TRAMAS E RESISTÊNCIAS DA DIFERENÇA
TRAMAS E RESISTÊNCIAS DA DIFERENÇA
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O COMBATE DO ÓS ERVOSO<br />
Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de<br />
estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas maneiras possíveis.<br />
Mas a resposta que mais me agradaria dar é outra: quem nos dera fosse possível uma obra<br />
concebida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu<br />
individual, não só para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que<br />
não tem palavra (...) A pedra, o cimento, o plástico.<br />
(Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milênio)<br />
O veludo da saia o intriga, exibindo sinais de algo anacrônico. Cobre pedaços de um longo<br />
corpo mas não consegue aquecê-lo, como se os estranhos poderes religiosos não funcionassem.<br />
Sob a saia curta, a perna morena caminha lentamente. O frio daquela noite contrai ainda mais os<br />
músculos exaustos de tanto andar. Circulando em alta velocidade, os carros contrastam com o<br />
ritmo dos seus passos. No bairro construído para ser imortal, a presença e o tempo dos<br />
movimentos cadenciados tornam-no discretamente visível. Alguns motoristas desaceleram os<br />
motores, atraídos por aquele estranho objeto; outros desejam a carne musculosa. Homens e<br />
mulheres curiosos param os motores, observando o solitário animal noturno sustentado por<br />
pernas vigorosas. A curiosidade desse público pouco a pouco o retira do anonimato e da discreta<br />
visibilidade, convertendo-o em fera acuada, exposta no zoológico urbano da alta velocidade;<br />
mas ele prossegue impávido o passeio, ostentando sensualidade e vigor. O corpo modelado por<br />
silicone exibe a transgressão das próteses desprezando destinos ou naturezas. Na imortalidade<br />
daquele lugar, a artificialidade do silicone a simular músculos provisórios revela ao viajante um<br />
inusitado contraste.<br />
No bairro de Roma denominado EUR, projetado por Mussolini nos anos 30, tudo é passagem ou<br />
cenário. O desejo de eternidade, o compromisso com o futuro inscrito em suas linhas emudecem<br />
qualquer objeto ou ser vivo, insistindo em emitir sinais de um tempo sem pressa. Nas largas<br />
avenidas, o cheiro de gasolina queimada e o rumor de carros em alta velocidade informam ser<br />
descartável e infinitamente só tudo o que é externo à racionalidade do seu desenho. Grandiosos,<br />
porém discretos nas cores, os prédios exibem suas fachadas, fazendo do espectador um ponto<br />
minúsculo ansioso em circular, como se a paisagem o estimulasse à busca voraz por algo<br />
desconhecido, ou então o transformasse em anônima inutilidade. Durante a noite, entre<br />
estacionamentos e citações da história romana, o bairro é extremamente silencioso; inexiste<br />
qualquer ruído ou vestígio de uso do lugar. Os parques arborizados estão sempre vazios: são<br />
caminhos atravessados por passos rápidos, espaço que repele o pedestre, estimulando-o a ser