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TRAMAS E RESISTÊNCIAS DA DIFERENÇA

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uma doce e cruel violência camuflando vaidades arrogantes; a intolerância também. Um grito<br />

estridente e infantil mistura-se às vozes dissonantes, afirmando energicamente que a<br />

solidariedade é genocida quando se reduz à fraternidade dos iguais. Empostada, solene,<br />

parecendo anunciar revelações, uma outra voz profetiza melancolicamente o fim das<br />

interpelações desacomodadoras do díspar transformado em espetáculo multicolorido, atraente,<br />

destituído da radicalidade provocadora de ação ou fúria. Em silêncio, comunica que o fascismo<br />

do tempo dos calendários se mistura a outros, produzindo desencanto, velocidade, mutações,<br />

devires alheios a dores que persistem. Entoando um murmúrio feito velho alquebrado pelo<br />

tempo, emite sons quase inaudíveis. Sussurrando palavras incompreensíveis, faz o outro<br />

recordar do viajante veneziano descrevendo o desprezo por Zora, a cidade da identidade e da<br />

permanência:<br />

Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto por ponto, na sucessão das ruas e das<br />

casas ao longo das ruas e das portas e janelas das casas, apesar de não demonstrar particular<br />

beleza ou raridade. O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se<br />

sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma<br />

nota... Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos<br />

espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres,<br />

virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do<br />

discurso. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de<br />

afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória. De modo que os homens mais<br />

sábios do mundo são os que conhecem Zora de cor. Mas foi inútil a minha viagem para visitar a<br />

cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou,<br />

desfez-se, e sumiu. Foi esquecida pelo mundo. (Calvino, 1991)<br />

Furioso, encara o parceiro com os músculos do rosto enrijecidos. Pouco a pouco, a raiva<br />

transforma a proteção do veludo em trapo. Dizimam-se as salvaguardas das identidades latino-<br />

americana, sexual, extra-comunitária. A raiva insone, fatal, ressalta e denuncia a armadilha da<br />

diferença traduzida em predestinação. Laico, provisório, o nós nervoso demole anunciações,<br />

modos de existir projetados como essa cidade estática, vazia de interferências. Impiedosamente,<br />

destrói a memória fadada a evocar Zora onde não existem poros, abrigando apenas utopias que<br />

não conseguem sair de si mesmas, do mesmo lugar. O corpo-prótese executa o implacável<br />

combate. Uma luta entre o artificial e o inexorável. O cometa, alimentado por uma força<br />

inominável em movimento, atravessa mais uma vez o céu de Roma, iluminando tudo e todos.<br />

Fatal, insone, transfigurador, o espelho do poeta argentino provoca perplexidade. EUR se<br />

preenche de luz e espanto. Os dois também.<br />

Após a despedida, o outro observa atento o travesti que se afasta. Não consegue relaxar. As<br />

análises profundas das relativizações culturais do motorista antropólogo soam distantes; a

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