TRAMAS E RESISTÊNCIAS DA DIFERENÇA
TRAMAS E RESISTÊNCIAS DA DIFERENÇA
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O canhão do renascimento, anúncio da ineficácia das muralhas para a defesa das cidades,<br />
disparador da sorte e do caos, dá lugar a máquinas coloridas destruidoras de vultos. A<br />
assustadora máquina de guerra transforma-se em entretenimento no bar romano. Imagens suaves<br />
e divertidas estetizam a política, despolitizando a arte, transformando gritos e gemidos em<br />
produção musical. Gritos e gemidos perdem textura e carne. Em sua metamorfose, promovem<br />
no espectador uma genocida resignação. No Brasil, soube o estrangeiro, um índio é queimado e<br />
morto por um grupo de adolescentes quando dormia em um ponto de ônibus na capital federal.<br />
Em Torino, jovens lançam ao rio um emigrante marroquino e divertem-se assistindo ao<br />
afogamento. De outras partes do mundo globalizado, outros jogos lhe vêm à lembrança.<br />
Espetáculos urbanos preenchidos por imagens sem corpo, apontavam-lhe urgentes desafios<br />
contemporâneos.<br />
O garoto do brinquedo eletrônico do mundo em desencanto não se sacia com a profusão de<br />
objetos coloridos à sua frente. Querendo cada vez mais seguir o rumo da velocidade para os que<br />
podem consumir, o garoto não coleciona rastros de si, formadores da solidez identitária do<br />
passado, mas devires, sensações descartáveis, alimentadas pela abundância da sua carência de<br />
consumidor. Nas metrópoles do capitalismo contemporâneo dos parques temáticos, shopping<br />
centers, auto-pistas, a ascese exercitada nos lares de outrora, onde o intimismo traduz-se em<br />
virtude, é fadada ao fracasso. O jogo juvenil é atravessado por modalidades de cidade onde a<br />
carência nunca saciada faz da rua passagem, deserto, cenário, nada. A velocidade nesse espaço<br />
urbano homogeneizado produz nômades presos ao mesmo lugar, acumulando aceleradamente<br />
buscas nunca encontradas de coisas ou emoções que perecem antes de serem localizadas. Nessa<br />
busca, só restam fotogramas, luzes coloridas e espetáculos, seduzindo solitários consumidores,<br />
desatentos aos cantos e ruelas do consumo fracassado. Cantos e ruelas onde o tempo e o espaço<br />
insinuam outras texturas de cidades, interrompendo idas apressadas para lugar nenhum<br />
(Bauman, 1999).<br />
O garoto do brinquedo eletrônico, sem saber, é arremessado para Leônia, a cidade do prazer das<br />
coisas novas e diferentes:<br />
Nas calçadas, envoltos em límpidos sacos plásticos, os restos da Leônia de<br />
ontem aguardam a carroça do lixeiro. Não só tubos retorcidos de pastas de<br />
dentes, lâmpadas queimadas, jornais, recipientes, materiais de embalagem, mas<br />
também aquecedores, enciclopédias, pianos, aparelhos de jantar de porcelana:<br />
mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas,<br />
a opulência de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora<br />
para dar lugar às novas. Tanto que se pergunta se a verdadeira paixão de Leônia