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o lugar social imposto à mulher no romance clara dos anjos

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O LUGAR SOCIAL IMPOSTO À MULHER NO ROMANCE CLARA DOS<br />

ANJOS, (1922) DE LIMA BARRETO<br />

Juliana Bezerra de Oliveira Sachinski 1 (PG-UEMS)<br />

Resumo:<br />

Este artigo tem como objetivo analisar o <strong>lugar</strong> <strong>social</strong> <strong>imposto</strong> <strong>à</strong> <strong>mulher</strong> na obra Clara<br />

<strong>dos</strong> Anjos,(1994) de Afonso Henrique de Lima Barreto, na qual o autor mostra-se<br />

bastante preocupado com os problemas do cotidia<strong>no</strong> <strong>no</strong> início do século XX, dentre eles<br />

os preconceitos raciais, sociais e de gênero. O <strong>romance</strong> Clara <strong>dos</strong> Anjos, põe em relevo<br />

as zonas suburbanas e demonstra o papel da <strong>mulher</strong> e os preconceitos por ela sofri<strong>dos</strong><br />

naquele período, com atitudes como submissão, abando<strong>no</strong>, violência e vexame público.<br />

A <strong>mulher</strong> é retratada em um período em que o casamento era não só necessário para<br />

elas, como também moeda de troca. Em análise sociológica, observamos o<br />

patriarcalismo como forma de opressão, indicando assim o <strong>lugar</strong> <strong>social</strong> que deveriam<br />

ocupar <strong>à</strong>s <strong>mulher</strong>es da sociedade fluminense <strong>no</strong> período citado.<br />

PALAVRAS-CHAVE: papel da <strong>mulher</strong>; submissão; patriarcado; literatura feminina.<br />

Considerações iniciais<br />

O <strong>romance</strong> por vezes move-se por espaços concomitantes com a história, em um<br />

aspecto de reconstrução de sonhos ou realidades. O <strong>romance</strong> Clara <strong>dos</strong> Anjos, de<br />

Afonso Henriques de Lima Barreto, foi concluído em 1922, a<strong>no</strong> marcado pela Semana<br />

de Arte Moderna e pela morte do autor, embora, não possua compromisso em relatar a<br />

história, pode retratar a realidade de uma época. A obra é uma denúncia áspera tanto do<br />

preconceito racial e <strong>social</strong> quanto do papel submisso e sem voz das <strong>mulher</strong>es, sobretudo<br />

de Clara, que dá <strong>no</strong>me ao <strong>romance</strong>.<br />

A <strong>mulher</strong> está sujeita a um sistema moral, onde ela só participa de forma<br />

passiva, já que ela não detém a palavra, mas é “falada”. A <strong>mulher</strong> é<br />

repetidora de um discurso do qual não é sujeito. “Esse discurso exterior<br />

articula a questão da sexualidade feminina, em uma sociedade patriarcal, em<br />

que a <strong>mulher</strong> não ocupa o <strong>lugar</strong> privilegiado. Sabendo-se que é pela<br />

linguagem que se instaura toda forma de poder, destacaremos nas narrativas<br />

algumas formas de discursos mistificadores de que a heroína é vítima”<br />

(BRANDÃO & BRANCO, 2004, p. 44).<br />

Historicamente a <strong>mulher</strong>, em diversas culturas e épocas, é tratada de forma<br />

diminuta, como se na prática fosse oriunda de uma costela masculina. “Então o Senhor<br />

Deus fez cair pesado so<strong>no</strong> sobre o homem, e este adormeceu: tomou uma das suas<br />

costelas e [...] transformou-a numa <strong>mulher</strong>” (Gêneses cap. 2, 21). Em Clara <strong>dos</strong> Anjos,<br />

fica óbvia a denúncia do <strong>lugar</strong> <strong>social</strong> <strong>imposto</strong> <strong>à</strong>s <strong>mulher</strong>es representadas na obra, que<br />

1 Juliana Bezerra de Oliveira Sachinski, mestranda <strong>no</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras – Linha de<br />

pesquisa: Historiografia Literária – UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Unidade<br />

de Campo Grande – MS email: julianaboliveira@hotmail.com<br />

1


além de to<strong>dos</strong> os gravames quanto <strong>à</strong> liberdade, opções, decisões serem restringidas ou<br />

anuladas, o matrimonio é mostrado como o primeiro, talvez, o único objetivo das<br />

<strong>mulher</strong>es, e é o que se esperam os homens e as <strong>mulher</strong>es da sociedade fluminense de<br />

1922. O casamento era uma forma de obséquio que o homem prestava <strong>à</strong> <strong>mulher</strong>. Para<br />

garantir que sua filha continuasse donzela, não caísse <strong>no</strong> falatório popular, Engrácia,<br />

mãe de Clara e o carteiro Joaquim, o pai, não permitiam que a moça saísse de casa.<br />

Embora a literatura não tenha obrigação de narrar os fatos oficialmente, tal qual a<br />

história, ela pode tranquilamente representa-la. “A história não é me<strong>no</strong>s uma forma de<br />

ficção do que o <strong>romance</strong> é uma forma de representação histórica” (WHITE, 1994, p.<br />

138).<br />

Apresentação do escritor Lima Barreto<br />

Afonso Henriques Lima Barreto, filho do funcionário público João Henrique e<br />

da professora do primário Amália Augusta, nasceu em uma sexta-feira, dia 13 de maio<br />

de 1881. Lima Barreto teve oportunidade de receber uma boa instrução escolar, mesmo<br />

sendo um mulato, em um Brasil recém abolido oficialmente. Iniciou sua colaboração<br />

para a imprensa em 1902, ainda estudante.<br />

Lima utiliza-se de fortes traços autobiográficos em suas obras, e não é diferente<br />

em Clara <strong>dos</strong> Anjos, onde mostra entre outros traços, a contundente crítica <strong>à</strong> sociedade<br />

brasileira. Apesar de já ter publicado com êxito, e grande aceitação do público, as obras<br />

Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) e Triste Fim de Policarpo Quaresma<br />

(1915), Lima Barreto sofreu severas críticas por fugir do padrão empolado regente <strong>no</strong><br />

período, utilizando-se de uma linguagem coloquial, o que faz com que as tentativas de<br />

Lima Barreto em ingressar a Academia Brasileira de Letras não tivessem êxito.<br />

A temática <strong>social</strong> presente nas obras barretianas privilegia os pobres, os boêmios<br />

e os arruina<strong>dos</strong>, tendo como personagens principais em suas obras, negros/negras,<br />

pobres, pessoas simples, boemias e sem estudo. O escritor transformou pessoas simples<br />

em personagens centrais de seus <strong>romance</strong>s, tal como ocorre em Clara <strong>dos</strong> Anjos e, desta<br />

forma, torna seus <strong>romance</strong>s marca<strong>dos</strong> por um viés crítico e até áspero, pelos relatos<br />

transcritos de forma ácida em suas obras.<br />

Análise da perspectiva <strong>social</strong> e da linguagem utilizada por Lima Barreto<br />

A personagem Clara, ao contrário do significado de seu <strong>no</strong>me, é mulata, pobre,<br />

sem instrução, voltada aos trabalhos domésticos, <strong>à</strong> cópia de modinhas tocadas na época,<br />

aos borda<strong>dos</strong> que aprendera com Dona Margarida e aos sonhos. Uma vez que não<br />

2


conhecia nada do mundo, não saía, não estudava, não trabalhava fora porque o pai não<br />

permitia, Clara se punha a sonhar, embalada pelas modinhas que copiava a pedido do<br />

pai, o carteiro Joaquim <strong>dos</strong> Anjos.<br />

Conforme constata-se com trechos da obra, Clara queria casar-se para “libertar-<br />

se, passear, conhecer a cidade, teatros, cinemas... Ela não conhecia nada disso (LIMA<br />

BARRETO, 1994, p. 91)”. A mulata vive <strong>no</strong> subúrbio carioca com seus pais, Joaquim e<br />

Engrácia. A mãe é sedentária e caseira, abstendo-se de sair a rua mesmo quando tinha<br />

necessidade. O pai trabalhava como carteiro e o seu rendimento era o único da casa,<br />

pois Engrácia e Clara não possuíam trabalho remunerado.<br />

Assim como muitas moças da época, Clara não trabalhava fora. Até porque raras<br />

vezes as jovens trabalhavam fora, e quando trabalhavam, era <strong>no</strong> período de solteirice.<br />

Uma <strong>mulher</strong> casada que possuísse seu salário, sua independência econômica, era um<br />

risco para o marido, já que não dependia de seus rendimentos poderia tornar-se<br />

independente dele, e assim, o homem perderia o comando da casa, ou pelo me<strong>no</strong>s da<br />

esposa. O rendimento pouco que obtinha era com a vizinha Dona Margarida, que por<br />

seu esporádico auxílio em encomendas de borda<strong>dos</strong> e cosi<strong>dos</strong> lhe pagava algum<br />

dinheiro, que a moça guardava para si.<br />

A ideologia que a <strong>mulher</strong> só se realizava <strong>no</strong> matrimonio fazia com que ela,<br />

mesmo desfrutando de alguma independência ao exercer certas atividades,<br />

abdicasse deste privilégio para tornar-se prisioneira do marido e do lar.<br />

Pressões sociais levavam-na a preferir ser definida em função dele, e não de<br />

si própria. Esta situação de dependência total perdurou até bem pouco tempo.<br />

Era comum a <strong>mulher</strong> trabalhar enquanto solteira, mas, logo que arranjasse<br />

marido, largava o emprego para cuidar da casa e <strong>dos</strong> filhos. E não raro o fazia<br />

por imposição de seu <strong>no</strong>vo do<strong>no</strong> (VASCONCELOS, 1999, p. 98).<br />

A figura do homem representada na obra de Lima Barreto, achava-se ligado<br />

sempre <strong>à</strong> coletividade, como um ser produtivo e ao mesmo tempo livre. Joaquim era<br />

funcionário público, carteiro; seu amigo Eduardo Lafões era guarda de obra pública;<br />

Leonardo Flores era poeta; Marramaque, seu compadre e amigo era poeta e frequentava<br />

rodas literárias; Cassi, apesar de não possuir emprego fixo, além de liberto possuía<br />

renda com rinhas de galos e qualquer outra coisa ilícita que conseguisse. Meneses era<br />

dentista “prático”, apesar de não possuir estudo nem diploma, por preços módicos<br />

limpava e extraía dentes. Manuel, pai de Cassi, era funcionário público há mais de 30<br />

a<strong>no</strong>s. To<strong>dos</strong> os homens cita<strong>dos</strong> na obra ganhavam dinheiro, mesmo que pouco e<br />

insuficiente para as despesas, e andavam livremente pelas ruas.<br />

3


Já as <strong>mulher</strong>es não adotavam essa postura. Normalmente, pouco saíam de casa e<br />

quando o faziam, eram acompanhadas, para desti<strong>no</strong>s certos, como a venda, o cinema, o<br />

comércio, e desses endereços direto para seus respectivos lares. A exceção é Dona<br />

Margarida, que viúva, fazia trabalhos manuais para o sustento seu e de seu filho<br />

peque<strong>no</strong>.<br />

Por ser cerceada em sua liberdade, a <strong>mulher</strong> sonhava com o casamento para<br />

poder ser mais “livre”. Esta liberdade restringia-se somente <strong>à</strong>s decisões domésticas, já<br />

que na casa <strong>dos</strong> pais tais decisões como: o que comprar <strong>no</strong> armazém, servir a mesa e a<br />

cor das cortinas era da mãe.<br />

A vida da <strong>mulher</strong> vai resumindo-se em despedir-se do marido pela manhã,<br />

cuidar da casa durante o dia e esperar seu regresso, <strong>à</strong> <strong>no</strong>ite. Para Simone de<br />

Beauvoir, a vida da <strong>mulher</strong> depois de casada está definitivamente acabada<br />

(BEAUVOIR, apud. VASCONCELOS, 1999, p. 97).<br />

É o que ocorreu com Engrácia, mãe de Clara. “Recebeu boa instrução, para a sua<br />

condição e sexo: mas, logo que se casou - como em geral acontece com as <strong>no</strong>ssas<br />

moças-, tratou de esquecer o que tinha estudado” (LIMA BARRETO, 1994, p. 88). Às<br />

<strong>mulher</strong>es faltava auto<strong>no</strong>mia. Seu comportamento era <strong>imposto</strong> não somente pelo costume<br />

ou falta de opção, era também <strong>imposto</strong> pelo Código Civil.<br />

Segundo pesquisa de Vasconcelos, <strong>no</strong> Código Civil de 1922, artigo 233: o<br />

marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da<br />

<strong>mulher</strong>, <strong>no</strong> interesse comum do casal e <strong>dos</strong> filhos. Já <strong>no</strong> artigo 246 do referido Código<br />

lê-se: É atribuído <strong>à</strong> <strong>mulher</strong> o dever de obediência ao marido. (VASCONCELOS, pg. 28,<br />

1999).<br />

O Código Civil representa os pensamentos políticos e sociais da época, já que<br />

ele foi feito e é modificado para atender <strong>à</strong>s regras sociais e humanas de um povo. O<br />

Código Penal, de 1890, em nada se distancia <strong>dos</strong> artigos do Código Civil, não<br />

propiciando <strong>à</strong> <strong>mulher</strong> direito <strong>à</strong> defesa ou até mesmo escolha. No artigo 276, se lê:<br />

Institui: <strong>no</strong>s casos de defloramento, como <strong>no</strong>s de estupro de <strong>mulher</strong> honesta,<br />

a sentença que condenar o crimi<strong>no</strong>so o obrigará a dotar a ofendida.Parágrafo<br />

único. Não haverá <strong>lugar</strong> imposição de pena se seguir-se o casamento a<br />

aprazimento do representante legal da ofendida, ou do juiz <strong>dos</strong> órfãos, <strong>no</strong>s<br />

casos em que lhe compete dar ou suprir o consentimento, ou a aprazimento<br />

da ofendida, se for maior (In VASCONCELOS, 1999, p. 82).<br />

Para uma sociedade onde casar com o estuprador era um “mérito”, pode-se dizer<br />

que casar, independentemente do caráter do esposo, era realmente muito importante.<br />

Este fato é relatado em Clara <strong>dos</strong> Anjos, fato ocorrido com Ernestina, que após ser<br />

deflorada por Ataliba do Timbó, amigo de Cassí Jones, foi obrigado a casar-se com ela.<br />

4


E a ofendida, como de costume, não pode se negar a isso. Decerto que ela não o amava,<br />

mas sujeitava-se a ficar ao seu lado, já que como as outras moças da época foram<br />

educadas e condicionadas a desenvolver um papel de esposa e mãe. Neste caso, não se<br />

casar seria uma grande desonra e vergonha.<br />

Lima Barreto faz algumas observações quanto ao fato:<br />

Tão alegre, tão tagarela, era moça, e bonitinha, na sua fisio<strong>no</strong>mia miúda e na<br />

sua tez parda-<strong>clara</strong>, um tanto baça, é verdade, mas não a ponto de enfeia-la<br />

quando conheceu Ataliba: e hoje? Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair<br />

sofrimentos de toda a espécie, sempre mal calçada, quando, <strong>no</strong>s tempos de<br />

solteira, o seu luxo eram os sapatos! Quem te viu e quem te vê! (LIMA<br />

BARRETO, 1994, p. 56).<br />

Ataliba Timbó foi infeliz na sua tentativa de seduzir, deflorar, e sumir, como<br />

fazia Cassi Jones. Tentou imitá-los, mas foi obrigado pela polícia a casar-se como<br />

reparo do mal feito. Cassí sim era mestre em seduzir mulatas pobres e depois de<br />

engravidá-las, ou simplesmente se cansar delas e abandoná-las. Grande parte dessas<br />

pobres moças nunca mais se casavam o que para o contexto <strong>social</strong> era uma tragédia<br />

familiar.<br />

A exceção das moças seduzidas por Cassí foi Nair que, apesar de ser seduzida<br />

por ele, casou-se, posteriormente, com um oficial do exército. Não são fornecidas<br />

maiores informações quanto a eles, mas entende-se que a união deles foi por amor.<br />

O papel histórico do <strong>lugar</strong> <strong>social</strong> da <strong>mulher</strong> na sociedade fluminense.<br />

A crítica exposta em Clara <strong>dos</strong> Anjos está relacionada <strong>à</strong> submissão feminina e<br />

ao sistema do patriarcado. Apesar de cada civilização unir as questões de gênero a<br />

aspectos de sua estrutura cultural e institucional, de forma geral, o patriarcado foi<br />

instaurado na sociedade quando elas se tornaram “civilização”. Por volta do quarto<br />

milênio (antes da era cristã) quando as sociedades passam a se organizar para a<br />

agricultura:<br />

À medida que as civilizações se desenvolveram, a partir <strong>dos</strong> contatos e das<br />

limitações das trocas, os sistemas de gênero-relações entre homens e<br />

<strong>mulher</strong>es, determinação de papéis e definições <strong>dos</strong> atributos de cada sexo –<br />

foram tomando forma também. Por fim, essa evolução haveria de se<br />

entrelaçar com a das civilizações. O deslocamento da caça e coleta para a<br />

agricultura pôs fim gradualmente a um sistema de considerável igualdade<br />

entre homens e <strong>mulher</strong>es. Na caça e na coleta, ambos os sexos, trabalhavam<br />

separa<strong>dos</strong>, contribuíam com bens econômicos importantes. As taxas de<br />

natalidade eram consideradas relativamente baixas e mantidas assim em parte<br />

pelo aleitamento prolongado. Em conseqüência disso, o trabalho das<br />

<strong>mulher</strong>es em juntar grãos e <strong>no</strong>zes era facilitado, pois nascimentos muito<br />

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freqüentes e cuida<strong>dos</strong> com crianças pequenas seria uma sobrecarga. A<br />

agricultura estabelecida, <strong>no</strong>s locais em que se espalhou, mudou isso,<br />

beneficiando o domínio masculi<strong>no</strong>. (STEARNS. 2007, p. 31).<br />

Como a agricultura foi se espalhando aos poucos pela maioria das sociedades,<br />

juntamente com ela, veio o domínio masculi<strong>no</strong>, apoiado pelas religiões politeístas, que<br />

apontavam para a importância das deusas, como geradoras de força criativas e também<br />

associadas <strong>à</strong> fecundidade. Assim tendo vital importância para a agricultura, a <strong>no</strong>va<br />

eco<strong>no</strong>mia promovia uma hierarquia de gênero maior. Os homens, em geral, passaram<br />

então a ser responsáveis pela plantação e as <strong>mulher</strong>es, faziam alguns trabalhos<br />

periféricos. Desta forma, a taxa de natalidade subiu, possivelmente, pelo aleitamento<br />

mater<strong>no</strong> por prazo maior e aos poucos a <strong>mulher</strong> foi ficando cada vez mais domesticada,<br />

pois, sem poder econômico, tor<strong>no</strong>u-se totalmente submissa.<br />

Com as <strong>mulher</strong>es tendo como prioridade suas gestações e os cuida<strong>dos</strong> com as<br />

crianças, o cenário dominantemente masculi<strong>no</strong> forma-se, aos poucos, e, assim, vai se<br />

alastrando <strong>à</strong> grande maioria da cultura local de cada sociedade, com pequenas<br />

diferenças.<br />

e afirma:<br />

Peter N. Stearns discorre sobre as sociedades patriarcais desde antes da era cristã<br />

Nas sociedades patriarcais, os homens eram considera<strong>dos</strong> criaturas<br />

superiores. Tinham direitos legais que as <strong>mulher</strong>es não possuíam (embora as<br />

leis protegessem as <strong>mulher</strong>es de alguns abusos, pelo me<strong>no</strong>s <strong>no</strong> princípio).<br />

Assim, o Código de Hamurabi, na Mesopotâmia, a partir do segundo milênio<br />

e.c., estabelecia que uma <strong>mulher</strong> que não “tenha sido uma dona-de-casa<br />

cuida<strong>dos</strong>a, tenha vadiado, negligenciado sua casa e depreciado seu marido”<br />

deveria ser “jogada na água”. Não havia contrapartida disso para os homens,<br />

embora o código estabelecesse que a esposa poderia abandonar o marido se<br />

ele não provesse suas necessidades (STEARNS, 2007, p. 32).<br />

Além de tais demonstrações de atitudes patriarcais em sociedades anteriores ao<br />

período cristão, diversas sociedades barravam a independência feminina e eram mais<br />

severas em julgamentos quando se tratava do “segundo sexo”.<br />

Muitas sociedades agrícolas impediram as <strong>mulher</strong>es de possuírem<br />

propriedades de forma independente. Muitas permitiam que os homens<br />

tivessem várias <strong>mulher</strong>es (se pudessem sustenta-las). A maior parte punia as<br />

ofensas sexuais das <strong>mulher</strong>es – por exemplo, o adultério – muitas mais<br />

severamente do que as <strong>dos</strong> homens. De fato, alguns historiadores<br />

argumentam que uma justificativa-chave para a existência do patriarcado era<br />

garantir, como o máximo de certeza possível, que os filhos de uma <strong>mulher</strong><br />

fossem do marido (STEARNS, 2007, p. 32).<br />

Tal atitude decorre da vontade em se manter as propriedades e encaminhá-las <strong>à</strong>s<br />

próximas gerações através da herança. Porém, o marido, uma vez chefe da família,<br />

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sentia a necessidade de controlar a herança de gerações futuras, tendo assim a certeza<br />

que transmitiria os bens da família a um filho genuí<strong>no</strong>, e com isso, iniciou regulando a<br />

sexualidade das esposas.<br />

Daí advém outra atitude patriarcal, pois as famílias passaram a ter preferência<br />

por filhos <strong>à</strong>s filhas, uma vez que um meni<strong>no</strong> seria mão de obra disponível em casa.<br />

Enquanto que uma menina seria sinônimo de necessidade de vigilância, e mais gastos<br />

que lucro, já que os trabalhos destina<strong>dos</strong> <strong>à</strong> ela seriam de me<strong>no</strong>r valor agregado. Com<br />

isso, a desigualdade entre o gênero femini<strong>no</strong> e o masculi<strong>no</strong> foi se instalando. O alcance<br />

do patriarcalismo poderoso e extenso embutido na religião foi ainda inserido <strong>no</strong>s<br />

quesitos religiosos de diversas sociedades.<br />

A desigualdade das <strong>mulher</strong>es tendeu, além do mais, a aumentar com o passar<br />

do tempo, <strong>à</strong> medida que as civilizações agrícolas se tornavam mais bemsucedidas.<br />

A lei judaica, surgida um pouco depois do Código Hamurabi, era<br />

mais severa <strong>no</strong> tratamento da sexualidade das <strong>mulher</strong>es ou de seu papel<br />

público. Em outras partes do Oriente Médio, surgiu o uso do véu quando as<br />

<strong>mulher</strong>es estivessem em público, como sinal de sua inferioridade e de seu<br />

pertencimento a pais e mari<strong>dos</strong>. A deterioração <strong>dos</strong> papéis das <strong>mulher</strong>es na<br />

China apareceu com o costume de enfaixar os pés, sob a dinastia Tang,<br />

depois que termi<strong>no</strong>u o período clássico; os peque<strong>no</strong>s ossos <strong>dos</strong> pés das<br />

meninas eram quebra<strong>dos</strong> para impedir que andassem com facilidade, e o jeito<br />

desajeitado de andar que resultou disso era recebido como sinal de beleza e<br />

modéstia respeitável (STEARNS, 2007, p. 33).<br />

Tais práticas, como enfaixar os pés das moças na China, apesar de parecerem em<br />

primeira análise muito distantes de <strong>no</strong>ssa atual realidade, somente foram encerradas <strong>no</strong><br />

início do século XX.<br />

O papel da <strong>mulher</strong>, em Clara <strong>dos</strong> Anjos<br />

Em Clara <strong>dos</strong> Anjos, percebe-se ainda latente o patriarcalismo. Clara não<br />

estudava e não trabalhava. Engrácia, sua mãe, também não. Esta atitude, <strong>no</strong> entanto,<br />

estava amparada <strong>no</strong> Código Civil regente <strong>no</strong> período. No Art. 233 – [O marido é o chefe<br />

da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da <strong>mulher</strong>, <strong>no</strong> interesse<br />

comum do casal e <strong>dos</strong> filhos.] Somente em 2002, com o <strong>no</strong>vo Código Civil, regente <strong>no</strong>s<br />

dias atuais, esta lei foi substituída pelo Artigo 1.567, onde cita: A direção da sociedade<br />

conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela <strong>mulher</strong>, sempre <strong>no</strong> interesse<br />

do casal e <strong>dos</strong> filhos. Parágrafo único. Havendo divergência, qualquer <strong>dos</strong> conjugues<br />

poderá tendo em consideração <strong>à</strong>queles interesses (BRASIL, 1981, p. 165).<br />

7


Não se pode afirmar que para o homem a necessidade do casamento existisse,<br />

uma vez que a esses valia o fato de serem bem sucedi<strong>dos</strong>, <strong>no</strong> sentido de manter o seu<br />

sustento. Para as <strong>mulher</strong>es o casamento era necessário, já que não possuíam renda e não<br />

movimentavam a eco<strong>no</strong>mia com o trabalho pago, mas sim com o trabalho doméstico<br />

não remunerado, as <strong>mulher</strong>es representavam despesas a mais na casa onde moravam,<br />

seja na casa <strong>dos</strong> pais, parentes próximos, ou até na casa de tutores.<br />

Tais despesas tornariam-se um problema ainda maior para a família de classe<br />

baixa, sobretudo para a família negra, tendo em vista que a abolição da escravidão<br />

ocorreu apenas em 13 de maio de 1888. Sobre a situação da <strong>mulher</strong> negra, Vasconcelos<br />

afirma o seguinte:<br />

Se, para a <strong>mulher</strong> branca e de classe <strong>social</strong> mais elevada, as núpcias eram de<br />

suma importância, para as de cor e de classe <strong>social</strong> mais modesta eram<br />

indispensáveis, pois, existindo poucas oportunidades <strong>no</strong> mercado de trabalho,<br />

o enlace era-lhes proposto como o único meio de viver com respeitabilidade.<br />

Quando não se casavam, suas oportunidades encontravam-se reduzidas. As<br />

mais ricas poderiam viver na dependência econômica <strong>dos</strong> pais, de um irmão<br />

ou de algum parente do sexo masculi<strong>no</strong>, como agregadas. As mais pobres,<br />

geralmente de cor, não tendo a quem recorrer e quase sem possibilidades de<br />

desenvolver uma atividade remunerada, não raro, eram obrigadas a exercer a<br />

mais velha das “profissões”, pois “seu único bem era seu próprio corpo”.<br />

Aquelas das classes carentes viviam me<strong>no</strong>s protegidas e sujeitas <strong>à</strong> exploração<br />

sexual. Além do mais, era comum na época o pensamento de que a negra<br />

tinha por desti<strong>no</strong> a prostituição. Não podemos <strong>no</strong>s esquecer de que o regime<br />

escravocrata havia terminado há apenas alguns a<strong>no</strong>s e a ideologia ditava que<br />

a <strong>mulher</strong> branca era a esposa imaculada, e a negra era a amante, a que<br />

proporcionava os prazeres do sexo (VASCONCELOS, 1999, p. 80).<br />

Para garantir que a possibilidade do casamento fosse balizada, as famílias<br />

velavam pela guarda de suas donzelas. Até porque, nestes casos, a honra delas estava na<br />

garantia de que seus hímens estariam intactos. Assim, caso não fossem virgens, a<br />

possibilidade de um casamento que assegurasse a sua respeitabilidade era praticamente<br />

nula.<br />

Para assegurar que a filha continuasse virgem, não fosse falada pela sociedade<br />

local e assim assegurasse algum casamento, Joaquim e Engrácia, pais de Clara, a<br />

mantinham em casa e sob vigilância velada. Ela dificilmente saía de casa, a não ser para<br />

ir bem perto, <strong>à</strong> casa de Dona Margarida, aprender a bordar e a costurar, ou com esta ir<br />

ao cinema e <strong>à</strong>s compras de fazendas e calçado. A casa dessa senhora ficava a quatro<br />

passos de distância da do carteiro. Apesar de ser uso, <strong>no</strong>s subúrbios, irem as senhoras e<br />

moças <strong>à</strong>s vendas fazer compras, Dona Engrácia, sua mãe, nunca consentiu que ela o<br />

fizesse, embora, de sua casa se avistasse tudo o que se passava, <strong>no</strong> armazém do “Seu”<br />

8


Nascimento, fornecedor da família, as compras eram entregues na porta de sua casa.<br />

Logo pela manhã, Joaquim levava até a venda uma lista <strong>dos</strong> alimentos necessários e<br />

logo depois “Seu” Nascimento mandava entregar <strong>à</strong> sua porta as encomendas.<br />

Além <strong>dos</strong> cuida<strong>dos</strong> para garantir o casamento e também de moças seduzidas,<br />

temos em Clara <strong>dos</strong> Anjos o relacionamento <strong>dos</strong> casais: Engrácia e Joaquim <strong>dos</strong> Anjos,<br />

Salustiana e Manuel Borges de Azevedo, e Castorina e Leonardo Flores. Modelo de<br />

casamento, Engracia é o protótipo da submissão dentro do casamento.<br />

Engrácia casou-se e livrou-se do desti<strong>no</strong> natural das raparigas de sua<br />

condição e cor, exposta <strong>à</strong> corrupção e a priori “condenada” (LIMA<br />

BARRETO, 1994, p. 71). Fraca e incapaz de tomar qualquer iniciativa,<br />

depende, em tudo, do marido. Tinha um temperamento “inerte, passivo”<br />

(LIMA BARRETO, 1994, p. 87) e a “não ser para os serviços domésticos,<br />

Engrácia evitava todo o esforço de qualquer natureza” (LIMA BARRETO,<br />

1904, p. 88). Só saía duas vezes por a<strong>no</strong>: <strong>no</strong> dia de Nossa Senhora da Glória e<br />

<strong>no</strong> de Nossa Senhora da Conceição (LIMA BARRETO, 1994, p. 85).<br />

Da união de “Dona Salustiana” pouco participa o leitor. Conquanto tivesse<br />

pretensões aristocráticas, havia-se casado com Manuel, “quando este ainda era<br />

praticante e revia provas, <strong>à</strong> <strong>no</strong>ite, <strong>no</strong>s jornais, para acudir <strong>à</strong>s despesas de casa” ( LIMA<br />

BARRETO, 1994, p. 48)<br />

Dona Castorina, casada com o poeta Leonardo Flores, levava uma vida<br />

domestica mais rica, atenta aos interesses intelectuais do marido, coisa rara<br />

então. O radical de seu <strong>no</strong>me –castor, que significa: distingui-se _, já mostra<br />

essa peculiaridade sua. As outras duas personagens, Salustiana e Engrácia,<br />

tinham existência tranqüila, representavam a família burguesa suburbana,<br />

sempre em casa a cuidar <strong>dos</strong> afazeres domésticos e <strong>dos</strong> filhos, enquanto seus<br />

esposos trabalhavam para prover o sustento delas e da prole. Não tinham<br />

grandes aspirações (VASCONCELOS, 1999, p. 86).<br />

Apesar de Castorina ter consciência de não ter um casamento ple<strong>no</strong> de<br />

felicidade, e de o marido haver-lhe dado mais trabalho que os filhos, atendia a tudo com<br />

dedicação e “nunca articulou uma acusação contra Flores” (LIMA BARRETO, 1994, p.<br />

131). Sua conformação era total: “Sofria to<strong>dos</strong> os desman<strong>dos</strong> do marido com resignação<br />

e longanimidade” (LIMA BARRETO, 1994, p. 131). E fazia tudo o que estava a seu<br />

alcance para prover um ambiente adequado para que Flores melhor desenvolvesse suas<br />

atividades literárias: “Esse seu gênio, esse seu temperamento de doçura e perdão em<br />

face da exaltação, da exacerbação, até que delírio, do marido, fizera que este produzisse<br />

o que produziu” (LIMA BARRETO, 1994, p.131). Era mais do que <strong>mulher</strong>, chegando<br />

algumas vezes a proceder como mãe: “Dona Castorina, a <strong>mulher</strong> de Flores, de vez em<br />

vez, repreendia-o como a um filho me<strong>no</strong>r: _ Come com mo<strong>dos</strong>, Flores! Você parece<br />

uma criança” (LIMA BARRETO, 1994, p. 182).<br />

9


Desta forma, a <strong>mulher</strong> ideal seria aquela que se sujeitasse a servir de pa<strong>no</strong> de<br />

fundo na vida do homem. Deveria ser submissa, sem interferir na vida <strong>social</strong> e/ou<br />

política e ser discreta.<br />

O imaginário da felicidade conjugal, do lar perfeito demonstrado em Clara <strong>dos</strong><br />

Anjos, é um lar tranquilo, composto por filhos, um homem e uma <strong>mulher</strong> que se<br />

amassem, uni<strong>dos</strong> pelo carinho e pela compreensão. No entanto, não é este o cenário<br />

apresentado na obra quanto <strong>à</strong> vida, sobretudo das <strong>mulher</strong>es casadas. O casamento se<br />

mostra como uma armadilha imposta pela sociedade.<br />

Assim, o sistema patriarcal pode ser visto como um formato de pirâmide, onde<br />

<strong>no</strong> topo, está o homem em suas múltiplas funções: pai, marido, chefe, enfim. Dele se<br />

espera todas as iniciativas e nele se concentra todo o poder. A esposa e os filhos estão<br />

na base da pirâmide, obedecendo e servindo o topo. Para que esse sistema não se<br />

invertesse, foi negada <strong>à</strong> <strong>mulher</strong> a independência econômica.<br />

O homem em geral não pode entender que ela ganhe dinheiro como ele,<br />

porque sua independência econômica significa emancipação. Não tendo<br />

como manter-se, é obrigada a aceitar a idéia de que ele tem o direito natural<br />

de mandar e de ser obedecido [...] No texto de Lima Barreto, o homem<br />

achava-se ligado <strong>à</strong> coletividade como ser produtivo; a <strong>mulher</strong> permanecia<br />

improdutiva (VASCONCELOS, 1999, p. 98).<br />

É certo que, realmente, a <strong>mulher</strong> constituía família ao casar-se, mas mantinha-se<br />

na mesma situação de dependência. Antes do pai, e após contrair matrimônio, do<br />

marido. Sua vida, restrita ao ambiente doméstico, não corresponde <strong>à</strong>s suas expectativas.<br />

Com a condição de <strong>mulher</strong> presa ao lar, as <strong>mulher</strong>es casadas desse período,<br />

representadas na obra Clara <strong>dos</strong> Anjos, vêem seus sonhos desfeitos em relação ao<br />

casamento, uma vez que não desenvolvem maiores atividades, são restritas ao lar e <strong>à</strong>s<br />

amenidades domésticas bem como os filhos. Clara não possui vida <strong>social</strong>. Leia-se vida<br />

<strong>social</strong> do período citado que, em geral, era ir <strong>à</strong>s visitas, casas de moda, sessões<br />

cinematográficas. Ela possuía apenas dedicação aos trabalhos de agulha, trabalhos<br />

domésticos e cópias de letras e <strong>no</strong>tas de modinhas, o que servia apenas para manter as<br />

mãos ocupadas.<br />

Clara era “amorfa” e “pastosa”, como afirma o próprio Lima Barreto. Sua vida<br />

era de amenidades, de peque<strong>no</strong>s fatos. Idas <strong>à</strong> casa de Dona Margarida, para fazer<br />

trabalhos de agulha e retor<strong>no</strong> seguido para casa, local de seus sonhos com um amor<br />

impossível.<br />

O estudo não era o foco das <strong>mulher</strong>es, até porque algumas famílias nem o<br />

permitiam <strong>à</strong>s <strong>mulher</strong>es. E mesmo <strong>mulher</strong>es que tiveram contato com a educação, não<br />

era garantia que essas fizessem uso <strong>dos</strong> ensi<strong>no</strong>s para sua vida cotidiana, ou até como<br />

10


capacitação profissional para se empregarem <strong>no</strong> mercado de trabalho. Sobre Engrácia,<br />

Lima Barreto narra: “Recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo: mas, logo que<br />

se casou (como em geral acontece com as <strong>no</strong>ssas moças), tratou de esquecer o que tinha<br />

estudado” (LIMA BARRETO, 1994, p. 88).<br />

No <strong>romance</strong>, logo nas primeiras páginas, ficamos sabendo que Cassí Jones,<br />

próximo de completar 30 a<strong>no</strong>s, já contava em seu currículo mais de dez defloramentos e<br />

a sedução de um número ainda maior de <strong>mulher</strong>es casadas. Uma de suas vítimas foi<br />

Inês, uma crioula copeira da família. Além dela, houve ainda Luísa, empregada do<br />

doutor Camacho; Santinha, que auxiliava a mãe nas costuras; Bernarda que era<br />

empregada de Joie de Vivre, Nair e outras mais. Inês, ex-empregada da família, <strong>no</strong><br />

entanto, é quem ganha voz ao ter a oportunidade de encarar Cassí. Este teria cortado<br />

caminho por bairros da periferia e passado por um beco imundo na tentativa de não ser<br />

visto por nenhum conhecido, já que tinha como objetivo depositar alta quantia em<br />

dinheiro, resultante de jogatinas e rinhas de galo. Neste cenário, Cassí encontra Inês, em<br />

absoluta miséria, embriagada e prostituída.<br />

O diálogo travado entre os dois deixa claro o posicionamento inferior de Inês,<br />

que não possui discurso. Para negar que conhecia Inês, Cassí fala: “_Eu não conheço<br />

essa <strong>mulher</strong>. Juro...” Inês, indignada, não consegue expressar através do discurso o que<br />

realmente teria ocorrido, e responde a Cassí aos gritos na rua: “_Muié, não” _fez a tal<br />

Inês, gingando. _Quando você “mi” fazia “festa”, “mi” beijava e “mi” abraçava, eu não<br />

era “muié”, era outra coisa, seu “coisa” ruim!” (LIMA BARRETO, 1994, p. 172).<br />

Podemos perceber a falta de argumentação e a pobreza do discurso dela para<br />

com Cassí que é explícita. Um <strong>dos</strong> pontos de inferioridade de Inês está exposto em seu<br />

discurso, ou melhor, na falta dele. Por pertencer ao “segundo sexo”, expressão<br />

inaugurada por Simone de Beauvoir para designar as <strong>mulher</strong>es, ser negra e pobre sua<br />

situação está resumida em degradação física, moral e <strong>social</strong>. A palavra <strong>mulher</strong> gera<br />

indignação em Inês, uma vez que a carga semântica desta palavra é muito negativa, de<br />

caráter sexual. O que Cassí afirma, de fato, é que ele não conhece aquela prostituta. A<br />

palavra homem, <strong>no</strong> entanto, não traz consigo co<strong>no</strong>tação pejorativa.<br />

Inês continua sua fala afirmando que Cassí é um “home qui mi fez mal”, que<br />

“mi desonrou” e que “mi pois nesta disgraça” (LIMA BARRETO, 1994, p. 173). Inês<br />

ao deixar de ser virgem, perdeu sua honra. Estava para sempre desmoralizada, não seria<br />

capaz de se redimir junto <strong>à</strong> sociedade e, portanto, caía em desgraça. Cassí nada sofreu<br />

com isso, não houve sanção nem mesmo punição ou desmoralização <strong>social</strong> pela sua<br />

11


atitude. Isso não ocorre apenas com Inês. A mãe de Nair, outra vítima de Cassí, se<br />

matou depois de descobrir que a filha estava grávida.<br />

No período em que foi publicada a obra Clara <strong>dos</strong> Anjos, as <strong>mulher</strong>es ainda não<br />

possuíam direito ao voto, quanto me<strong>no</strong>s <strong>à</strong> candidaturas. Aliás, com base na obra e em<br />

outros relatos, as <strong>mulher</strong>es cariocas deste período sequer eram incluídas nas conversas<br />

políticas ou rodas sociais, sendo meramente procriadoras e tidas como “bibelôs”<br />

decorativos em suas casas. Somente uma década depois é que o voto foi permitido <strong>à</strong>s<br />

<strong>mulher</strong>es, mas ainda da forma facultativa.<br />

Através do Decreto Lei de número 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, o<br />

presidente Getúlio Vargas discipli<strong>no</strong>u que era eleitor “o cidadão maior de 21<br />

a<strong>no</strong>s, sem distinção de sexo, alistado na forma do código. É de ressaltar que<br />

as disposições transitórias, <strong>no</strong> artigo 121, dispunham que os homens com<br />

mais de 60 a<strong>no</strong>s e as <strong>mulher</strong>es em qualquer idade podiam isentar-se de<br />

qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral. Logo, não havia<br />

obrigatoriedade do voto femini<strong>no</strong>”.<br />

(http://www.al.sp.gov.br/web/eleicao/<strong>mulher</strong>_voto.htm)<br />

Somente em 1934, as restrições ao ple<strong>no</strong> exercício do voto femini<strong>no</strong> foram<br />

eliminadas, <strong>no</strong> entanto, o Código Civil não tornava obrigatório o voto femini<strong>no</strong>. Mas<br />

somente o masculi<strong>no</strong>. O voto femini<strong>no</strong>, sem restrições, só passou a ser obrigatório em<br />

1946, e em 1988 passou a ser obrigatório <strong>à</strong>s <strong>mulher</strong>es e aos homens, com mais de 18<br />

a<strong>no</strong>s, e facultativo aos maiores de 16. Mesmo assim, ainda hoje, temos um número<br />

reduzido de <strong>mulher</strong>es <strong>no</strong>s poderes executivo e legislativo, tendo sido eleita a primeira<br />

<strong>mulher</strong> presidenta, <strong>no</strong> país somente em 2010.<br />

Em relação ao trabalho como um <strong>dos</strong> fatores sociais de análise, existem diversos<br />

relatos históricos quanto ao trabalho femini<strong>no</strong> como ajuda ou sustento total das famílias<br />

pobres, neste período. Porém, especificamente em Clara <strong>dos</strong> Anjos, o trabalho femini<strong>no</strong><br />

somente é bem visto se feito na solteirice desde que não fosse para o sustento real da<br />

casa. Enfim, não só a <strong>mulher</strong> assim como o trabalho femini<strong>no</strong>, também, foi<br />

desprestigiado pela sociedade patriarcal na qual se inclui Lima Barreto.<br />

Qual a reinvindicação <strong>social</strong> para a <strong>mulher</strong> que o escritor questiona?<br />

Para demonstrar que é possível um mundo dig<strong>no</strong> para <strong>à</strong>s <strong>mulher</strong>es, o escritor<br />

traz como exemplo: Dona Margarida Weber Pestana, que aliás, não foi educada <strong>no</strong><br />

Brasil, era russa com descendência alemã, viúva do tipógrafo Ezequiel.<br />

12


Dona Margarida é uma <strong>mulher</strong> forte, que resolveu permanecer viúva, e por ter<br />

consciência de seu gênero e condição na sociedade em que vive, toma sempre atitudes<br />

rígidas para manter os homens distantes. Até porque, o falatório poderia colocar em<br />

questão sua idoneidade. Dona Margarida é a única <strong>mulher</strong> em Clara <strong>dos</strong> Anjos que se<br />

porta de forma diferente. Ela prove o seu sustento e o do filho. Frequenta os espaços<br />

públicos com trabalho de venda, que apesar de serem trabalhos de agulha, típicos do<br />

gênero femini<strong>no</strong>, são comercializa<strong>dos</strong>. Ela ficara viúva dois a<strong>no</strong>s depois de casada e<br />

com um filho peque<strong>no</strong>. É uma personagem ativa, enérgica e absolutamente<br />

independente. É uma pessoa de iniciativa, capaz de tomar suas próprias resoluções e de<br />

tocar sua vida: “enviuvando, sem ceitil, adquirira casa, fizera-se respeitada e ia criando<br />

e educando os filho, de progresso em progresso, fazendo tudo prever que chegaria <strong>à</strong><br />

formatura ou a cousa parecida” (LIMA BARRETO, 1994, p. 139) o contrário das<br />

demais personagens, tinha maior compreensão da situação que vivia.<br />

O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditinho<br />

de Amor chulo. Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva<br />

com vigor. À <strong>no</strong>ite, <strong>no</strong> intuito de defender as suas galinhas da sanha <strong>dos</strong><br />

ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da<br />

cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua<br />

bondade que era mulato, mais tinha os olhos glaucos, translúci<strong>dos</strong>, de sua<br />

mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos - olhos tão estranhos e nós<br />

e, sobretudo, ao sangue dominante <strong>no</strong> peque<strong>no</strong>. (LIMA BARRETO, 1994,<br />

p.60)<br />

Dona Margarida é citada como uma <strong>mulher</strong> “respeitada pela sua coragem, pela<br />

sua bondade e pelo rigor de sua viuvez” (LIMA BARRETO, 1994, p. 76). Em outras<br />

palavras, ela é respeitada mesmo sendo uma <strong>mulher</strong> sozinha, sem o comando de um<br />

homem. E mantém o “rigor de sua viuvez” porque não se envolveu com nenhum<br />

namoro ou algo semelhante, e deixa bem claro que quer os homens que a cortejam bem<br />

longe.<br />

Esta <strong>mulher</strong> de valor extraordinário, apesar de ser grande amiga do casal <strong>dos</strong><br />

Anjos, achava-os desprepara<strong>dos</strong> para a vida: “gostava muito da família do carteiro; mas,<br />

<strong>no</strong> seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal arma<strong>dos</strong> para a luta<br />

entre os maus e contra as insídias da vida” (LIMA BARRETO, 1994, p. 190). Dona<br />

Margarida é descrita como sendo uma pessoa muito sagaz. Nas palavras do narrador, a<br />

senhora tinha “um temperamento de heroína doméstica” (LIMA BARRETO, 1994, p.<br />

75) e como pessoa de firmeza, de força de espírito e de peso, apesar de sua benignidade,<br />

não se deixava abater por sentimentalismos.<br />

13


Daí, a importância de se analisar o papel da <strong>mulher</strong> <strong>no</strong> <strong>romance</strong> Clara <strong>dos</strong><br />

Anjos, pois encontramos na protagonista características psíquicas e sociais que<br />

contribuem para que a personagem seja retratada da forma que é. Uma vez que Clara<br />

mostra-se movida por sentimentalismos, sonhos, suspiros e modinhas apaixonadas.<br />

Passiva, dócil, amável e extremamente i<strong>no</strong>cente, acreditando na força do amor,<br />

sobretudo <strong>dos</strong> amores impossíveis, como o suposto amor que sentiria por ela Cassí<br />

Jones, é que a trama mostra como Clara era despreparada para o mundo. A super-<br />

proteção <strong>dos</strong> pais, que deram conta apenas de prendê-la em casa, evitar contatos na rua,<br />

isolando-a do mundo exter<strong>no</strong> e real, não foi capaz de proteger a filha das estratégias de<br />

sedução do ardiloso Cassí.<br />

Qualquer homem sagaz e com pouco caráter poderia seduzir a romântica Clara.<br />

Cassí, um perito na sedução de moças pobres, negras e sem instrução, conseguiu<br />

facilmente perpassar as fracas barreiras que separavam Clara das maldades do mundo.<br />

Clara não possuía instrução suficiente para ter senso crítico sobre a sua própria<br />

realidade, e foi criando para si um mundo pessoal, só seu. Ela não enxerga o erotismo<br />

que a cerca, não percebe que por ser uma <strong>mulher</strong> mulata bonita e i<strong>no</strong>cente, desperta<br />

desejos.<br />

Clara transgredi as regras sociais quando se apaixona por Cassí, e transgride<br />

<strong>no</strong>vamente quando deixa de ser virgem, já que para a época, este seria um pré-requisito<br />

essencial para ser uma moça respeitada e conseguir um bom casamento. Do contrário,<br />

não sendo mais donzela, ela seria uma jovem desonrada, já que a honra, neste caso,<br />

estaria condicionado ao hímen e não <strong>à</strong>s suas atitudes morais.<br />

A <strong>mulher</strong> pobre, desonrada, não tem alternativa a não ser a de se lançar <strong>no</strong><br />

mundo da degradação. Alice, personagem secundária citada como exemplo <strong>no</strong> <strong>romance</strong>,<br />

encarna o protótipo da moça pobre, seduzida e abandonada. “Rolou de mão em mão e<br />

só encontrou homens que queriam explorar o seu corpo”. Sua mãe, ao contrário de<br />

Engrácia, mãe de Clara, a adverte sobre as intenções masculinas. Relembra Alice: “Bem<br />

me dizia minha mãe: toma cuidado, minha filha, toma cuidado. Esses homens só<br />

querem <strong>no</strong>sso corpo por segun<strong>dos</strong>, depois vão-se e <strong>no</strong>s deixam um filho <strong>no</strong>s quartos,<br />

quando não <strong>no</strong>s roubam como fez seu pai comigo...” (LIMA BARRETO, 1994, p. 207).<br />

A mãe de Alice a advertia, pois ao contrário de Engrácia, mãe de Clara, sofreu na pele<br />

as amarguras de uma <strong>mulher</strong> abandonada <strong>à</strong> própria sorte. Porém os aconselhamentos da<br />

14


mãe não foram suficientes para Alice. Antes de se casar com o comendador ela viveu<br />

com outros homens que a exploraram.<br />

Lima Barreto critica a falta de instrução, assim como a falta de oportunidade de<br />

trabalho das <strong>mulher</strong>es, o que <strong>à</strong>s põem desamparadas quando perdem seus tutores. A<br />

personagem Alice, por exemplo, quando perde a mãe, se vê desamparada sem ter quem<br />

proveja seu sustento. Sem preparo profissional e oportunidade de trabalho, ela procura<br />

em relacionamentos amorosos uma salvação. No entanto, se relaciona com vários<br />

homens que só querem explorar seu corpo e seu trabalho sendo vítima de violência.<br />

Sem a possibilidade de um trabalho, Alice lança mão da beleza para se prostituir. O<br />

narrador não a critica por isso, não a censura, apenas narra o caminho da degradação<br />

sofrida pela personagem após perder o amparo da mãe, única parente que possuía. O<br />

autor parece ter consciência de que uma <strong>mulher</strong> pobre, sem instrução e desamparada<br />

não teria outra saída que não fosse a prostituição, para evitar a miséria absoluta.<br />

Para a sociedade patriarcal do período, a <strong>mulher</strong> deveria ser a rainha do lar e não<br />

a rainha da rua. Pois o lar era o refúgio das <strong>mulher</strong>es castas, recatadas, submissas e<br />

puras. O controle pelo sexo se tor<strong>no</strong>u uma atitude velada da sociedade. A <strong>mulher</strong>, rainha<br />

da rua, era a mundana, usava roupas extravagantes, chamava atenção para si, atraindo<br />

olhares masculi<strong>no</strong>s, fato altamente condenado pela sociedade.<br />

Clara não possui senso crítico, não analisa sua condição <strong>social</strong> de <strong>mulher</strong> pobre,<br />

mulata, sem estu<strong>dos</strong>, moradora da periferia, sem emprego, e, portanto, sem garantias de<br />

sustento próprio. Ela é romântica demais e protegida pelos pais a tal ponto que em sua<br />

ingenuidade, acredita que não há pessoas de má índole ou ainda, que por não fazer mal a<br />

ninguém, ninguém o fará a ela, também.<br />

Ela queria apenas casar-se, preferencialmente, com um amor dito como<br />

impossível, queria provar a to<strong>dos</strong> que o seu amor, singelo e puro, fosse capaz de mudar<br />

as pessoas, e como uma heroína salvar este amor, e como uma princesa enclausurada <strong>no</strong><br />

alto da torre, ser salva por seu amado. Clara, por não ter consciência de seu papel <strong>no</strong><br />

mundo, não possuía grandes pretensões com o casamento como faziam algumas moças<br />

relatadas na obra, conforme podemos constatar na citação que se segue: as irmãs de<br />

Cassí, que eram ambiciosas em matéria de casamento. “Catarina e Irene sonhavam casar<br />

com doutores, bem emprega<strong>dos</strong> e ricos” (LIMA BARRETO, 1994, p. 48).<br />

Lima Barreto observa, analisa e questiona o papel dessa <strong>mulher</strong> como figurante<br />

da realidade daquele período, o autor, reflete sobre os problemas sociais do cotidia<strong>no</strong> e<br />

15


sobre o papel <strong>social</strong> de sua própria existência. Lima Barreto demonstra em sua obra que<br />

o homem, independentemente da profissão que exercesse, estava ligado <strong>à</strong> coletividade,<br />

aos espaços públicos e produtivos. Já a <strong>mulher</strong> não, ela continuava improdutiva, não<br />

participando <strong>dos</strong> espaços públicos, a não ser que estivesse acompanhada, não fazia<br />

negócios, não participava do comércio e muito me<strong>no</strong>s da vida econômica da cidade, a<br />

não ser para comprar um ou outro vestido que era pago com o dinheiro do marido.<br />

O autor critica fortemente esta questão da imposição velada do casamento <strong>à</strong>s<br />

<strong>mulher</strong>es. Trata-se de uma cobrança <strong>social</strong>, exigindo da <strong>mulher</strong>, a qualquer custo, o<br />

status de casada. Por mais de uma vez, <strong>no</strong>s escritos não ficcionais, Lima Barreto diz que<br />

o casamento não é um acidente na vida do “belo sexo”, mas, sim, uma imposição.<br />

As personagens femininas em Clara <strong>dos</strong> Anjos, com exceção de Dona<br />

Margarida, não possuem auto<strong>no</strong>mia financeira. A grande maioria delas não trabalha e se<br />

identifica exclusivamente com as atividades domésticas. No entanto, o narrador de<br />

Clara <strong>dos</strong> Anjos, tinha consciência de que a <strong>mulher</strong> deveria aprender uma profissão. O<br />

escritor Lima Barreto quer conscientizar para aquelas que pertencem <strong>à</strong>s camadas sociais<br />

mais baixas a necessidade delas trabalharem e garantirem seu sustento.<br />

Lima Barreto critica, também, em sua obra os procedimentos masculi<strong>no</strong>s e<br />

femini<strong>no</strong>s usa<strong>dos</strong> para se chegar ao casamento, assim como a função desempenhada por<br />

cada um <strong>dos</strong> cônjuges dentro desta instituição.<br />

Apesar de Lima refletir sobre a posição <strong>social</strong> da <strong>mulher</strong>, as figuras femininas de<br />

sua obra não possuem voz. Como exemplo principal, temos a protagonista que além de<br />

não narrar suas agruras, ainda tem sua história narrada por um homem. A protagonista,<br />

Clara <strong>dos</strong> Anjo, não tem voz, e nem ação.<br />

Considerações finais<br />

Encontramos na obra Clara <strong>dos</strong> Anjos, a reflexão da denúncia <strong>social</strong> explícita<br />

quanto ao comportamento de homens e <strong>mulher</strong>es, <strong>no</strong> início do século XX, com relação<br />

ao casamento “agenciado”, isto é, a união conjugal não por amor, mas pela necessidade<br />

de contrair o matrimônio. Com isso, Lima Barreto reflete sobre o papel <strong>social</strong> da<br />

<strong>mulher</strong>, seja ela pobre, rica, mulata ou branca, com ou sem instrução. As <strong>mulher</strong>es<br />

apresentadas na obra encontram-se sem alternativas que mais diretamente rompem as<br />

barreiras do casamento.<br />

Desse modo, na narrativa, Lima Barreto conta as agruras femininas para<br />

conseguir um bom casamento e da plena submissão dessas <strong>mulher</strong>es sem voz, sem<br />

16


possibilidade de manifestação política e <strong>social</strong>. Além de manterem-se virgens e castas<br />

para conseguirem um marido e torcer para que este tivesse um bom posicionamento<br />

<strong>social</strong>.<br />

Muitas vezes, nem elas e nem suas famílias se importavam com o caráter do<br />

cônjuge. Para a família importava apenas que a filha se casasse para deixar de dar<br />

despesas em casa e, sobretudo, para não se tornar falada. A <strong>mulher</strong>/filha era um peso<br />

para a família, e não obstante, as famílias precisavam “descontar a duplicata” livrando-<br />

se da despesa de ter uma filha adulta em casa e garantindo que ela não envergonhasse <strong>à</strong><br />

família.<br />

Percebe-se o quanto a <strong>mulher</strong> era desprivilegiada e relegada ao segundo pla<strong>no</strong>,<br />

pois <strong>no</strong> Código Civil da época estava estabelecido que, “em caso de estupro ou<br />

defloramento de uma jovem honesta, o acusado deveria casar-se com a ofendida, para<br />

reparar o mal”. A <strong>mulher</strong> não tinha escolha, antes casar-se com seu próprio estuprador<br />

que permanecer solteira e tornar-se uma <strong>mulher</strong> falada.<br />

Conforme observamos em Clara <strong>dos</strong> Anjos, a <strong>mulher</strong> brasileira, <strong>no</strong> início do<br />

século XX, estava fadada <strong>à</strong>s amenidades domésticas e <strong>à</strong> submissão completa. Primeiro<br />

do pai/irmão/tutor ou outro que possuísse sua guarda, e depois de casada, pertencia ao<br />

marido. A <strong>mulher</strong> não era um ser huma<strong>no</strong>, nesse período histórico/<strong>social</strong>, mas um bem<br />

pertencente ao marido. Ela se juntava ao seu patrimônio como mais um <strong>dos</strong> pertences<br />

do homem da casa e um homem que se julgasse do<strong>no</strong> de uma <strong>mulher</strong> fazia com ela o<br />

que quisesse.<br />

Percebe-se que a reclusão e a proteção em forma de vigilância excessiva sobre<br />

Clara em nada favoreceu em sua vida, mas sim a prejudicou ao extremo. Sem<br />

convivência com outras pessoas que não fosse uma vizinha e a própria família, Clara<br />

não possuí opinião própria, e muito me<strong>no</strong>s atitude ou discernimento. Em outras<br />

palavras, não sabia se proteger sozinha, já que a educação dada por sua mãe era restrita<br />

aos afazeres domésticos. A i<strong>no</strong>cência de Clara diante das pessoas mais experientes e até<br />

perversas, como Cassí, a tor<strong>no</strong>u uma presa fácil. O amor idealizado somado <strong>à</strong> falta de<br />

informação sobre a realidade da vida levou Clara <strong>à</strong> catástrofe. Ela não chegou a<br />

conhecer a rua, a escola, o trabalho remunerado, os salões de baile ou teatro, tudo isso<br />

pela sua condição de pobreza e de afro-descendência.<br />

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17


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18

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