolerância e<br />
respeito. O contemporâneo sem ontem ignorando o futuro o fascina. A modernidade, com seus<br />
paradoxos e promessas, estaria sepultada para sempre. Dão-lhe tédio, talvez, os sussuros,<br />
estampido de balas, vozes afirmativas, trêmulas, agonizantes, desgrudadas de um corpo único<br />
compondo o nós nervoso provisório e combativo. Para o jovem antropólogo, tudo isso não passa<br />
de metáforas de um mundo em desencanto.<br />
Um café em silêncio, deseja o passageiro, após o conhaque para afastar o frio. O motorista bebe<br />
sua segunda dose, muda o argumento e o tom da conversa. Sorridente, pergunta por que só<br />
brasileiros fazem aquele tipo de coisa. A essência da sensualidade latino-americana o atrai. O<br />
outro, cansado, não consegue entender a pergunta irônica. O barulho do aparelho eletrônico lhe<br />
chama atenção. No bar próximo a EUR, um garoto joga concentrado, fazendo as imagens<br />
surgirem e desaparecerem rapidamente na tela; imagens de índios americanos, árabes, mulheres<br />
negras, chineses, americanos, russos, peruanos. O inocente brinquedo informático aguça a<br />
curiosidade do estrangeiro, sugere insólitas descobertas.<br />
Após o último gole, o motorista antropólogo chama o passageiro absorvido na tela colorida para<br />
a partida. Saem do bar, mas o ruído e o movimento das imagens alcançam o estrangeiro mais<br />
uma vez. Constata que as imagens acionadas pelo garoto diferem das que se encontram em<br />
certas fotografias, das que povoam o delírio dos desvalidos, das projetadas pelo cinema, das<br />
suscitadas por palavras carregadas de desassossego. Todas essas imagens congelam e<br />
condensam narrativas díspares e tempos anacrônicos, impedindo-os a pressa para prosseguir.<br />
Dos pequenos detalhes do cotidiano às heterogêneas e conflitantes formas de se conceber a<br />
realidade e a existência estão contidos nelas. Esse conteúdo lhes dá corpo, uma massa composta<br />
por disparidades geradoras de luz. A luz desses corpos-imagens é gerada por centelhas que o