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TRAMAS E RESISTÊNCIAS DA DIFERENÇA

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é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e diferentes, e não o ato de<br />

expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente. O certo é que os<br />

lixeiros são acolhidos como anjos e a sua tarefa de remover os restos da<br />

existência do dia anterior é circundada de um respeito silencioso, como um rito<br />

que inspira a devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são<br />

jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas. (...) O resultado é o seguinte:<br />

quanto mais Leônia expele mais coisas acumula; as escamas do seu passado se<br />

solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a<br />

cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de<br />

ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros. (...)<br />

Os confins entre cidades desconhecidas e inimigas são bastiões infectados em<br />

que os detritos de uma e de outra escoram-se reciprocamente, superam-se,<br />

misturam-se. (Calvino, 1991)<br />

“Podem as imagens salvar as coisas de sua crescente miséria?” (Peixoto, 1996) – perguntava,<br />

cético, o estrangeiro para si mesmo.<br />

A noite fria de janeiro, no bairro projetado pelos arquitetos do fascismo italiano, não afugenta o<br />

homem da saia de veludo. De carro, os dois passam próximos a ele. Tudo continua como se<br />

nada houvesse acontecido. Os músculos tensos caminham de um lado para o outro no zoológico<br />

da alta velocidade. Jovens e senhores romanos circulam em seus carros, à procura de prazer,<br />

observando o animal noturno com cheiro de perfume barato. EUR permanece como um grande<br />

outdoor. As imagens incorpóreas do jogo eletrônico indicam ao estrangeiro a consistência e a<br />

forma do diverso nas grandes metrópoles de consumidores insaciáveis. A indiferença, tradutora<br />

do outro em imagem banal, asséptica, prossegue o seu percurso urbano (Debord, 1997). Ela<br />

fabrica seres desmaterializados, convertidos em espetáculo assistido por consumidores nômades<br />

que não saem do mesmo lugar pelo peso da falta. Os refugos da modernidade agora possuem<br />

uma singular textura. A exclusão do mundo globalizado transforma-os em vultos assépticos,<br />

alheios às inquietações dos homens com nervos à flor da pele. O estrangeiro, atordoado,<br />

pergunta mais uma vez para si mesmo; “podem as imagens salvar as coisas de sua crescente<br />

miséria?”<br />

Longe poucos quilômetros, o frio aumenta, fazendo-se acompanhar de tristes presságios. Paga a<br />

corrida e, antes de desembarcar, lembra de já ter conhecido o nós nervoso em outras ocasiões.<br />

Saindo do carro, a memória o desconcerta: construções literárias, situações do dia-a-dia,<br />

músicas, filmes, revoltas, projetos urbanísticos, formas de existir e de fazer política, recordam-<br />

lhe por sua similitude o encontro nas calçadas de EUR iluminado pela raiva do travesti. A<br />

recordação o envia à potência desnorteadora dos modos de produção, aniquilando a<br />

inevitabilidade dos atos humanos. O nós nervoso, deduz, pode ser encontrado em tempos e

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