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isaac asimov nove amanhãs contos do futuro ... - Mkmouse.com.br

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۩<<strong>br</strong> />

Suspirei. Se tentasse, era certo<<strong>br</strong> />

que apanharia o criminoso, mas depois<<strong>br</strong> />

disso seria a coisa mais parecida<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> fíga<strong>do</strong> corta<strong>do</strong> que alguém já viu.<<strong>br</strong> />

Haveria uma remodelação no Serviço,<<strong>br</strong> />

um pivete <strong>do</strong> tamanho da Galáxia,<<strong>br</strong> />

e, no meio da excitação e da desordem,<<strong>br</strong> />

o segre<strong>do</strong> da Espaciolina alterada viria<<strong>br</strong> />

cá para fora, de uma forma ou de outra.<<strong>br</strong> />

É claro que o criminoso podia ser<<strong>br</strong> />

o primeiro que eu revistasse.<<strong>br</strong> />

Uma hipótese em três.<<strong>br</strong> />

Escolhia um e depois, sabe Deus...<<strong>br</strong> />

Que chatice, qualquer coisa tinha feito<<strong>br</strong> />

que eles <strong>com</strong>eçassem, enquanto estava<<strong>br</strong> />

a falar <strong>com</strong> os meus botões.<<strong>br</strong> />

E a Espaciolina é contagiosa...


ISAAC ASIMOV<<strong>br</strong> />

NOVE AMANHÃS<<strong>br</strong> />

CONTOS DO FUTURO<<strong>br</strong> />

PRÓXIMO<<strong>br</strong> />

1º e 2º Volumes<<strong>br</strong> />

Publicações Europa-América


Para Betty Shapian,<<strong>br</strong> />

cuja bondade e solicitude<<strong>br</strong> />

nunca falharam


Oh, Dr. A. -<<strong>br</strong> />

Oh. Dr. A. -<<strong>br</strong> />

Há uma coisa (não se vá embora)<<strong>br</strong> />

Que eu gostaria que me dissesse.<<strong>br</strong> />

Embora preferisse morrer<<strong>br</strong> />

A tentar.<<strong>br</strong> />

Intrometer-me,<<strong>br</strong> />

O caso, <strong>com</strong>o verá,<<strong>br</strong> />

É que a minha mente<<strong>br</strong> />

Elaborou a grande pergunta <strong>do</strong> dia.<<strong>br</strong> />

VALE A PENA LER, VEJAM!<<strong>br</strong> />

Não preten<strong>do</strong> fazer qualquer escárnio barato,<<strong>br</strong> />

Portanto, por favor, responda <strong>com</strong> decisão,<<strong>br</strong> />

E, deixan<strong>do</strong>-se de receios cautelosos e inúteis,<<strong>br</strong> />

Conte-me o segre<strong>do</strong> da sua visão!<<strong>br</strong> />

Como é que<<strong>br</strong> />

Você cria<<strong>br</strong> />

Essas impossíveis e loucas idéias?<<strong>br</strong> />

Será indigestão<<strong>br</strong> />

E trata-se<<strong>br</strong> />

Do pesadelo que dela resulta?<<strong>br</strong> />

Dos seus olhos a ro<strong>do</strong>piar,<<strong>br</strong> />

A girar,<<strong>br</strong> />

Da<strong>do</strong>s a enrolarem-se<<strong>br</strong> />

E a desenrolarem-se,<<strong>br</strong> />

Enquanto o seu sangue toca sinos enlouqueci<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

Seguin<strong>do</strong> o apaixona<strong>do</strong> ritmo<<strong>br</strong> />

Do seu abundante e incerto pulso?<<strong>br</strong> />

Será isso, pense, ou a bebida<<strong>br</strong> />

Que lhe trará mais depressa o delírio?<<strong>br</strong> />

Pois um<<strong>br</strong> />

Pequeníssimo<<strong>br</strong> />

Martíni seco<<strong>br</strong> />

Pode bem ser a sua musa privada<<strong>br</strong> />

Ou talvez aqueles Tom e Jerries:


Encontrarão as<<strong>br</strong> />

Bagas certas Para provocar<<strong>br</strong> />

E libertar<<strong>br</strong> />

Esse truque secreto ou essa excitação:<<strong>br</strong> />

Ou uma horrenda<<strong>br</strong> />

Combinação<<strong>br</strong> />

De estimulação<<strong>br</strong> />

Ilegal,<<strong>br</strong> />

Maconha <strong>com</strong> tequila,<<strong>br</strong> />

Que lhe daria aquela sensação<<strong>br</strong> />

De coisas <strong>com</strong>binan<strong>do</strong>-se<<strong>br</strong> />

Enquanto <strong>com</strong>eça a sua atividade mental<<strong>br</strong> />

Ao <strong>do</strong>i<strong>do</strong> ritmo sincopa<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

Decerto algo, Dr. A.,<<strong>br</strong> />

O faz elétrico<<strong>br</strong> />

E um pouco excêntrico.<<strong>br</strong> />

Já que o leio <strong>com</strong> devoção<<strong>br</strong> />

Não me daria uma noção<<strong>br</strong> />

Dessa poção astutamente criada<<strong>br</strong> />

Da qual emergem os seus enre<strong>do</strong>s?<<strong>br</strong> />

Essa fantástica e secreta mistura borbulhante<<strong>br</strong> />

Que lhe deu lugar cativo<<strong>br</strong> />

Nos mais aprecia<strong>do</strong>s pontos da ficção científica.<<strong>br</strong> />

Agora, Dr. A.,<<strong>br</strong> />

Não se vá embora -<<strong>br</strong> />

Oh Dr. A. -<<strong>br</strong> />

Oh Dr. A. -


NOTAS DE RECUSA<<strong>br</strong> />

a) CULTA<<strong>br</strong> />

Queri<strong>do</strong> Asimov, todas a leis mentais<<strong>br</strong> />

provam que a orto<strong>do</strong>xia tem seus defeitos.<<strong>br</strong> />

Considere este <strong>com</strong>ponente eclético<<strong>br</strong> />

da filosofia de Kant que morde<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> fauces incansáveis e antilógicas<<strong>br</strong> />

as gastas e inúteis serras<<strong>br</strong> />

que ficam presos em culturas de mutantes de nossa era.<<strong>br</strong> />

Aí vai pois seu relato (<strong>com</strong> ânimo fraco).<<strong>br</strong> />

As palavras anteriores têm amplo motivo.<<strong>br</strong> />

b) CULTA<<strong>br</strong> />

Queri<strong>do</strong> Ike, estava prepara<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

(e, menino, realmente assuta<strong>do</strong>)<<strong>br</strong> />

para tragar, vin<strong>do</strong> de ti, quase qualquer coisa.<<strong>br</strong> />

Porém, Ike, és pura droga,<<strong>br</strong> />

tua forma de escrever é ine<strong>br</strong>iante:<<strong>br</strong> />

só resta tosse seca e inchamento mental.<<strong>br</strong> />

Te devolvo esta porcaria;<<strong>br</strong> />

cheirava, empestava, fedia;<<strong>br</strong> />

um <strong>br</strong>eve olhar foi espantoso o suficiente.<<strong>br</strong> />

Entretanto, criança, pouco a pouco,<<strong>br</strong> />

tenta de novo.<<strong>br</strong> />

Necessito de algumas Fantochadas, rapaz, a<strong>do</strong>ro teu catarro.<<strong>br</strong> />

AMÁVEL<<strong>br</strong> />

Queri<strong>do</strong> Isaac, meu amigo,<<strong>br</strong> />

pensei que teu relato era lúci<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Sumamente delicioso<<strong>br</strong> />

e <strong>com</strong> méritos, esplen<strong>do</strong>roso.<<strong>br</strong> />

Significou uma inteira<<strong>br</strong> />

noite, plena<<strong>br</strong> />

de tensão, amigo,<<strong>br</strong> />

e logo alívio,<<strong>br</strong> />

e a<strong>com</strong>panhada


em boa medida<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> deleite<<strong>br</strong> />

da latente<<strong>br</strong> />

incredulidade.<<strong>br</strong> />

É uma trivialidade,<<strong>br</strong> />

apenas correto,<<strong>br</strong> />

quase um ato de maldade,<<strong>br</strong> />

declarar<<strong>br</strong> />

que há pequenos defeitos.<<strong>br</strong> />

Nada concreto,<<strong>br</strong> />

um retoque, talvez,<<strong>br</strong> />

e por isto<<strong>br</strong> />

não vá desanimar.<<strong>br</strong> />

Permita-me pois expor,<<strong>br</strong> />

sem mais delongas,<<strong>br</strong> />

meu camarada, meu amigo,<<strong>br</strong> />

que o final <strong>do</strong> teu história<<strong>br</strong> />

deixou-me satisfeito<<strong>br</strong> />

e alegremente sossega<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

P.S.<<strong>br</strong> />

Ah, claro,<<strong>br</strong> />

devo confessar<<strong>br</strong> />

(<strong>com</strong> certo pesar)<<strong>br</strong> />

que, infelizmente!, devolvo em anexo sua história.


PROFISSÃO<<strong>br</strong> />

George Platen não conseguia esconder a ânsia na sua voz. Era grande demais para<<strong>br</strong> />

poder contê-a.<<strong>br</strong> />

- Amanhã é o primeiro de Maio. Olimpíadas! - disse ele.<<strong>br</strong> />

Rolou so<strong>br</strong>e o estômago e olhou o seu <strong>com</strong>panheiro de quarto por so<strong>br</strong>e o pé da<<strong>br</strong> />

cama. «Ele não sentia, também? Isso não lhe causava qualquer emoção?»<<strong>br</strong> />

A cara de George era magra e tinha emagreci<strong>do</strong> mais ainda no quase ano e meio<<strong>br</strong> />

que tinha passa<strong>do</strong> na Casa. A sua figura era frágil mas o olhar <strong>do</strong>s seus olhos azuis<<strong>br</strong> />

era tão intenso <strong>com</strong>o sempre fora, e agora havia um ar de clausura na forma <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

os seus de<strong>do</strong>s se enroscavam na colcha.<<strong>br</strong> />

O <strong>com</strong>panheiro de quarto de George levantou os olhos <strong>do</strong> livro por um momento,<<strong>br</strong> />

e aproveitou a oportunidade para ajustar a intensidade da luz no pedaço de parede<<strong>br</strong> />

junto à sua cadeira. Chamava-se Hali Omani e era Nigeriano de nascimento. A sua<<strong>br</strong> />

pele castanha-escura e a sua figura imponente pareciam feitas para a tranquilidade,<<strong>br</strong> />

e a menção das Olimpíadas não o perturbou.<<strong>br</strong> />

- Eu sei, George - disse ele.<<strong>br</strong> />

George devia muito à paciência e bondade de Hali, quan<strong>do</strong> era preciso, mas até a<<strong>br</strong> />

paciência e a bondade podiam ser de mais. «Isto é hora de estar ali senta<strong>do</strong> <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

uma estátua feita de uma madeira qualquer, negra e quente?»<<strong>br</strong> />

George perguntou-se se ele mesmo não ficaria assim depois de estar dez anos ali<<strong>br</strong> />

e rejeitou esse pensamento violentamente. «Não!»<<strong>br</strong> />

- Acho que te esqueceste <strong>do</strong> que Maio significa - disse, desafia<strong>do</strong>ramente.<<strong>br</strong> />

- Lem<strong>br</strong>o-me muito bem <strong>do</strong> que isso significa - disse o outro. - Não significa nada!<<strong>br</strong> />

Tu é que te esqueceste disso.<<strong>br</strong> />

Maio não significa nada para ti, George Platen, e - acrescentou suavemente - não<<strong>br</strong> />

significa nada para mim, Hali Omani.<<strong>br</strong> />

- As naves vêm ai buscar recrutas - disse George. Em Junho, milhares e milhares<<strong>br</strong> />

delas partirão <strong>com</strong> milhões de homens e mulheres em direção a um mun<strong>do</strong> qualquer<<strong>br</strong> />

e tu<strong>do</strong> isso não significa nada?<<strong>br</strong> />

- Menos que nada. De qualquer forma, que é que tu queres que eu faça em relação<<strong>br</strong> />

a isso? - Omani percorreu <strong>com</strong> o de<strong>do</strong> uma passagem difícil <strong>do</strong> livro que estava a<<strong>br</strong> />

ler e os seus lábios moveram-se silenciosamente.<<strong>br</strong> />

George observou-o. «Droga», pensou, «gritar, berrar; isso podes fazer. Dá-me pontapés,<<strong>br</strong> />

faz qualquer coisa.»<<strong>br</strong> />

Ele queria apenas não estar tão só <strong>com</strong> a sua raiva. Não ser o único cheio de indignação,<<strong>br</strong> />

não ser o único a morrer uma morte lenta.<<strong>br</strong> />

Eram melhores aquelas primeiras semanas, quan<strong>do</strong> o Universo era uma pequena<<strong>br</strong> />

concha de luz e som difusos, pesan<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e ele. Era melhor antes de Omani ter apa-


eci<strong>do</strong> e o ter arrasta<strong>do</strong> de volta a uma vida que não merecia ser vivida.<<strong>br</strong> />

Omani! Era velho! Tinha pelo menos 30 anos. «Serei assim aos 30 anos? Serei assim<<strong>br</strong> />

daqui a <strong>do</strong>ze anos?», pensou George.<<strong>br</strong> />

E Porque receava que sim, gritou para Omani: - És capaz de parar de ler esse livro<<strong>br</strong> />

idiota?<<strong>br</strong> />

Omani virou a página e leu ainda algumas palavras, depois levantou a cabeça, <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

o seu cocuruto de cabelo encrespa<strong>do</strong>, e disse:<<strong>br</strong> />

- O quê?<<strong>br</strong> />

- Que é que tu ganhas em ler esse livro? - Avançou e bufou. - Mais eletrônica - E<<strong>br</strong> />

arrancou-o das mãos de Omani.<<strong>br</strong> />

Omani levantou-se devagar e apanhou o livro. Endireitou uma página amarrotada<<strong>br</strong> />

sem visível rancor.<<strong>br</strong> />

- Chama-lhe satisfação da curiosidade - disse. - Apren<strong>do</strong> alguma coisa hoje, talvez<<strong>br</strong> />

um pouco mais amanhã. De certa forma é uma vitória.<<strong>br</strong> />

- Uma vitória. Que espécie de vitória? É isso que te satisfaz na vida? Chegares a<<strong>br</strong> />

saber o suficiente para seres um quarto de engenheiro eletrônico registra<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

já tiveres 65 anos?<<strong>br</strong> />

- Talvez quan<strong>do</strong> tiver 35.<<strong>br</strong> />

- E nessa altura quem é que te quererá? Quem é que te vai usar? Para onde é que<<strong>br</strong> />

vais?<<strong>br</strong> />

- Ninguém. Ninguém. Para la<strong>do</strong> nenhum. Ficarei aqui a ler outros livros.<<strong>br</strong> />

- E isso satisfaz-te? Diz-me! Tu arrastaste-me para a aula. Fizeste-me ler e memorizar,<<strong>br</strong> />

também. Para quê? Nada disso me satisfaz.<<strong>br</strong> />

- O que é que ganhas em negar-te a satisfação?<<strong>br</strong> />

- O que te estou dizen<strong>do</strong> é que desisto desta farsa. Vou fazer o que sempre planejei<<strong>br</strong> />

fazer desde o início, antes de me teres convenci<strong>do</strong> <strong>com</strong> tua conversa mansa. Vou<<strong>br</strong> />

forçá-os a... a...<<strong>br</strong> />

Omani pousou o livro. Deixou o outro parar e disse: - A quê, George?<<strong>br</strong> />

- A corrigir uma decisão injusta. Uma maquinação. Vou apanhar aquele Antonelli e<<strong>br</strong> />

forçá-o a confessar que... que...<<strong>br</strong> />

Omani baixou a cabeça.<<strong>br</strong> />

- To<strong>do</strong>s os que vêm para aqui insistem em que é um erro. Pensei que já tinhas ultrapassa<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

essa fase.<<strong>br</strong> />

- Não lhe chames fase - disse George violentamente, no meu caso é um fato. Já te<<strong>br</strong> />

disse...<<strong>br</strong> />

- Pois disseste, mas no fun<strong>do</strong> sabes que ninguém se enganou no que te diz respeito.<<strong>br</strong> />

- Por que ninguém o admite? Achas que algum deles admitiria um erro a não ser<<strong>br</strong> />

que fossem força<strong>do</strong>s a isso? Pois bem, eu forço-os.<<strong>br</strong> />

Era Maio que estava fazen<strong>do</strong> isto <strong>com</strong> George; era o mês das Olimpíadas. Ele sentia-as<<strong>br</strong> />

trazer de volta o velho entusiasmo e não podia pará-o. Não queria pará-o. Tinha<<strong>br</strong> />

corri<strong>do</strong> o risco de esquecer.<<strong>br</strong> />

- Ia ser um programa<strong>do</strong>r de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res e posso ser - disse. - Podia sê-o hoje,<<strong>br</strong> />

independentemente <strong>do</strong> que eles dizem que as análises mostram. - Esmurrou o colchão.<<strong>br</strong> />

Eles estão engana<strong>do</strong>s. Têm de estar.<<strong>br</strong> />

- Os analistas nunca se enganam.<<strong>br</strong> />

- Têm de estar. Duvidas da minha inteligência?<<strong>br</strong> />

- A inteligência não tem nada a ver <strong>com</strong> isto. Não te disseram isso vezes suficientes?<<strong>br</strong> />

Não entendes isso?<<strong>br</strong> />

George rolou para trás, deitou-se de costas, e olhou melancolicamente para o teto.


- Que é que tu querias ser, Hali?<<strong>br</strong> />

- Não tinha planos fixos. Engenheiro hidropônico tinha-me servi<strong>do</strong>, acho eu.<<strong>br</strong> />

- Achas que conseguirias?<<strong>br</strong> />

- Não tinha a certeza.<<strong>br</strong> />

George nunca tinha feito perguntas pessoais a Omani.<<strong>br</strong> />

Pareceu-lhe estranho, quase anormal, que outras pessoas tivessem ti<strong>do</strong> ambições<<strong>br</strong> />

e acaba<strong>do</strong> aqui. «Engenheiro Hidropônico!»<<strong>br</strong> />

- Imaginavas vir para cá? - disse.<<strong>br</strong> />

- Não, mas aqui sou exatamente o mesmo.<<strong>br</strong> />

- E estás satisfeito. Mesmo, mesmo satisfeito. Estás feliz. A<strong>do</strong>ras isto. Não quererias<<strong>br</strong> />

estar em nenhum outro lugar.<<strong>br</strong> />

Devagar, Omani levantou-se. Começou a desfazer a cama cuida<strong>do</strong>samente.<<strong>br</strong> />

- George, és um caso difícil. Estás a derrotar-te porque não aceitas os fatos so<strong>br</strong>e<<strong>br</strong> />

ti próprio. George, estás aqui naquilo a que chamas a Casa, mas nunca te ouvi dizer<<strong>br</strong> />

o seu nome <strong>com</strong>pleto. Diz, George, diz. Depois vai para a cama, pode ser que<<strong>br</strong> />

passe...<<strong>br</strong> />

George cerrou os dentes e mostrou-os. - Não! - disse, num engasgo.<<strong>br</strong> />

- Então digo eu - disse Omani, e disse-o. Articulou cada sílaba cuida<strong>do</strong>samente.<<strong>br</strong> />

George ficou amargamente vexa<strong>do</strong> ao ouvi-o. Voltou a cabeça para o outro la<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Durante a maior parte <strong>do</strong>s primeiros dezoito anos da sua vida, George Platen tinha-se<<strong>br</strong> />

dirigi<strong>do</strong> firmemente numa direção, a de Programa<strong>do</strong>r de Computa<strong>do</strong>res registra<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Havia no seu grupo quem falasse sabiamente so<strong>br</strong>e Espaçonáutica, Tecnologia<<strong>br</strong> />

de Refrigeração, Controle de Transportes e até Administração. Mas George mantinhase<<strong>br</strong> />

firme.<<strong>br</strong> />

Ele defendia os seus méritos tão vigorosamente <strong>com</strong>o qualquer um deles, e por<<strong>br</strong> />

que não? O Dia da Educação agigantava-se à sua frente e era o grande acontecimento<<strong>br</strong> />

da sua existência. Aproximava-se firmemente, fixo e certo <strong>com</strong>o o calendário: o<<strong>br</strong> />

primeiro dia de Novem<strong>br</strong>o <strong>do</strong> ano <strong>do</strong> 18º aniversário de cada um.<<strong>br</strong> />

Depois desse dia, havia outros temas de conversa. Podia discutir-se <strong>com</strong> os outros<<strong>br</strong> />

algum pormenor da profissão, ou as virtudes da mulher e filhos, ou o destino da<<strong>br</strong> />

equipe de espaço-pólo, ou as experiências nas Olimpíadas. Antes <strong>do</strong> Dia da Educação,<<strong>br</strong> />

porém, havia apenas um tema que, invariável e persistentemente, captava o interesse<<strong>br</strong> />

de to<strong>do</strong>s, que era o Dia da Educação .<<strong>br</strong> />

- Vais para quê? Achas que vais conseguir? Epa, essa não vale nada. Vê os registros;<<strong>br</strong> />

a quota foi cortada. Logística é que é...<<strong>br</strong> />

Ou hipermecânica é que é, ou <strong>com</strong>unicações é que é, ou gravítica é que é...<<strong>br</strong> />

Especialmente gravítica, a essa altura. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vinha falan<strong>do</strong> de gravítica nos<<strong>br</strong> />

anos que precederam o Dia da Educação de George, devi<strong>do</strong> ao desenvolvimento <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

motor de energia gravítica.<<strong>br</strong> />

Qualquer mun<strong>do</strong> num raio de dez anos-luz de uma estrela anã, diziam, daria os<<strong>br</strong> />

olhos da cara por um engenheiro gravítico registra<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Esse pensamento nunca perturbou George. Claro que sim; to<strong>do</strong>s os olhos de caras<<strong>br</strong> />

que conseguisse arranjar. Mas George também sabia o que tinha aconteci<strong>do</strong> antes a<<strong>br</strong> />

uma técnica recente. Racionalização e simplificação seguiam-se em torrente. Novos<<strong>br</strong> />

modelos to<strong>do</strong>s os anos; novos tipos de motores gravíticos; novos princípios. Então<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong>s esses senhores <strong>do</strong>s olhos-da-cara estariam antiqua<strong>do</strong>s e seriam substituí<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

por exemplares mais recentes <strong>com</strong> educação recente. O primeiro grupo teria então<<strong>br</strong> />

de se conformar <strong>com</strong> o trabalho não especializa<strong>do</strong> ou então mudar-se para um mun-


<strong>do</strong> lá <strong>do</strong>s confins que não se tivesse ainda atualiza<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Agora, a procura de programa<strong>do</strong>res de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res era certa ano após ano, século<<strong>br</strong> />

após século. Nunca havia um merca<strong>do</strong> fabuloso para programa<strong>do</strong>res; a procura<<strong>br</strong> />

nunca atingia picos espetaculares; mas subia firmemente à medida que novos mun<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

se a<strong>br</strong>iam e os velhos se tornavam mais <strong>com</strong>plexos.<<strong>br</strong> />

Discutia <strong>com</strong> o Stubby Trevelyan so<strong>br</strong>e isso constantemente. Como grandes amigos<<strong>br</strong> />

que eram, as discussões entre eles tinham de ser constantes e causticas e, obviamente,<<strong>br</strong> />

nunca nenhum conseguia convencer o outro ou vice-versa.<<strong>br</strong> />

Mas Trevelyan tivera um pai metalúrgico registra<strong>do</strong>, que tinha realmente trabalha<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

num <strong>do</strong>s Mun<strong>do</strong>s Exteriores, e um avô que fora igualmente metalúrgico registra<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Ele próprio pretendia ser Metalúrgico registra<strong>do</strong> quase <strong>com</strong>o se fosse direito de<<strong>br</strong> />

família e estava firmemente convicto de que qualquer outra profissão era um pouco<<strong>br</strong> />

menos que respeitável.<<strong>br</strong> />

- Haverá sempre metal - dizia. - E é preciso talento para moldar ligas segun<strong>do</strong> especificações<<strong>br</strong> />

e vigiar o crescimento das estruturas. Agora, o que é que um programa<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

vai fazer? Senta<strong>do</strong> à frente de um codifica<strong>do</strong>r to<strong>do</strong> o dia, alimentan<strong>do</strong> uma imbecil<<strong>br</strong> />

máquina gigante.<<strong>br</strong> />

Mesmo aos 16 anos, George aprendera a ser prático. Disse simplesmente:<<strong>br</strong> />

- Haverá um milhão de metalúrgicos sain<strong>do</strong> ao mesmo tempo que tu.<<strong>br</strong> />

- Porque é bom. Uma boa profissão. A melhor.<<strong>br</strong> />

- Mas és engoli<strong>do</strong> pela multidão, Stubby. Podes bem estar no fim da fila. Qualquer<<strong>br</strong> />

mun<strong>do</strong> pode educar os seus metalúrgicos, e o merca<strong>do</strong> para exemplares terrestres<<strong>br</strong> />

avança<strong>do</strong>s não é assim tão grande. E são principalmente os pequenos mun<strong>do</strong>s a procurá-os.<<strong>br</strong> />

Sabes que percentagem da saída de metalúrgicos registra<strong>do</strong>s é enviada para<<strong>br</strong> />

mun<strong>do</strong>s <strong>com</strong> uma classificação de Nível A? Eu fui ver. Só 13,3 por cento. Isso quer<<strong>br</strong> />

dizer que terás sete chances em oito de ficar preso num mun<strong>do</strong> que praticamente só<<strong>br</strong> />

tem água corrente. Podes até ficar preso na Terra; 2, 3 por cento ficam.<<strong>br</strong> />

- Ficar na Terra não é nenhuma desgraça - disse Trevelyan belicosamente. - A Terra<<strong>br</strong> />

também precisa de técnicos. Bons técnicos. - O seu avô trabalhara <strong>com</strong>o metalúrgico<<strong>br</strong> />

na Terra, e Trevelyan levantou o de<strong>do</strong> ao nível <strong>do</strong> lábio superior e bateu num<<strong>br</strong> />

ainda inexistente bigode.<<strong>br</strong> />

George sabia <strong>do</strong> avô de Trevelyan e, consideran<strong>do</strong> a localização terrena <strong>do</strong>s seus<<strong>br</strong> />

próprios antepassa<strong>do</strong>s, não estava <strong>com</strong> disposição para escarnecer.<<strong>br</strong> />

- Não é uma desgraça intelectual- disse, diplomaticamente - Claro que não. Mas é<<strong>br</strong> />

agradável entrar para um mun<strong>do</strong> de Nível A, não é?<<strong>br</strong> />

«Agora vê os programa<strong>do</strong>res. Só os mun<strong>do</strong>s de Nível A têm o gênero de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res<<strong>br</strong> />

que realmente necessita de programa<strong>do</strong>res de primeira classe, portanto são os<<strong>br</strong> />

únicos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. E as fitas para programa<strong>do</strong>r são <strong>com</strong>plicadas e raramente se<<strong>br</strong> />

ajustam a alguém. Precisam de mais programa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> que a sua própria população<<strong>br</strong> />

pode fornecer. É apenas uma questão de estatísticas. Há, digamos, um programa<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

de primeira classe num milhão. Se um mun<strong>do</strong> precisa de vinte e tem uma população<<strong>br</strong> />

de dez milhões, tem de vir à Terra buscar entre cinco e quinze programa<strong>do</strong>res. Certo?<<strong>br</strong> />

«E sabes quantos programa<strong>do</strong>res de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res registra<strong>do</strong>s foram para planetas<<strong>br</strong> />

de Nível A no ano passa<strong>do</strong>? Eu digo-te. To<strong>do</strong>s. Se és programa<strong>do</strong>r, és um homem<<strong>br</strong> />

escolhi<strong>do</strong>. Acredita.<<strong>br</strong> />

Trevelyan franziu as so<strong>br</strong>ancelhas.<<strong>br</strong> />

- Se apenas um num milhão consegue, que é que te faz pensar que tu vais conseguir?<<strong>br</strong> />

- Vou conseguir - disse George, resguardan<strong>do</strong>-se. Nunca se atreveu a dizer a nin-


guém; nem ao Trevelyan; nem aos pais, exatamente aquilo que estava fazen<strong>do</strong> e<<strong>br</strong> />

que o tornava tão confiante. Mas ele não estava preocupa<strong>do</strong>. Estava simplesmente<<strong>br</strong> />

confiante (essa era a pior das memórias que teria nos dias sem esperança que se seguiriam).<<strong>br</strong> />

Estava tão <strong>br</strong>andamente confiante <strong>com</strong>o qualquer garoto médio de oito<<strong>br</strong> />

anos aproximan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> Dia da Leitura, essa antecipação infantil <strong>do</strong> Dia da Educação.<<strong>br</strong> />

Claro que o Dia da Leitura tinha si<strong>do</strong> diferente. Em parte, pelo simples fato da infância.<<strong>br</strong> />

Um rapaz de 8 anos encara muitas coisas importantes <strong>com</strong> ligeireza. Um dia<<strong>br</strong> />

não se sabe ler e no seguinte já se sabe. É assim que são as coisas. Como o <strong>br</strong>ilho<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> Sol.<<strong>br</strong> />

E de qualquer forma, pouca coisa dependia dele. Não havia recruta<strong>do</strong>res em frente<<strong>br</strong> />

esperan<strong>do</strong> e acotovelan<strong>do</strong>-se pelas listas e resulta<strong>do</strong>s da próxima Olimpíada. Um rapaz<<strong>br</strong> />

ou uma garota que passe pelo Dia da Leitura é apenas alguém que tem mais dez<<strong>br</strong> />

anos de vida indiferenciada so<strong>br</strong>e a fervilhante face da Terra; apenas alguém que<<strong>br</strong> />

volta para a sua família <strong>com</strong> uma nova capacidade.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> o Dia da Educação chegou, dez anos depois, George já não tinha sequer a<<strong>br</strong> />

certeza de grande parte <strong>do</strong>s pormenores <strong>do</strong> seu próprio Dia da Leitura.<<strong>br</strong> />

Mais claramente que tu<strong>do</strong>, lem<strong>br</strong>ava-se de ter si<strong>do</strong> um dia triste de Setem<strong>br</strong>o <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

uma chuva suave a cair. (Setem<strong>br</strong>o para o Dia da Leitura, Novem<strong>br</strong>o para o Dia da<<strong>br</strong> />

Educação, Maio para as Olimpíadas, faziam versos <strong>com</strong> isto, no jardim da infância.)<<strong>br</strong> />

George encontrava-se vesti<strong>do</strong> junto às luzes de parede, <strong>com</strong> os pais bem mais excita<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> que ele próprio estava. O seu pai era um monta<strong>do</strong>r de tubos registra<strong>do</strong> e tinha<<strong>br</strong> />

encontra<strong>do</strong> a sua ocupação na Terra. Este fato tinha si<strong>do</strong> sempre uma humilhação<<strong>br</strong> />

para ele, embora, claro, <strong>com</strong>o qualquer um pode ver, a maior parte de cada geração<<strong>br</strong> />

deva ficar na Terra, pela natureza das coisas.<<strong>br</strong> />

Tinha de haver lavra<strong>do</strong>res e mineiros e até técnicos na Terra. Apenas os exemplares<<strong>br</strong> />

recentes de profissão altamente especializadas, que tinham grande procura nos<<strong>br</strong> />

Mun<strong>do</strong>s Exteriores, e apenas alguns milhões por ano da população de oito biliões da<<strong>br</strong> />

Terra podiam ser exporta<strong>do</strong>s. Nem to<strong>do</strong>s os homens e mulheres da Terra podiam estar<<strong>br</strong> />

nesse grupo.<<strong>br</strong> />

Mas cada homem e mulher podia esperar que pelo menos um <strong>do</strong>s seus filhos pudesse<<strong>br</strong> />

estar, e Platen, pai, não era decerto excepção. Era claro para ele (e, <strong>com</strong> certeza,<<strong>br</strong> />

também para outros) que George era notavelmente inteligente e sagaz. Estaria<<strong>br</strong> />

destina<strong>do</strong> a sair-se bem e teria de o fazer, já que era filho único. Se George não acabasse<<strong>br</strong> />

num Mun<strong>do</strong> Exterior, teriam de esperar pelos netos para que houvesse outra<<strong>br</strong> />

oportunidade, e isso estava demasia<strong>do</strong> afasta<strong>do</strong> no tempo para ser grande consolação.<<strong>br</strong> />

É claro que o Dia da Leitura não provava muita coisa, mas seria a única indicação<<strong>br</strong> />

que teriam antes <strong>do</strong> grande dia propriamente dito. To<strong>do</strong>s os pais da Terra ouviriam a<<strong>br</strong> />

qualidade da leitura quan<strong>do</strong> os seus filhos voltassem para casa <strong>com</strong> ela, procuran<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ouvir qualquer fluência particularmente fácil e construin<strong>do</strong> <strong>com</strong> ela alguns augúrios<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> <strong>futuro</strong>. Havia poucas famílias que não tivessem pelo menos um rapaz promissor<<strong>br</strong> />

que, devi<strong>do</strong> à forma <strong>com</strong>o dizia os trissílabos, fosse, desde o Dia da Leitura, a sua<<strong>br</strong> />

grande esperança.<<strong>br</strong> />

George tinha uma vaga consciência da causa da tensão <strong>do</strong>s seus pais, e se havia<<strong>br</strong> />

alguma ansiedade no seu coração jovem, naquela manhã chuvosa, era apenas o<<strong>br</strong> />

me<strong>do</strong> de que a expressão esperançosa <strong>do</strong> seu pai se esvaísse quan<strong>do</strong> ele regressasse<<strong>br</strong> />

para casa <strong>com</strong> a sua leitura.


As crianças reuniam-se na grande sala da assembleia <strong>do</strong> edifício da Educação da<<strong>br</strong> />

cidade. Por toda a Terra, em milhões de edifícios locais, ao longo daquele mês, grupos<<strong>br</strong> />

semelhantes de crianças se reuniriam. George sentia-se deprimi<strong>do</strong> <strong>com</strong> o tom<<strong>br</strong> />

cinzento da sala e <strong>com</strong> as outras crianças, tensas e constrangidas por uma elegância<<strong>br</strong> />

a que não estavam habituadas.<<strong>br</strong> />

Automaticamente, George fez o que todas as outras crianças faziam. Encontrou o<<strong>br</strong> />

pequeno grupo que representava as crianças <strong>do</strong> seu andar <strong>do</strong> prédio de apartamentos<<strong>br</strong> />

e juntou-se a eles.<<strong>br</strong> />

Trevelyan, que morava logo em frente, ainda usava o cabelo infantilmente longo e<<strong>br</strong> />

estava muitos anos longe das suíças e <strong>do</strong> bigode fino e arruiva<strong>do</strong> que viria a deixar<<strong>br</strong> />

crescer quan<strong>do</strong> fosse fisiologicamente capaz disso.<<strong>br</strong> />

- Aposto que estás assusta<strong>do</strong> - disse Trevelyan (para quem George era então conheci<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

por Jaw-jee).<<strong>br</strong> />

- Não, não estou - disse George. Depois, em tom de confidência: - Os meus pais<<strong>br</strong> />

puseram um monte de coisas escritas em cima da cômoda <strong>do</strong> meu quarto, e quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

for para casa vou lê-as para eles. - (O principal sofrimento de George neste momento<<strong>br</strong> />

residia no fato de não saber muito bem onde havia de pôr as mãos. Tinham-lhe<<strong>br</strong> />

dito para não coçar a cabeça, não coçar os ouvi<strong>do</strong>s, não tirar catota <strong>do</strong> nariz, não<<strong>br</strong> />

pôr as mãos nos bolsos. Isso eliminava quase todas as possibilidades.)<<strong>br</strong> />

Trevelyan pôs as suas mãos nos bolsos e disse: - O meu pai não está preocupa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Trevelyan pai, tinha si<strong>do</strong> metalúrgico em Diporia durante quase sete anos, o que<<strong>br</strong> />

lhe dava um estatuto social superior no seu bairro, apesar de ele se ter reforma<strong>do</strong> e<<strong>br</strong> />

volta<strong>do</strong> à Terra.<<strong>br</strong> />

A Terra dissuadia estes re-imigrantes devi<strong>do</strong> a problemas de população, mas um<<strong>br</strong> />

pequeno grupo conseguia voltar. Por um la<strong>do</strong>, o custo de vida na Terra era mais baixo,<<strong>br</strong> />

e aquilo que em Diporia era uma anuidade insignificante, por exemplo, era uma<<strong>br</strong> />

receita confortável na Terra. De qualquer forma, havia sempre pessoas que gostavam<<strong>br</strong> />

mais de mostrar o seu sucesso aos amigos, nos lugares da sua infância, <strong>do</strong> que a<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong> o restante Universo.<<strong>br</strong> />

Trevelyan pai, explicou ainda que se ficasse em Diporia, os seus filhos também ficariam,<<strong>br</strong> />

e Diporia era um mun<strong>do</strong> de uma só nave espacial. Na Terra, os seus filhos<<strong>br</strong> />

podiam ir para qualquer la<strong>do</strong>, até Novia.<<strong>br</strong> />

Stubby Trevelyan tinha pega<strong>do</strong> ce<strong>do</strong> nesse assunto.<<strong>br</strong> />

Mesmo antes <strong>do</strong> Dia da Leitura, as suas conversas baseavam-se no fato despreocupadamente<<strong>br</strong> />

assumi<strong>do</strong> de que a sua casa definitiva seria em Novia.<<strong>br</strong> />

George, oprimi<strong>do</strong> pela ideia da futura grandeza <strong>do</strong> outro em contraste <strong>com</strong> a sua<<strong>br</strong> />

própria pequenez, foi leva<strong>do</strong> de imediato a defender-se belicosamente.<<strong>br</strong> />

- O meu pai também não está preocupa<strong>do</strong>. Ele quer ouvir-me ler apenas porque<<strong>br</strong> />

sabe que serei bom. Suponho que o teu pai não te vai ouvir tão ce<strong>do</strong> porque sabe<<strong>br</strong> />

que vais falhar.<<strong>br</strong> />

- Eu não vou falhar. Ler não é nada. Em Novia, vou contratar pessoas para ler para<<strong>br</strong> />

mim.<<strong>br</strong> />

- Por que tu não serás capaz de ler por ti, por seres pateta!<<strong>br</strong> />

- Então <strong>com</strong>o é que explicas que eu vá para Novia?<<strong>br</strong> />

E George, pressiona<strong>do</strong>, fez a grande negação:<<strong>br</strong> />

- Quem disse que vais para Novia? Aposto que não vais para lugar nenhum.<<strong>br</strong> />

Stubby Trevelyan corou.<<strong>br</strong> />

- Não vou ser um monta<strong>do</strong>r de tubos <strong>com</strong>o o teu velho.<<strong>br</strong> />

- Retira o que disseste, parvalhão.<<strong>br</strong> />

- Retira tu.


Enfrentaram-se, nariz <strong>com</strong> nariz, sem pretenderem lutar, mas alivia<strong>do</strong>s por terem<<strong>br</strong> />

algo de familiar para fazer naquele estranho lugar. Além disso, agora que tinha enrola<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

as mãos em punhos e as tinha levanta<strong>do</strong> ao nível da cara, o problema <strong>do</strong> que<<strong>br</strong> />

fazer <strong>com</strong> elas estava, pelo menos por agora, resolvi<strong>do</strong>. Outras crianças se juntaram,<<strong>br</strong> />

excitadas.<<strong>br</strong> />

Mas tu<strong>do</strong> acabou quan<strong>do</strong> uma voz de mulher soou alto no sistema público de <strong>com</strong>unicação.<<strong>br</strong> />

Fez-se instantaneamente silêncio em to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>. George baixou os punhos<<strong>br</strong> />

e esqueceu Trevelyan.<<strong>br</strong> />

- Crianças - disse a voz. - Vamos chamar seus nomes. À medida que cada um é<<strong>br</strong> />

chama<strong>do</strong>, deve dirigir-se a um <strong>do</strong>s homens que estão ao longo das paredes laterais.<<strong>br</strong> />

Veem-nos? Usam uniformes vermelhos, portanto são fáceis de encontrar. As moças<<strong>br</strong> />

vão para a direita. Os rapazes vão para a esquerda. Agora olhem à volta e vejam<<strong>br</strong> />

qual é o homem de vermelho que está mais perto de vocês..<<strong>br</strong> />

George encontrou o seu homem num relance e esperou que o seu nome fosse<<strong>br</strong> />

chama<strong>do</strong>. Ainda não tinha si<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> à sofisticação <strong>do</strong> alfabeto, e o tempo<<strong>br</strong> />

que estava demoran<strong>do</strong> a chegar o seu nome tornava-se perturba<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

A multidão de crianças diminuía; pequenos regatos dirigiam-se aos guias vesti<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

de vermelho.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> o nome «George Platen» foi chama<strong>do</strong>, a sua sensação de alívio foi apenas<<strong>br</strong> />

excedida pelo sentimento de pura satisfação pelo fato de Stubby Trevelyan ainda estar<<strong>br</strong> />

no seu lugar, sem ter si<strong>do</strong> chama<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Eh, Stubby, talvez eles não te queiram - gritou George por so<strong>br</strong>e o om<strong>br</strong>o enquanto<<strong>br</strong> />

saía.<<strong>br</strong> />

Esse momento de alegria acabou rapidamente. Foi conduzi<strong>do</strong> a uma linha e leva<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

por corre<strong>do</strong>res na <strong>com</strong>panhia de crianças estranhas. Olhavam umas para as outras,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> olhos grandes e preocupa<strong>do</strong>s, mas além de uma fungadela, «Para de empurrar»<<strong>br</strong> />

e «Eh, olha lá», não se conversava.<<strong>br</strong> />

Deram-lhes pequenas folhas de papel que lhes disseram para ter sempre <strong>com</strong> eles.<<strong>br</strong> />

George olhou para a dele <strong>com</strong> curiosidade. Pequenas marcas pretas de diferentes<<strong>br</strong> />

formatos. Sabia que era escrita, mas <strong>com</strong>o é que alguém conseguia formar palavras<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> isto? Não podia imaginar.<<strong>br</strong> />

Disseram-lhe para se despir; ele e mais quatro rapazes que eram os únicos que<<strong>br</strong> />

agora se mantinham juntos. Todas aquelas roupas novas foram tiradas e quatro rapazes<<strong>br</strong> />

de 8 anos ali ficaram, nus e pequenos, tremen<strong>do</strong> mais de embaraço que de<<strong>br</strong> />

frio. Técnicos de medicina passaram por eles, analisan<strong>do</strong>-os, testan<strong>do</strong>-os <strong>com</strong> estranhos<<strong>br</strong> />

instrumentos, recolhen<strong>do</strong> o seu sangue. Cada um deles pegou nos pequenos<<strong>br</strong> />

cartões e fez neles mais algumas marcas <strong>com</strong> pequenas varetas pretas que as produziam,<<strong>br</strong> />

todas impecavelmente alinhadas, a grande velocidade. George olhou para as<<strong>br</strong> />

novas marcas, mas não eram mais <strong>com</strong>preensíveis que as antigas. Mandaram as<<strong>br</strong> />

crianças vestir de novo as suas roupas.<<strong>br</strong> />

Sentaram-se então em pequenas cadeiras separadas e esperaram de novo. Os nomes<<strong>br</strong> />

foram outra vez chama<strong>do</strong>s e «George Platen» foi o terceiro.<<strong>br</strong> />

Entrou numa grande sala, cheia de assusta<strong>do</strong>res instrumentos <strong>com</strong> botões e painéis<<strong>br</strong> />

vidra<strong>do</strong>s à frente. Havia um birô exatamente no centro, e atrás dela estava senta<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

um homem, <strong>com</strong> os olhos nos papéis empilha<strong>do</strong>s à sua frente.<<strong>br</strong> />

- George Platen?<<strong>br</strong> />

- Sim, Sr. - disse George, num sussurro vacilante.<<strong>br</strong> />

Toda aquela espera e todas aquelas idas daqui para ali estavam a enervá-o. Desejou<<strong>br</strong> />

que estivesse tu<strong>do</strong> acaba<strong>do</strong>. - Sou o Dr. Lloyed, George. Como estás? - disse o<<strong>br</strong> />

homem que estava atrás da secretária.


O médico não olhava para ele quan<strong>do</strong> falava. Era <strong>com</strong>o se tivesse dito aquelas palavras<<strong>br</strong> />

vezes sem conta e já não precisasse de olhar.<<strong>br</strong> />

- Estou bem.<<strong>br</strong> />

- Estás <strong>com</strong> me<strong>do</strong>, George?<<strong>br</strong> />

- N... não,Sr. - disse George, soan<strong>do</strong> assusta<strong>do</strong> até aos seus próprios ouvi<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- Isso é bom - disse o médico -, porque não há nada de que ter me<strong>do</strong>, sabes. Vamos<<strong>br</strong> />

lá a ver, George. Diz aqui no teu cartão que o teu pai se chama Peter e é monta<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

de tubos registra<strong>do</strong> e que a tua mãe se chama Amy e é técnica <strong>do</strong>méstica registada.<<strong>br</strong> />

Está certo?<<strong>br</strong> />

- S... sim, Sr..<<strong>br</strong> />

- E o teu aniversário é a 13 de Fevereiro, e tiveste uma infecção no ouvi<strong>do</strong> há cerca<<strong>br</strong> />

de um ano. Certo? - Sim,Sr..<<strong>br</strong> />

- Sabes <strong>com</strong>o é que eu sei todas estas coisas?<<strong>br</strong> />

- Estão no cartão, penso eu, Sr..<<strong>br</strong> />

- Correto. - O médico olhou para George pela primeira vez e sorriu. Tinha dentes<<strong>br</strong> />

certos e parecia muito mais novo que o pai de George. Algo <strong>do</strong> nervosismo de George<<strong>br</strong> />

desapareceu.<<strong>br</strong> />

O médico passou o cartão a George.<<strong>br</strong> />

- Sabes o que todas essas coisas aí significam, George? Embora George soubesse<<strong>br</strong> />

que não, foi leva<strong>do</strong>, pela surpresa <strong>do</strong> súbito pedi<strong>do</strong>, a olhar para o cartão <strong>com</strong>o se<<strong>br</strong> />

pudesse agora entendê-as, por uma qualquer partida <strong>do</strong> destino. Mas eram apenas<<strong>br</strong> />

marcas <strong>com</strong>o dantes, e ele devolveu o cartão:<<strong>br</strong> />

- Não,Sr..<<strong>br</strong> />

- Por que não?<<strong>br</strong> />

George sentiu um repentino aguilhão de suspeita em relação à sanidade daquele<<strong>br</strong> />

médico. Ele não sabia por que não? - Não sei ler, Sr. - disse George.<<strong>br</strong> />

- Gostarias de ler?<<strong>br</strong> />

- Sim,Sr.<<strong>br</strong> />

- Porquê, George?<<strong>br</strong> />

George olhou, estarreci<strong>do</strong>. Nunca ninguém lhe tinha pergunta<strong>do</strong> aquilo. Não tinha<<strong>br</strong> />

resposta.<<strong>br</strong> />

- Não sei,Sr. - disse, titubeante.<<strong>br</strong> />

- A informação impressa vai guiar-te durante toda a tua vida. Terás muito que<<strong>br</strong> />

aprender, mesmo depois <strong>do</strong> Dia da Educação. Cartões <strong>com</strong>o este ensinar-te-ão. A palavra<<strong>br</strong> />

impressa ensinar-te-a coisas tão úteis e tão interessantes que não saber ler seria<<strong>br</strong> />

tão mau <strong>com</strong>o não poder ver. Compreendes?<<strong>br</strong> />

- Sim, Sr.<<strong>br</strong> />

- Estás <strong>com</strong> me<strong>do</strong>, George?<<strong>br</strong> />

- Não, Sr...<<strong>br</strong> />

- Ótimo. Agora vou-te dizer exatamente o que vamos fazer primeiro. Vou pôr estes<<strong>br</strong> />

fios na tua testa, mesmo por cima <strong>do</strong>s cantos <strong>do</strong>s olhos. Vão ficar presos aí mas não<<strong>br</strong> />

vão <strong>do</strong>er nada. Depois, vou ligar uma coisa que vai fazer um zumbi<strong>do</strong>. Faz um som<<strong>br</strong> />

engraça<strong>do</strong> e pode ser que te faça cócegas, mas não dói. Agora, se por acaso <strong>do</strong>er,<<strong>br</strong> />

diz-me, que eu desligo tu<strong>do</strong> imediatamente, mas não vai <strong>do</strong>er. Certo?<<strong>br</strong> />

George acenou e engoliu em seco.<<strong>br</strong> />

- Estás pronto?<<strong>br</strong> />

George acenou <strong>com</strong> a cabeça Fechou os olhos enquanto o médico se atarefava. Os<<strong>br</strong> />

seus pais tinham-lhe explica<strong>do</strong> isto. Também eles tinham dito que não ia <strong>do</strong>er, mas<<strong>br</strong> />

havia sempre as crianças mais velhas. Havia rapazes de 10 e 12 anos que andavam<<strong>br</strong> />

atrás <strong>do</strong>s pequenos de 8, que esperavam pelo Dia da Leitura, gritan<strong>do</strong>:


- Cuida<strong>do</strong> <strong>com</strong> a agulha. - Havia outros que nos tomavam por confidentes e diziam:<<strong>br</strong> />

- Têm de te a<strong>br</strong>ir a cabeça <strong>com</strong> um corte. Usam uma faca afiada deste tamanho<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> um gancho - e assim por diante <strong>com</strong> detalhes horríveis.<<strong>br</strong> />

George nunca acreditara neles, mas tivera pesadelos, e agora fechava os olhos e<<strong>br</strong> />

sentia puro terror.<<strong>br</strong> />

Não sentiu os fios na têmporas. O zumbi<strong>do</strong> era algo distante, e sentia nos ouvi<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

o som <strong>do</strong> seu próprio sangue, soan<strong>do</strong> abafa<strong>do</strong> <strong>com</strong>o se ele e o sangue estivessem<<strong>br</strong> />

numa grande caverna. Lentamente, atreveu-se a a<strong>br</strong>ir os olhos.<<strong>br</strong> />

O médico estava de costas para ele. De um <strong>do</strong>s instrumentos desenrolava-se uma<<strong>br</strong> />

tira de papel, percorrida por uma ondulante e fina linha roxa. O médico rasgava pedaços<<strong>br</strong> />

e introduzia-os numa ranhura <strong>do</strong>utra máquina. Fazia-o vezes e vezes seguidas.<<strong>br</strong> />

De cada vez, saía um pequeno pedaço de filme, para o qual o médico olhava. Finalmente,<<strong>br</strong> />

virou-se para George, <strong>com</strong> um estranho franzi<strong>do</strong> entre os olhos.<<strong>br</strong> />

O zumbi<strong>do</strong> parou.<<strong>br</strong> />

- Já acabou? - disse George, sem fôlego.<<strong>br</strong> />

- Sim - disse o médico, mas ainda tinha a testa franzida.<<strong>br</strong> />

- Já consigo ler? - perguntou George. Não se sentia diferente.<<strong>br</strong> />

- O quê? - disse o médico, e depois sorriu de repente e por pouco tempo. - Correu<<strong>br</strong> />

tu<strong>do</strong> bem, George - disse. Daqui a quinze minutos conseguirás ler. Agora vamos utilizar<<strong>br</strong> />

outra máquina e vai demorar mais. Vou co<strong>br</strong>ir a tua cabeça toda, e quan<strong>do</strong> ligar<<strong>br</strong> />

não vais poder ver ou ouvir nada por um momento, mas não vai <strong>do</strong>er. Só para ter a<<strong>br</strong> />

certeza vou dar-te um pequeno interruptor para segurares. Se alguma coisa <strong>do</strong>er,<<strong>br</strong> />

aperte no pequeno botão e desliga-se tu<strong>do</strong>. Certo?<<strong>br</strong> />

Anos mais tarde, disseram-lhe que o pequeno interruptor era apenas fictício; que<<strong>br</strong> />

tinha si<strong>do</strong> introduzi<strong>do</strong> apenas para inspirar confiança. No entanto, ele nunca soube<<strong>br</strong> />

ao certo, já que nunca apertou o botão.<<strong>br</strong> />

Um grande capacete de curvas suaves e revestimento interior elástico foi coloca<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

so<strong>br</strong>e a sua cabeça e deixa<strong>do</strong> aí. Três ou quatro pequenos botões pareciam agarrarse<<strong>br</strong> />

a ele e morder-lhe o crânio, mas era apenas uma pequena pressão que se esvaiu.<<strong>br</strong> />

Não havia <strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

A voz <strong>do</strong> médico soou vagamente. - Tu<strong>do</strong> bem, George?<<strong>br</strong> />

E então, sem qualquer aviso, uma camada de espesso feltro fechou-se à volta<<strong>br</strong> />

dele. Estava desencorpa<strong>do</strong>, não havia sensação, não havia universo, apenas ele próprio<<strong>br</strong> />

e um murmúrio distante nos limites <strong>do</strong> nada, dizen<strong>do</strong>-lhe algo... dizen<strong>do</strong>-lhe...<<strong>br</strong> />

dizen<strong>do</strong>-lhe...<<strong>br</strong> />

Esforçou-se por ouvir e perceber mas havia to<strong>do</strong> aquele grosso feltro no meio.<<strong>br</strong> />

Depois o capacete foi-lhe tira<strong>do</strong> da cabeça, e a luz era tão <strong>br</strong>ilhante que lhe magoou<<strong>br</strong> />

os olhos, enquanto a voz <strong>do</strong> médico ressoou nos seus ouvi<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- Aqui está o teu cartão, George - disse o médico -, que é que diz?<<strong>br</strong> />

George olhou de novo para o seu cartão e largou um grito abafa<strong>do</strong>. As marcas não<<strong>br</strong> />

eram apenas marcas, de forma alguma. Elas formavam palavras. Eram palavras, tão<<strong>br</strong> />

claramente <strong>com</strong>o se alguém as estivesse sussurran<strong>do</strong> aos ouvi<strong>do</strong>s. Ele podia ouvir as<<strong>br</strong> />

palavras a sen<strong>do</strong> sussurradas ao olhar para elas.<<strong>br</strong> />

- Que é que diz, George?<<strong>br</strong> />

- Diz... diz... «Platen, George. Nasci<strong>do</strong> a 13 de Fevereiro de 6492, filho de Peter e<<strong>br</strong> />

Amy Platen em...». - E interrompeu-se.<<strong>br</strong> />

- Já sabes ler, George - disse o médico. - Já acabou.<<strong>br</strong> />

- Para sempre? Já não me esqueço?<<strong>br</strong> />

- Claro que não. - O médico inclinou-se para cumprimentá-o gravemente. - Serás<<strong>br</strong> />

leva<strong>do</strong> para casa agora.


Passaram-se dias antes que George se refizesse deste seu novo e grande talento.<<strong>br</strong> />

Lia para o pai <strong>com</strong> tal facilidade que Platen pai, chorou e chamou os parentes para<<strong>br</strong> />

contar a novidade.<<strong>br</strong> />

George andava pela cidade, len<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os bocadinhos de escrita que encontrava<<strong>br</strong> />

e perguntan<strong>do</strong>-se <strong>com</strong>o é que nada daquilo tinha feito senti<strong>do</strong> para ele antes.<<strong>br</strong> />

Tentou lem<strong>br</strong>ar-se de <strong>com</strong>o era não saber ler mas não conseguiu. No que diz respeito<<strong>br</strong> />

aos seus sentimentos face a isso, ele tinha sempre sabi<strong>do</strong> ler. Sempre.<<strong>br</strong> />

Aos 18 anos, George era escuro, de estatura média, mas suficientemente magro<<strong>br</strong> />

para parecer mais alto. Trevelyan, que era pouco menos de um centímetro mais baixo,<<strong>br</strong> />

tinha uma corpulência que tornava «Stubby»! mais apropria<strong>do</strong> que nunca, mas<<strong>br</strong> />

no último ano tinha-se torna<strong>do</strong> envergonha<strong>do</strong>. A alcunha já não podia ser usada sem<<strong>br</strong> />

represálias. E visto que Trevelyan detestava o seu primeiro nome verdadeiro ainda<<strong>br</strong> />

mais fortemente, chamavam-lhe Trevelyan ou qualquer variante decente. Como que<<strong>br</strong> />

para provar ainda mais a sua virilidade, tinha deixa<strong>do</strong> crescer <strong>com</strong> persistência um<<strong>br</strong> />

par de suíças e um bigode hirsuto.<<strong>br</strong> />

Agora estava sua<strong>do</strong> e nervoso, e George, que por sua vez tinha cresci<strong>do</strong> de «Jawjee»<<strong>br</strong> />

para a curta guturalidade monossilábica de «George», estava de certo mo<strong>do</strong> diverti<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> isso.<<strong>br</strong> />

Estavam no mesmo grande átrio em que tinham esta<strong>do</strong> dez anos antes (e nunca<<strong>br</strong> />

mais desde então). Era <strong>com</strong>o se um vago sonho <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> se tivesse torna<strong>do</strong> em<<strong>br</strong> />

súbita realidade. Nos primeiros minutos, George ficara nitidamente surpreso ao encontrar<<strong>br</strong> />

tu<strong>do</strong> aparentemente menor e mais aperta<strong>do</strong> <strong>do</strong> que lhe dizia a memória; depois<<strong>br</strong> />

deu o desconto <strong>do</strong> seu próprio crescimento.<<strong>br</strong> />

A multidão era menor <strong>do</strong> que tinha si<strong>do</strong> na infância. Desta vez era exclusivamente<<strong>br</strong> />

masculina. Havia outro dia para as moças.<<strong>br</strong> />

Trevelyan inclinou-se para dizer:<<strong>br</strong> />

- Não enten<strong>do</strong> porque é que eles nos fazem esperar tanto.<<strong>br</strong> />

- Burocracia - disse George. - Não se pode evitá-a.<<strong>br</strong> />

- Por que raio é que tu és tão tolerante <strong>com</strong> tu<strong>do</strong> isso?<<strong>br</strong> />

- Não tenho <strong>com</strong> que me preocupar.<<strong>br</strong> />

- Oh, caro colega, enjoas-me. Espero que acabes por ser espalha<strong>do</strong>r de estrume<<strong>br</strong> />

registra<strong>do</strong>, só para ver a tua cara quan<strong>do</strong> isso acontecer. - Os olhos graves varreram<<strong>br</strong> />

a multidão ansiosamente.<<strong>br</strong> />

George também olhou em volta. Não era bem o sistema que tinham usa<strong>do</strong> <strong>com</strong> as<<strong>br</strong> />

crianças. As coisas eram mais lentas, e as instruções tinham si<strong>do</strong> dadas no início, por<<strong>br</strong> />

escrito (uma vantagem so<strong>br</strong>e os pré-Leitores), Os nomes Platen e Trevelyan continuavam<<strong>br</strong> />

bem no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> alfabeto, mas desta vez eles sabiam-no.<<strong>br</strong> />

Os rapazes saíam das salas de educação, som<strong>br</strong>ios e pouco confortáveis, pegavam<<strong>br</strong> />

nas suas roupas e pertences e iam para as salas de análise saber os resulta<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Cada um, ao sair, era rodea<strong>do</strong> por um pedaço da cada vez mais magra multidão.<<strong>br</strong> />

«Como é que foi?» «O qu'é que se sente?» «O qu'é que pensas que vais ser?» «Sentes-te<<strong>br</strong> />

diferente?».<<strong>br</strong> />

As respostas eram vagas e evasivas.<<strong>br</strong> />

George esforçou-se por não fazer parte desses pedaços.<<strong>br</strong> />

Só servia para aumentar a pressão <strong>do</strong> sangue. To<strong>do</strong>s diziam que se tinha as melhores<<strong>br</strong> />

chances se se estivesse calmo. Mesmo assim, podia-se sentir as palmas das<<strong>br</strong> />

mãos arrefecen<strong>do</strong>. Engraça<strong>do</strong> <strong>com</strong>o novas tensões surgem <strong>com</strong> a idade.<<strong>br</strong> />

Por exemplo, os profissionais altamente especializa<strong>do</strong>s que iam para os Mun<strong>do</strong>s


Exteriores eram a<strong>com</strong>panha<strong>do</strong>s pelas mulheres (ou mari<strong>do</strong>s). Era importante manter<<strong>br</strong> />

a relação <strong>do</strong>s sexos em equilí<strong>br</strong>io em to<strong>do</strong>s os mun<strong>do</strong>s B se se ia para um mun<strong>do</strong> de<<strong>br</strong> />

Nível A, que moça nos rejeitaria:<<strong>br</strong> />

George não tinha nenhuma menina em especial na cabeça, ainda; não queria nenhuma.<<strong>br</strong> />

Não agora! Assim que fosse programa<strong>do</strong>r... assim que pudesse juntar ao seu<<strong>br</strong> />

nome, programa<strong>do</strong>r de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res registra<strong>do</strong>, poderia escolher, <strong>com</strong>o um sultão<<strong>br</strong> />

num harém. Esta ideia entusiasmou-o e ele tentou afastá-a. «É preciso ficar calmo.»<<strong>br</strong> />

- Como é que é isto, afinal - resmungou Trevelyan. Primeiro dizem que funciona<<strong>br</strong> />

melhor se se está descontraí<strong>do</strong> e à vontade. Depois fazem-nos passar por isto e tornam<<strong>br</strong> />

impossível que se esteja descontraí<strong>do</strong> e à vontade.<<strong>br</strong> />

- Talvez seja essa a ideia. Estão separan<strong>do</strong> os rapazes <strong>do</strong>s homens, para <strong>com</strong>eçar.<<strong>br</strong> />

Tem calma, Trev.<<strong>br</strong> />

- Cala-te.<<strong>br</strong> />

A vez de George chegou. O seu nome não foi chama<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Apareceu em letras <strong>br</strong>ilhantes no painel de informações.<<strong>br</strong> />

Acenou para Trevelyan.<<strong>br</strong> />

- Tem calma. Não te deixes apanhar.<<strong>br</strong> />

Estava feliz quan<strong>do</strong> entrou na câmara de testes. Verdadeiramente feliz.<<strong>br</strong> />

- George Platen? - disse o homem que estava atrás da secretária.<<strong>br</strong> />

Por um fugaz instante surgiu na cabeça de George a nítida imagem de outro homem,<<strong>br</strong> />

dez anos antes, que tinha feito a mesma pergunta, e era quase <strong>com</strong>o se fosse<<strong>br</strong> />

o mesmo homem e ele, George, tivesse outra vez 8 anos, desde que atravessara a<<strong>br</strong> />

porta.<<strong>br</strong> />

Mas o homem levantou a cabeça e, obviamente, a sua cara não correspondia de<<strong>br</strong> />

forma alguma à da súbita memória. O nariz era bulboso, o cabelo fi<strong>br</strong>oso e fino, e o<<strong>br</strong> />

queixo parecia amarra<strong>do</strong> <strong>com</strong>o se o seu <strong>do</strong>no tivesse outrora si<strong>do</strong> flagrantemente<<strong>br</strong> />

gor<strong>do</strong> e tivesse encolhi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

O homem que estava atrás da secretaria pareceu aborreci<strong>do</strong>. - Bem?<<strong>br</strong> />

George desceu à Terra. - Sou George Platen, Sr..<<strong>br</strong> />

- Então, diga-o. Sou o Dr. Zachary Antonelli, e vamos conhecer-nos intimamente<<strong>br</strong> />

daqui a pouco.<<strong>br</strong> />

Olhava para pequenos pedaços de filme, seguran<strong>do</strong>-os à luz <strong>com</strong>o uma coruja.<<strong>br</strong> />

George recuou para dentro. Muito nebulosamente, lem<strong>br</strong>ou-se daquele outro médico<<strong>br</strong> />

(tinha-se esqueci<strong>do</strong> <strong>do</strong> nome) olhan<strong>do</strong> um para filme <strong>com</strong>o este. Poderia ser o<<strong>br</strong> />

mesmo? O outro médico tinha franzi<strong>do</strong> a testa e este estava agora olhan<strong>do</strong> para ele<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o se estivesse zanga<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

A sua felicidade já tinha desapareci<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

O Dr. Antonelli passava, agora, as páginas de um grosso arquivo à sua frente e punha<<strong>br</strong> />

os boca<strong>do</strong>s de filme cuida<strong>do</strong>samente a um la<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Diz aqui que você quer ser programa<strong>do</strong>r de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res.<<strong>br</strong> />

- Sim, Doutor.<<strong>br</strong> />

- Ainda quer?<<strong>br</strong> />

- Sim,Sr..<<strong>br</strong> />

- É uma posição exigente e de responsabilidade. Acha-se capaz de desempenhá-a?<<strong>br</strong> />

- Sim,Sr..<<strong>br</strong> />

- A maioria <strong>do</strong>s pré-educa<strong>do</strong>s não refere nenhuma profissão específica. Acho que<<strong>br</strong> />

têm me<strong>do</strong> de se prejudicar.<<strong>br</strong> />

- Acho que sim, Sr..<<strong>br</strong> />

- Não tem me<strong>do</strong> disso?<<strong>br</strong> />

- Se quer que seja franco, Sr....


O Dr. Antonelli acenou, mas sem qualquer visível alívio da sua expressão.<<strong>br</strong> />

- Por que é que quer ser programa<strong>do</strong>r?<<strong>br</strong> />

- E uma posição exigente e de responsabilidade <strong>com</strong>o disse, Sr.. É um trabalho importante<<strong>br</strong> />

e entusiasmante. Gosto dele e penso que posso fazê-o.<<strong>br</strong> />

O Dr. Antonelli pôs os papéis de la<strong>do</strong> e olhou George <strong>com</strong> amargura.<<strong>br</strong> />

- Como é que sabe que gosta? - disse. - Por que pensa que será pesca<strong>do</strong> por um<<strong>br</strong> />

planeta de Nível A?<<strong>br</strong> />

«Está tentan<strong>do</strong> confundir-te», pensou George apreensivamente, «fica calmo e continua<<strong>br</strong> />

franco.»<<strong>br</strong> />

- Acho que um programa<strong>do</strong>r tem boas chances, Sr., mas mesmo que ficasse na<<strong>br</strong> />

Terra, sei que havia de gostar - disse. (Era suficientemente verdade. «Não estou<<strong>br</strong> />

mentin<strong>do</strong>», pensou George.)<<strong>br</strong> />

- Pronto, <strong>com</strong>o é que sabe?<<strong>br</strong> />

Fez esta pergunta <strong>com</strong>o se soubesse que não havia resposta decente e George<<strong>br</strong> />

quase sorriu. Ele tinha uma.<<strong>br</strong> />

- Tenho li<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e Programação, Sr. - disse.<<strong>br</strong> />

- Tem o quê? - Agora o olhar <strong>do</strong> médico era de verdadeiro espanto e isso agra<strong>do</strong>u<<strong>br</strong> />

a George.<<strong>br</strong> />

- Li<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e isso, Sr.. Comprei um livro so<strong>br</strong>e a matéria e tenho andan<strong>do</strong> a estudáo.<<strong>br</strong> />

- Um livro para programa<strong>do</strong>res registra<strong>do</strong>s?<<strong>br</strong> />

- Sim,Sr..<<strong>br</strong> />

- Mas não poderia <strong>com</strong>preendê-o.<<strong>br</strong> />

- De início não. Comprei outros livros so<strong>br</strong>e matemática e eletrônica Deduzi tu<strong>do</strong> o<<strong>br</strong> />

que pude. Ainda não sei muito, mas sei o suficiente para saber que gosto e para saber<<strong>br</strong> />

que posso ser um. (Nem os seus pais tinham alguma vez encontra<strong>do</strong> aquele depósito<<strong>br</strong> />

secreto de livros, ou sequer sabi<strong>do</strong> porque é que ele passava tanto tempo no<<strong>br</strong> />

seu quarto ou exatamente aonde ia parar o sono que perdia.)<<strong>br</strong> />

O médico puxou pela pele solta <strong>do</strong> seu queixo. - Qual era a sua ideia ao fazer isso,<<strong>br</strong> />

filho?<<strong>br</strong> />

- Quis certificar-me de que estaria interessa<strong>do</strong>, Sr...<<strong>br</strong> />

- Sabe <strong>com</strong> certeza que estar interessa<strong>do</strong> não quer dizer nada. Pode estar mergulha<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

numa matéria, mas se a constituição física <strong>do</strong> seu cére<strong>br</strong>o tornar mais eficiente<<strong>br</strong> />

que seja outra coisa, outra coisa será. Sabe isso, não sabe?<<strong>br</strong> />

- Já mo disseram - disse George, cautelosamente.<<strong>br</strong> />

- E pode acreditar. É verdade.<<strong>br</strong> />

George não disse nada.<<strong>br</strong> />

- Ou acredita que estudan<strong>do</strong> uma matéria qualquer pode torcer as células <strong>do</strong> cére<strong>br</strong>o<<strong>br</strong> />

nessa direção, <strong>com</strong>o aquela outra teoria de que uma mulher grávida necessita<<strong>br</strong> />

apenas de ouvir muito boa música persistentemente para que o filho seja <strong>com</strong>positor<<strong>br</strong> />

- disse o Dr. Antonelli. - Acredita nisso?<<strong>br</strong> />

George corou. Isso tinha-lhe <strong>com</strong> certeza passa<strong>do</strong> pela cabeça. Forçan<strong>do</strong> o seu intelecto<<strong>br</strong> />

constantemente na direção desejada, tinha-se convenci<strong>do</strong> de que levava um<<strong>br</strong> />

certo avanço. Grande parte da sua confiança assentava precisamente nesse ponto.<<strong>br</strong> />

- Nunca... - <strong>com</strong>eçou ele, e não arranjou maneira de acabar.<<strong>br</strong> />

- Bem, não é verdade. Por Deus, jovem, a configuração <strong>do</strong> seu cére<strong>br</strong>o é fixada no<<strong>br</strong> />

nascimento. Pode ser alterada por uma pancada suficientemente forte para danificar<<strong>br</strong> />

as células ou por um vaso sanguíneo rompi<strong>do</strong> ou por um tumor ou por uma infecção<<strong>br</strong> />

greve; sempre para pior, claro. Mas o fato de pensar algo em especial não a afeta<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> certeza. - Olhou para George pensativamente, e depois disse: - Quem lhe disse


para fazer isso?<<strong>br</strong> />

George,já <strong>com</strong>pletamente transtorna<strong>do</strong>, engoliu e disse: - Ninguém, Doutor. Foi<<strong>br</strong> />

ideia minha.<<strong>br</strong> />

- Quem é que soube que fazia isso, depois de ter <strong>com</strong>eça<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Ninguém, Doutor. Não quis fazer nada de mal.<<strong>br</strong> />

- Quem é que falou em mal? Inútil é o que eu lhe chamaria. Por que é que escondeu?<<strong>br</strong> />

- P... pensei que ririam de mim. - (Pensou a<strong>br</strong>uptamente numa recente discussão<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> Trevelyan. George tinha aborda<strong>do</strong> muito cuida<strong>do</strong>samente o pensamento, <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

se se tratasse de algo que meramente circulasse ao longe nas mais afastadas áreas<<strong>br</strong> />

da sua mente, da possibilidade de aprender alguma coisa despejan<strong>do</strong>-a manualmente<<strong>br</strong> />

no cére<strong>br</strong>o, por assim dizer, aos boca<strong>do</strong>s. «George, a seguir vais curtir os teus<<strong>br</strong> />

próprios sapatos e tecer as tuas camisas», tinha dito Trevelyan. Ficara agradeci<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

pela sua política de sigilo.)<<strong>br</strong> />

O Dr. Antonelli empurrava os boca<strong>do</strong>s de filme, que antes examinara, de um lugar<<strong>br</strong> />

para o outro, pensan<strong>do</strong> soturnamente. Depois disse:<<strong>br</strong> />

- Vamos lá analisá-o, Assim não chegarei a lugar algum. Os fios foram postos nas<<strong>br</strong> />

têmporas de George. O zumbi<strong>do</strong> lá estava. De novo surgiu a memória nítida de dez<<strong>br</strong> />

anos atrás.<<strong>br</strong> />

As mãos de George estavam pegajosas; o seu coração batia. Nunca devia ter conta<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

as suas leituras secretas ao médico.<<strong>br</strong> />

Era a sua maldita vaidade, disse para si mesmo. Queria mostrar <strong>com</strong>o era empreende<strong>do</strong>r,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o estava cheio de iniciativa. Em vez disso tinha feito figura de supersticioso<<strong>br</strong> />

e ignorante e tinha provoca<strong>do</strong> a hostilidade <strong>do</strong> médico. (Via-se que o médico o<<strong>br</strong> />

odiava por ele ser um espertalhão em potência.)<<strong>br</strong> />

E agora tinha atingi<strong>do</strong> um tal esta<strong>do</strong> de nervosismo, que tinha a certeza de que o<<strong>br</strong> />

analisa<strong>do</strong>r não iria mostrar nada que fizesse senti<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Não se percebeu o momento em que os fios lhe foram retira<strong>do</strong>s das têmporas. A<<strong>br</strong> />

visão <strong>do</strong> médico, olhan<strong>do</strong>-o pensativamente, cintilou na sua consciência e foi tu<strong>do</strong>;<<strong>br</strong> />

os fios tinham desapareci<strong>do</strong>. George re<strong>com</strong>pôs-se <strong>com</strong> um esforço dilacerante. Já tinha<<strong>br</strong> />

desisti<strong>do</strong> da sua ambição de ser programa<strong>do</strong>r. Num espaço de dez minutos, tinha<<strong>br</strong> />

desapareci<strong>do</strong> por <strong>com</strong>pleto.<<strong>br</strong> />

- Suponho que não? - disse tristemente.<<strong>br</strong> />

- Não o quê?<<strong>br</strong> />

- Não vou ser programa<strong>do</strong>r?<<strong>br</strong> />

O médico coçou o nariz e disse:<<strong>br</strong> />

- Pegue nas suas roupas e em tu<strong>do</strong> o que lhe pertencer e vá à sala 15--C. Os seus<<strong>br</strong> />

arquivos estarão lá à sua espera. E o meu relatório também.<<strong>br</strong> />

- Já fui educa<strong>do</strong>? - disse George, <strong>com</strong>pletamente espanta<strong>do</strong>. - Pensava que isto<<strong>br</strong> />

era só para...<<strong>br</strong> />

O Dr. Antonelli baixou os olhos para o birô. - Tu<strong>do</strong> lhe será explica<strong>do</strong>. Faça <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

lhe disse.<<strong>br</strong> />

George sentiu algo pareci<strong>do</strong> <strong>com</strong> pânico.<<strong>br</strong> />

- Que é que não lhe podiam dizer? Não servia para nada a não ser para trabalha<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

registra<strong>do</strong>. Iam prepará-o para isso; ajustá-o a isso.<<strong>br</strong> />

De repente teve a certeza e só a muito esforço conseguiu não gritar.<<strong>br</strong> />

Cambaleou de volta ao seu local de espera. Trevelyan já não estava lá, fato pelo<<strong>br</strong> />

qual ele teria fica<strong>do</strong> grato se tivesse a presença de espírito para se aperceber <strong>do</strong> significa<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> que o rodeava. Quase ninguém restava, de fato, e os poucos que estavam<<strong>br</strong> />

lá pareciam demasia<strong>do</strong> esgota<strong>do</strong>s pela espera da cauda-<strong>do</strong>-alfabeto para resistir


ao seu agressivo e quente olhar de raiva e ódio.<<strong>br</strong> />

Que direito é que eles tinham de ser técnicos e ele, ele, um trabalha<strong>do</strong>r? Trabalha<strong>do</strong>r!<<strong>br</strong> />

Tinha a certeza!<<strong>br</strong> />

Foi leva<strong>do</strong> por um guia vesti<strong>do</strong> de vermelho pelos corre<strong>do</strong>res movimenta<strong>do</strong>s alinha<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> salas separadas, cada um <strong>com</strong> o seu grupo, <strong>do</strong>is aqui, cinco ali: os mecânicos<<strong>br</strong> />

de motores, os engenheiros de construção, os agrônomos. Havia centenas<<strong>br</strong> />

de profissões especializadas e cada uma delas seria representada, nesta pequena cidade,<<strong>br</strong> />

por um ou <strong>do</strong>is, de qualquer forma.<<strong>br</strong> />

Odiava-os a to<strong>do</strong>s naquele momento: os técnicos estatísticos, os contabilistas, as<<strong>br</strong> />

classes mais baixas e as mais altas. Odiava-os porque eles possuíam já o seu presunçoso<<strong>br</strong> />

conhecimento, sabiam o seu destino, enquanto ele, ainda vazio, tinha de enfrentar<<strong>br</strong> />

uma qualquer burocracia suplementar.<<strong>br</strong> />

Chegou à 15-C, foi leva<strong>do</strong> para dentro e deixa<strong>do</strong> numa sala vazia. Por um momento<<strong>br</strong> />

o seu espírito agitou-se. Decerto que, se esta fosse a sala de classificação <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res,<<strong>br</strong> />

estariam aqui dezenas de jovens.<<strong>br</strong> />

Uma porta foi sugada para o seu vão, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> de uma divisória que chegava<<strong>br</strong> />

até à altura da cintura, e dela saiu um homem i<strong>do</strong>so e grisalho. Sorriu e mostrou os<<strong>br</strong> />

dentes certos, que eram <strong>com</strong> certeza falsos, mas a sua cara era ainda rosada e sem<<strong>br</strong> />

rugas e a sua voz denotava vigor.<<strong>br</strong> />

- Boa-tarde, George - disse. - O nosso setor só tem um de vocês desta vez, pelo<<strong>br</strong> />

que vejo.<<strong>br</strong> />

- Só um? - disse George, confuso.<<strong>br</strong> />

- Milhares por toda a Terra, claro. Milhares. Não estás sozinho.<<strong>br</strong> />

George sentiu-se exaspera<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não percebo, Sr. - disse. - Qual é a minha classificação? Que é que se passa?<<strong>br</strong> />

- Calma, filho. Está tu<strong>do</strong> bem. Podia acontecer a qualquer um. - Estendeu a mão e<<strong>br</strong> />

George apertou-a mecanicamente. Era quente e apertava a mão de George <strong>com</strong> firmeza.<<strong>br</strong> />

- Senta-te, filho. Chamo-me Sam Ellenford.<<strong>br</strong> />

George acenou impacientemente, - Quero saber o que se passa,Sr..<<strong>br</strong> />

- Claro. Para <strong>com</strong>eçar, não podes ser programa<strong>do</strong>r de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res, George. Já tinhas<<strong>br</strong> />

adivinha<strong>do</strong> isso, penso eu.<<strong>br</strong> />

- Sim, já - disse George amargamente. - Que é que vou ser, então?<<strong>br</strong> />

- Essa é a parte mais difícil de explicar, George. - Fez uma pausa e depois disse,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> cuida<strong>do</strong>sa clareza: - Nada.<<strong>br</strong> />

- O quê?<<strong>br</strong> />

- Nada!<<strong>br</strong> />

- Mas que é que isso quer dizer? Por que é que não me podem dar uma profissão?<<strong>br</strong> />

- A escolha não é nossa, George. E a estrutura <strong>do</strong> teu cére<strong>br</strong>o que decide.<<strong>br</strong> />

George ficou amarelo-páli<strong>do</strong>. Os seus olhos tornaram-se protuberantes.<<strong>br</strong> />

- Há alguma coisa errada <strong>com</strong> o meu cére<strong>br</strong>o?<<strong>br</strong> />

- Há alguma coisa. No que diz respeito à classificação profissional, acho que podes<<strong>br</strong> />

dizer que é errada.<<strong>br</strong> />

- Mas porquê?<<strong>br</strong> />

Ellenford encolheu os om<strong>br</strong>os.<<strong>br</strong> />

- Acho que sabes <strong>com</strong>o a Terra conduz o seu programa de Educação, George. Praticamente<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong>s os seres humanos podem absorver praticamente to<strong>do</strong>s os conjuntos<<strong>br</strong> />

de conhecimentos, mas cada configuração cere<strong>br</strong>al individual está melhor preparada<<strong>br</strong> />

para receber determina<strong>do</strong>s tipos de conhecimento que outros. Tentamos <strong>com</strong>binar o


cére<strong>br</strong>o e conhecimento tão bem quanto podemos, dentro <strong>do</strong>s limites da quota exigida<<strong>br</strong> />

por cada profissão.<<strong>br</strong> />

George acenou.<<strong>br</strong> />

- Sim, eu sei. .<<strong>br</strong> />

- De vez em quan<strong>do</strong>, George, aparece um jovem cuja mente não está preparada<<strong>br</strong> />

para receber conhecimento super-imposto de qualquer espécie.<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que eu não posso ser educa<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- É o que quero dizer.<<strong>br</strong> />

- Mas isso é coisa de <strong>do</strong>i<strong>do</strong>. Eu sou inteligente. Compreen<strong>do</strong>... - Olhou desamparadamente<<strong>br</strong> />

em volta <strong>com</strong>o que procuran<strong>do</strong> alguma maneira de provar que o seu cére<strong>br</strong>o<<strong>br</strong> />

funcionava.<<strong>br</strong> />

- Não me interpretes mal, por favor - disse Ellenford gravemente. - És inteligente.<<strong>br</strong> />

Não há qualquer dúvida acerca disso. Tens até uma inteligência acima da média. Infelizmente<<strong>br</strong> />

isso não tem nada a ver <strong>com</strong> o fato de um cére<strong>br</strong>o poder aceitar conhecimento<<strong>br</strong> />

super-imposto ou não. Na verdade, são quase sempre as pessoas inteligentes<<strong>br</strong> />

que vêm parar aqui.<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que não posso sequer ser um trabalha<strong>do</strong>r registra<strong>do</strong>? - balbuciou George.<<strong>br</strong> />

De repente até isso era preferível ao vazio que o esperava. - Que é que preciso<<strong>br</strong> />

saber para ser trabalha<strong>do</strong>r?<<strong>br</strong> />

- Não subestimes o trabalha<strong>do</strong>r, jovem. Há dezenas de subclassificações e cada variante<<strong>br</strong> />

tem o seu próprio conjunto de conhecimentos razoavelmente específicos.<<strong>br</strong> />

Achas que não é preciso técnica para levantar um peso da forma correta? Além disso,<<strong>br</strong> />

para trabalha<strong>do</strong>r, temos de selecionar não só mentes que se adaptem mas também<<strong>br</strong> />

corpos. Tu não tens corpo para durares muito <strong>com</strong>o trabalha<strong>do</strong>r, George.<<strong>br</strong> />

George tinha consciência da sua frágil figura.<<strong>br</strong> />

- Mas eu nunca ouvi falar de alguém sem profissão disse.<<strong>br</strong> />

- Não há muitos - admitiu Ellenford. - E nós protegemo-os.<<strong>br</strong> />

- Protegem-nos? - George sentiu a confusão e o me<strong>do</strong> a crescer dentro dele.<<strong>br</strong> />

- Estás sob tutela <strong>do</strong> planeta, George. Desde que entraste por aquela porta, somos<<strong>br</strong> />

responsáveis por ti. - E sorriu.<<strong>br</strong> />

Era um sorriso afetuoso. Para George pareceu-lhe um sorriso de posse; o sorriso<<strong>br</strong> />

de um homem cresci<strong>do</strong> a uma criança indefesa.<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que vou para a prisão? - disse.<<strong>br</strong> />

- Claro que não. Vais apenas para junto de outros <strong>com</strong>o tu.<<strong>br</strong> />

Como tu. As palavras faziam uma espécie de trovão aos ouvi<strong>do</strong>s de George.<<strong>br</strong> />

- Precisas de tratamento especial - disse Ellenford. Nós tomaremos conta de ti.<<strong>br</strong> />

Para seu próprio horror, desatou a chorar.<<strong>br</strong> />

Ellenford foi até ao outro extremo da sala e virou-se de costas, <strong>com</strong>o que a pensar.<<strong>br</strong> />

George esforçou-se para reduzir o choro agonizante a soluços e depois para sufocar<<strong>br</strong> />

estes últimos. Pensou no seu pai e na sua mãe, nos amigos, no Trevelyan, na sua<<strong>br</strong> />

própria vergonha...<<strong>br</strong> />

- Aprendi a ler! - disse <strong>com</strong> rebeldia.<<strong>br</strong> />

- Qualquer um <strong>com</strong> uma mente íntegra pode fazê-o. Nunca encontramos exceções.<<strong>br</strong> />

E nesta altura que desco<strong>br</strong>imos... exceções. E quan<strong>do</strong> aprendeste a ler, George, estávamos<<strong>br</strong> />

preocupa<strong>do</strong>s <strong>com</strong> a estrutura <strong>do</strong> teu cére<strong>br</strong>o. Já nessa altura foram registadas<<strong>br</strong> />

determinadas peculiaridades pelo médico encarrega<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não podem tentar educar-me? Nem sequer tentaram. Estou disposto a arriscar.<<strong>br</strong> />

- A lei proíbe-nos de fazer isso, George. Mas repara, não vai ser assim tão mau.<<strong>br</strong> />

Vamos explicar tu<strong>do</strong> à tua família para não ficarem magoa<strong>do</strong>s. No lugar para onde<<strong>br</strong> />

vão te levar, terás privilégios. Dar-te-ão livros para que possas aprender aquilo que


quiseres.<<strong>br</strong> />

- Introduzir conhecimento à mão - disse George amargamente. - Pedaço a pedaço.<<strong>br</strong> />

Depois, quan<strong>do</strong> morrer, saberei o suficiente para ser moço de reca<strong>do</strong>s júnior registra<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

Secção de Clips.<<strong>br</strong> />

- No entanto, parece-me que já andaste estudan<strong>do</strong> livros.<<strong>br</strong> />

George estacou. Foi atingi<strong>do</strong> devasta<strong>do</strong>ramente pela súbita <strong>com</strong>preensão.<<strong>br</strong> />

- É isso...<<strong>br</strong> />

- O quê?<<strong>br</strong> />

- Aquele tipo, o Antonelli. Tramou-me.<<strong>br</strong> />

- Não, George. Estás <strong>com</strong>pletamente engan<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não diga isso. - George teve um ataque de fúria. - Aquele desgraça<strong>do</strong> traiu-me<<strong>br</strong> />

porque pensou que eu era esperto demais para ele. Eu lera livros para tentar estar<<strong>br</strong> />

em vantagem no que respeita à programação. Bem, que é que vocês querem para<<strong>br</strong> />

resolver o assunto? Dinheiro? Não vão conseguir. Vou sair daqui e quan<strong>do</strong> acabar de<<strong>br</strong> />

divulgar isto...<<strong>br</strong> />

Estava gritan<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Ellenford abanou a cabeça e tocou num contato.<<strong>br</strong> />

Dois homens entraram silenciosamente e puseram-se de ambos os la<strong>do</strong>s de George.<<strong>br</strong> />

Apertaram-lhe os <strong>br</strong>aços contra o corpo. Um deles usou um pulveriza<strong>do</strong>r hipodérmico<<strong>br</strong> />

na cavidade <strong>do</strong> seu cotovelo direito e o efeito hipnótico entrou na sua veia e<<strong>br</strong> />

teve um efeito quase imediato.<<strong>br</strong> />

Os seus gritos pararam e a sua cabeça caiu para a frente. Os seus joelhos <strong>do</strong><strong>br</strong>aram-se<<strong>br</strong> />

e apenas os homens que o ladeavam o mantiveram em pé à medida que<<strong>br</strong> />

a<strong>do</strong>rmecia.<<strong>br</strong> />

Tomaram conta de George, tal <strong>com</strong>o tinham dito; eram bons para ele e irrepreensivelmente<<strong>br</strong> />

gentis... da mesma forma, pensou George, que ele próprio seria para <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

um gatinho <strong>do</strong>ente de que tivesse pena.<<strong>br</strong> />

Disseram-lhe que ele devia a<strong>br</strong>ir os olhos e interessar-se pela vida; e depois disseram-lhe<<strong>br</strong> />

que a maior parte das pessoas que iam para ali tinham a mesma atitude desesperada<<strong>br</strong> />

ao início e que ele acabaria por ultrapassá-a.<<strong>br</strong> />

Ele nem sequer os ouviu.<<strong>br</strong> />

O próprio Dr. Ellenford foi visitá-o para lhe dizer que os pais tinham si<strong>do</strong> informa<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

de que ele partira em missão especial.<<strong>br</strong> />

- Eles sabem... - murmurou George.<<strong>br</strong> />

Ellenford assegurou-lhe imediatamente: - Não falamos em pormenores.<<strong>br</strong> />

Nos primeiros tempos, George recusara-se a <strong>com</strong>er. Alimentavam-no por via intravenosa.<<strong>br</strong> />

Escondiam objetos pontiagu<strong>do</strong>s e vigiavam-no. Hali Omani era o seu <strong>com</strong>panheiro<<strong>br</strong> />

de quarto e a sua impassibilidade tinha um efeito calmante.<<strong>br</strong> />

Um dia, por tédio desespera<strong>do</strong>, George pediu um livro.<<strong>br</strong> />

Omani, que lia livros constantemente, levantou os olhos, <strong>com</strong> um sorriso largo.<<strong>br</strong> />

George quase retirou o pedi<strong>do</strong>, nessa altura, para não lhes dar essa satisfação, e depois<<strong>br</strong> />

pensou: «Que é que isso me interessa?»<<strong>br</strong> />

Não especificou o livro e Omani trouxe um so<strong>br</strong>e química. Tinha letras grandes,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> poucas palavras e muitas ilustrações. Era um livro para jovens.<<strong>br</strong> />

Atirou o livro violentamente contra a parede.<<strong>br</strong> />

Era isso que ele seria sempre. Um jovem toda a vida.<<strong>br</strong> />

Seria para sempre um pré-educa<strong>do</strong> e teriam de escrever livros especiais para ele.<<strong>br</strong> />

Deitou-se na cama, tenso, fitan<strong>do</strong> o teto, e ao fim de uma hora levantou-se mal-hu-


mora<strong>do</strong>, apanhou o livro, e <strong>com</strong>eçou a ler.<<strong>br</strong> />

Levou uma semana len<strong>do</strong>-o e depois pediu outro.<<strong>br</strong> />

- Queres que leve o primeiro? - perguntou Omani.<<strong>br</strong> />

George franziu as so<strong>br</strong>ancelhas. Havia coisas no livro que ele não tinha entendi<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

mas não se ia rebaixar ao ponto de o admitir.<<strong>br</strong> />

Mas Omani disse:<<strong>br</strong> />

- Pensan<strong>do</strong> melhor, é melhor ficares <strong>com</strong> ele. Os livros são para ser li<strong>do</strong>s várias vezes.<<strong>br</strong> />

Foi nesse mesmo dia que ele se rendeu, finalmente, ao convite de Omani para visitar<<strong>br</strong> />

o local. Seguiu o nigeriano e examinou o que o rodeava <strong>com</strong> olhadelas rápidas e<<strong>br</strong> />

agressivas.<<strong>br</strong> />

Aquilo não era, obviamente, uma prisão. Não havia muros, nem portas trancadas,<<strong>br</strong> />

nem guardas. Mas era uma prisão na medida em que os que lá estavam não tinham<<strong>br</strong> />

para onde ir fora dela.<<strong>br</strong> />

Era de certa forma agradável ver outros <strong>com</strong>o ele às dúzias. Era tão fácil acreditar<<strong>br</strong> />

que era o único no mun<strong>do</strong> assim... mutila<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Quantas pessoas é que aqui estão, afinal? - resmungou.<<strong>br</strong> />

- Duzentas e cinco, George, e este não é o único local deste gênero no mun<strong>do</strong>. Há<<strong>br</strong> />

milhares deles.<<strong>br</strong> />

Os homens olhavam quan<strong>do</strong> ele passava, aonde quer que fosse; no ginásio, ao<<strong>br</strong> />

longo das quadras de tênis; na biblioteca (nunca na sua vida imaginara que os livros<<strong>br</strong> />

pudessem existir em tão grande número; estavam empilha<strong>do</strong>s, empilha<strong>do</strong>s mesmo,<<strong>br</strong> />

ao longo de grandes prateleiras). Olhavam para ele <strong>com</strong> curiosidade e ele retribuía os<<strong>br</strong> />

olhares ferozmente. Pelo menos eles não eram melhores <strong>do</strong> que ele; eles não tinham<<strong>br</strong> />

o direito de olhar para ele <strong>com</strong>o se fosse alguma curiosidade.<<strong>br</strong> />

A maior parte deles estava na casa <strong>do</strong>s 20.<<strong>br</strong> />

- Que é que acontece aos mais velhos? - disse George <strong>br</strong>uscamente.<<strong>br</strong> />

- Este local é especializa<strong>do</strong> nos mais novos - disse Omani. Então, <strong>com</strong>o se subitamente<<strong>br</strong> />

se tivesse apercebi<strong>do</strong> de algo implícito na pergunta de George que antes deixara<<strong>br</strong> />

escapar, abanou a cabeça gravemente e disse: - Não são afasta<strong>do</strong>s, se é isso<<strong>br</strong> />

que queres dizer. Há outras Casas para os mais velhos.<<strong>br</strong> />

- Que é que isso interessa? - resmungou George, que sentia estar soan<strong>do</strong> demasia<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

interessa<strong>do</strong> e estar em perigo de se render.<<strong>br</strong> />

- Muito, talvez. Quan<strong>do</strong> cresceres, ficarás numa Casa <strong>com</strong> ocupantes de ambos os<<strong>br</strong> />

sexos.<<strong>br</strong> />

Isso surpreendeu um pouco George. - Mulheres também?<<strong>br</strong> />

- Claro. Achas que as mulheres são imunes a este tipo de coisa?<<strong>br</strong> />

George pensou nisso <strong>com</strong> mais interesse e entusiasmo <strong>do</strong> que em qualquer outra<<strong>br</strong> />

coisa, desde antes daquele dia em que... Afastou isso <strong>do</strong> seu pensamento à força.<<strong>br</strong> />

Omani parou à porta de uma sala que continha um pequeno televisor de circuito<<strong>br</strong> />

fecha<strong>do</strong> e um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r pessoal. Cinco ou seis homens estavam senta<strong>do</strong>s junto à<<strong>br</strong> />

televisão.<<strong>br</strong> />

- Isto é uma sala de aula - disse Omani.<<strong>br</strong> />

- Que é isso? - disse George.<<strong>br</strong> />

- Aqueles jovens estão sen<strong>do</strong> educa<strong>do</strong>s. Não - acrescentou rapidamente - da forma<<strong>br</strong> />

habitual.<<strong>br</strong> />

- Queres dizer que estão meten<strong>do</strong> aquilo para dentro aos poucos.<<strong>br</strong> />

- É isso.<<strong>br</strong> />

Era assim que to<strong>do</strong>s faziam em tempos antigos. Era isso que estavam sempre lhe<<strong>br</strong> />

dizen<strong>do</strong> desde que ele chegara à Casa, mas e então? Suponhamos que tivesse havi-


<strong>do</strong> um tempo em que a humanidade não conhecesse o fogão diatérmico. Quereria<<strong>br</strong> />

isso dizer que ele deveria ficar satisfeito por <strong>com</strong>er carne crua, num mun<strong>do</strong> em que<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong>s a <strong>com</strong>iam cozida?<<strong>br</strong> />

- Por que é que eles querem passar por aquela cena <strong>do</strong>s bocadinhos?<<strong>br</strong> />

- Para passar o tempo, George, e porque têm curiosidade.<<strong>br</strong> />

- Qual é a vantagem disso?<<strong>br</strong> />

- Fá-os mais felizes.<<strong>br</strong> />

George foi para a cama pensan<strong>do</strong> nisso.<<strong>br</strong> />

No dia seguinte, disse a Omani, desagradavelmente: - Podes levar-me a uma sala<<strong>br</strong> />

de aula em que eu possa desco<strong>br</strong>ir alguma coisa so<strong>br</strong>e programação?<<strong>br</strong> />

- Claro - respondeu Omani entusiasticamente.<<strong>br</strong> />

Era lento e ele ressentiu-se disso. Por que é que alguém haveria de ter que explicar<<strong>br</strong> />

alguma coisa várias vezes? Por que é que ele haveria de ter que ler e reler uma<<strong>br</strong> />

passagem, e depois olhar para uma relação matemática e não entendê-a imediatamente?<<strong>br</strong> />

As outras pessoas não tinham de ser assim.<<strong>br</strong> />

Desistiu várias vezes, umas a seguir às outras. Uma vez recusou-se a ir às aulas<<strong>br</strong> />

por uma semana.<<strong>br</strong> />

Mas regressava sempre. O funcionário de serviço, que distribuía as leituras, conduzia<<strong>br</strong> />

as demonstrações televisivas e até explicava passagens e conceitos difíceis, nunca<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>entou o assunto.<<strong>br</strong> />

Deram finalmente a George uma tarefa regular nos jardins e já fazia a sua parte<<strong>br</strong> />

da limpeza e <strong>do</strong> trabalho de cozinha. Isto foi-lhe apresenta<strong>do</strong> <strong>com</strong>o um progresso,<<strong>br</strong> />

mas ele não se deixou enganar. Aquele lugar podia estar muito mais mecaniza<strong>do</strong> <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

que estava, mas eles davam deliberadamente trabalho aos jovens de maneira a darlhes<<strong>br</strong> />

a ilusão de uma ocupação útil, de utilidade. George não se deixava enganar.<<strong>br</strong> />

Até lhes pagavam pequenas somas de dinheiro, <strong>com</strong> as quais podiam <strong>com</strong>prar certos<<strong>br</strong> />

e determina<strong>do</strong>s luxos ou então guardar para um uso problemático numa problemática<<strong>br</strong> />

terceira idade. George guardava o seu dinheiro num pote aberto, que tinha<<strong>br</strong> />

numa prateleira <strong>do</strong> armário. Não fazia ideia <strong>do</strong> que já tinha acumula<strong>do</strong>. Nem se ralava<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> isso.<<strong>br</strong> />

Não fez nenhum verdadeiro amigo, embora tivesse atingi<strong>do</strong> a fase em que um<<strong>br</strong> />

cumprimento cortês era praxe. Até tinha para<strong>do</strong> de cismar (ou quase) na decisão injusta<<strong>br</strong> />

que o tinha posto ali. Passavam-se semanas sem que sonhasse <strong>com</strong> Antonelli,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o seu nariz volumoso e o seu pescoço papu<strong>do</strong>, <strong>com</strong> o seu olhar de esguelha ao<<strong>br</strong> />

ernpurrá-lo para ferventes areias movediças, manten<strong>do</strong>-o lá dentro, até acordar aos<<strong>br</strong> />

gritos <strong>com</strong> Omani curva<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e ele, preocupa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- É espantoso <strong>com</strong>o estás te adaptan<strong>do</strong> - disse Omani num nevoso dia de Fevereiro.<<strong>br</strong> />

Mas era Fevereiro, dia 13 mais precisamente, o dia <strong>do</strong> seu 19. Q aniversário. Veio<<strong>br</strong> />

Março, e depois A<strong>br</strong>il, e quan<strong>do</strong> Maio se aproximava, apercebeu-se de que não estava<<strong>br</strong> />

se adaptan<strong>do</strong> de maneira alguma.<<strong>br</strong> />

O Maio anterior passara despercebi<strong>do</strong>, enquanto George permanecia na cama,<<strong>br</strong> />

abati<strong>do</strong> e sem ambições. Este Maio era diferente.<<strong>br</strong> />

Por toda a Terra, George sabia-o, decorreriam as Olimpíadas e os jovens iam <strong>com</strong>petir,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>paran<strong>do</strong> as respectivas capacidades, na luta por um lugar num mun<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

novo. Haveria o ambiente de festa, a excitação, as reportagens, os taciturnos agentes<<strong>br</strong> />

de recrutamento <strong>do</strong>s planetas de além espaço, a glória <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res e a consolação<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s venci<strong>do</strong>s.


Quanta ficção não se dedicava a estes temas; quanto <strong>do</strong> seu próprio entusiasmo<<strong>br</strong> />

de criança não residia em seguir os acontecimentos das Olimpíadas, de ano para<<strong>br</strong> />

ano; quantos <strong>do</strong>s seus próprios planos...<<strong>br</strong> />

George Platen não conseguia esconder a ânsia na sua voz. Era demasia<strong>do</strong> grande<<strong>br</strong> />

para a poder conter.<<strong>br</strong> />

- Amanhã é primeiro de Maio. Olimpíadas! - disse ele. E isso levou à sua primeira<<strong>br</strong> />

discussão <strong>com</strong> Omani e à amarga enunciação por ele feita <strong>do</strong> nome exato da instituição<<strong>br</strong> />

em que George se encontrava.<<strong>br</strong> />

Omani olhou fixamente para George e disse distintamente:<<strong>br</strong> />

- Casa para Débeis Mentais.<<strong>br</strong> />

George Platen corou. Débeis Mentais! Rejeitou-o desesperadamente.<<strong>br</strong> />

- Vou-me embora - disse em tom monótono. Disse num impulso. A sua mente<<strong>br</strong> />

consciente soube-o primeiro pela frase, quan<strong>do</strong> a proferiu.<<strong>br</strong> />

Omani, que tinha volta<strong>do</strong> ao seu livro, levantou a cabeça:<<strong>br</strong> />

- O quê?<<strong>br</strong> />

Agora George sabia o que estava dizen<strong>do</strong>. Disse-o agressivamente:<<strong>br</strong> />

- Vou-me embora.<<strong>br</strong> />

- Isso é ridículo. Senta-te, George, acalma-te.<<strong>br</strong> />

- Oh, não. Vim parar aqui porque me enganaram; é o que te digo. Esse médico,<<strong>br</strong> />

Antonelli, embirrou <strong>com</strong>igo. E a sensação de poder que esses burocratas insignificantes<<strong>br</strong> />

têm. Contraria-os e eles arruínam a tua vida <strong>com</strong> uma marca de caneta numa ficha<<strong>br</strong> />

qualquer.<<strong>br</strong> />

- Já voltaste a isso?<<strong>br</strong> />

- E ficou nisto até estar tu<strong>do</strong> esclareci<strong>do</strong>. Vou ter <strong>com</strong> o Antonelli de alguma maneira,<<strong>br</strong> />

vou que<strong>br</strong>á-o, arrancar-lhe a verdade. - George respirava pesadamente e sentia-se<<strong>br</strong> />

agita<strong>do</strong>. Estava no mês das Olimpíadas e não as podia deixar passar. Se o fizesse,<<strong>br</strong> />

seria a rendição final e ele estaria perdi<strong>do</strong> para to<strong>do</strong> o sempre.<<strong>br</strong> />

Omani atirou as pernas por cima da cama e levantou-se.<<strong>br</strong> />

Tinha quase um metro e oitenta e a expressão da sua cara dava-lhe um ar de São<<strong>br</strong> />

Bernar<strong>do</strong> preocupa<strong>do</strong>. Pôs o <strong>br</strong>aço à volta <strong>do</strong>s om<strong>br</strong>os de George.<<strong>br</strong> />

- Se te magoei...<<strong>br</strong> />

George sacudiu-o.<<strong>br</strong> />

- Acabas de dizer o que pensas ser a verdade, e eu vou provar que não é a verdade,<<strong>br</strong> />

é tu<strong>do</strong>. Por que não? A porta está aberta. Não há fechaduras. Nunca ninguém<<strong>br</strong> />

disse que eu não podia ir embora. Vou simplesmente sair.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem, para onde é que vais?<<strong>br</strong> />

- Para o terminal aéreo mais próximo, e depois para o Centro Olímpico mais próximo.<<strong>br</strong> />

Tenho dinheiro. - Pegou no pote aberto que continha os salários que ele guardara.<<strong>br</strong> />

Algumas moedas tilintaram no chão.<<strong>br</strong> />

- Isso vai durar uma semana, talvez. E depois?<<strong>br</strong> />

- Nessa altura já tenho tu<strong>do</strong> resolvi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Nessa altura voltas rastejan<strong>do</strong>, para cá - disse Omani <strong>com</strong> sinceridade - desperdiçan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong>s os progressos que fizeste até agora. És <strong>do</strong>i<strong>do</strong>, George.<<strong>br</strong> />

- Débil mental foi a palavra que usaste há pouco.<<strong>br</strong> />

- Bem, desculpa tê-o feito. Fica aqui, está bem?<<strong>br</strong> />

- Vais tentar impedir-me?<<strong>br</strong> />

Omani <strong>com</strong>primiu os seus lábios cheios.<<strong>br</strong> />

- Não, acho que não. É problema teu. Se a única forma de aprenderes é enfrentan-


<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> e voltan<strong>do</strong> <strong>com</strong> sangue na cara, força... Vá, força.<<strong>br</strong> />

George estava agora na entrada, olhan<strong>do</strong> para trás por so<strong>br</strong>e o om<strong>br</strong>o.<<strong>br</strong> />

- Eu vou. - Voltou lentamente atrás para vir buscar a bolsa de toilette. - Espero<<strong>br</strong> />

que não ponhas objecções a que eu leve alguns objetos pessoais.<<strong>br</strong> />

Omani encolheu os om<strong>br</strong>os. Estava de novo na cama, len<strong>do</strong>, indiferente.<<strong>br</strong> />

George deixou-se ficar outra vez à porta, mas Omani não levantou os olhos. George<<strong>br</strong> />

cerrou os dentes, virou-se e percorreu rapidamente o corre<strong>do</strong>r vazio até sair para<<strong>br</strong> />

os terrenos cobertos de noite.<<strong>br</strong> />

Esperara ser apanha<strong>do</strong> antes de sair da área. Não foi.<<strong>br</strong> />

Parara num restaurante aberto à noite para perguntar o caminho para o terminal<<strong>br</strong> />

aéreo e esperara que o proprietário chamasse a policia. Isso não aconteceu. Chamou<<strong>br</strong> />

um desliza<strong>do</strong>r para o levar ao aeroporto e o condutor não fez perguntas.<<strong>br</strong> />

No entanto, isso não o aliviou. Chegou ao aeroporto angustia<strong>do</strong>. Não tinha percebi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o o mun<strong>do</strong> exterior podia ser. Estava rodea<strong>do</strong> de profissionais. O proprietário<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> restaurante mandara inscrever o seu nome na proteção plástica da caixa registra<strong>do</strong>ra.<<strong>br</strong> />

Fulano de tal, cozinheiro registra<strong>do</strong>. O homem <strong>do</strong> desliza<strong>do</strong>r tinha na licença:<<strong>br</strong> />

motorista registra<strong>do</strong>. George sentiu a po<strong>br</strong>eza <strong>do</strong> seu nome e experimentou uma<<strong>br</strong> />

espécie de nudez por causa disso; pior, sentiu-se tosquia<strong>do</strong>. Mas ninguém o desafiava.<<strong>br</strong> />

Ninguém o estudava <strong>com</strong> suspeita ou lhe pedia provas da sua classificação profissional.<<strong>br</strong> />

«Quem imaginaria um ser humano sem nenhuma?», pensou George amargamente.<<strong>br</strong> />

Comprou um bilhete para São Francisco, no avião das três da manhã. Nenhum outro<<strong>br</strong> />

avião para um centro Olímpico razoavelmente grande saia antes <strong>do</strong> amanhecer, e<<strong>br</strong> />

ele queria esperar o menos possível Assim, sentou-se na sala de espera, <strong>com</strong>primi<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

atento à policia. Não apareceu.<<strong>br</strong> />

Chegou a São Francisco antes <strong>do</strong> meio-dia e o barulho da cidade atingiu-o <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

uma pancada. Era a maior cidade que tinha alguma vez visto e estava habitua<strong>do</strong> ao<<strong>br</strong> />

silêncio e à calma há já um ano e meio.<<strong>br</strong> />

Pior <strong>do</strong> que isso, era mês de Olimpíadas. Quase esqueceu a sua situação ao aperceber-se<<strong>br</strong> />

subitamente de que algum daquele barulho, entusiasmo e confusão eram<<strong>br</strong> />

devi<strong>do</strong>s a isso.<<strong>br</strong> />

Os quadros das Olimpíadas estavam no aeroporto para proveito <strong>do</strong>s viajantes que<<strong>br</strong> />

chegavam e multidões acotovelavam-se à volta de cada um. Cada profissão principal<<strong>br</strong> />

tinha o seu próprio quadro. Cada um tinha as direções para o Salão Olímpico onde o<<strong>br</strong> />

concurso desse dia e dessa profissão teria lugar; os concorrentes e a sua cidade natal;<<strong>br</strong> />

e o Mun<strong>do</strong> Exterior (se o havia) que o patrocinava.<<strong>br</strong> />

Estava tu<strong>do</strong> <strong>com</strong>pletamente estiliza<strong>do</strong>. George tinha li<strong>do</strong> várias descrições na imprensa<<strong>br</strong> />

e em filmes, tinha visto <strong>com</strong>petições na televisão, e até tinha presencia<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

umas pequenas Olimpíadas da classe de talhante registra<strong>do</strong> na sede <strong>do</strong> município.<<strong>br</strong> />

Até isso, que não tinha qualquer implicação Galáctica concebível (não havia ninguém<<strong>br</strong> />

de um Mun<strong>do</strong> Exterior na assistência, claro), entusiasmava-o bastante.<<strong>br</strong> />

Por um la<strong>do</strong>, ficava entusiasma<strong>do</strong> pelo simples fato de ser <strong>com</strong>petição, por outro,<<strong>br</strong> />

pelo aguilhão <strong>do</strong> orgulho bairrista (oh, quan<strong>do</strong> havia um rapaz da nossa cidade a<<strong>br</strong> />

quem apoiar, mesmo que fosse totalmente estranho), e, claro, também pelas apostas.<<strong>br</strong> />

Não havia forma de impedi-as.<<strong>br</strong> />

George teve dificuldade em se aproximar- <strong>do</strong> quadro.<<strong>br</strong> />

Verificou que olhava os inquietos e ávi<strong>do</strong>s observa<strong>do</strong>res de uma maneira diferente.


Houve decerto uma altura em que eles próprios foram material Olímpico. Que é<<strong>br</strong> />

que eles tinham feito? Nada!<<strong>br</strong> />

Se tivessem si<strong>do</strong> vence<strong>do</strong>res, estariam longe, algures na Galáxia, e não aqui na<<strong>br</strong> />

Terra. O que quer que tivessem si<strong>do</strong>, as suas profissões deviam tê-os o<strong>br</strong>iga<strong>do</strong> a ficar<<strong>br</strong> />

na Terra desde o início; ou então tinham-se eles próprios arrasta<strong>do</strong> para a Terra<<strong>br</strong> />

por in<strong>com</strong>petência numa profissão qualquer, altamente especializada, que tivessem<<strong>br</strong> />

ti<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

E agora esses falha<strong>do</strong>s andavam por aí, especulan<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e as chances <strong>do</strong>s jovens.<<strong>br</strong> />

Abutres!<<strong>br</strong> />

Como desejava que estivessem especulan<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e ele. Deslocou-se confusamente<<strong>br</strong> />

ao longo da fila de quadros, manten<strong>do</strong>-se junto às orlas <strong>do</strong>s grupos que os rodeavam.<<strong>br</strong> />

Tinha toma<strong>do</strong> o desjejum na nave e não tinha fome. No entanto, tinha me<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Estava numa cidade grande durante a confusão <strong>do</strong> início das <strong>com</strong>petições Olímpicas.<<strong>br</strong> />

E claro que isso era uma proteção. A cidade estava cheia de estranhos. Ninguém interrogaria<<strong>br</strong> />

George. Ninguém se interessaria por George.<<strong>br</strong> />

Ninguém se interessaria. «Nem mesmo a Casa», pensou George <strong>com</strong> amargura.<<strong>br</strong> />

Interessavam-se por ele <strong>com</strong>o se fosse um gatinho <strong>do</strong>ente, mas se um gatinho <strong>do</strong>ente<<strong>br</strong> />

desaparece, bem, que pena, que é que se pode fazer?<<strong>br</strong> />

E agora que estava em São Francisco, que é que iria fazer? Os seus pensamentos<<strong>br</strong> />

bateram confusamente numa parede. Falar <strong>com</strong> alguém? Quem? Como? Onde é que<<strong>br</strong> />

ficaria? O dinheiro que lhe restava parecia-lhe pouco.<<strong>br</strong> />

Passou-lhe pela cabeça o primeiro vergonhoso pensamento de voltar. Podia ir à polícia...<<strong>br</strong> />

Abanou a cabeça <strong>com</strong> violência <strong>com</strong>o se discutisse <strong>com</strong> um oponente real.<<strong>br</strong> />

Uma palavra num <strong>do</strong>s quadros chamou-lhe a atenção, <strong>br</strong>ilhante: «Metalúrgicos».<<strong>br</strong> />

Em letras menores, «não ferrosos». Ao fun<strong>do</strong> de uma longa lista de nomes, em letras<<strong>br</strong> />

harmoniosas, «patrocina<strong>do</strong> por Novia»,<<strong>br</strong> />

Trouxe-lhe memórias <strong>do</strong>lorosas: ele próprio discutin<strong>do</strong> <strong>com</strong> Trevelyan, tão certo de<<strong>br</strong> />

que seria programa<strong>do</strong>r, tão certo de que um programa<strong>do</strong>r era superior a um metalúrgico,<<strong>br</strong> />

tão certo de que estava no bom caminho, tão certo de que era esperto...<<strong>br</strong> />

Tão esperto que tinha de ir parar àquele tacanho e vingativo Antonelli. Estava tão<<strong>br</strong> />

seguro de si naquele momento em que o chamaram e deixou o nervoso Trevelyan ali<<strong>br</strong> />

especa<strong>do</strong>, tão extraordinariamente seguro.<<strong>br</strong> />

O que se seguiu foi abafa<strong>do</strong> pela gritaria. O seguinte foi o Número Oito e depois o<<strong>br</strong> />

Quatro, cujo bom tempo foi prejudica<strong>do</strong> por um erro de cinco elementos em dez mil<<strong>br</strong> />

na quantidade de nióbio. O Doze nunca foi menciona<strong>do</strong>. Foi um <strong>do</strong>s 44 outros.<<strong>br</strong> />

George atravessou a multidão em direção à Entrada <strong>do</strong>s Concorrentes e deparou<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> um grande grupo de pessoas à sua frente. Havia parentes chorosos (de alegria<<strong>br</strong> />

ou de tristeza, conforme os casos) cumprimentan<strong>do</strong>-os, repórteres entrevistan<strong>do</strong> os<<strong>br</strong> />

primeiros classifica<strong>do</strong>s, rapazes lá da terra, caça<strong>do</strong>res de autógrafos, angaria<strong>do</strong>res de<<strong>br</strong> />

publicidade, e os simplesmente curiosos. E também moças, que ansiavam por chamar<<strong>br</strong> />

a atenção de um <strong>do</strong>s melhores, quase <strong>com</strong> certeza destina<strong>do</strong> a Novia (ou talvez<<strong>br</strong> />

de um <strong>do</strong>s piores que precisasse de consolação e tivesse dinheiro para isso).<<strong>br</strong> />

George hesitou. Não viu ninguém seu conheci<strong>do</strong>. Sen<strong>do</strong> São Francisco tão longe<<strong>br</strong> />

de casa, parecia razoavelmente seguro partir <strong>do</strong> princípio de que não estaria ali nenhum<<strong>br</strong> />

parente a consolar o Trev.<<strong>br</strong> />

Os concorrentes iam sain<strong>do</strong>, sorrin<strong>do</strong> levemente, acenan<strong>do</strong> aos gritos de apoio.<<strong>br</strong> />

Policiais mantinham a multidão suficientemente afastada para permitir um corre<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

de passagem. Cada um <strong>do</strong>s mais bem classifica<strong>do</strong>s levava <strong>com</strong> ele um pedaço da<<strong>br</strong> />

multidão, <strong>com</strong>o um ímã ao passar por um monte de limalha de ferro.


Quan<strong>do</strong> Trevelyan saiu, já quase não restava ninguém. (George sentiu de certa<<strong>br</strong> />

maneira que ele tinha demora<strong>do</strong> a sair à espera que aquilo passasse.) Havia um cigarro<<strong>br</strong> />

na sua boca triste e virou-se, de olhos baixos, para ir embora.<<strong>br</strong> />

Era a primeira referência à sua terra que George tivera em quase um ano e meio,<<strong>br</strong> />

que quase parecia uma década e meia. Quase ficou espanta<strong>do</strong> <strong>com</strong> o fato de Trevelyan<<strong>br</strong> />

não ter envelheci<strong>do</strong>, de ser o mesmo Trev da última vez.<<strong>br</strong> />

George lançou-se para a frente. - Trev!<<strong>br</strong> />

Trevelyan ro<strong>do</strong>u so<strong>br</strong>e si mesmo, pasma<strong>do</strong>. Fitou George e a sua mão saiu disparada.<<strong>br</strong> />

- George Platen, que diabo...<<strong>br</strong> />

E quase tão rapidamente <strong>com</strong>o lhe tinha passa<strong>do</strong> pela cara, o ar de satisfação desapareceu.<<strong>br</strong> />

A sua mão caiu antes de George ter qualquer possibilidade de agarrá-a.<<strong>br</strong> />

- Estiveste ali? - Um curto aceno da cabeça de Trev indicou o salão.<<strong>br</strong> />

- Estive.<<strong>br</strong> />

- Para me ver?<<strong>br</strong> />

- Sim.<<strong>br</strong> />

- Não me saí lá muito bem, não é? - Deixou cair o cigarro e pisou-o, olhan<strong>do</strong> fixamente<<strong>br</strong> />

a rua, onde a multidão emergente ro<strong>do</strong>piava lentamente e se dirigia para os<<strong>br</strong> />

desliza<strong>do</strong>res, enquanto novas filas se formavam para a próxima Olimpíada agendada.<<strong>br</strong> />

- Que importa? - disse Trevelyan pesadamente. - É só a segunda vez que falho.<<strong>br</strong> />

Novia pode ir às urtigas depois <strong>do</strong> contrato que consegui hoje. Há planetas que me<<strong>br</strong> />

saltariam em cima suficientemente depressa... Mas, ouve, não te vejo desde o Dia da<<strong>br</strong> />

Educação. Para onde é que tu foste? Os teus pais disseram que estavas em missão<<strong>br</strong> />

especial mas não deram pormenores e tu nunca escreveste. Podias ter escrito.<<strong>br</strong> />

- E devia - disse George, pouco à vontade. - De qualquer forma, vim para te dizer<<strong>br</strong> />

que lamento a forma <strong>com</strong>o as coisas se passaram, há boca<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não lamentes - disse Trevelyan. - Já te disse. Novia pode ir às urtigas... Eu tinha<<strong>br</strong> />

o<strong>br</strong>igação de saber. Há semanas que andavam dizen<strong>do</strong> que iam usar a máquina Beeman.<<strong>br</strong> />

To<strong>do</strong> o dinheiro bem gasto vai para máquinas Beeman. A porcaria da fita de<<strong>br</strong> />

educação que me introduziram era para Henslers e quem é que usa Henslers? Os<<strong>br</strong> />

mun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Agrupamento Goman, se lhes quiseres chamar mun<strong>do</strong>s. Não foi um bom<<strong>br</strong> />

negócio, o que me deram?<<strong>br</strong> />

- Não podes reclamar ao...<<strong>br</strong> />

- Não sejas parvo. Dir-me-ão que o meu cére<strong>br</strong>o está prepara<strong>do</strong> para Henslers. Vai<<strong>br</strong> />

lá discutir <strong>com</strong> eles. Tu<strong>do</strong> saiu mal. Fui o único que tive de mandar vir uma peça. Reparaste<<strong>br</strong> />

nisso?<<strong>br</strong> />

- No entanto, eles descontaram o tempo que perdeste.<<strong>br</strong> />

- Pois é, mas perdi tempo pensan<strong>do</strong> se o meu diagnóstico podia estar certo quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

reparei que faltava um pressiona<strong>do</strong>r de tenazes nas peças que eles tinham forneci<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Esse tempo eles não descontam. Se tivesse si<strong>do</strong> uma Hensler, eu teria ti<strong>do</strong> a<<strong>br</strong> />

certeza de que estava certo. Como é que eu podia <strong>com</strong>petir <strong>com</strong> eles? O primeiro<<strong>br</strong> />

classifica<strong>do</strong> era de São Francisco. E três <strong>do</strong>s quatro seguintes também. E o quinto<<strong>br</strong> />

era de Los Angeles. Eles apanham as fitas de educação das grandes cidades. As melhores<<strong>br</strong> />

que há. Espectrógrafos Beeman e tu<strong>do</strong>. Como é que eu posso <strong>com</strong>petir <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

eles? Vim to<strong>do</strong> este caminho até aqui só para tentar a minha sorte numas Olimpíadas<<strong>br</strong> />

da minha classe patrocinadas por Novia, e bem podia ter fica<strong>do</strong> em casa. Eu sabia, é<<strong>br</strong> />

o que te digo, e pronto. Novia não é o único boca<strong>do</strong> de rocha <strong>do</strong> espaço. De to<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

os malditos...<<strong>br</strong> />

Não estava falan<strong>do</strong> <strong>com</strong> George. Não estava falan<strong>do</strong> <strong>com</strong> ninguém. Estava apenas


desabafan<strong>do</strong>, enraiveci<strong>do</strong>. George apercebeu-se disso.<<strong>br</strong> />

- Se sabias de antemão que iam usar Beemans, não podias tê-as estuda<strong>do</strong>? - disse.<<strong>br</strong> />

- Não estavam nas minhas fitas, é o que te digo.<<strong>br</strong> />

- Podias ter li<strong>do</strong>... livros.<<strong>br</strong> />

A última palavra tinha mingua<strong>do</strong> sob o súbito olhar cortante de Trevelyan.<<strong>br</strong> />

- Estás tentan<strong>do</strong> se divertir ás minhas custas? - disse Trevelyan. - Achas que isto é<<strong>br</strong> />

diverti<strong>do</strong>? Esperas que eu vá ler um livro qualquer e tentar memorizar o suficiente<<strong>br</strong> />

para <strong>com</strong>petir <strong>com</strong> alguém que sabe?<<strong>br</strong> />

- Pensei...<<strong>br</strong> />

-Tenta. Tenta... - Então, <strong>br</strong>uscamente: - A propósito, qual é a tua profissão? - A<<strong>br</strong> />

sua voz era <strong>com</strong>pletamente hostil.<<strong>br</strong> />

- Bem...<<strong>br</strong> />

- Vá lá. Se te queres dar uma de esperto <strong>com</strong>igo, vamos lá ver o que é que tu fizeste.<<strong>br</strong> />

Ainda estás na Terra, pelo que vejo, portanto não és programa<strong>do</strong>r de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res<<strong>br</strong> />

e a tua missão especial não pode ser grande coisa.<<strong>br</strong> />

- Ouve, Trev, estou atrasa<strong>do</strong> para um encontro - disse George. Recuou, tentan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

sorrir.<<strong>br</strong> />

- Não, não estás. - Trevelyan aproximou-se agressivamente e agarrou o casaco de<<strong>br</strong> />

George. - Responde à minha pergunta. Por que é que tens me<strong>do</strong> de me dizer? Que é<<strong>br</strong> />

que se passa contigo? Não vens aqui esfregar-me a minha má figura na cara, George,<<strong>br</strong> />

a menos que também te aguentes. Estás ouvin<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

Balançava George, enfureci<strong>do</strong>, e eles lutavam e cambaleavam pelo chão, quan<strong>do</strong> a<<strong>br</strong> />

Voz <strong>do</strong> Juízo Final entrou pelo ouvi<strong>do</strong> de George sob a forma <strong>do</strong> grito indigna<strong>do</strong> de<<strong>br</strong> />

um polícia.<<strong>br</strong> />

- Vamos lá. Vamos lá. Parem <strong>com</strong> isso.<<strong>br</strong> />

O coração de George ficou <strong>com</strong>o chumbo e vacilou, <strong>do</strong>entio. O policial anotaria os<<strong>br</strong> />

nomes, pediria cartões de identificação e George não tinha nenhum. Seria interroga<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

e a sua falta de profissão viria logo à tona; e na frente de Trevelyan, ainda por<<strong>br</strong> />

cima, que tinha fica<strong>do</strong> magoa<strong>do</strong> <strong>com</strong> a sova que levara na <strong>com</strong>petição e iria espalhar<<strong>br</strong> />

a notícia lá na terra <strong>com</strong>o remédio para a sua própria suscetibilidade ferida.<<strong>br</strong> />

George não conseguiria suportar isso. Libertou-se de Trevelyan e fez menção de<<strong>br</strong> />

fugir, mas a mão pesada <strong>do</strong> policial estava no seu om<strong>br</strong>o.<<strong>br</strong> />

- Espere aí. Mostre lá o seu cartão de identificação.<<strong>br</strong> />

Trevelyan procurava atabalhoadamente o seu, dizen<strong>do</strong> <strong>com</strong> aspereza:<<strong>br</strong> />

- Chamo-me Armand Trevelyan, metalúrgico não ferroso. Estive mesmo agora<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>petin<strong>do</strong> nas Olimpíadas. Mas é melhor averiguar so<strong>br</strong>e ele, senhor guarda.<<strong>br</strong> />

George olhou para ambos, lábios secos e garganta engrossan<strong>do</strong>-se à passagem da<<strong>br</strong> />

fala.<<strong>br</strong> />

Outra voz soou, calma, polida: - Guarda. Um momento.<<strong>br</strong> />

O policial recuou.<<strong>br</strong> />

- Sim,Sr.?<<strong>br</strong> />

- Este jovem é meu convida<strong>do</strong>. Qual é o problema?<<strong>br</strong> />

George olhou em volta <strong>com</strong>pletamente espanta<strong>do</strong>. Era o homem de cabelo cinzento<<strong>br</strong> />

que estivera senta<strong>do</strong> ao seu la<strong>do</strong>. O Cabelo-cinzento acenou benignamente a George.<<strong>br</strong> />

- Convida<strong>do</strong>? Estaria maluco? .<<strong>br</strong> />

- Estes <strong>do</strong>is estavam provocan<strong>do</strong> distúrbios, Sr. - dizia o policial.<<strong>br</strong> />

- Alguma queixa? Algum estrago?<<strong>br</strong> />

- Não,Sr..


- Bem, então assumo a responsabilidade. - Mostrou um pequeno cartão ao policial<<strong>br</strong> />

e este deu imediatamente um passo atrás.<<strong>br</strong> />

Trevelyan, indigna<strong>do</strong>, <strong>com</strong>eçou a dizer:<<strong>br</strong> />

- Espere aí... - mas o policial virou-se para ele.<<strong>br</strong> />

- Ora bem. Tem alguma queixa a fazer?<<strong>br</strong> />

- Eu apenas...<<strong>br</strong> />

- Vamos embora. Vocês aí, circular. - Tinha-se junta<strong>do</strong> urna multidão razoavelmente<<strong>br</strong> />

grande, que agora se dispersava relutantemente e se afastava.<<strong>br</strong> />

George deixou-se levar até um desliza<strong>do</strong>r mas recusou-se a entrar.<<strong>br</strong> />

- O<strong>br</strong>iga<strong>do</strong>, mas não sou seu convida<strong>do</strong> - disse. (Seria um ridículo caso de confusão<<strong>br</strong> />

de identidades?)<<strong>br</strong> />

Mas o Cabelo-cinzento sorriu e disse:<<strong>br</strong> />

- Não era, mas agora é. Apresento-me: sou Ladislas Ingenenescu, historia<strong>do</strong>r registra<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Mas...<<strong>br</strong> />

- Venha, nada de mal lhe acontecerá, garanto-lhe.<<strong>br</strong> />

Afinal, apenas quis poupar-lhe alguns aborrecimentos <strong>com</strong> o policial.<<strong>br</strong> />

- Mas porquê?<<strong>br</strong> />

- Quer uma razão? Bem, então, digamos que somos concidadãos honorários, você<<strong>br</strong> />

e eu. Ambos gritamos pelo mesmo homem, lem<strong>br</strong>a-se, e os concidadãos devem permanecer<<strong>br</strong> />

uni<strong>do</strong>s, mesmo que o laço que os une seja apenas honorário. Eh?<<strong>br</strong> />

E George, <strong>com</strong>pletamente inseguro em relação àquele homem, Ingenenescu, e<<strong>br</strong> />

também de si próprio, deu consigo dentro <strong>do</strong> desliza<strong>do</strong>r. Antes de poder decidir se<<strong>br</strong> />

devia ou não sair outra vez, levantaram voo.<<strong>br</strong> />

«O homem é importante», pensou confusamente. «O policial obedeceu-lhe.»<<strong>br</strong> />

Estava quase esquecen<strong>do</strong>-se de que o seu verdadeiro objectivo aqui em São Francisco<<strong>br</strong> />

não era encontrar Trevelyan mas sim encontrar alguém <strong>com</strong> suficiente influência<<strong>br</strong> />

para forçar uma reapreciação da sua capacidade de ser educa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Podia ser que Ingenenescu fosse esse tipo de pessoa. E estava mesmo ali, ao la<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de George.<<strong>br</strong> />

Podia estar tu<strong>do</strong> corren<strong>do</strong> bem... bem. No entanto, tu<strong>do</strong> lhe soava a falso no seu<<strong>br</strong> />

pensamento. Sentia-se pouco à vontade.<<strong>br</strong> />

Durante a curta viagem no desliza<strong>do</strong>r, Ingenenescu manteve um fluxo constante<<strong>br</strong> />

de conversa fiada, chaman<strong>do</strong> a atenção para os marcos da cidade, relem<strong>br</strong>an<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

Olimpíadas passadas a que tinha assisti<strong>do</strong>. George, que prestava apenas a atenção<<strong>br</strong> />

necessária para emitir sons vagos durante as pausas, vigiava a rota de voo ansiosamente.<<strong>br</strong> />

Dirigir-se-iam para uma das aberturas <strong>do</strong> escu<strong>do</strong> protetor e sairiam <strong>com</strong>pletamente<<strong>br</strong> />

da cidade?<<strong>br</strong> />

Não, dirigiam-se para baixo, e George suspirou suavemente, alivia<strong>do</strong>. Sentia-se<<strong>br</strong> />

mais seguro na cidade.<<strong>br</strong> />

O desliza<strong>do</strong>r aterrou na entrada superior de um hotel e, ao descer, Ingenenescu<<strong>br</strong> />

disse:<<strong>br</strong> />

- Espero que jante <strong>com</strong>igo no meu quarto?<<strong>br</strong> />

- Sim-disse George, sorrin<strong>do</strong> impassivelmente. Começava agora a dar-se conta de<<strong>br</strong> />

um vazio deixa<strong>do</strong> dentro dele pela falta de um almoço.<<strong>br</strong> />

Ingenenescu deixou George <strong>com</strong>er em silêncio. A noite caiu e as luzes de parede<<strong>br</strong> />

acenderam-se automaticamente. (Estou por minha conta há quase vinte e quatro ho-


as», pensou George.)<<strong>br</strong> />

E então, ao café, Ingenenescu falou outra vez, finalmente. - Você tem agi<strong>do</strong> <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

se pensasse que lhe quero fazer mal - disse.<<strong>br</strong> />

George corou, pousou a sua chávena e tentou negá-o, mas o homem mais velho<<strong>br</strong> />

riu e abanou a cabeça.<<strong>br</strong> />

- E verdade. Tenho esta<strong>do</strong> a observá-o de perto desde que o vi pela primeira vez e<<strong>br</strong> />

acho que já sei muita coisa seu respeito.<<strong>br</strong> />

George soergueu-se em pânico.<<strong>br</strong> />

- Mas sente-se - disse Ingenenescu - Apenas quero ajudá-o.<<strong>br</strong> />

George sentou-se, mas a sua cabeça estava num turbilhão. Se o velho sabia quem<<strong>br</strong> />

ele era, por que é que não o tinha entregue ao policial? Por outro la<strong>do</strong>, porque haveria<<strong>br</strong> />

ele de oferecer ajuda?<<strong>br</strong> />

- Quer saber por que é que o quis ajudar? - disse Ingenenescu - Oh, não se assuste.<<strong>br</strong> />

Não sei ler pensamentos. O que se passa é que o meu treino me permite interpretar<<strong>br</strong> />

as pequenas reações que denunciam os pensamentos, percebe? Compreende<<strong>br</strong> />

isso?<<strong>br</strong> />

George abanou a cabeça.<<strong>br</strong> />

- A primeira vez que o vi, por exemplo - disse Ingenenescu - Estava à espera na<<strong>br</strong> />

fila para assistir a uma Olimpíada, e as suas micro-reações não correspondiam àquilo<<strong>br</strong> />

que estava fazen<strong>do</strong>. A expressão da sua cara estava errada, os movimentos das suas<<strong>br</strong> />

mãos estavam erra<strong>do</strong>s. Isso significava que algo, em geral, estava erra<strong>do</strong>, e o mais<<strong>br</strong> />

interessante é que, o que quer que fosse, não era <strong>com</strong>um, não era nada óbvio. Talvez,<<strong>br</strong> />

pensei, fosse algo de que nem a sua mente consciente se tivesse apercebi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Não pude deixar de segui-o, de me sentar a seu la<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Segui-o de novo quan<strong>do</strong> saiu e escutei escondi<strong>do</strong> a conversa entre você e o seu<<strong>br</strong> />

amigo. Depois disso, bem, você era um objeto de estu<strong>do</strong> demasiadamente importante<<strong>br</strong> />

para mim (desculpe se isso lhe soa um pouco frio) para permitir que fosse leva<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

por um policial. Agora diga-me, o que é que o preocupa?<<strong>br</strong> />

George estava agoniantemente indeciso. Se isto era uma armadilha, por que é que<<strong>br</strong> />

seria tão indireta e cheia de rodeios? E ele tinha de recorrer a alguém. Tinha vin<strong>do</strong> à<<strong>br</strong> />

cidade procurar ajuda e aqui estava ajuda a ser-lhe oferecida. Talvez o que estava<<strong>br</strong> />

erra<strong>do</strong> era o fato de estar sen<strong>do</strong> oferecida. Era demasia<strong>do</strong> fácil.<<strong>br</strong> />

- Logicamente, aquilo que me disser na minha qualidade de cientista social é confidencial.<<strong>br</strong> />

Sabe o que isso quer dizer?<<strong>br</strong> />

- Não,Sr..<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que seria contra a ética revelar aquilo que me disser seja a quem for e<<strong>br</strong> />

seja por que motivo for. Mais ainda, ninguém tem o direito legal de me o<strong>br</strong>igar a dizê<<strong>br</strong> />

-o.<<strong>br</strong> />

- Pensei que fosse historia<strong>do</strong>r - disse George, <strong>com</strong> súbita suspeita.<<strong>br</strong> />

- E sou.<<strong>br</strong> />

- Ainda agora disse que era cientista social.<<strong>br</strong> />

Ingenenescu explodiu em sonoras gargalhadas e pediu desculpa por isso quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

voltou a poder falar.<<strong>br</strong> />

- Desculpe, jovem, não devia rir, e na verdade não estava rin<strong>do</strong> de voce!. Estava<<strong>br</strong> />

rin<strong>do</strong> da Terra e da ênfase que dá às ciências físicas, e principalmente aos seu aspectos<<strong>br</strong> />

práticos. Aposto que era capaz de recitar todas as subdivisões da tecnologia de<<strong>br</strong> />

construção ou da engenharia mecânica e no entanto é um zero no que respeita às ciências<<strong>br</strong> />

sociais.<<strong>br</strong> />

- Bem, então o que são as ciências sociais?<<strong>br</strong> />

- As ciências sociais estudam grupos de seres humanos e incluem muitos ramos al-


tamente especializa<strong>do</strong>s, tal <strong>com</strong>o os tem a zoologia, por exemplo. Há os culturistas,<<strong>br</strong> />

por exemplo, que estudam os mecanismos da cultura, o seu crescimento, desenvolvimento<<strong>br</strong> />

e decadência. As culturas - acrescentou, antecipan<strong>do</strong>-se a uma pergunta - são<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong>s os aspectos de um mo<strong>do</strong> de vida. Incluem por exemplo a forma <strong>com</strong>o ganhamos<<strong>br</strong> />

a vida, aquilo de que gostamos e em que acreditamos, o que consideramos mau<<strong>br</strong> />

e bom, etc. Compreende?<<strong>br</strong> />

- Penso que sim.<<strong>br</strong> />

- Um economista (não um econometrista, mas um economista) é especialista em<<strong>br</strong> />

estudar a forma <strong>com</strong>o uma cultura satisfaz as necessidades materiais <strong>do</strong>s seus indivíduos.<<strong>br</strong> />

Um psicólogo especializa-se no mem<strong>br</strong>o individual de uma sociedade e na forma<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o ele é afeta<strong>do</strong> por ela. Um <strong>futuro</strong>logista é especialista no planeamento ,da<<strong>br</strong> />

evolução futura de uma sociedade, e um historia<strong>do</strong>r... E aqui que eu entro...<<strong>br</strong> />

- Sim,Sr..<<strong>br</strong> />

- Um historia<strong>do</strong>r especializa-se no desenvolvimento passa<strong>do</strong> da nossa própria sociedade<<strong>br</strong> />

e de sociedades <strong>com</strong> outras culturas.<<strong>br</strong> />

George deu consigo interessa<strong>do</strong>. - O passa<strong>do</strong> era diferente?<<strong>br</strong> />

- Devo dizer que sim. Até há mil anos atrás, não havia educação; pelo menos não<<strong>br</strong> />

havia aquilo a que chamamos educação.<<strong>br</strong> />

- Eu sei - disse George. - As pessoas aprendiam aos poucos pelos livros.<<strong>br</strong> />

- Como é que sabe isso? .<<strong>br</strong> />

- Ouvi dizer - disse George cautelosamente. - Há alguma utilidade em preocuparmo-nos<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o que se passou há muito tempo? Quer dizer, o que está feito está feito,<<strong>br</strong> />

não é?<<strong>br</strong> />

- Nunca está <strong>com</strong>pletamente feito, meu rapaz. O passa<strong>do</strong> explica o presente. Por<<strong>br</strong> />

exemplo, por que é que o nosso sistema de educação é o que é?<<strong>br</strong> />

George agitou-se, inquieto. O homem estava sempre a puxar aquele assunto.<<strong>br</strong> />

- Porque é melhor - disse mal-humoradamente.<<strong>br</strong> />

- Ah, mas por que é que é melhor? Agora ouça por um instante que eu explico-lhe.<<strong>br</strong> />

Depois poderá dizer se há ou não utilidade na História. Mesmo antes <strong>do</strong> desenvolvimento<<strong>br</strong> />

das viagens interestelares... - Interrompeu-se perante o olhar de <strong>com</strong>pleto espanto<<strong>br</strong> />

de George. - Bem, pensa que as houve sempre?<<strong>br</strong> />

- Nunca tinha pensa<strong>do</strong> nisso, Sr...<<strong>br</strong> />

- Estou certo que não. Mas houve uma altura, quatro ou cinco mil anos atrás, em<<strong>br</strong> />

que a humanidade estava confinada à superfície da Terra. Mesmo a essa altura, a<<strong>br</strong> />

sua cultura já tinha se torna<strong>do</strong> bastante tecnológica e o seu número tinha atingi<strong>do</strong> o<<strong>br</strong> />

ponto em que qualquer falha tecnológica teria significa<strong>do</strong> fome e <strong>do</strong>ença generalizada.<<strong>br</strong> />

Para manter o nível tecnológico e para o elevar em face <strong>do</strong> crescimento da população,<<strong>br</strong> />

tinham de ser forma<strong>do</strong>s cada vez mais técnicos e cientistas, e, no entanto, à<<strong>br</strong> />

medida que a ciência avançava, cada vez se demorava mais tempo a formá-os.<<strong>br</strong> />

«Quan<strong>do</strong> se desenvolveram as primeiras viagens interplanetárias e depois interestelares,<<strong>br</strong> />

o problema tornou-se ainda mais grave. Na verdade, a colonização de facto<<strong>br</strong> />

de planetas extra-solares foi impraticável durante cerca de mil e quinhentos anos devi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

à falta de homens devidamente forma<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

«0 ponto de viragem deu-se quan<strong>do</strong> se conseguiu perceber o mecanismo de armazenamento<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> conhecimento no nosso cére<strong>br</strong>o. Depois disso ter si<strong>do</strong> feito, tornou-se<<strong>br</strong> />

possível criar fitas de Educação que alterassem esses mecanismos de forma a colocar<<strong>br</strong> />

no nosso cére<strong>br</strong>o um conjunto de conhecimentos prontos-a-usar, por assim dizer.<<strong>br</strong> />

Mas isso você sabe.<<strong>br</strong> />

«A partir daí, podiam ser forma<strong>do</strong>s homens aos milhares e aos milhões, e podia<<strong>br</strong> />

dar-se início àquilo a que alguém desde então chamou «O Enchimento <strong>do</strong> Universo».


Existem já mil e quinhentos planetas habita<strong>do</strong>s na Galáxia e o fim não está ainda à<<strong>br</strong> />

vista.<<strong>br</strong> />

«Compreende tu<strong>do</strong> o que isso implica? A Terra exporta fitas educacionais de profissões<<strong>br</strong> />

pouco especializadas e isso mantém a unidade da cultura Galáctica. Por<<strong>br</strong> />

exemplo, as fitas de Leitura garantem uma única língua para to<strong>do</strong>s nós. Não fique<<strong>br</strong> />

tão surpreendi<strong>do</strong>, são possíveis outras línguas, e no passa<strong>do</strong> elas eram usadas. Centenas<<strong>br</strong> />

delas.<<strong>br</strong> />

«A Terra exporta também profissionais altamente especializa<strong>do</strong>s e mantém a sua<<strong>br</strong> />

própria população a um nível tolerável. Visto que são expedi<strong>do</strong>s em quantidades<<strong>br</strong> />

equili<strong>br</strong>adas em termos sexuais, agem <strong>com</strong>o unidades auto-reprodutoras e ajudam a<<strong>br</strong> />

aumentar a população <strong>do</strong>s Mun<strong>do</strong>s Exteriores, onde um aumento é necessário. Além<<strong>br</strong> />

disso, as fitas e os trabalha<strong>do</strong>res são pagos em materiais de que muito precisamos e<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s quais depende a nossa economia. Percebe agora porque é que a nossa educação<<strong>br</strong> />

é a melhor?<<strong>br</strong> />

- Sim,Sr..<<strong>br</strong> />

- Saber que sem ela a colonização interestelar foi impossível durante mil e quinhentos<<strong>br</strong> />

anos, ajuda-o a perceber?<<strong>br</strong> />

- Sim, Sr..<<strong>br</strong> />

- Então <strong>com</strong>preende a utilidade da história. - O historia<strong>do</strong>r sorriu. - E agora pergunto-me<<strong>br</strong> />

se <strong>com</strong>preende por que é que eu estou interessa<strong>do</strong> em você?<<strong>br</strong> />

George saltou <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço de volta à realidade.<<strong>br</strong> />

Ingenenescu, aparentemente, não falava sem um objectivo. Toda esta palestra tinha<<strong>br</strong> />

si<strong>do</strong> um expediente para o atacar por outro ângulo.<<strong>br</strong> />

- Porquê? - disse, uma vez mais retraí<strong>do</strong>, hesitante.<<strong>br</strong> />

- Os cientistas sociais trabalham <strong>com</strong> sociedades e as sociedades são constituídas<<strong>br</strong> />

por pessoas.<<strong>br</strong> />

- Certo.<<strong>br</strong> />

- Mas as pessoas não são máquinas. Os profissionais de ciências físicas é que trabalham<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> máquinas. Há apenas uma quantidade limitada de coisas a saber so<strong>br</strong>e<<strong>br</strong> />

uma máquina e que os profissionais sabem na íntegra. Mais ainda, todas as máquinas<<strong>br</strong> />

de determina<strong>do</strong> tipo são semelhantes, pelo que eles não têm qualquer interesse<<strong>br</strong> />

por uma determinada máquina em especial. Mas as pessoas, ah... São tão <strong>com</strong>plexas<<strong>br</strong> />

e tão diferentes umas das outras que um cientista social nunca sabe tu<strong>do</strong> o que há a<<strong>br</strong> />

saber ou até uma grande parte de tu<strong>do</strong> o que há a saber. Para <strong>com</strong>preender a sua<<strong>br</strong> />

especialidade, tem de estar sempre pronto para estudar as pessoas; particularmente<<strong>br</strong> />

os espécimes invulgares.<<strong>br</strong> />

- Como eu - disse George sem entoação.<<strong>br</strong> />

- Não lhe devia chamar espécime, suponho eu, mas você é invulgar. É digno de ser<<strong>br</strong> />

estuda<strong>do</strong>, e se me conceder esse privilégio, eu, em troca, ajudá-o-ei se estiver em<<strong>br</strong> />

apuros e se eu puder.<<strong>br</strong> />

Havia cataventos ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong> na cabeça de George. Toda aquela conversa de pessoas<<strong>br</strong> />

e colonizações tornadas possíveis pela educação... Era <strong>com</strong>o se as ideias endurecidas<<strong>br</strong> />

dentro dele estivessem sen<strong>do</strong> fragmentadas e espalhadas impie<strong>do</strong>samente.<<strong>br</strong> />

- Deixe-me pensar - disse. E colocou as mãos so<strong>br</strong>e as orelhas.<<strong>br</strong> />

Tirou-as e disse ao historia<strong>do</strong>r: - Faria uma coisa por mim, Sr.?<<strong>br</strong> />

- Se puder - disse o historia<strong>do</strong>r afavelmente.<<strong>br</strong> />

- E tu<strong>do</strong> o que eu disser nesta sala é confidencial. Foi o que o senhor disse.<<strong>br</strong> />

- E é verdade.<<strong>br</strong> />

- Então arranje-me uma entrevista <strong>com</strong> um funcionário de um Mun<strong>do</strong> Exterior,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>... <strong>com</strong> um noviano.


Ingenenescu pareceu so<strong>br</strong>essalta<strong>do</strong>. .<<strong>br</strong> />

- Bem, agora...<<strong>br</strong> />

- O senhor pode fazê-o - disse George <strong>com</strong> honestidade. - O senhor é um funcionário<<strong>br</strong> />

importante. Eu vi a cara <strong>do</strong> policial quan<strong>do</strong> lhe pôs aquele cartão à frente <strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

olhos. Se recusar, eu... eu não deixarei que o senhor me estude.<<strong>br</strong> />

Até aos ouvi<strong>do</strong>s de George aquela ameaça soava patética, sem força. Em Ingenenescu,<<strong>br</strong> />

no entanto, pareceu exercer um forte efeito.<<strong>br</strong> />

-Essa condição é impossível - disse. - Um noviano em mês de Olimpíadas...<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem, então ponha-me ao telefone <strong>com</strong> um noviano que eu próprio arranjo<<strong>br</strong> />

a entrevista. - Acha que consegue?<<strong>br</strong> />

- Sei que consigo. Espere e verá.<<strong>br</strong> />

Ingenenescu olhou George pensativamente e depois agarrou no visifone.<<strong>br</strong> />

George esperou, meio em<strong>br</strong>iaga<strong>do</strong> pelo novo rumo que o problema estava toman<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

e pela sensação de poder que provocava. Não podia falhar. Não podia falhar. Ainda<<strong>br</strong> />

havia de ser um noviano. Deixaria a Terra em triunfo apesar <strong>do</strong> Antonelli e da<<strong>br</strong> />

cambada de parvos da Casa para (quase riu alto) Débeis Mentais.<<strong>br</strong> />

George olhou ansiosamente enquanto a visiplaca se acendia. A<strong>br</strong>ia uma janela<<strong>br</strong> />

para uma sala de Novianos, uma janela para um pequeno retalho de Novia transplanta<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

para a Terra. Em vinte e quatro horas já tinha consegui<strong>do</strong> isso, pelo menos.<<strong>br</strong> />

Houve uma explosão de risos quan<strong>do</strong> a névoa desapareceu e a placa ficou nítida,<<strong>br</strong> />

mas de momento não se via nenhuma cabeça, apenas a rápida passagem de som<strong>br</strong>as<<strong>br</strong> />

de homens e mulheres, de um la<strong>do</strong> para o outro. Ouviu-se uma voz, clara so<strong>br</strong>e<<strong>br</strong> />

um fun<strong>do</strong> de tagarelice:<<strong>br</strong> />

- Ingenenescu? Quer falar <strong>com</strong>igo?<<strong>br</strong> />

E então apareceu, olhan<strong>do</strong> para fora da placa. Um noviano. Um genuíno noviano.<<strong>br</strong> />

(George não tinha a menor dúvida. Havia algo nele de um Mun<strong>do</strong> Exterior, <strong>com</strong>pletamente.<<strong>br</strong> />

Algo que não podia ser totalmente defini<strong>do</strong>, mas nem por um momento duvi<strong>do</strong>so.)<<strong>br</strong> />

Tinha <strong>com</strong>pleição morena e uma escura onda de cabelo, rigidamente penteada<<strong>br</strong> />

para trás a partir da testa. Usava um fino e negro bigode e uma barba em forma de<<strong>br</strong> />

bico, tão negra <strong>com</strong>o aquele, que chegava exatamente até abaixo <strong>do</strong> limite inferior<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> seu queixo estreito, mas o resto da sua cara era tão polida que dava a ideia de<<strong>br</strong> />

ser constantemente depilada.<<strong>br</strong> />

Estava sorrin<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Ladislas, isto está in<strong>do</strong> longe de mais. É claro que esperamos ser espia<strong>do</strong>s, dentro<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s limites da sensatez, durante a nossa estada na Terra, mas ler pensamentos<<strong>br</strong> />

está fora desses limites.<<strong>br</strong> />

- Ler pensamentos, Honorável?<<strong>br</strong> />

- Confesse! Sabia que o ia chamar esta noite. Sabia que estava apenas esperan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

acabar esta bebida. - A sua mão entrou no campo de visão e o seu olho espreitou<<strong>br</strong> />

através de um pequeno copo de um licor tenuemente violeta. - Receio não lhe poder<<strong>br</strong> />

oferecer um.<<strong>br</strong> />

George, fora <strong>do</strong> alcance <strong>do</strong> transmissor de Ingenenescu não podia ser visto pelo<<strong>br</strong> />

noviano. Sentiu-se alivia<strong>do</strong> por isso. Queria tempo para se re<strong>com</strong>por e precisava desesperadamente<<strong>br</strong> />

fazê-o. Era <strong>com</strong>o se ele fosse feito exclusivamente de de<strong>do</strong>s irrequietos,<<strong>br</strong> />

tamborilan<strong>do</strong>, tamborilan<strong>do</strong>...<<strong>br</strong> />

Mas tinha razão. Não tinha se engana<strong>do</strong> nos cálculos.<<strong>br</strong> />

Ingenenescu era importante. O noviano tratava-o pelo primeiro nome.


Bom! As coisas iam bem. O que George perdera <strong>com</strong> Antonelli, <strong>com</strong>pensaria <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

Ingenenescu, e ainda sairia ganhan<strong>do</strong>. E um dia, quan<strong>do</strong> estivesse finalmente por<<strong>br</strong> />

sua conta, e pudesse voltar à Terra sen<strong>do</strong> um noviano tão poderoso <strong>com</strong>o aquele,<<strong>br</strong> />

que podia <strong>br</strong>incar negligentemente <strong>com</strong> o primeiro nome de Ingenenescu e ser trata<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

por «Honorável» em troca... quan<strong>do</strong> voltasse, acertaria contas <strong>com</strong> Antonelli. Tinha<<strong>br</strong> />

um ano e meio para retribuir e...<<strong>br</strong> />

Perdeu o equilí<strong>br</strong>io à beira <strong>do</strong> sedutor sonho acorda<strong>do</strong> e saltou de volta, na súbita<<strong>br</strong> />

e ansiosa consciência de que estava perden<strong>do</strong> o encadeamento <strong>do</strong> que estava se<<strong>br</strong> />

passan<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

-... não contém água - dizia o noviano. - Novia tem uma civilização tão <strong>com</strong>plicada<<strong>br</strong> />

e avançada <strong>com</strong>o a da Terra. Afinal, não somos Zeston. E ridículo que tenhamos de<<strong>br</strong> />

vir aqui buscar técnicos individuais.<<strong>br</strong> />

- Só os exemplares novos - disse Ingenenescu apazigua<strong>do</strong>ramente. - Nunca há a<<strong>br</strong> />

certeza de que os novos exemplares serão necessários. Comprar as fitas de Educação<<strong>br</strong> />

custar-vos-ia o mesmo que mil técnicos e <strong>com</strong>o é que vocês sabem se precisariam<<strong>br</strong> />

de tantos?<<strong>br</strong> />

O noviano bebeu o que restava da sua bebida de um trago e riu-se. (De certa forma<<strong>br</strong> />

desagradava a George que um noviano fosse tão frívolo. Perguntou-se apreensivamente<<strong>br</strong> />

se o noviano não deveria talvez ter evita<strong>do</strong> aquela bebida ou até mesmo<<strong>br</strong> />

uma ou duas antes desta.)<<strong>br</strong> />

- Essa é a típica impostura zelosa, Ladislas. Sabe que temos necessidade de to<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

os exemplares recentes que arranjarmos. Esta tarde apanhei cinco metalúrgicos...<<strong>br</strong> />

- Eu sei - disse Ingenenescu - Eu estava lá.<<strong>br</strong> />

- Vigian<strong>do</strong>-me! Espian<strong>do</strong> - gritou o noviano. - Eu digo--lhe o que se passa. Os metalúrgicos<<strong>br</strong> />

recentes que arranjei diferiam <strong>do</strong>s exemplares anteriores apenas no fato<<strong>br</strong> />

de saberem usar os espectrógrafos Beeman. As fitas não podiam ser alteradas este<<strong>br</strong> />

bocadinho, só este bocadinho - ergueu <strong>do</strong>is de<strong>do</strong>s próximos um <strong>do</strong> outro - das anteriores.<<strong>br</strong> />

Vocês introduzem os novos exemplares apenas para nos o<strong>br</strong>igar a <strong>com</strong>prar, a<<strong>br</strong> />

gastar e a vir aqui pechinchar.<<strong>br</strong> />

- Não vos o<strong>br</strong>igamos a <strong>com</strong>prar.<<strong>br</strong> />

- Não, mas vendem técnicos recentes a Lan<strong>do</strong>num e nós temos de a<strong>com</strong>panhar o<<strong>br</strong> />

andamento deles. É um carrocel, isto em que vocês nos têm, zelosos terrestres, mas<<strong>br</strong> />

estejam atentos, pode haver uma saída algures. - Havia uma rispidez penetrante no<<strong>br</strong> />

seu riso, e acabou mais ce<strong>do</strong> <strong>do</strong> que devia.<<strong>br</strong> />

- Com toda a franqueza, espero que haja - disse Ingenenescu - Entretanto, quanto<<strong>br</strong> />

ao propósito da minha chamada...<<strong>br</strong> />

- É verdade, você é que chamou. Ah, bem, já disse o que tinha que dizer e suponho<<strong>br</strong> />

que para o ano haverá um novo exemplar de metalúrgico para nós gastarmos os<<strong>br</strong> />

nossos bens, de qualquer forma, provavelmente <strong>com</strong> um novo truque para análises<<strong>br</strong> />

de nióbio e nenhuma outra alteração e no ano seguinte... Mas continue, que é que<<strong>br</strong> />

me quer?<<strong>br</strong> />

- Tenho aqui um jovem <strong>com</strong> quem gostaria que falasse.<<strong>br</strong> />

- Ahn? - O noviano não pareceu propriamente satisfeito <strong>com</strong> isso. - So<strong>br</strong>e quê?<<strong>br</strong> />

- Não faço ideia. Ele não me disse. Aliás, nem sequer me disse o nome e a profissão.<<strong>br</strong> />

O noviano franziu a testa.<<strong>br</strong> />

- Então por que me faz perder tempo?<<strong>br</strong> />

- Parece-me bastante certo de que estará interessa<strong>do</strong> naquilo que ele tem para lhe<<strong>br</strong> />

dizer.<<strong>br</strong> />

- Não me diga.


- E - disse Ingenescu - <strong>com</strong>o favor pessoal.<<strong>br</strong> />

O noviano encolheu os om<strong>br</strong>os:<<strong>br</strong> />

- Chame-o e diga-lhe para ser <strong>br</strong>eve.<<strong>br</strong> />

Ingenenescu desviou-se e sussurrou a George: - Trate-o por «Honorável».<<strong>br</strong> />

George engoliu <strong>com</strong> dificuldade. Agora é que era.<<strong>br</strong> />

George sentiu-se ensopar em transpiração. A ideia tinha-lhe vin<strong>do</strong> há tão pouco<<strong>br</strong> />

tempo, mas estava nele <strong>com</strong> tanta certeza... O seu início ocorrera-lhe quan<strong>do</strong> falara<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> Trevelyan, depois tu<strong>do</strong> fermentara e crescera enquanto Ingenenescu tagarelava,<<strong>br</strong> />

e até os próprios <strong>com</strong>entários <strong>do</strong> noviano pareciam ter-lhe da<strong>do</strong> os últimos retoques.<<strong>br</strong> />

- Honorável- disse George - vim mostrar-lhe a saída <strong>do</strong> carrocel. - Deliberadamente,<<strong>br</strong> />

usou a própria metáfora <strong>do</strong> noviano,<<strong>br</strong> />

O noviano fitou-o gravemente. - Que carrocel?<<strong>br</strong> />

- O senhor mesmo o mencionou, Honorável. O carrocel onde Novia está quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

vem à Terra para... para levar técnicos. - (Não conseguia impedir os dentes de baterem<<strong>br</strong> />

uns nos outros; de excitação, não de me<strong>do</strong>.)<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que sabe uma maneira pela qual podemos deixar de frequentar o supermerca<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mental da Terra. E isso?<<strong>br</strong> />

- Sim,Sr.. Podem controlar o vosso próprio sistema educacional.<<strong>br</strong> />

- Umm. Sem fitas?<<strong>br</strong> />

- S... sim, Honorável.<<strong>br</strong> />

O noviano, sem tirar os olhos de George, chamou: - Ingenenescu, apareça.<<strong>br</strong> />

O historia<strong>do</strong>r deslocou-se para onde podia ser visto por cima <strong>do</strong> om<strong>br</strong>o de George.<<strong>br</strong> />

- Que é isto? - disse o noviano. - Não consigo entender.<<strong>br</strong> />

- Asseguro-lhe solenemente - disse Ingenenescu - que o que quer que seja está<<strong>br</strong> />

sen<strong>do</strong> feito por iniciativa própria <strong>do</strong> rapaz, Honorável. Não incentivei isto. Não tenho<<strong>br</strong> />

nada a ver <strong>com</strong> isto.<<strong>br</strong> />

- Bem, então que é que o rapaz lhe é? Por que é que me chamou em seu nome?<<strong>br</strong> />

- Ele é um objeto de estu<strong>do</strong>, Honorável - disse Ingenenescu - Tem valor para mim<<strong>br</strong> />

e faço-lhe a vontade.<<strong>br</strong> />

- Que espécie de valor?<<strong>br</strong> />

- É difícil de explicar; um assunto liga<strong>do</strong> à minha profissão.<<strong>br</strong> />

O noviano riu-se por um momento.<<strong>br</strong> />

- Bem, a cada um a sua profissão. - Acenou a uma pessoa ou pessoas invisíveis<<strong>br</strong> />

fora <strong>do</strong> alcance da placa. - Está aqui um rapaz, um protegi<strong>do</strong> de Ingenenescu ou coisa<<strong>br</strong> />

parecida, que vai nos explicar <strong>com</strong>o educar sem fitas. - Estalou os de<strong>do</strong>s e outro<<strong>br</strong> />

copo de licor claro apareceu na sua mão. - Bem, rapaz?<<strong>br</strong> />

As caras na placa eram agora várias. Homens e mulheres, apinha<strong>do</strong>s para poderem<<strong>br</strong> />

ver George, <strong>com</strong> as caras pintadas de vários tons de divertimento e curiosidade.<<strong>br</strong> />

George procurou parecer altivo. Estavam to<strong>do</strong>s, à sua maneira, tanto os Novianos<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o os Terrestres, «estudan<strong>do</strong>-o» <strong>com</strong>o se ele fosse um insecto num alfinete. Ingenenescu<<strong>br</strong> />

estava agora senta<strong>do</strong> a um canto, observan<strong>do</strong>-o <strong>com</strong> olhos astutos.<<strong>br</strong> />

«Idiotas», pensou tensamente, «To<strong>do</strong>s eles». Mas teriam de <strong>com</strong>preender. Ele faria<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> que <strong>com</strong>preendessem.<<strong>br</strong> />

- Estive na Olimpíada para metalúrgicos, esta tarde disse.<<strong>br</strong> />

- Você também? - disse o noviano <strong>com</strong> <strong>br</strong>andura. Parece que toda a Terra lá esteve.<<strong>br</strong> />

- Não, Honorável, mas eu estive. Um amigo meu estava <strong>com</strong>petin<strong>do</strong> e saiu-se bastante<<strong>br</strong> />

mal porque usaram máquinas Beeman. A sua educação incluíra apenas as


Hensler, aparentemente um modelo mais antigo. Disse que a modificação envolvida<<strong>br</strong> />

era pequena. - George ergueu <strong>do</strong>is de<strong>do</strong>s próximos um <strong>do</strong> outro imitan<strong>do</strong> conscientemente<<strong>br</strong> />

o gesto que o outro fizera. - E o meu amigo soubera <strong>com</strong> alguma antecedência<<strong>br</strong> />

que o conhecimento das máquinas Beeman seria exigi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- E que é que isso significa?<<strong>br</strong> />

- Candidatar-se a Novia era a grande ambição da vida <strong>do</strong> meu amigo. Já conhecia<<strong>br</strong> />

as Hensler. Tinha de conhecer as Beeman para ter chance e sabia-o. Para aprender a<<strong>br</strong> />

trabalhar <strong>com</strong> as Beeman seriam necessários apenas mais alguns fatos, mais alguns<<strong>br</strong> />

da<strong>do</strong>s, talvez um pouco de prática. Com a ambição de uma vida em jogo, ele poderia<<strong>br</strong> />

ter consegui<strong>do</strong>...<<strong>br</strong> />

- E onde teria ele obti<strong>do</strong> uma fita <strong>com</strong> os da<strong>do</strong>s e os factos adicionais? Ou a educação<<strong>br</strong> />

tomou-se num assunto pessoal para estudar em casa, aqui na Terra?<<strong>br</strong> />

As caras no fun<strong>do</strong> riram obedientemente.<<strong>br</strong> />

- Foi por isso que ele não aprendeu, Honorável - disse George. - Pensou que precisava<<strong>br</strong> />

de uma fita. Sem fita nem sequer tentaria, fosse a que preço fosse. Recusou-se<<strong>br</strong> />

a tentar sem fita.<<strong>br</strong> />

- Recusou-se, eh? Talvez fosse o gênero de tipo que se recusaria a voar sem desliza<strong>do</strong>r?<<strong>br</strong> />

- Mais riso e o noviano, derreten<strong>do</strong>-se num sorriso, disse: - O rapaz é diverti<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Continue. Dou-lhe mais alguns minutos.<<strong>br</strong> />

- Não pense que isto é uma <strong>br</strong>incadeira - disse George tensamente. - As fitas são,<<strong>br</strong> />

de fato, prejudiciais. Ensinam demais; são demasia<strong>do</strong> in<strong>do</strong>lores. Um homem que<<strong>br</strong> />

aprenda dessa forma não sabe aprender de nenhuma outra. Fica congela<strong>do</strong> em qualquer<<strong>br</strong> />

que seja a posição que lhe derem as fitas. Agora se não dessem fitas a uma<<strong>br</strong> />

pessoa e a forçassem a aprender manualmente, por assim dizer, desde o início; então<<strong>br</strong> />

essa pessoa ganharia o hábito de aprender, e de continuar sempre a fazê-o. Não<<strong>br</strong> />

é lógico? Assim que tenha esse hábito bem enraiza<strong>do</strong>, pode ser-lhe dada uma pequena<<strong>br</strong> />

quantidade de conhecimento em fita, talvez, para preencher falhas ou ajustar<<strong>br</strong> />

pormenores. Depois pode fazer novos progressos por ele próprio. Poderia transformar<<strong>br</strong> />

os seus metalúrgicos Hensler em metalúrgicos Beeman dessa forma e não precisaria<<strong>br</strong> />

de vir à Terra buscar novos exemplares.<<strong>br</strong> />

O noviano acenou e sorveu um pouco da sua bebida.<<strong>br</strong> />

- E aonde é que vamos buscar o conhecimento, sem fitas? No vácuo interestelar?<<strong>br</strong> />

- Nos livros. Estudan<strong>do</strong> os próprios instrumentos. Pensan<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Livros? Como é que é possível <strong>com</strong>preender os livros sem educação? .<<strong>br</strong> />

- Os livros são feitos de palavras. As palavras podem, na sua maior parte, ser entendidas.<<strong>br</strong> />

As palavras especializadas podem ser explicadas pelos técnicos que vocês<<strong>br</strong> />

já têm.<<strong>br</strong> />

- E a leitura? Autoriza as fitas de leitura?<<strong>br</strong> />

- As fitas de leitura estão bem, acho eu, mas também não há qualquer razão para<<strong>br</strong> />

que não se aprenda a ler à maneira antiga. Pelo menos em parte.<<strong>br</strong> />

- Porque assim se ganham bons hábitos desde o início? - disse o noviano.<<strong>br</strong> />

- Sim, sim - disse George alegremente. O homem estava a <strong>com</strong>eçar a perceber.<<strong>br</strong> />

- E quanto à matemática?<<strong>br</strong> />

- Isso é o mais fácil de tu<strong>do</strong>, Sr.... Honorável. A matemática é diferente das outras<<strong>br</strong> />

matérias técnicas. Começa <strong>com</strong> determina<strong>do</strong>s princípios simples e avança por etapas.<<strong>br</strong> />

Pode <strong>com</strong>eçar-se <strong>do</strong> nada e aprender. Está praticamente estruturada para isso. Depois,<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> já se sabe o tipo de matemática indica<strong>do</strong>, os outros livros técnicos tornam-se<<strong>br</strong> />

bastante <strong>com</strong>preensíveis. Especialmente se se <strong>com</strong>eçar <strong>com</strong> os mais fáceis.<<strong>br</strong> />

- Há livros fáceis?<<strong>br</strong> />

- Com certeza. Mesmo que não houvesse, os técnicos que vocês já têm podiam


tentar escrever livros fáceis. Alguns deles podiam ser capazes de pôr algum <strong>do</strong> seu<<strong>br</strong> />

conhecimento em palavras e símbolos.<<strong>br</strong> />

- Meu Deus! - disse o noviano às pessoas que o rodeavam. - O diabinho tem resposta<<strong>br</strong> />

para tu<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Tenho. Tenho - gritou George. - Perguntem-me.<<strong>br</strong> />

- Já tentou, você mesmo, aprender através de livros? Ou isto ainda é só teoria<<strong>br</strong> />

para si?<<strong>br</strong> />

George virou-se para deitar um rápi<strong>do</strong> olhar a Ingenenescu, mas o historia<strong>do</strong>r estava<<strong>br</strong> />

impassível. A sua expressão não indicava nada a não ser um interesse modera<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Já - disse George.<<strong>br</strong> />

- E acha que funciona?<<strong>br</strong> />

- Sim, Honorável- disse George impacientemente. - Leve-me consigo para Novia.<<strong>br</strong> />

Posso organizar um programa e dirigir...<<strong>br</strong> />

- Espere, tenho mais algumas perguntas a fazer. Quanto tempo seria necessário,<<strong>br</strong> />

supõe você, para que você se tornasse num metalúrgico capaz de operar uma máquina<<strong>br</strong> />

Beeman, supon<strong>do</strong> que partia <strong>do</strong> nada e não utilizava fitas Educacionais?<<strong>br</strong> />

George hesitou.<<strong>br</strong> />

- Bem... anos, talvez.<<strong>br</strong> />

- Dois anos? Cinco? Dez?<<strong>br</strong> />

- Não lhe sei dizer, Honorável.<<strong>br</strong> />

- Bem, aí está uma pergunta vital para a qual você não tem resposta, ou tem? Digamos,<<strong>br</strong> />

cinco anos? Parece-lhe razoável?<<strong>br</strong> />

- Acho que sim.<<strong>br</strong> />

- Muito bem. Segun<strong>do</strong> esse seu méto<strong>do</strong>, teríamos um técnico a estudan<strong>do</strong> metalurgia<<strong>br</strong> />

durante cinco anos. Durante esse perío<strong>do</strong> de tempo não teria para nós qualquer<<strong>br</strong> />

utilidade, <strong>com</strong>o deve reconhecer, mas teria de ser alimenta<strong>do</strong>, aloja<strong>do</strong> e pago<<strong>br</strong> />

durante to<strong>do</strong>. esse tempo.<<strong>br</strong> />

- Mas...<<strong>br</strong> />

- Deixe-me acabar. Depois, quan<strong>do</strong> ele tivesse termina<strong>do</strong> e pudesse usar as Beeman,<<strong>br</strong> />

teriam passa<strong>do</strong> cinco anos. Não acha plausível que nessa altura já usássemos<<strong>br</strong> />

Beemans diferentes, que ele não seria capaz de operar?<<strong>br</strong> />

- Mas nessa altura já ele seria perito em aprender.<<strong>br</strong> />

Poderia estudar os novos pormenores necessários numa questão de dias.<<strong>br</strong> />

- É o que você diz. E supon<strong>do</strong> que esse seu amigo, por exemplo, tivesse estuda<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

as Beeman por sua conta e tivesse consegui<strong>do</strong> aprender o seu uso; seria ele tão perito<<strong>br</strong> />

nelas <strong>com</strong>o qualquer concorrente que o tivesse aprendi<strong>do</strong> através de fitas?<<strong>br</strong> />

- Talvez não... - <strong>com</strong>eçou George.<<strong>br</strong> />

- Ah - disse o noviano.<<strong>br</strong> />

- Espere, deixe-me acabar. Mesmo que não saiba tão bem determinada coisa, a capacidade<<strong>br</strong> />

de aprender sempre mais é que é importante. Seria capaz de inventar coisas,<<strong>br</strong> />

coisas novas que nenhuma pessoa educada pelas fitas poderia. Teria um depósito<<strong>br</strong> />

de pensa<strong>do</strong>res criativos...<<strong>br</strong> />

- Enquanto estudava - disse o noviano - inventou alguma coisa nova?<<strong>br</strong> />

- Não, mas sou apenas um e não estudei muito...<<strong>br</strong> />

- Sim... Bem, senhoras e senhores, já fomos suficientemente entreti<strong>do</strong>s?<<strong>br</strong> />

- Espere - gritou George, em súbito pânico. - Quero marcar uma entrevista particular.<<strong>br</strong> />

Há coisas que não posso explicar pelo visifone. Há pormenores...<<strong>br</strong> />

O noviano olhou por cima de George.<<strong>br</strong> />

- Ingenenescu! Acho que já lhe fiz o favor. Agora, falan<strong>do</strong> a sério, tenho um dia


muito cheio amanhã. Passe bem!<<strong>br</strong> />

O visor apagou-se.<<strong>br</strong> />

As mãos de George saíram disparadas na direção <strong>do</strong> visor, <strong>com</strong>o se num impulso<<strong>br</strong> />

extremo pretendesse devolver-lhe a vida <strong>com</strong> safanões.<<strong>br</strong> />

- Ele não acreditou em mim - gritou George. - Ele não acreditou em mim.<<strong>br</strong> />

- Claro que não, George -disse Ingenenescu - Pensavas realmente que ele acreditaria?<<strong>br</strong> />

George mal o ouvia.<<strong>br</strong> />

- E por que não? É tu<strong>do</strong> verdade. É tu<strong>do</strong> para seu beneficio. Sem riscos. Eu e alguns<<strong>br</strong> />

homens <strong>com</strong> quem trabalhar... Uma dúzia de homens aprenden<strong>do</strong> durante anos<<strong>br</strong> />

custariam menos que um técnico... Ele estava bêba<strong>do</strong>! Bêba<strong>do</strong>! Não <strong>com</strong>preendeu.<<strong>br</strong> />

George olhou em volta sem fôlego.<<strong>br</strong> />

- Como é que eu posso entrar em contacto <strong>com</strong> ele?<<strong>br</strong> />

Tenho de fazer. Isto foi mal feito. Não devia ter usa<strong>do</strong> o visifone. Preciso de tempo.<<strong>br</strong> />

Face a face. Como é que eu...<<strong>br</strong> />

- Ele não te receberá, George - disse Ingenenescu - E se o fizesse não acreditaria<<strong>br</strong> />

em ti.<<strong>br</strong> />

- Acreditaria sim, estou-lhe dizen<strong>do</strong>. Se não estiver beben<strong>do</strong>. Ele... - George virouse<<strong>br</strong> />

a<strong>br</strong>uptamente para o historia<strong>do</strong>r e os seus olhos aumentaram de tamanho. - Por<<strong>br</strong> />

que é que me chamou George?<<strong>br</strong> />

- Não é o teu nome? George Platen?<<strong>br</strong> />

- Conhece-me?<<strong>br</strong> />

- Sei tu<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e ti.<<strong>br</strong> />

George permaneceu imóvel, excetuan<strong>do</strong> a respiração que fazia o seu peito subir e<<strong>br</strong> />

descer.<<strong>br</strong> />

- Quero ajudar-te, George - disse Ingenenescu -Já te disse. Tenho lhe estuda<strong>do</strong> e<<strong>br</strong> />

quero ajudá-o.<<strong>br</strong> />

George gritou.<<strong>br</strong> />

- Não preciso de ajuda. Não sou débil mental. O mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> é que é, eu não. -<<strong>br</strong> />

Ro<strong>do</strong>u so<strong>br</strong>e si mesmo e dirigiu-se para a porta.<<strong>br</strong> />

A<strong>br</strong>iu-a <strong>com</strong> violência e <strong>do</strong>is policiais levantaram-se repentinamente <strong>do</strong>s seus postos<<strong>br</strong> />

de guarda e agarraram-no.<<strong>br</strong> />

Por mais que se debatesse, George sentiu o hipo-pulveriza<strong>do</strong>r na zona macia mesmo<<strong>br</strong> />

abaixo da curva <strong>do</strong> seu maxilar, e foi tu<strong>do</strong>. A última coisa de que se lem<strong>br</strong>ava era<<strong>br</strong> />

da cara de Ingenenescu, observan<strong>do</strong>-o <strong>com</strong> leve preocupação.<<strong>br</strong> />

George a<strong>br</strong>iu os olhos para a <strong>br</strong>ancura de um teto. Lem<strong>br</strong>ava-se <strong>do</strong> que tinha<<strong>br</strong> />

aconteci<strong>do</strong>. Lem<strong>br</strong>ava-se muito de longe, <strong>com</strong>o se tivesse aconteci<strong>do</strong> a outra pessoa.<<strong>br</strong> />

Olhou o teto até que a <strong>br</strong>ancura lhe encheu os olhos e lhe lavou o cére<strong>br</strong>o, deixan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

espaço, parecia, para novos pensamentos e novas formas de pensar.<<strong>br</strong> />

Não sabia há quanto tempo ali estava deita<strong>do</strong>, ouvin<strong>do</strong> o fluir <strong>do</strong>s seus próprios<<strong>br</strong> />

pensamentos.<<strong>br</strong> />

Ouviu uma voz ao ouvi<strong>do</strong>: - Estás acorda<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

E George ouviu os seus próprios gemi<strong>do</strong>s pela primeira vez. Teria esta<strong>do</strong> gemen<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

Tentou virar a cabeça.<<strong>br</strong> />

- Dói-te, George? - disse a voz.<<strong>br</strong> />

- Curioso - murmurou George. - Estava tão ansioso por deixar a Terra. Não <strong>com</strong>-


preendi.<<strong>br</strong> />

- Sabes onde estás?<<strong>br</strong> />

- De volta à... à Casa. - George conseguiu virar-se. A voz pertencia a Omani.<<strong>br</strong> />

- É curioso eu não ter percebi<strong>do</strong> - disse George... Omani sorriu <strong>do</strong>cemente.<<strong>br</strong> />

- Dorme outra vez...<<strong>br</strong> />

George a<strong>do</strong>rmeceu.<<strong>br</strong> />

E acor<strong>do</strong>u de novo. A sua mente estava lúcida.<<strong>br</strong> />

Omani estava senta<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> da cama len<strong>do</strong>, mas pousou o livro logo que os<<strong>br</strong> />

olhos de George se a<strong>br</strong>iram.<<strong>br</strong> />

George sentou-se <strong>com</strong> muito esforço. - Olá - disse. -Tens fome?<<strong>br</strong> />

- Podes crer. - Fitou Omani <strong>com</strong> curiosidade. - Fui segui<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> saí, não fui?<<strong>br</strong> />

Omani acenou <strong>com</strong> a cabeça.<<strong>br</strong> />

- Estiveste sempre sob observação. Íamos conduzir-te a Antonelli e deixar-te descarregar<<strong>br</strong> />

a tua agressividade. Sentimos que essa era a única forma de progredires.<<strong>br</strong> />

As tuas emoções estavam bloquean<strong>do</strong> o teu avanço.<<strong>br</strong> />

- Estava <strong>com</strong>pletamente engana<strong>do</strong> a respeito dele disse George, <strong>com</strong> uma ponta<<strong>br</strong> />

de embaraço.<<strong>br</strong> />

- Agora não interessa. Quan<strong>do</strong> paraste para olhar para o quadro de informações<<strong>br</strong> />

de Metalurgia, no aeroporto, um <strong>do</strong>s nossos agentes <strong>com</strong>unicou-nos a lista <strong>do</strong>s nomes.<<strong>br</strong> />

Tu e eu tínhamos fala<strong>do</strong> suficientemente so<strong>br</strong>e o teu passa<strong>do</strong> para que eu percebesse<<strong>br</strong> />

o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> nome de Trevelyan ali. Perguntaste o caminho para a Olimpíada;<<strong>br</strong> />

havia possibilidades disto acabar no tipo de crise que procurávamos; mandamos<<strong>br</strong> />

Ladislas Ingenenescu ir ter contigo ao salão e tomar conta <strong>do</strong> caso.<<strong>br</strong> />

- Ele é um homem importante no governo, não é?<<strong>br</strong> />

- É, sim.<<strong>br</strong> />

- E vocês mandaram-no tomar conta <strong>do</strong> caso. Faz-me sentir importante.<<strong>br</strong> />

- Tu és importante, George.<<strong>br</strong> />

Tinha chega<strong>do</strong> um guisa<strong>do</strong> espesso, fumegante, cheiroso. George arreganhou os<<strong>br</strong> />

dentes <strong>com</strong>o um lobo e empurrou os lençóis de maneira a libertar os <strong>br</strong>aços. Omani<<strong>br</strong> />

aju<strong>do</strong>u-o a montar o tabuleiro de cama. Por um momento, George <strong>com</strong>eu em silêncio.<<strong>br</strong> />

Depois disse:<<strong>br</strong> />

- Acordei aqui uma vez, antes, por pouco tempo.<<strong>br</strong> />

- Eu sei - disse Omani - Eu estava aqui.<<strong>br</strong> />

- Pois, eu lem<strong>br</strong>o-me. Sabes, tu<strong>do</strong> tinha muda<strong>do</strong>. Era <strong>com</strong>o se estivesse demasia<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

cansa<strong>do</strong> para sentir emoções. Já não sentia raiva. Só podia pensar. Era <strong>com</strong>o se me<<strong>br</strong> />

tivessem da<strong>do</strong> uma droga para acabar <strong>com</strong> as emoções.<<strong>br</strong> />

- Não deram - disse Omani. - Apenas um sedativo. Tu descansaste.<<strong>br</strong> />

- Bem, de qualquer forma, estava tu<strong>do</strong> claro, <strong>com</strong>o se eu sempre tivesse sabi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mas nunca tivesse ouvi<strong>do</strong> a mim próprio. Que é que eu queria que Novia me deixasse<<strong>br</strong> />

fazer?, pensei. Queria ir para Novia e levar <strong>com</strong>igo um grupo de jovens não educa<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

para ensinar através de livros. Queria estabelecer uma Casa para Débeis Mentais<<strong>br</strong> />

(<strong>com</strong>o aqui), e a Terra já as tem, muitas até.<<strong>br</strong> />

Os dentes <strong>br</strong>ancos de Omani <strong>br</strong>ilharam quan<strong>do</strong> ele sorriu.<<strong>br</strong> />

- O nome correto para sítios <strong>com</strong>o este é Instituto de Estu<strong>do</strong>s Superiores.<<strong>br</strong> />

- Agora percebo - disse George - tão facilmente que estou espanta<strong>do</strong> <strong>com</strong> a minha<<strong>br</strong> />

cegueira anterior. Afinal, quem é que inventa os instrumentos novos que necessitam<<strong>br</strong> />

de novos técnicos? Quem é que inventou os espectrógrafos Beeman, por exemplo?


Um homem chama<strong>do</strong> Beeman, suponho, mas não poderia ter si<strong>do</strong> educa<strong>do</strong> através<<strong>br</strong> />

de fitas, senão <strong>com</strong>o é que ele teria feito esse progresso?<<strong>br</strong> />

- Exatamente.<<strong>br</strong> />

- E quem é que faz as fitas Educacionais? Técnicos especiais de fa<strong>br</strong>icação de<<strong>br</strong> />

fitas? Então quem é que faz as fitas para formá-os? Técnicos mais avança<strong>do</strong>s? Então<<strong>br</strong> />

quem é que faz as fitas... Percebes o que quero dizer. Tem de haver um fim em algum<<strong>br</strong> />

ponto. Tem de existir em algum lugar homens e mulheres <strong>com</strong> capacidade para<<strong>br</strong> />

pensamento criativo.<<strong>br</strong> />

- Sim, George.<<strong>br</strong> />

George reclinou-se, olhou por cima da cabeça de Omani, e por momentos algo de<<strong>br</strong> />

irrequieto voltou aos seus olhos. - Por que é que não me disseram tu<strong>do</strong> isto no<<strong>br</strong> />

início?<<strong>br</strong> />

- Ah, se pudéssemos - disse Omani -, o trabalho que isso nos pouparia. Podemos<<strong>br</strong> />

analisar uma mente, George, e dizer que este dará um arquiteto <strong>com</strong>petente e aquele<<strong>br</strong> />

um bom carpinteiro, mas não temos nenhum processo de detectar capacidade<<strong>br</strong> />

para pensamento original e criativo. É algo demasia<strong>do</strong> sutil. Temos alguns méto<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

empíricos para detectar indivíduos que possivelmente ou potencialmente podem ter<<strong>br</strong> />

esse talento.<<strong>br</strong> />

No Dia da Leitura, esses indivíduos nos são <strong>com</strong>unica<strong>do</strong>s. Tu foste um deles, por<<strong>br</strong> />

exemplo. Grosso mo<strong>do</strong>, o número de indivíduos <strong>com</strong>unica<strong>do</strong>s nessas condições anda<<strong>br</strong> />

por volta de um em dez mil. Quan<strong>do</strong> chega o Dia da Educação, esses indivíduos são<<strong>br</strong> />

verifica<strong>do</strong>s outra vez, e chega-se à conclusão de que <strong>nove</strong> em cada dez eram falsos<<strong>br</strong> />

alarmes. Os que so<strong>br</strong>am são envia<strong>do</strong>s para lugares <strong>com</strong>o este.<<strong>br</strong> />

- Bem, que é que há de mau em dizer às pessoas que um em cada... em cada cem<<strong>br</strong> />

mil acaba em lugares <strong>com</strong>o este? disse George. - Nesse caso já não seria um choque<<strong>br</strong> />

tão grande para os que vêm.<<strong>br</strong> />

- E os que não vêm? Os <strong>nove</strong>nta e <strong>nove</strong> mil <strong>nove</strong>centos e <strong>nove</strong>nta e <strong>nove</strong> que não<<strong>br</strong> />

vêm? Não podemos permitir que todas essas pessoas se considerem uns falha<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Aspiram a uma profissão e, de uma forma ou de outra, to<strong>do</strong>s a conseguem. To<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

podem pôr a seguir ao nome: Não-sei-quantos registra<strong>do</strong>. De uma ou <strong>do</strong>utra forma<<strong>br</strong> />

cada indivíduo tem o seu lugar na sociedade e isso é necessário.<<strong>br</strong> />

- Mas, e a nós? - disse George. - As exceções, uma em cada dez mil?<<strong>br</strong> />

- Não podemos lhes dizer. É precisamente isso. É o teste final. Mesmo depois de<<strong>br</strong> />

termos reduzi<strong>do</strong> as possibilidades no Dia da Educação, <strong>nove</strong> em cada dez <strong>do</strong>s que<<strong>br</strong> />

vêm para aqui ainda não são propriamente gênios criativos, e não há qualquer forma<<strong>br</strong> />

automatizada de distinguir esses <strong>nove</strong> <strong>do</strong> décimo que nós queremos. O décimo tem<<strong>br</strong> />

de se denunciar a ele próprio.<<strong>br</strong> />

- Trazemos-lhes para uma destas casas para Débeis Mentais e aquele que não<<strong>br</strong> />

aceitar esse fato é o homem que nós queremos. É um méto<strong>do</strong> um pouco cruel, mas<<strong>br</strong> />

funciona. Não adianta dizer a uma pessoa: «Podes criar. Cria.» É muito mais seguro<<strong>br</strong> />

esperar que alguém diga «Eu posso criar, e vou fazê-o quer vocês queiram quer<<strong>br</strong> />

não.» Há dez mil pessoas <strong>com</strong>o tu, George, que suportam o avanço tecnológico de<<strong>br</strong> />

mil e quinhentos mun<strong>do</strong>s. Não podemos dar-nos ao luxo de perder um recruta para<<strong>br</strong> />

esse número, ou de desperdiçar o nosso esforço em alguém que não preenche as<<strong>br</strong> />

condições necessárias.<<strong>br</strong> />

George afastou o prato vazio <strong>do</strong> caminho e levou uma chávena de café à boca.<<strong>br</strong> />

- Que é que acontece às pessoas que vêm para aqui e não... preenchem as condições?<<strong>br</strong> />

- Normalmente são educa<strong>do</strong>s através de fitas e transformam-se em cientistas sociais.<<strong>br</strong> />

Ingenenescu é um deles. Eu sou psicólogo registra<strong>do</strong>. Somos da segunda divi-


são, por assim dizer.<<strong>br</strong> />

George terminou o café.<<strong>br</strong> />

- Ainda tenho uma dúvida - disse.<<strong>br</strong> />

- E o que é?<<strong>br</strong> />

George atirou o lençol para o la<strong>do</strong> e levantou-se. - Por que é que lhe chamam<<strong>br</strong> />

Olimpíadas?


A SENSAÇÃO DE PODER<<strong>br</strong> />

Jehan Shuman estava acostuma<strong>do</strong> a lidar <strong>com</strong> os homens responsáveis pelas tropas<<strong>br</strong> />

espalhadas pela Terra. Era apenas um civil, mas tinha cria<strong>do</strong> os programas que<<strong>br</strong> />

possibilitaram o surgimento <strong>do</strong>s mais avança<strong>do</strong>s <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res automáticos de guerra.<<strong>br</strong> />

Consequentemente, os generais ouviam sua opinião. Os líderes das <strong>com</strong>issões<<strong>br</strong> />

parlamentares também.<<strong>br</strong> />

Havia um militar e um político no salão especial <strong>do</strong> Novo Pentágono. O general<<strong>br</strong> />

Weider tinha um rosto <strong>br</strong>onzea<strong>do</strong> pelos raios de muitos sóis, e sua pequena boca,<<strong>br</strong> />

cheia de rugas, quase não aparecia. O deputa<strong>do</strong> Brant tinha um rosto suave e olhos<<strong>br</strong> />

claros. Ele fumava um charuto denebiano <strong>com</strong> a segurança de alguém cujo patriotismo<<strong>br</strong> />

era tão notório que podia se permitir certas liberdades.<<strong>br</strong> />

Shuman, alto, distinto, um típico programa<strong>do</strong>r de elite, encarou-os destemidamente.<<strong>br</strong> />

- Cavalheiros - disse ele, esse é Myron Aub.<<strong>br</strong> />

- É aquele que tem um talento in<strong>com</strong>um, que você desco<strong>br</strong>iu por acaso - disse<<strong>br</strong> />

Brant, sereno. - Ah. - Ele estu<strong>do</strong>u o pequeno homem de cabeça oval e careca <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

uma curiosidade cordial.<<strong>br</strong> />

Em resposta, o homenzinho torceu os de<strong>do</strong>s de suas mãos ansiosamente. Nunca<<strong>br</strong> />

tinha visto homens tão importantes em sua vida. Era um técnico envelheci<strong>do</strong> e sem<<strong>br</strong> />

importância, que há muito tempo tinha fracassa<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s os testes destina<strong>do</strong>s a<<strong>br</strong> />

selecionar as pessoas talentosas da humanidade e se a<strong>com</strong>odara numa rotina de trabalhos<<strong>br</strong> />

não especializa<strong>do</strong>s. Tinha apenas um passatempo que, depois de descoberto<<strong>br</strong> />

pelo grande programa<strong>do</strong>r, acarretara to<strong>do</strong> esse estardalhaço.<<strong>br</strong> />

- Acho infantil esse clima de mistério - disse o general Weider.<<strong>br</strong> />

- Vai deixar de achar em um minuto - disse Shuman. - Esse é o tipo de coisa que<<strong>br</strong> />

não pode vazar para qualquer um... Aub! - Havia um pouco de autoritarismo na sua<<strong>br</strong> />

maneira de pronunciar esse nome monossilábico, mas, nesse caso, era o grande programa<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

falan<strong>do</strong> para um simples técnico. - Aub! Quanto é <strong>nove</strong> vezes sete?<<strong>br</strong> />

Aub hesitou um pouco. Seus olhos páli<strong>do</strong>s <strong>br</strong>ilharam, ligeiramente ansiosos.<<strong>br</strong> />

- Sessenta e três - disse ele.<<strong>br</strong> />

O deputa<strong>do</strong> Brant levantou as so<strong>br</strong>ancelhas.<<strong>br</strong> />

- Ele acertou?<<strong>br</strong> />

- Veja você mesmo, deputa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

O deputa<strong>do</strong> tirou seu <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r de bolso, apertou as teclas duas vezes, olhou<<strong>br</strong> />

para a superfície na palma de sua mão e guar<strong>do</strong>u-o.<<strong>br</strong> />

- É esse o talento que você trouxe para nos mostrar? Um ilusionista?<<strong>br</strong> />

- Mais que isso, senhor. Aub decorou algumas operações e <strong>com</strong> elas faz cálculos


num papel.<<strong>br</strong> />

- Um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r de papel? - disse o general. Ele parecia aflito.<<strong>br</strong> />

- Não senhor - disse Shuman pacientemente. - Não é um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r de papel. É<<strong>br</strong> />

um simples pedaço de papel. General, o senhor faria a gentileza de sugerir um número?<<strong>br</strong> />

- Dezessete - disse o general.<<strong>br</strong> />

- E o senhor, deputa<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Vinte e três.<<strong>br</strong> />

- Ótimo. Aub, multiplique esses números e, por favor, mostre a esses cavalheiros<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o você faz isso.<<strong>br</strong> />

- Sim, programa<strong>do</strong>r - disse Aub, fazen<strong>do</strong> uma reverência <strong>com</strong> a cabeça. Tirou um<<strong>br</strong> />

bloco de um <strong>do</strong>s bolsos da camisa e <strong>do</strong> outro uma caneta de bico fino. Sua testa se<<strong>br</strong> />

enrugava enquanto desenhava meticulosamente no papel.<<strong>br</strong> />

O general Weider interrompeu-o <strong>br</strong>uscamente.<<strong>br</strong> />

- Deixe-me ver isso. Aub entregou-lhe o papel.<<strong>br</strong> />

- Bem, isso parece <strong>com</strong> o número dezessete - disse Weider.<<strong>br</strong> />

O deputa<strong>do</strong> Brant balançou a cabeça.<<strong>br</strong> />

- Parece sim, mas eu acho que qualquer um pode copiar as figuras de um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

Talvez até eu possa fazer um dezessete razoável, mesmo sem prática.<<strong>br</strong> />

- Se vocês deixarem Aub continuar, cavalheiros - disse Shuman, sem se perturbar.<<strong>br</strong> />

Aub continuou <strong>com</strong> as mãos um pouco trêmulas. Depois de algum tempo, disse<<strong>br</strong> />

em voz baixa:<<strong>br</strong> />

- A resposta é trezentos e <strong>nove</strong>nta e um. - O deputa<strong>do</strong> Brant checou de novo o<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

- Por Deus, é isso mesmo. Como ele adivinhou?<<strong>br</strong> />

- Ele não adivinhou, deputa<strong>do</strong> - disse Shuman. - Ele calculou o resulta<strong>do</strong> nesse pedaço<<strong>br</strong> />

de papel.<<strong>br</strong> />

- Conversa furada - disse o general, impaciente. - O <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r é uma coisa, desenhos<<strong>br</strong> />

no papel são outra.<<strong>br</strong> />

- Explique, Aub - pediu Shuman.<<strong>br</strong> />

- Pois não, programa<strong>do</strong>r. Bem, eu escrevo dezessete, embaixo dele, escrevo vinte<<strong>br</strong> />

e três. Depois, digo <strong>com</strong>igo mesmo: sete vezes três...<<strong>br</strong> />

- Só que o problema é dezessete vezes vinte e três - interrompeu-o o deputa<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

cortês.<<strong>br</strong> />

- Sim, eu sei - disse o pequeno técnico, num tom sério. Mas eu <strong>com</strong>eço por sete<<strong>br</strong> />

vezes três, porque é assim que funciona. Agora, sete vezes três são vinte e um.<<strong>br</strong> />

- Como é que você sabe isso? - perguntou o deputa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- É uma questão de memória. É sempre vinte e um no <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r. Já conferi um<<strong>br</strong> />

monte de vezes.<<strong>br</strong> />

- Isso não quer dizer que vai ser assim para sempre, não? - disse o deputa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Talvez não - gaguejou Aub. - Não sou matemático. Mas as minhas respostas<<strong>br</strong> />

sempre estão certas.<<strong>br</strong> />

- Continue.<<strong>br</strong> />

- Sete vezes três é vinte e um, então eu escrevo vinte e um. Depois, um vezes três<<strong>br</strong> />

é três e, então, escrevo o três embaixo <strong>do</strong> <strong>do</strong>is de vinte e um.<<strong>br</strong> />

- Por que embaixo <strong>do</strong> <strong>do</strong>is? - perguntou de pronto o deputa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Porque... - Aub olhou desespera<strong>do</strong> para o seu superior, <strong>com</strong>o se estivesse pedin<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ajuda. - É difícil de explicar.<<strong>br</strong> />

- Se vocês aceitarem o seu trabalho por um momento, podemos deixar os detalhes<<strong>br</strong> />

para os matemáticos.


Brant se acalmou.<<strong>br</strong> />

- Três mais <strong>do</strong>is é igual a cinco - disse Aub. - Então o vinte e um vira cinquenta e<<strong>br</strong> />

um. Você deixa isso de la<strong>do</strong> um pouquinho e <strong>com</strong>eça de novo. Você multiplica sete<<strong>br</strong> />

por <strong>do</strong>is, que é catorze e um por <strong>do</strong>is, que dá <strong>do</strong>is. Se você colocá-os assim, isso vai<<strong>br</strong> />

dar trinta e quatro. Agora coloque o trinta e quatro embaixo <strong>do</strong> cinquenta e um dessa<<strong>br</strong> />

forma e faça a soma, então terá a resposta final, que é trezentos e <strong>nove</strong>nta e um.<<strong>br</strong> />

Houve um momento de silêncio.<<strong>br</strong> />

- Não acredito nisso - disse o general Weider. - Ele vem <strong>com</strong> essa conversa furada<<strong>br</strong> />

e desenha os números, multiplica e soma dessa maneira, mas não acredito. Isso é<<strong>br</strong> />

muito <strong>com</strong>plica<strong>do</strong>. Não passa de um truque.<<strong>br</strong> />

- Não, senhor - disse Aub, ansioso. - Só parece <strong>com</strong>plica<strong>do</strong> porque o senhor não<<strong>br</strong> />

está acostuma<strong>do</strong>. Na verdade, as regras são muito simples e funcionam <strong>com</strong> qualquer<<strong>br</strong> />

número.<<strong>br</strong> />

- Qualquer número, hein? - disse o general. - Então, vamos ver. - Pegou o seu<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r (um modelo GI de estilo austero) e apertou-o ao acaso. - Escreva cinco<<strong>br</strong> />

sete três oito no papel. Isto é cinco mil, setecentos e trinta e oito.<<strong>br</strong> />

- Sim, senhor - disse Aub, pegan<strong>do</strong> uma folha em <strong>br</strong>anco.<<strong>br</strong> />

- Agora - mais toques no seu <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r - sete <strong>do</strong>is três <strong>nove</strong>. Sete mil, duzentos<<strong>br</strong> />

e trinta e <strong>nove</strong>.<<strong>br</strong> />

- Sim, senhor.<<strong>br</strong> />

- Agora, multiplique esses <strong>do</strong>is números.<<strong>br</strong> />

- Isso vai demorar um pouco - disse Aub, <strong>com</strong> uma voz trêmula.<<strong>br</strong> />

- Fique à vontade - disse o general.<<strong>br</strong> />

- Vá em frente, Aub - disse Shuman, incisivo.<<strong>br</strong> />

Aub pôs-se a trabalhar, inclinan<strong>do</strong>-se para baixo. Virou outra página e mais outra.<<strong>br</strong> />

O general pegou o relógio e viu as horas.<<strong>br</strong> />

- Você já terminou o seu número de magia, técnico?<<strong>br</strong> />

- Estou terminan<strong>do</strong>, senhor. Aqui está, senhor. Quarenta e um milhões, <strong>nove</strong>centos<<strong>br</strong> />

e trinta e sete mil, trezentos e oitenta e <strong>do</strong>is.<<strong>br</strong> />

Ele mostrou o resulta<strong>do</strong> rabisca<strong>do</strong> no papel. O general Weider sorriu amargamente.<<strong>br</strong> />

Ele pressionou o botão de multiplicação <strong>do</strong> seu <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r e deixou os números<<strong>br</strong> />

ro<strong>do</strong>piarem até parar. Então ele olhou o resulta<strong>do</strong> e gritou surpreso.<<strong>br</strong> />

- Grande Galáxia, esse cara está certo.<<strong>br</strong> />

O Presidente da Federação Terrestre tinha adquiri<strong>do</strong> uma expressão macilenta devi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

à longa permanência nos escritórios; nas audiências, ele permitia que uma expressão<<strong>br</strong> />

vagamente melancólica tomasse conta de suas feições. A guerra denebiana,<<strong>br</strong> />

depois de um <strong>br</strong>eve <strong>com</strong>eço de grande agitação e muita popularidade, tinha se restringi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

a uma sórdida questão de mano<strong>br</strong>as e contra-mano<strong>br</strong>as, <strong>com</strong> o descontentamento<<strong>br</strong> />

crescen<strong>do</strong> continuamente na Terra. Provavelmente também estava crescen<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

em Deneb.<<strong>br</strong> />

E agora, o deputa<strong>do</strong> Brant, líder <strong>do</strong> importante Comitê de Apropriações Militares,<<strong>br</strong> />

estava alegre e entusiasmadamente desperdiçan<strong>do</strong> a sua audiência falan<strong>do</strong> barbaridades.<<strong>br</strong> />

- Calcular sem um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r - disse o presidente, impaciente - é absolutamente<<strong>br</strong> />

impossível.<<strong>br</strong> />

- Calcular - disse o deputa<strong>do</strong> - é apenas um sistema de manipulação de da<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Uma máquina pode fazer isso, da mesma forma que a mente humana. Deixe-me darlhe<<strong>br</strong> />

um exemplo. - E, usan<strong>do</strong> as novas habilidades que tinha aprendi<strong>do</strong>, desenvolveu


somas e produtos até que o presidente, a despeito de sua desconfiança, se mostrou<<strong>br</strong> />

interessa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Isso sempre funciona?<<strong>br</strong> />

- Sempre, Sr. Presidente. É infalível.<<strong>br</strong> />

- É difícil de aprender?<<strong>br</strong> />

- Passei uma semana até pegar o macete. Acho que o senhor precisaria de menos<<strong>br</strong> />

tempo.<<strong>br</strong> />

- Isso é um joguinho interessante - disse o presidente, depois de pensar um pouco.<<strong>br</strong> />

- Mas qual a sua utilidade?<<strong>br</strong> />

- Qual a utilidade de um bebê recém-nasci<strong>do</strong>, Sr. Presidente? Por enquanto, não<<strong>br</strong> />

tem nenhuma utilidade, mas o senhor não vê, isso aponta o caminho que libertará a<<strong>br</strong> />

máquina. Pense bem Sr. Presidente. - O deputa<strong>do</strong> se levantou e sua voz profunda<<strong>br</strong> />

automaticamente assumiu algumas das entonações que usava nos debates. - A guerra<<strong>br</strong> />

denebiana é uma guerra de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r contra <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r. Os <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res deles<<strong>br</strong> />

produzem um escu<strong>do</strong> impenetrável de contra-mísseis contra os nossos mísseis,<<strong>br</strong> />

assim <strong>com</strong>o os nossos fazem contra os deles. Quan<strong>do</strong> modernizamos nossos <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res,<<strong>br</strong> />

eles também modernizam os deles, e há cinco anos existe um equilí<strong>br</strong>io precário<<strong>br</strong> />

e inútil.<<strong>br</strong> />

- Agora temos em nossas mãos um méto<strong>do</strong> para ir além <strong>do</strong> <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r, pular por<<strong>br</strong> />

so<strong>br</strong>e ele, ultrapassá-o. Combinaremos a mecânica <strong>do</strong> <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r <strong>com</strong> o pensamento<<strong>br</strong> />

humano; teremos o equivalente aos <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res inteligentes; bilhões deles. Não<<strong>br</strong> />

posso prever detalhadamente quais serão as consequências, mas elas serão incalculáveis.<<strong>br</strong> />

E, caso os denebianos se antecipem a nós nesse aspecto... o resulta<strong>do</strong> pode<<strong>br</strong> />

ser uma catástrofe.<<strong>br</strong> />

- O que podemos fazer? - disse o presidente, preocupa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Colocar o poder da administração em favor de um projeto secreto de <strong>com</strong>putação<<strong>br</strong> />

humana. Chame-o de Projeto Número, se quiser. Posso me responsabilizar pelo meu<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>itê, mas vou precisar <strong>do</strong> apoio da administração.<<strong>br</strong> />

- Mas até onde a <strong>com</strong>putação humana pode ir?<<strong>br</strong> />

- Não há limites. De acor<strong>do</strong> <strong>com</strong> o programa<strong>do</strong>r Shuman, que me apresentou essa<<strong>br</strong> />

descoberta...<<strong>br</strong> />

- Já ouvi falar de Shuman, é claro.<<strong>br</strong> />

- Sim. bom, o Dr. Shuman me disse que, teoricamente, não há nada que um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

faça que não possa ser feito pela mente humana. O <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r apenas processa<<strong>br</strong> />

um número finito de da<strong>do</strong>s e opera um número finito de operações a partir deles.<<strong>br</strong> />

A mente humana pode reproduzir esse processo.<<strong>br</strong> />

O presidente pensou um pouco.<<strong>br</strong> />

- Se Shuman diz isso, estou inclina<strong>do</strong> a acreditar nele... em teoria. Mas, na prática,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o alguém pode saber <strong>com</strong>o um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r funciona?<<strong>br</strong> />

Brant sorriu cordialmente.<<strong>br</strong> />

- Sr. Presidente, eu fiz a mesma pergunta. Ao que parece, houve uma época em<<strong>br</strong> />

que os <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res eram projeta<strong>do</strong>s diretamente pelos seres humanos. Eram <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res<<strong>br</strong> />

simples; antecederam a época em que o uso racional <strong>do</strong>s <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res<<strong>br</strong> />

fez <strong>com</strong> que eles projetassem <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res mais avança<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- Sim, sim. Continue.<<strong>br</strong> />

- Aparentemente, o técnico Aub conseguiu, por puro lazer, reconstituir alguns desses<<strong>br</strong> />

velhos esquemas, estu<strong>do</strong>u os detalhes <strong>do</strong> seu funcionamento e desco<strong>br</strong>iu que<<strong>br</strong> />

podia copiá-o. A multiplicação que acabei de fazer para o senhor é uma imitação <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

funcionamento de um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

- Surpreendente!


- O deputa<strong>do</strong> tossiu educadamente.<<strong>br</strong> />

- Se posso fazer mais uma observação, Sr. Presidente... quanto mais pudermos desenvolver<<strong>br</strong> />

essa coisa, mais poderemos desviar nosso esforço federal da produção de<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res e de sua manutenção. Assim que o cére<strong>br</strong>o humano assumir o poder,<<strong>br</strong> />

nossas melhores energias poderão ser canalizadas para procurar a paz, e a influência<<strong>br</strong> />

da guerra nos homens <strong>com</strong>uns será menor. Isso será mais vantajoso para o parti<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

no poder, é claro.<<strong>br</strong> />

- Ah - disse o presidente. - Enten<strong>do</strong> o que você quer dizer. Bem, sente-se, deputa<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

sente-se. Preciso de algum tempo para pensar. Enquanto isso mostre-me esse<<strong>br</strong> />

truque da multiplicação de novo. Deixe ver se eu consigo pegar o macete.<<strong>br</strong> />

O programa<strong>do</strong>r Shuman não tentou apressar o assunto. Loesser era conserva<strong>do</strong>r,<<strong>br</strong> />

muito conserva<strong>do</strong>r, e gostava de lidar <strong>com</strong> os <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res da mesma forma <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

seu pai e seu avô. Mesmo assim, ele controlava o monopólio de <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

oeste europeu; se conseguisse entusiasmá-o <strong>com</strong> o Projeto Número, um passo muito<<strong>br</strong> />

grande seria da<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Mas Loesser continuava <strong>com</strong> um pé atrás.<<strong>br</strong> />

- Não sei se gosto da ideia de afrouxarmos as nossas rédeas so<strong>br</strong>e os <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res.<<strong>br</strong> />

A mente humana é uma coisa caprichosa. O <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r sempre nos dará a<<strong>br</strong> />

mesma resposta para o mesmo problema. Qual a garantia que temos de que <strong>com</strong> a<<strong>br</strong> />

mente humana será assim?<<strong>br</strong> />

- A mente humana, Loesser, apenas manipula os fatos. Não importa se a mente<<strong>br</strong> />

humana ou a máquina faz isso. Elas são apenas instrumentos.<<strong>br</strong> />

- Sim, sim. A<strong>com</strong>panhei sua engenhosa demonstração de que a mente humana<<strong>br</strong> />

pode imitar o <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r, mas isso me parece um pouco vago. Aceito a teoria, mas<<strong>br</strong> />

que razão nós temos para achar que a teoria será confirmada na prática?<<strong>br</strong> />

- Acho que temos uma razão, senhor. Afinal de contas, os <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res não existiram<<strong>br</strong> />

sempre. O homem das cavernas, <strong>com</strong> suas trirremes, macha<strong>do</strong>s de pedra e estradas<<strong>br</strong> />

de ferro, não tinha <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res.<<strong>br</strong> />

- E provavelmente não sabia calcular.<<strong>br</strong> />

- Você sabe muito bem que sim. Até a construção de uma estrada de ferro ou de<<strong>br</strong> />

um zigurate requeria algum tipo de cálculo, e, <strong>com</strong>o nós sabemos, isso foi feito sem<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res.<<strong>br</strong> />

- Você está sugerin<strong>do</strong> que eles calculavam da mesma maneira que você me mostrou?<<strong>br</strong> />

- Provavelmente não. Afinal de contas, esse méto<strong>do</strong>, que, a propósito, chamamos<<strong>br</strong> />

de "grafítico", da velha palavra europeia graphos, que quer dizer "escrita"... esse méto<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

foi desenvolvi<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>s próprios <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res, portanto não pode ter si<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

usa<strong>do</strong> pelos primitivos. Ainda assim, o homem das cavernas deve ter ti<strong>do</strong> algum méto<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

não?<<strong>br</strong> />

- Artes perdidas! Se você está falan<strong>do</strong> de artes perdidas...<<strong>br</strong> />

- Não, não é isso. Não sou um entusiasta das artes perdidas, embora não afirme<<strong>br</strong> />

que não exista nenhuma. Afinal, o homem <strong>com</strong>ia cereais antes de aprender a fazer<<strong>br</strong> />

culturas hidropônicas, e se os primitivos <strong>com</strong>iam cereais, eles deviam cultivá-os no<<strong>br</strong> />

solo. De que outra forma poderiam ter consegui<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Não sei, mas só acreditarei em terra cultivada quan<strong>do</strong> vir algum grão crescer no<<strong>br</strong> />

chão. Também só acreditarei que se faz fogo esfregan<strong>do</strong> uma pedra na outra no dia<<strong>br</strong> />

em que me mostrarem que isso é possível.<<strong>br</strong> />

Shuman tentou ser concilia<strong>do</strong>r.


- Bem, vamos nos ater aos grafíticos. Isto tu<strong>do</strong> faz parte <strong>do</strong> processo de eterificação.<<strong>br</strong> />

O transporte por meio de pesa<strong>do</strong>s equipamentos está sen<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong> por<<strong>br</strong> />

transferência direta de massa. Os instrumentos de <strong>com</strong>unicação se tornam cada vez<<strong>br</strong> />

mais leves e mais eficientes. Por causa disso, <strong>com</strong>pare seu <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r de bolso <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

aquelas engenhocas pesadas de mil anos atrás. Então, por que não dar também o último<<strong>br</strong> />

e definitivo passo, e abolir os <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res? Vamos, senhor, o Projeto Número<<strong>br</strong> />

é inevitável; ele está progredin<strong>do</strong> rapidamente. Mas queremos sua ajuda. Se o patriotismo<<strong>br</strong> />

não for suficiente para engajá-o, pense na aventura intelectual que está em<<strong>br</strong> />

jogo.<<strong>br</strong> />

- Que progresso? - disse Loesser <strong>com</strong> ceticismo. - O que você pode fazer além de<<strong>br</strong> />

multiplicar? Pode integrar uma operação transcendental?<<strong>br</strong> />

- Dentro em <strong>br</strong>eve, senhor. Dentro em <strong>br</strong>eve. No mês passa<strong>do</strong>, aprendi a dividir.<<strong>br</strong> />

Posso determinar, e corretamente, quocientes inteiros e quocientes decimais.<<strong>br</strong> />

- Quocientes decimais? De quantas casas?<<strong>br</strong> />

O programa<strong>do</strong>r Shuman tentou manter um tom natural.<<strong>br</strong> />

- Qualquer número!<<strong>br</strong> />

Loesser ficou de queixo caí<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Sem um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r?<<strong>br</strong> />

- Faça um problema.<<strong>br</strong> />

- Divida vinte e sete por treze. Em seis casas. Cinco minutos depois, Shuman disse:<<strong>br</strong> />

- Dois, vírgula, zero sete meia <strong>nove</strong> <strong>do</strong>is três.<<strong>br</strong> />

Loesser conferiu.<<strong>br</strong> />

- Isso é realmente fantástico. A multiplicação não me impressionou muito porque,<<strong>br</strong> />

afinal, isso envolvia números inteiros e acho que uma hábil manipulação pode conseguir<<strong>br</strong> />

isso. Mas decimais...<<strong>br</strong> />

- E isso não é tu<strong>do</strong>. Há uma nova pesquisa em curso que até agora é ultra-secreta<<strong>br</strong> />

e que, falan<strong>do</strong> sinceramente, não posso revelar. Mesmo assim... estamos perto de<<strong>br</strong> />

aprender a fazer uma raiz quadrada.<<strong>br</strong> />

- Raiz quadrada?<<strong>br</strong> />

- Ainda tem algumas coisas pendentes e não conseguimos acertar na mosca, mas<<strong>br</strong> />

o técnico Aub, o homem que inventou essa ciência e que tem uma incrível sensibilidade<<strong>br</strong> />

para a coisa, assegura que está prestes a resolver o problema. E ele é apenas<<strong>br</strong> />

um técnico. Um homem <strong>com</strong>o o senhor, um matemático talentoso e tarimba<strong>do</strong>, não<<strong>br</strong> />

encontraria tanta dificuldade.<<strong>br</strong> />

- Raiz quadrada - resmungou Loesser, encanta<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Raiz cúbica também. E então? Está conosco?<<strong>br</strong> />

Loesser levantou a mão rapidamente.<<strong>br</strong> />

- Pode contar <strong>com</strong>igo.<<strong>br</strong> />

O general Weider marchava de um la<strong>do</strong> para o outro da sala e se dirigia aos ouvintes<<strong>br</strong> />

à sua frente <strong>com</strong>o se fosse um professor ranzinza diante de uma turma de estudantes<<strong>br</strong> />

indóceis. Pouco lhe importava se eram os cientistas civis que coordenavam o<<strong>br</strong> />

Projeto Número. O general era um líder em to<strong>do</strong>s os lugares e assim se <strong>com</strong>portava<<strong>br</strong> />

em to<strong>do</strong>s os momentos de sua vida.<<strong>br</strong> />

- Nenhum problema <strong>com</strong> as raízes quadradas, então - disse ele. - Eu mesmo não<<strong>br</strong> />

sei <strong>com</strong>o fazê-as, mas já estão concluídas. Mesmo assim, não vamos interromper o<<strong>br</strong> />

projeto só porque já solucionamos os problemas que alguns de vocês consideram essenciais.<<strong>br</strong> />

Vocês podem fazer o que quiserem <strong>com</strong> os grafíticos depois que a guerra<<strong>br</strong> />

acabar, mas, nesse exato momento, temos problemas específicos que precisam ser<<strong>br</strong> />

soluciona<strong>do</strong>s.


Num canto distante, o técnico Aub ouvia aflito. É claro que há muito tempo deixara<<strong>br</strong> />

de ser um técnico, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> dispensa<strong>do</strong> de suas tarefas e convoca<strong>do</strong> a participar<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> projeto, <strong>com</strong> um título pomposo e um ótimo salário. Mas é claro que as diferenças<<strong>br</strong> />

sociais permaneciam e os líderes científicos, altamente classifica<strong>do</strong>s, jamais o aceitariam<<strong>br</strong> />

em seu meio ou o tratariam em pé de igualdade. E Aub tampouco desejava<<strong>br</strong> />

isso. Sentia-se tão in<strong>com</strong>oda<strong>do</strong> entre eles <strong>com</strong>o eles se sentiam in<strong>com</strong>oda<strong>do</strong>s na sua<<strong>br</strong> />

presença.<<strong>br</strong> />

- Nós só temos uma meta, cavalheiros - estava dizen<strong>do</strong> o general. - Substituir os<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res. Uma nave que possa viajar pelo espaço sem um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r a bor<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

pode ser construída em um quinto de tempo e por um décimo <strong>do</strong>s custos de uma<<strong>br</strong> />

nave <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>rizada. Poderíamos ter flotilhas especiais cinco ou dez vezes maiores<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> que as de Deneb se eliminássemos os <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res. E até vejo mais além disso.<<strong>br</strong> />

Talvez agora pareça loucura ou um simples sonho. Mas no <strong>futuro</strong> eu posso ver mísseis<<strong>br</strong> />

tripula<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Houve um instantâneo murmúrio por parte da plateia O general prosseguiu:<<strong>br</strong> />

- No momento, nosso problema principal é que a inteligência <strong>do</strong>s mísseis é limitada.<<strong>br</strong> />

O <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r que os controla não pode alterar o rumo programa<strong>do</strong> e, por essa<<strong>br</strong> />

razão, eles sempre acabam sen<strong>do</strong> deti<strong>do</strong>s por antimísseis. Poucos mísseis, se é que<<strong>br</strong> />

algum consegue chegar a seu objetivo, e a guerra de mísseis está prestes a acabar;<<strong>br</strong> />

felizmente, tanto para o inimigo, <strong>com</strong>o para nós.<<strong>br</strong> />

- Por outro la<strong>do</strong>, um míssil <strong>com</strong> um ou <strong>do</strong>is homens dentro, controlan<strong>do</strong> o voo <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

grafíticos, seria mais leve, mais ágil e mais inteligente. Isso nos daria uma vantagem<<strong>br</strong> />

que pode significar a vitória. Além disso, cavalheiros, as necessidades da guerra nos<<strong>br</strong> />

o<strong>br</strong>igam a lem<strong>br</strong>ar de uma coisa. Um homem é mais descartável <strong>do</strong> que um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

Mísseis tripula<strong>do</strong>s podem ser lança<strong>do</strong>s em maior número e sob circunstâncias que<<strong>br</strong> />

nenhum general empreenderia se usasse mísseis <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>riza<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Ele discorreu so<strong>br</strong>e muito mais coisas, mas o técnico Aub não esperou.<<strong>br</strong> />

O técnico Aub, na intimidade <strong>do</strong>s seus aposentos, elaborou cuida<strong>do</strong>samente sua<<strong>br</strong> />

carta de despedida. Ela dizia o que se segue:<<strong>br</strong> />

- Quan<strong>do</strong> <strong>com</strong>ecei a estudar o que agora chamam de grafíticos, isso não passava<<strong>br</strong> />

de um passatempo. Nada mais <strong>do</strong> que um agradável passatempo, um exercício para<<strong>br</strong> />

a cabeça.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> o Projeto Número <strong>com</strong>eçou, achava que as pessoas fossem mais esclarecidas<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> que eu e que os grafíticos poderiam ser usa<strong>do</strong>s para ajudar a humanidade,<<strong>br</strong> />

apoian<strong>do</strong> a modernização <strong>do</strong>s instrumentos necessários à transferência de massas.<<strong>br</strong> />

Mas agora vejo que ele só será usa<strong>do</strong> para a morte e a destruição.<<strong>br</strong> />

Não posso suportar a responsabilidade de ter inventa<strong>do</strong> os grafíticos:<<strong>br</strong> />

Depois, virou contra si o foco <strong>do</strong> despolariza<strong>do</strong>r de proteínas e morreu instantaneamente.<<strong>br</strong> />

Eles se reuniram em torno <strong>do</strong> túmulo <strong>do</strong> pequeno técnico para prestar-lhe honra<<strong>br</strong> />

por sua notável descoberta.<<strong>br</strong> />

O programa<strong>do</strong>r Shuman fez uma reverência <strong>com</strong> a cabeça, junto <strong>com</strong> os outros,<<strong>br</strong> />

mas continuou imóvel. O técnico tinha da<strong>do</strong> sua contribuição e não era mais necessário.<<strong>br</strong> />

Ele podia ter <strong>com</strong>eça<strong>do</strong> os grafíticos, mas agora que o projeto já estava em anda-


mento, iria se desenvolver automaticamente até triunfar, tornan<strong>do</strong> os mísseis tripula<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

uma realidade, juntamente <strong>com</strong> tantas outras coisas.<<strong>br</strong> />

Nove vezes sete, pensou Shuman <strong>com</strong> orgulho, sessenta e três. Não precisava<<strong>br</strong> />

mais que um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r lhe dissesse isso. Sua própria cabeça era um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

E isso lhe dava uma fantástica sensação de poder.


A NOITE MORIBUNDA<<strong>br</strong> />

Era quase uma reunião de um curso, e embora não pre<strong>do</strong>minasse a alegria, nada<<strong>br</strong> />

indicava que a assinalaria a tragédia.<<strong>br</strong> />

Edward Talliaferro, recentemente chega<strong>do</strong> da Lua sem as pernas de gravidade,<<strong>br</strong> />

reuniu-se aos outros <strong>do</strong>is no quarto de Stanley Kaunas. Este levantou-se para o saudar<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> uma ponta de constrangimento. Battersley Ryger limitou-se a acenar-lhe,<<strong>br</strong> />

permanecen<strong>do</strong> senta<strong>do</strong>. O recém-chega<strong>do</strong> reclinou-se no sofá <strong>com</strong> lentidão, consciente<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> peso a que não se encontrava habitua<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Tinham-se encontra<strong>do</strong> algumas horas antes em condições um pouco mais formais.<<strong>br</strong> />

Agora, achavam-se sós pela primeira vez, e Talliaferro observou:<<strong>br</strong> />

- É um momento mais ou menos céle<strong>br</strong>e. Reunimo-nos pela última vez há dez<<strong>br</strong> />

anos, quan<strong>do</strong> concluímos o curso.<<strong>br</strong> />

Ryger franziu o nariz, o qual fora fratura<strong>do</strong> pouco antes da conclusão <strong>do</strong> curso<<strong>br</strong> />

menciona<strong>do</strong>, o que o o<strong>br</strong>igara a receber o diploma de <strong>do</strong>utoramento em Astronomia<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> uma ligadura desfiguran<strong>do</strong>-lhe o rosto.<<strong>br</strong> />

- Alguém man<strong>do</strong>u vir champanhe? - perguntou em tom som<strong>br</strong>io.<<strong>br</strong> />

- Então, que é isso? - exclamou Talliaferro.- O primeiro congresso de astronomia<<strong>br</strong> />

interplanetário da História merece uma atmosfera mais cordial.<<strong>br</strong> />

- Não consigo habituar-me à Terra - disse Kaunas.<<strong>br</strong> />

- Compreen<strong>do</strong> - aquiesceu Talliaferro. - Sucede-me o mesmo. O peso que sou<<strong>br</strong> />

força<strong>do</strong> a arrastar suga-me as energias. Em to<strong>do</strong> o caso, estás melhor <strong>do</strong> que eu,<<strong>br</strong> />

Kaunas. A gravidade de Mercúrio é 0,4 da normal, enquanto a da Lua não passa de<<strong>br</strong> />

0,16. - Fez um gesto para evitar que Ryger o interrompesse. - E em Ceres utilizam<<strong>br</strong> />

campos de pseu<strong>do</strong>-gravidade ajusta<strong>do</strong>s em 0,8.<<strong>br</strong> />

O astrônomo <strong>do</strong> planeta Ceres exibiu uma expressão <strong>com</strong>pungida.<<strong>br</strong> />

- O que mais me oprime é o ar puro. A faculdade de poder sair à rua sem traje espacial<<strong>br</strong> />

perturba-me.<<strong>br</strong> />

- E a mim a intensidade <strong>do</strong> sol - acudiu Kaunas.<<strong>br</strong> />

Talliaferro retrocedeu no Tempo involuntariamente. Na verdade, tinham muda<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

pouco, incluin<strong>do</strong> ele próprio, à parte a circunstância de serem dez anos mais velhos.<<strong>br</strong> />

Ryger engordara um pouco e as faces de Kaunas apresentavam numerosas rugas,<<strong>br</strong> />

mas ele reconhecê-los-ia sem dificuldade se os visse inesperadamente.<<strong>br</strong> />

- Não acredito que seja a Terra a responsável pelo nosso aca<strong>br</strong>unhamento - frisou,<<strong>br</strong> />

por fim. - Encaremos a realidade.<<strong>br</strong> />

Kaunas fitou-o <strong>br</strong>uscamente e explodiu:<<strong>br</strong> />

- Villiers! Tens razão. Penso nele <strong>com</strong> frequência. A propósito: escreveu-me, há<<strong>br</strong> />

dias.


- Sim? - Ryger empertigou-se na poltrona. - Quan<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Há um mês.<<strong>br</strong> />

- E a ti? - Ryger voltou-se para Talliaferro. Depois que este assentiu <strong>com</strong> uma inclinação<<strong>br</strong> />

de cabeça, prosseguiu: - En<strong>do</strong>ideceu. Afirma que desco<strong>br</strong>iu um méto<strong>do</strong> prático<<strong>br</strong> />

para proceder à transferência da massa através <strong>do</strong> Espaço. Também lhes falou<<strong>br</strong> />

nisso? Sempre foi meio destrava<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Apertou o nariz entre o polegar e o indica<strong>do</strong>r, e Talliaferro lem<strong>br</strong>ou-se <strong>do</strong> dia em<<strong>br</strong> />

que Villiers lho fraturara. Durante dez anos, a som<strong>br</strong>a deste perseguira-os <strong>com</strong> uma<<strong>br</strong> />

sensação de culpa que na realidade não lhes pertencia. Tinham estuda<strong>do</strong> juntos e<<strong>br</strong> />

envereda<strong>do</strong> por uma profissão que atualmente a<strong>br</strong>ia largas perspectivas. Estabeleciam-se<<strong>br</strong> />

constantemente observatórios astronômicos nos outros mun<strong>do</strong>s, rodea<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

pelo vácuo. Havia o da Lua, <strong>do</strong> qual a Terra e os planetas interiores podiam ser estuda<strong>do</strong>s;<<strong>br</strong> />

um mun<strong>do</strong> silencioso em cujo céu o planeta de origem se mantinha suspenso.<<strong>br</strong> />

O de Mercúrio, mais próximo <strong>do</strong> Sol, instala<strong>do</strong> no Polo Norte daquele planeta,<<strong>br</strong> />

onde o limite entre o dia e a noite quase não se alterava e o Sol permanecia fixo no<<strong>br</strong> />

horizonte, permitin<strong>do</strong> o seu estu<strong>do</strong> minucioso. O de Ceres, mais moderno e recente,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o seu alcance estenden<strong>do</strong>-se de Júpiter até às galáxias mais distantes.<<strong>br</strong> />

Existiam desvantagens, sem dúvida. Em virtude da dificuldade de que as viagens<<strong>br</strong> />

interplanetárias ainda se revestiam, as férias eram reduzidas e a vida normal virtualmente<<strong>br</strong> />

impossível, todavia a geração atual podia considerar-se afortunada. Os cientistas<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> <strong>futuro</strong> encontrariam a Ciência deveras avançada e, enquanto não se verificasse<<strong>br</strong> />

a invenção da propulsão interestelar, não se voltariam a rasgar horizontes <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

aqueles.<<strong>br</strong> />

Os quatro felizar<strong>do</strong>s, Talliaferro, Ryger, Kaunas e Villiers, achar-se-iam em posições<<strong>br</strong> />

semelhantes à de Galileu o qual, em virtude de possuir o primeiro telescópio digno<<strong>br</strong> />

desse nome, não podia apontá-lo para região alguma <strong>do</strong> firmamento sem efetuar<<strong>br</strong> />

uma descoberta importante.<<strong>br</strong> />

De súbito, porém, Romano Villiers a<strong>do</strong>ecera <strong>com</strong> fe<strong>br</strong>e reumática e o coração principiara<<strong>br</strong> />

a fraquejar. Era o mais <strong>br</strong>ilhante <strong>do</strong> quarteto, e viu-se impossibilita<strong>do</strong> de obter<<strong>br</strong> />

o <strong>do</strong>utoramento. Pior <strong>do</strong> que isso, jamais poderia ausentar-se da Terra, pois a aceleração<<strong>br</strong> />

de decolagem de uma nave especial matá-o-ia irremediavelmente.<<strong>br</strong> />

Talliaferro foi envia<strong>do</strong> para a Lua, Ryger para Ceres e Kaunas para Mercúrio. Somente<<strong>br</strong> />

Villiers ficou para trás, prisioneiro da Terra. Quan<strong>do</strong> tentaram consolá-o, reagiu<<strong>br</strong> />

explosivamente e terminou por fraturar o nariz de Ryger <strong>com</strong> um soco.<<strong>br</strong> />

Aparentemente, o facto não fora olvida<strong>do</strong>, a avaliar pela forma <strong>com</strong>o ele agora<<strong>br</strong> />

acariciava o apêndice, nasal ante a alusão a Villiers.<<strong>br</strong> />

- Também veio ao Congresso - disse Kaunas, pensativamente. - Está no Quarto<<strong>br</strong> />

405 deste hotel.<<strong>br</strong> />

- Não tenho a intenção de procurá-lo - declarou Ryger.<<strong>br</strong> />

- Ele é que virá ter conosco. Disse que nos queria falar. Prometeu aparecer às<<strong>br</strong> />

<strong>nove</strong>. Portanto, deve chegar de um momento para o outro.<<strong>br</strong> />

- Nesse caso, se me dão licença, despeço-me - anunciou Ryger.<<strong>br</strong> />

- Deixa-te estar - aconselhou Talliaferro. - Que mal haverá em vê-o?<<strong>br</strong> />

- O tipo enlouqueceu.<<strong>br</strong> />

- Não me digas que tens me<strong>do</strong> dele.<<strong>br</strong> />

- Me<strong>do</strong>? - ecoou Ryger <strong>com</strong> uma expressão de desdém.<<strong>br</strong> />

- Nervoso, talvez?<<strong>br</strong> />

- Também não.<<strong>br</strong> />

- Não mintas. De resto, to<strong>do</strong>s nos sentimos culpa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que lhe sucedeu, embora<<strong>br</strong> />

sem razão.


De súbito, soou a campainha da porta e voltaram-se so<strong>br</strong>essalta<strong>do</strong>s. Romano Villiers<<strong>br</strong> />

entrou e imobilizou-se para contemplá-los <strong>com</strong> ar sardônico. Na realidade, o semblante<<strong>br</strong> />

denunciava claramente que não desfrutava de saúde e somente o olhar possuía<<strong>br</strong> />

o mesmo <strong>br</strong>ilho metálico de outrora.<<strong>br</strong> />

- Finalmente, volto a ver os meus preza<strong>do</strong>s amigos! - exclamou numa inflexão de<<strong>br</strong> />

barítono. - Os meus amigos espaciais, mais corretamente<<strong>br</strong> />

- Olá, Villiers - articulou Talliaferro.<<strong>br</strong> />

Villiers olhou-o<<strong>br</strong> />

- Como tens passa<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Menos mal.<<strong>br</strong> />

- E vocês?<<strong>br</strong> />

Kaunas limitou-se a esboçar um sorriso e mastigar umas palavras ininteligíveis, enquanto<<strong>br</strong> />

Ryger retorquia:<<strong>br</strong> />

- Não percamos tempo. Que pretende de nós?<<strong>br</strong> />

- Ryger, o temperamental. Como vão as coisas em Ceres?<<strong>br</strong> />

- Satisfatoriamente, até ao momento em que saí de lá. E na Terra?<<strong>br</strong> />

- Podes inteirar-te pessoalmente - proferiu Villiers, a voz subitamente tensa. - Acalento<<strong>br</strong> />

a esperança de que tenham <strong>com</strong>pareci<strong>do</strong> ao Congresso para escutar a minha<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>unicação de depois de amanhã.<<strong>br</strong> />

- Qual <strong>com</strong>unicação? - inquiriu Talliaferro.<<strong>br</strong> />

- Expliquei-lhes tu<strong>do</strong> na carta. Refiro-me ao méto<strong>do</strong> para a transferência da massa<<strong>br</strong> />

que inventei.<<strong>br</strong> />

- Realmente, mencionavas isso - admitiu Ryger - mas não manifestavas o desejo<<strong>br</strong> />

de anunciar a descoberta ao Congresso e não me recor<strong>do</strong> de ver o teu nome na lista<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s ora<strong>do</strong>res inscritos.<<strong>br</strong> />

- De fato, não me inscrevi, nem preparei um resumo para publicação.<<strong>br</strong> />

Villiers corara <strong>br</strong>uscamente e Talliaferro re<strong>com</strong>en<strong>do</strong>u-lhe:<<strong>br</strong> />

- Acalma-te. Não tens bom aspecto.<<strong>br</strong> />

- O meu coração ainda resiste algum tempo, podes crer.<<strong>br</strong> />

- Mas se não te inscreveste... - <strong>com</strong>eçou Kaunas.<<strong>br</strong> />

- Esperei dez anos por este momento. Vocês têm as vossas ocupações no Espaço,<<strong>br</strong> />

enquanto eu lecciono na Terra. No entanto, valho mais que os três juntos.<<strong>br</strong> />

Mandel assistiu à experiência... Suponho que sabem a quem me refiro? Faz parte<<strong>br</strong> />

da presidência <strong>do</strong> Congresso e ficou entusiasma<strong>do</strong> <strong>com</strong> a demonstração da transferência<<strong>br</strong> />

da massa. Em to<strong>do</strong> o caso, empreguei um dispositivo rudimentar, que ardeu<<strong>br</strong> />

depois de utiliza<strong>do</strong> uma vez. - Villiers fez uma pausa para reco<strong>br</strong>ar o alento. - Mandel<<strong>br</strong> />

deixar-me-á falar mesmo sem estar inscrito, atenden<strong>do</strong> a importância da minha <strong>com</strong>unicação.<<strong>br</strong> />

Assim que anunciar o princípio da descoberta, correrão to<strong>do</strong>s para os seus laboratórios,<<strong>br</strong> />

a fim de construírem dispositivos idênticos aos meus. E verificarão que funcionam.<<strong>br</strong> />

Consegui que um rato desaparecesse de um canto <strong>do</strong> laboratório e surgisse<<strong>br</strong> />

noutro. - Contemplou os rostos que o rodeavam. - Não acreditam, hem?<<strong>br</strong> />

- Por que nos falas nisso, se até agora guardaste segre<strong>do</strong>? - quis saber Ryger.<<strong>br</strong> />

- Porque os considero meus amigos, ou pelo menos antigos condiscípulos. Partiram<<strong>br</strong> />

para o Espaço e deixaram-me ficar.<<strong>br</strong> />

- O Destino assim o quis - frisou Kaunas.<<strong>br</strong> />

- Aquilo que funcionou <strong>com</strong> um rato será igualmente eficaz <strong>com</strong> um ser humano.<<strong>br</strong> />

Em vez de percorrer três metros, <strong>com</strong>o no meu laboratório, o paciente deslocar-se-á<<strong>br</strong> />

milhões de quilômetros através <strong>do</strong> Espaço. Por outras palavras, eu poderei visitar a<<strong>br</strong> />

Lua, Mercúrio, Ceres e to<strong>do</strong>s os planetas que quiser. Conseguirei o mesmo que vocês


e muito mais.<<strong>br</strong> />

- Congratular-nos-emos imenso <strong>com</strong> isso - asseverou Talliaferro. - Posso ver uma<<strong>br</strong> />

cópia da tua <strong>com</strong>unicação?<<strong>br</strong> />

- Nem por som<strong>br</strong>as! - Villiers encostou a mão ao peito, <strong>com</strong>o se desejasse proteger<<strong>br</strong> />

um punha<strong>do</strong> de <strong>do</strong>cumentos invisíveis. - Tomarão conhecimento <strong>do</strong>s pormenores<<strong>br</strong> />

ao mesmo tempo que os outros. Só existe um exemplar <strong>do</strong>s meus apontamentos,<<strong>br</strong> />

que ninguém viu até agora, incluin<strong>do</strong> Mandel.<<strong>br</strong> />

- Imagina que o perdes? - <strong>br</strong>a<strong>do</strong>u Talliaferro.<<strong>br</strong> />

- Não te preocupes. De qualquer mo<strong>do</strong>, tenho tu<strong>do</strong> bem presente na memória.<<strong>br</strong> />

Aguardem até depois de amanhã. Nessa altura, verão os horizontes humanos alargarem-se<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o nunca sucedeu.<<strong>br</strong> />

Ro<strong>do</strong>u nos calcanhares e encaminhou-se para a porta.<<strong>br</strong> />

- En<strong>do</strong>ideceu - afirmou Ryger, o olhar crava<strong>do</strong> na porta, <strong>com</strong>o se Villiers ainda estivesse<<strong>br</strong> />

presente.<<strong>br</strong> />

- Não sei - articulou Talliaferro, pensativamente. - Talvez enlouquecesse, até certo<<strong>br</strong> />

ponto. Detesta-nos por motivos irracionais. Nem sequer esquadrinhou os apontamentos,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o medida de precaução...<<strong>br</strong> />

Ao mesmo tempo, conservava o seu esquadrinha<strong>do</strong>r entre os de<strong>do</strong>s. Tratava-se de<<strong>br</strong> />

um cilindro de cor neutra, um pouco mais curto e largo que um lápis vulgar. Ultimamente,<<strong>br</strong> />

tornara-se num objeto quase indispensável para o cientista, à semelhança <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

estetoscópio para o médico ou o micro<strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r para o estaticista. O esquadrinha<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

usava-se num bolso <strong>do</strong> casaco ou preso a uma manga ou ainda atrás da orelha.<<strong>br</strong> />

Por vezes, Talliaferro perguntava-se <strong>com</strong>o conseguiriam os cientistas de outrora dispor<<strong>br</strong> />

de tempo para registar os apontamentos em folhas de papel que enchiam numerosas<<strong>br</strong> />

prateleiras das estantes.<<strong>br</strong> />

Atualmente, bastava esquadrinhar qualquer <strong>do</strong>cumento escrito, para se obter um<<strong>br</strong> />

micro-negativo susceptível de ser revela<strong>do</strong> e reproduzi<strong>do</strong> a qualquer altura. Talliaferro<<strong>br</strong> />

já registara todas as <strong>com</strong>unicações a apresentar no Congresso e supunha que os<<strong>br</strong> />

amigos haviam procedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Estou convenci<strong>do</strong> de que não existe <strong>com</strong>unicação alguma - declarou Ryger. - Ele<<strong>br</strong> />

não desco<strong>br</strong>iu coisa alguma e saiu-se <strong>com</strong> essa para nos intrigar.<<strong>br</strong> />

- Então, <strong>com</strong>o procederá depois de amanhã, quan<strong>do</strong> falar? - objetou Kaunas.<<strong>br</strong> />

- Quem pode prever? Não esqueçamos que se trata de um louco.<<strong>br</strong> />

- Não menosprezemos as suas possibilidades - advertiu Talliaferro.<<strong>br</strong> />

Por fim, resolveram mudar de assunto e passaram a trocar impressões so<strong>br</strong>e as<<strong>br</strong> />

atividades a que se dedicavam nos diferentes planetas.<<strong>br</strong> />

Mais tarde, mergulharam em prolonga<strong>do</strong> silêncio, corta<strong>do</strong> finalmente por Kaunas,<<strong>br</strong> />

que sugeriu:<<strong>br</strong> />

- Por que não procuramos Villiers no seu quarto? - Ven<strong>do</strong> que o olhavam <strong>com</strong> estranheza,<<strong>br</strong> />

apressou-se a acrescentar: - Não há necessidade de ficarmos indiferentes<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> ele.<<strong>br</strong> />

«Pretende certificar-se de que a transferência de massa não passa <strong>do</strong> pesadelo de<<strong>br</strong> />

um louco, para poder <strong>do</strong>rmir descansa<strong>do</strong>», refletiu Talliaferro. Não obstante, também<<strong>br</strong> />

sentia curiosidade e não se opôs. O próprio Ryger encolheu os om<strong>br</strong>os e concor<strong>do</strong>u.<<strong>br</strong> />

Faltavam poucos minutos para as onze da noite.<<strong>br</strong> />

Talliaferro foi acorda<strong>do</strong> pela campainha da porta, que vi<strong>br</strong>ava <strong>com</strong> insistência.<<strong>br</strong> />

Soergueu-se apoia<strong>do</strong> ao cotovelo e verificou que o indica<strong>do</strong>r no teto assinalava quatro<<strong>br</strong> />

horas da madrugada.<<strong>br</strong> />

- Quem é? - resmungou.<<strong>br</strong> />

Todavia, o som continuou sem interrupção e ele enfiou o roupão e foi a<strong>br</strong>ir. Reco-


nheceu imediatamente o homem na sua frente, cujo rosto vira frequentemente nos<<strong>br</strong> />

jornais tridimensionais.<<strong>br</strong> />

- Chamo-me Hubert Mandel - informou o recém-chega<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Mandel era um <strong>do</strong>s nomes da Astronomia, suficientemente proeminente para exercer<<strong>br</strong> />

um cargo eleva<strong>do</strong> no Departamento Astronômico Mundial e fazia parte da presidência<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> Congresso que se cele<strong>br</strong>ava atualmente.<<strong>br</strong> />

Acudiu subitamente ao pensamento de Talliaferro que fora precisamente a Mandel<<strong>br</strong> />

que Villiers pretendia haver efetua<strong>do</strong> a demonstração da transferência da massa.<<strong>br</strong> />

- É o Dr. Edward Talliaferro? - perguntou o outro.<<strong>br</strong> />

- Exatamente.<<strong>br</strong> />

- Então, vista-se e a<strong>com</strong>panhe-me. É importante. Trata-se de uma pessoa que ambos<<strong>br</strong> />

conhecemos.<<strong>br</strong> />

- O Dr. Villiers?<<strong>br</strong> />

- Por que se lem<strong>br</strong>ou dele? - quis saber Mandel, semicerran<strong>do</strong> as pálpe<strong>br</strong>as.<<strong>br</strong> />

- Falou-nos em si, ontem à noite. Não me ocorre outro conheci<strong>do</strong> <strong>com</strong>um.<<strong>br</strong> />

Mandel assentiu <strong>com</strong> um movimento de cabeça, esperou que Talliaferro se vestisse<<strong>br</strong> />

e conduziu-o a um quarto no piso superior, onde Ryger e Kaunas os aguardavam<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> expressões apreensivas.<<strong>br</strong> />

Mandel moveu-se em cadencia<strong>do</strong> vaivém por uns momentos e terminou por dizer:<<strong>br</strong> />

- Peço-lhes desculpa pelo incômo<strong>do</strong>, meus senhores e agradeço o espírito de colaboração<<strong>br</strong> />

manifesta<strong>do</strong>. O nosso amigo Romano Villiers faleceu. O corpo foi retira<strong>do</strong> <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

hotel, há cerca de uma hora. Segun<strong>do</strong> os médicos, sucumbiu a um colapso cardíaco.<<strong>br</strong> />

Seguiu-se um pesa<strong>do</strong> silêncio. Por fim, Talliaferro articulou:<<strong>br</strong> />

- Po<strong>br</strong>e diabo.<<strong>br</strong> />

- Horrível - murmurou Kaunas, em voz rouca.<<strong>br</strong> />

- Há muito que sofria <strong>do</strong> coração - observou Ryger.<<strong>br</strong> />

- Quan<strong>do</strong> o viram pela última vez? - perguntou Mandel.<<strong>br</strong> />

- Ontem à noite - declarou Talliaferro. - Reunimo-nos pela primeira vez em dez<<strong>br</strong> />

anos. O encontro não decorreu em atmosfera cordial, lamento revelá-o. Villiers guardava-nos<<strong>br</strong> />

rancor e mostrava-se irrita<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Que horas eram?<<strong>br</strong> />

- Nove aproximadamente, da primeira vez.<<strong>br</strong> />

- Da primeira vez?<<strong>br</strong> />

- Voltamos a vê-o, mais tarde.<<strong>br</strong> />

- Como nos tínhamos separa<strong>do</strong> um pouco a<strong>br</strong>uptamente, queríamos restabelecer<<strong>br</strong> />

certa harmonia nas relações <strong>com</strong> ele - explicou Kaunas, <strong>com</strong> uma ponta de embaraço.<<strong>br</strong> />

- Procuramo-o no quarto e...<<strong>br</strong> />

- Estiveram os três no quarto de Villiers? - atalhou Mandel.<<strong>br</strong> />

- Sim - confirmou Kaunas, surpreendi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Quan<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Por volta das onze.<<strong>br</strong> />

- Demoraram-se muito?<<strong>br</strong> />

- Dois minutos - interpôs Ryger. - Correu connosco, <strong>com</strong>o se pretendêssemos roubar-lhe<<strong>br</strong> />

a <strong>com</strong>unicação que queria apresentar ao Congresso. Creio que a tinha debaixo<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> travesseiro. Pelo menos, fiquei <strong>com</strong> essa impressão, pela forma <strong>com</strong>o lhe colocava<<strong>br</strong> />

os <strong>br</strong>aços em cima.<<strong>br</strong> />

- Talvez já estivesse moribun<strong>do</strong> - murmurou Kaunas.<<strong>br</strong> />

- Nessa altura, ainda não - declarou Mandel.<<strong>br</strong> />

- Sen<strong>do</strong> assim, deixaram lá as impressões digitais.<<strong>br</strong> />

- É provável - admitiu Talliaferro, <strong>com</strong>eçan<strong>do</strong> a impacientar-se. - Por que nos cha-


mou, afinal?<<strong>br</strong> />

- O único exemplar da <strong>com</strong>unicação que Villiers pretendia apresentar foi deposita<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

na unidade destrui<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> lixo e apenas ficaram pequenos fragmentos reconhecíveis.<<strong>br</strong> />

Eu nunca a tinha li<strong>do</strong>, mas estava suficientemente ao corrente <strong>do</strong> assunto<<strong>br</strong> />

para identificar o que restava. - Mandel fez uma pausa. - Sabem se há outros condiscípulos<<strong>br</strong> />

dele presentes no Congresso?<<strong>br</strong> />

- Não - disse Kaunas. - Somos os únicos que se <strong>do</strong>utoraram em Astronomia nesse<<strong>br</strong> />

ano.<<strong>br</strong> />

- Nesse caso, um <strong>do</strong>s três visitou Villiers no seu quarto, cerca da meia-noite.<<strong>br</strong> />

- Onde pretende chegar? - inquiriu Talliaferro, depois que, sacudiu a cabeça<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> veemência, imita<strong>do</strong> pelos <strong>do</strong>is colegas.<<strong>br</strong> />

- Essa pessoa procurou-o à meia-noite e insistiu em que lhe mostrasse a <strong>com</strong>unicação.<<strong>br</strong> />

Desconheço o motivo. Provavelmente, tencionava provocar-lhe um colapso<<strong>br</strong> />

cardíaco. Quan<strong>do</strong> Villiers sucumbiu, o criminoso, se me é permiti<strong>do</strong> tratá-o assim,<<strong>br</strong> />

apoderou-se <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento e registou-o no seu esquadrinha<strong>do</strong>r. Em seguida, destruiu-o<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> que expliquei, mas <strong>com</strong>o estava <strong>com</strong> pressa não se certificou de que<<strong>br</strong> />

restavam alguns pedaços identificáveis.<<strong>br</strong> />

- Como sabe tu<strong>do</strong> isso? - perguntou Ryger. - Estava presente?<<strong>br</strong> />

- Quase - redarguiu Mandel. - Villiers não sucumbiu ao primeiro colapso e, quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

o assassino se afastou, pegou no telefone e ligou ao meu quarto, articulan<strong>do</strong> algumas<<strong>br</strong> />

palavras entrecortadas que me elucidaram <strong>do</strong> que se passara, infelizmente demasia<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

tarde, pois achava-me ausente nesse instante e a chamada ficou registada<<strong>br</strong> />

no meu grava<strong>do</strong>r. Quan<strong>do</strong> regressei, procurei-o imediatamente, mas já tinha morri<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Quem acusou? - indagou Ryger.<<strong>br</strong> />

- Ninguém, diretamente No entanto, por entre várias palavras ininteligíveis, distingui<<strong>br</strong> />

claramente o termo «condiscípulo».<<strong>br</strong> />

Talliaferro extraiu o esquadrinha<strong>do</strong>r <strong>do</strong> bolso <strong>do</strong> casaco e estendeu-o a Mandel.<<strong>br</strong> />

- Se quiser revelar o filme que contém, não me oponho. Não encontrará nele a<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>unicação de Villiers.<<strong>br</strong> />

Kaunas seguiu-lhe o exemplo <strong>com</strong> prontidão e Ryger imitou-o. Mandei aceitou os<<strong>br</strong> />

três esquadrinha<strong>do</strong>res e observou secamente:<<strong>br</strong> />

- Suponho que o culpa<strong>do</strong> tratou de substituir o filme exposto, mas mesmo assim<<strong>br</strong> />

procurarei certificar-me.<<strong>br</strong> />

- Pode revistar-me e os meus aposentos - disse Talliaferro.<<strong>br</strong> />

- Mais devagar - interveio Ryger, enrugan<strong>do</strong> a fronte. - O senhor pertence à Polícia?<<strong>br</strong> />

- Desejam que a chame? - retorquiu Mandei. - Interessa-lhes o escândalo e uma<<strong>br</strong> />

acusação de homicídio? Ao mesmo tempo, a imprensa exploraria o assunto e to<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

os astrônomos andariam pelas ruas da amargura. Por outro la<strong>do</strong>, Villiers sofria realmente<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> coração e quem contribuiu para a sua morte talvez não agisse <strong>com</strong> premeditação.<<strong>br</strong> />

Se o culpa<strong>do</strong> restituir o negativo <strong>do</strong> esquadrinha<strong>do</strong>r, evitaremos aborrecimentos<<strong>br</strong> />

consideráveis.<<strong>br</strong> />

- Mesmo para o criminoso? - frisou Talliaferro.<<strong>br</strong> />

- Não lhe prometo imunidade absoluta - concedeu Mandei, <strong>com</strong> um encolher de<<strong>br</strong> />

om<strong>br</strong>os. - No entanto, não se sujeitará à vergonha pública e prisão perpétua, <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

aconteceria se a Polícia interviesse. - Ven<strong>do</strong> que ninguém se acusava, encaminhou-se<<strong>br</strong> />

para a porta. - Espero não tardar. Entretanto, o responsável poderá ponderar as vantagens<<strong>br</strong> />

da solução que sugeri.<<strong>br</strong> />

Eram cinco horas da madrugada, quan<strong>do</strong> Ryger consultou o relógio <strong>com</strong> indignação.


- Está fican<strong>do</strong> tarde. Preciso <strong>do</strong>rmir.<<strong>br</strong> />

- Podemos passar pelo sono aqui mesmo - alvitrou Talliaferro <strong>com</strong> resignação. - Alguém<<strong>br</strong> />

tenciona confessar? - Kaunas desviou os olhos e Ryger arqueou as so<strong>br</strong>ancelhas.<<strong>br</strong> />

- É o que eu pensava.<<strong>br</strong> />

Os três homens reclinaram-se nas poltronas e imergiram em esta<strong>do</strong> de sonolência.<<strong>br</strong> />

Talliaferro descerrou as pálpe<strong>br</strong>as a<strong>br</strong>uptamente quan<strong>do</strong> Mandel reapareceu. Entretanto,<<strong>br</strong> />

amanhecera e o céu apresentava uma tonalidade azulada quase límpida. Involuntariamente,<<strong>br</strong> />

Talliaferro congratulou-se por a janela <strong>do</strong> quarto se conservar fechada.<<strong>br</strong> />

Habitua<strong>do</strong> ao vácuo lunar, a possibilidade de a a<strong>br</strong>irem afigurava-se-lhe altamente<<strong>br</strong> />

desconfortável.<<strong>br</strong> />

- Algum <strong>do</strong>s senhores tem qualquer coisa para dizer? -. perguntou Mandel. Deixou<<strong>br</strong> />

transcorrer um momento de silêncio. - Revelei os filmes <strong>do</strong>s esquadrinha<strong>do</strong>res e examinei<<strong>br</strong> />

o resulta<strong>do</strong>. - Largou os instrumentos e respectivas películas em cima da cama.<<strong>br</strong> />

- Nada! Portanto, a questão mantém-se no ponto inicial. Necessitamos de encontrar<<strong>br</strong> />

o filme oculto.<<strong>br</strong> />

- Se porventura existe - <strong>com</strong>entou Ryger, bocejan<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Sugiro que me a<strong>com</strong>panhem ao quarto de Villiers.<<strong>br</strong> />

- Para quê? - Kaunas parecia perturba<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Gostaria que os <strong>do</strong>is inocentes me ajudassem a procurar o filme.<<strong>br</strong> />

- Acha que se encontra lá? - inquiriu Ryger <strong>com</strong> uma expressão de incredulidade.<<strong>br</strong> />

- É uma hipótese a considerar. O simpósio so<strong>br</strong>e Astronáutica só principia amanhã<<strong>br</strong> />

às dez horas.<<strong>br</strong> />

- E se não aparecer até lá?<<strong>br</strong> />

- Teremos de chamar a Polícia.<<strong>br</strong> />

Entraram lentamente no quarto há pouco ocupa<strong>do</strong> por Villiers. Ryger apresentavase<<strong>br</strong> />

cora<strong>do</strong> e Kaunas páli<strong>do</strong>. Quanto a Talliaferro, procurava mostrar-se calmo. Mandel<<strong>br</strong> />

ajustou o polariza<strong>do</strong>r da janela para que entrasse mais luz e Kaunas levou a mão aos<<strong>br</strong> />

olhos.<<strong>br</strong> />

- O sol! - <strong>br</strong>a<strong>do</strong>u, espavori<strong>do</strong>, <strong>com</strong>o se estivesse no planeta Mercúrio, onde a intensidade<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s raios solares era quase insuportável.<<strong>br</strong> />

Talliaferro recor<strong>do</strong>u a sua aversão pelo ar livre e rangeu os dentes. Achavam-se to<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

sob a influência nefasta de dez anos de ausência da Terra. Kaunas precipitou-se<<strong>br</strong> />

para a janela, a fim de accionar o polariza<strong>do</strong>r e soltou uma exclamação de horror.<<strong>br</strong> />

- Que foi? - quis saber Mandel, acorren<strong>do</strong>, imita<strong>do</strong> pelos outros.<<strong>br</strong> />

A cidade espraiava-se a seus pés até ao horizonte, so<strong>br</strong>e o qual o Sol <strong>br</strong>ilhava fortemente.<<strong>br</strong> />

No entanto Kaunas, respiran<strong>do</strong> <strong>com</strong> visível dificuldade, cravava os olhos<<strong>br</strong> />

num objeto mais próximo. A um canto <strong>do</strong> peitoril, introduzi<strong>do</strong> numa ranhura, via-se<<strong>br</strong> />

um pedaço de película <strong>com</strong> cerca de três centímetros de <strong>com</strong>primento.<<strong>br</strong> />

Com um grito estrangula<strong>do</strong>, Mandel fez subir a janela, recolheu o filme e afastouse<<strong>br</strong> />

apressadamente, <strong>com</strong> a re<strong>com</strong>endação:<<strong>br</strong> />

- Esperem aqui!<<strong>br</strong> />

Reapareceu vinte minutos mais tarde, para anunciar <strong>com</strong> desalento:<<strong>br</strong> />

- Uma das pontas não tinha si<strong>do</strong> atingida pelos raios solares e consegui decifrar algumas<<strong>br</strong> />

palavras. Era na verdade a <strong>com</strong>unicação de Villiers. O resto está destruí<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

impossível de recuperar.<<strong>br</strong> />

- O que acontece agora? - perguntou Talliaferro.<<strong>br</strong> />

- Agora, é-me indiferente. A transferência da massa deixou de ser possível até que<<strong>br</strong> />

outro cére<strong>br</strong>o tão <strong>br</strong>ilhante <strong>com</strong>o o de Villiers descu<strong>br</strong>a o méto<strong>do</strong> apropria<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Um momento. Se o assunto não se esclarecer, ficarmos eternamente envoltos em<<strong>br</strong> />

suspeitas, que só servirão para prejudicar nossas carreiras.


- Talvez tenha razão - admitiu Mandei. - Um amigo meu chama<strong>do</strong> Wendell Urth,<<strong>br</strong> />

afigura-se-me a pessoa indicada para solucionar o problema.<<strong>br</strong> />

Edward Talliaferro olhava em re<strong>do</strong>r, contemplan<strong>do</strong> a ampla sala em que se encontrava,<<strong>br</strong> />

na qual se viam reuni<strong>do</strong>s os objetos mais heterogêneos Por outro la<strong>do</strong>, achava-se<<strong>br</strong> />

totalmente isolada <strong>do</strong> exterior, <strong>com</strong>o se se situasse noutro planeta sem qualquer<<strong>br</strong> />

ponto de contacto <strong>com</strong> a Terra.<<strong>br</strong> />

- Agradeço-lhes imenso terem <strong>com</strong>pareci<strong>do</strong>, cavalheiros - proferiu o homem adiposo<<strong>br</strong> />

instala<strong>do</strong> numa poltrona-secretária. - Queiram desculpar a desarrumação que observam,<<strong>br</strong> />

mas resolvi catalogar os numerosos objetos de proveniência extraterrestre<<strong>br</strong> />

que possuo, e não é trabalho que se conclua num a<strong>br</strong>ir e fechar de olhos. - Fez uma<<strong>br</strong> />

pausa. - Em que posso servi-los?<<strong>br</strong> />

Hubert Mandel procedeu às apresentações e expôs pormenorizadamente o assunto<<strong>br</strong> />

que os levara à presença <strong>do</strong> famoso extraterrólogo. As faces deste avermelharam-se<<strong>br</strong> />

de entusiasmo, à medida que o escutava.<<strong>br</strong> />

- Transferência da massa! - exclamou finalmente.<<strong>br</strong> />

- Assisti à experiência.<<strong>br</strong> />

- E só agora me revela!<<strong>br</strong> />

- Tinha prometi<strong>do</strong> guardar segre<strong>do</strong>. A descoberta foi efetuada por um homem um<<strong>br</strong> />

pouco... singular.<<strong>br</strong> />

- Transferência da massa... - volveu Urth. - O único meio decente para um homem<<strong>br</strong> />

civiliza<strong>do</strong> se deslocar sem esforço de espécie alguma. Se me encontrasse presente...<<strong>br</strong> />

Mas o hotel fica a mais de quarenta quilômetros daqui.<<strong>br</strong> />

- Nunca ouviu falar nos aero-flutua<strong>do</strong>res? - interpôs Ryger, <strong>com</strong> uma ponta de ironia.<<strong>br</strong> />

- Vejo que não o puseram ao corrente da minha fobia - replicou o extraterrólogo. -<<strong>br</strong> />

Detesto to<strong>do</strong>s os meios de lo<strong>com</strong>oção. Só an<strong>do</strong> a pé, o que me impõe certas limitações,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o <strong>com</strong>preenderá. Mas voltemos ao vosso problema. Antes de nos aventurarmos<<strong>br</strong> />

mais longe, algum <strong>do</strong>s três deseja confessar?<<strong>br</strong> />

- Está de qualquer mo<strong>do</strong> associa<strong>do</strong> à Polícia? - perguntou Talliaferro, assola<strong>do</strong> por<<strong>br</strong> />

uma inspiração repentina.<<strong>br</strong> />

- Oficialmente, não. Todavia, possuo conhecimentos em vários círculos influentes.<<strong>br</strong> />

- Nesse caso, vou transmitir-lhe determinadas informações que poderá repetir às<<strong>br</strong> />

autoridades.<<strong>br</strong> />

Urth serviu-se da fralda da camisa para limpar as lentes <strong>do</strong>s óculos e proferiu:<<strong>br</strong> />

- Sou to<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- Quero revelar-lhe quem se encontrava presente quan<strong>do</strong> Villiers morreu e aproveitou<<strong>br</strong> />

o ensejo para registar a <strong>com</strong>unicação no seu esquadrinha<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

- Perfeitamente.<<strong>br</strong> />

- O culpa<strong>do</strong> é, obviamente, o Dr. Hubert Mandel - proclamou Talliaferro.<<strong>br</strong> />

O visa<strong>do</strong> arregalou os olhos, ao mesmo tempo que principiava a respirar <strong>com</strong> dificuldade.<<strong>br</strong> />

- Espero que possua provas <strong>do</strong> que afirma.<<strong>br</strong> />

- Deixe ouvir o resto, Hubert - rogou Urth.<<strong>br</strong> />

Esforçan<strong>do</strong>-se por <strong>do</strong>minar a voz, Talliaferro prosseguiu:<<strong>br</strong> />

- A evidência afigura-se-me clara. Éramos quatro ao corrente da transferência da<<strong>br</strong> />

massa, mas apenas um, o Dr. Mandei, assistira a uma demonstração. Portanto, sabia<<strong>br</strong> />

que se tratava de um fato e que existia um <strong>do</strong>cumento descreven<strong>do</strong>-o. Quem visitou<<strong>br</strong> />

Villiers à meia--noite, o viu sucumbir ao primeiro colapso e registou no seu esquadri-


nha<strong>do</strong>r o texto da <strong>com</strong>unicação, ficou decerto assom<strong>br</strong>a<strong>do</strong> ao inteirar-se de que regressava<<strong>br</strong> />

aparentemente à vida e falava pelo telefone. Nessa altura, o nosso criminoso<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>preendeu que necessitava de se desembaraçar da prova <strong>com</strong>promete<strong>do</strong>ra: o<<strong>br</strong> />

filme ainda não revela<strong>do</strong>. E precisava faze-lo de mo<strong>do</strong> que não fosse encontra<strong>do</strong>, a<<strong>br</strong> />

fim de o recolher mais tarde, quan<strong>do</strong> já não existisse o perigo de se tornar suspeito.<<strong>br</strong> />

O la<strong>do</strong> de fora <strong>do</strong> peitoril da janela era o lugar ideal, e não perdeu tempo em depositá-lo<<strong>br</strong> />

lá.<<strong>br</strong> />

- Mas qualquer <strong>do</strong>s senhores poderia proceder <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> - argumentou o<<strong>br</strong> />

extraterrólogo.<<strong>br</strong> />

- Engana-se - tornou Talliaferro. - Repare que a janela foi aberta e o filme coloca<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ao ar livre. Ora, Ryger viveu dez anos no planeta Ceres, Kaunas em Mercúrio e eu na<<strong>br</strong> />

Lua. Ontem, antes de Villiers nos visitar, trocamos impressões so<strong>br</strong>e a dificuldade em<<strong>br</strong> />

nos readaptarmos ao ambiente terrestre. Os mun<strong>do</strong>s em que permanecemos ultimamente<<strong>br</strong> />

não possuem ar respirável. A exposição sem a proteção adequada afigura-senos<<strong>br</strong> />

inadmissível. Nenhum de nós a<strong>br</strong>iria a janela sem prolongada luta íntima. No entanto,<<strong>br</strong> />

o Dr. Mandel tem permaneci<strong>do</strong> exclusivamente na Terra e não experimentaria<<strong>br</strong> />

a mínima relutância em fazê-o. Ergo, é o culpa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Reclinou-se na poltrona e esboçou um sorriso de satisfação.<<strong>br</strong> />

- Deve ter si<strong>do</strong> isso, <strong>com</strong> a <strong>br</strong>eca! - <strong>br</strong>a<strong>do</strong>u Ryger.<<strong>br</strong> />

- Nego energicamente semelhante acusação! - protestou Mandei. - Esquece a gravação<<strong>br</strong> />

das palavras que Villiers proferiu pelo telefone? Mencionou claramente o termo<<strong>br</strong> />

«condiscípulo».<<strong>br</strong> />

- Estava moribun<strong>do</strong> e o senhor mesmo admitiu que a maior parte <strong>do</strong> que disse era<<strong>br</strong> />

ininteligível - retrucou Talliaferro. - Afinal, uma gravação de uma voz alterada pelo<<strong>br</strong> />

estertor da morte não é muito difícil de simular.<<strong>br</strong> />

- Basta, basta - interveio Urth em tom concilia<strong>do</strong>r. - É uma teoria engenhosa, Dr.<<strong>br</strong> />

Talliaferro, mas tomba pela base sob o seu próprio peso. Não vê que Hubert Mandel<<strong>br</strong> />

fez demasia<strong>do</strong>, para ser o criminoso?<<strong>br</strong> />

- Confesso que não.<<strong>br</strong> />

- Repare que, se ele provocasse a morte de Villiers ou o encontrasse morto e aproveitasse<<strong>br</strong> />

a circunstância para se apoderar da descoberta, teria de fazer pouquíssimo.<<strong>br</strong> />

Para quê esquadrinhar o texto da <strong>com</strong>unicação ou até simular que alguém o efetuara?<<strong>br</strong> />

Bastar-lhe-ia levar o <strong>do</strong>cumento, pois existiam fortes motivos para supor que Villiers<<strong>br</strong> />

não divulgara o assunto a outrem. Mesmo que Mandel soubesse que os antigos<<strong>br</strong> />

condiscípulos da vítima tinham ouvi<strong>do</strong> mencionar o facto, estes dispunham unicamente<<strong>br</strong> />

da palavra de um louco <strong>com</strong>o prova de que falara verdade.<<strong>br</strong> />

«Por conseguinte, as atividades a que se dedicou a partir <strong>do</strong> instante em que<<strong>br</strong> />

anunciou a destruição da <strong>com</strong>unicação só serviriam para torná-lo suspeito, quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

lhe bastaria conservar-se cala<strong>do</strong> para haver pratica<strong>do</strong> um crime quase perfeito. Se<<strong>br</strong> />

fosse o criminoso, teria procedi<strong>do</strong> <strong>com</strong>o um imbecil <strong>com</strong>pleto, e asseguro-lhe que<<strong>br</strong> />

não se trata de um tolo.<<strong>br</strong> />

- Nesse caso, quem é o culpa<strong>do</strong>? - inquiriu Ryger.<<strong>br</strong> />

- Um <strong>do</strong>s três.<<strong>br</strong> />

- Mas qual?<<strong>br</strong> />

- É óbvio. Determinei a identidade <strong>do</strong> criminoso assim que Mandel concluiu a descrição<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s fatos. Antes <strong>do</strong> mais, quero frisar um ponto. O segre<strong>do</strong> da transferência<<strong>br</strong> />

da massa ainda se pode recuperar.<<strong>br</strong> />

- Como? - perguntou Mandel, arquean<strong>do</strong> as so<strong>br</strong>ancelhas.<<strong>br</strong> />

- Quem esquadrinhou o <strong>do</strong>cumento deve ter li<strong>do</strong> o que registava. Portanto, se o<<strong>br</strong> />

submetermos à psico-sonda, extrair-lhe-emos aquilo que o cére<strong>br</strong>o fixou. - Urth


olhou à sua volta. - O culpa<strong>do</strong> deseja confessar? - Após um prolonga<strong>do</strong> silêncio,<<strong>br</strong> />

continuou: - Muito bem. Nesse caso, indicá-lo-ei. O Dr. Talliaferro frisou que o filme<<strong>br</strong> />

foi escondi<strong>do</strong> no la<strong>do</strong> de fora <strong>do</strong> peitoril da janela para que ninguém o desco<strong>br</strong>isse.<<strong>br</strong> />

Todavia, por que motivo imaginaria o criminoso que semelhante lugar seria um esconderijo<<strong>br</strong> />

seguro? A Polícia não deixaria de procurar aí. Mesmo sem a presença das<<strong>br</strong> />

autoridades, houve quem o encontrasse. Quem suporia o contrário? Obviamente, alguém<<strong>br</strong> />

que tivesse vivi<strong>do</strong> muito tempo num mun<strong>do</strong> sem ar respirável.<<strong>br</strong> />

«Para quem se achasse habitua<strong>do</strong> ao ambiente lunar por exemplo, um objeto oculto<<strong>br</strong> />

fora da Cúpula <strong>do</strong> nosso satélite não correria o perigo de ser encontra<strong>do</strong>. Os seres<<strong>br</strong> />

humanos raramente se aventuram ao exterior e apenas o fazem no cumprimento de<<strong>br</strong> />

missões especiais. Por conseguinte, evitaria a<strong>br</strong>ir a janela e expor-se àquilo que, subconscientemente<<strong>br</strong> />

lhe pareceria o vácuo... a menos que pretendesse esconder um objeto<<strong>br</strong> />

no exterior, pois nessa eventualidade pensaria que ninguém se lem<strong>br</strong>aria de procurá-lo<<strong>br</strong> />

num ambiente que o subconsciente lhe fazia supor irrespirável.<<strong>br</strong> />

- Por que aludiu à Lua? - quis saber Talliaferro.<<strong>br</strong> />

- Apenas para exemplificar. O que acabo de dizer aplica-se aos três indistintamente.<<strong>br</strong> />

Mas passemos ao ponto crucial: a noite em que Villiers morreu. Mesmo que considerassem<<strong>br</strong> />

o exterior <strong>do</strong> peitoril <strong>com</strong>o um esconderijo seguro, qual <strong>do</strong>s três <strong>com</strong>eteria<<strong>br</strong> />

a loucura de o julgar o local apropria<strong>do</strong> para um filme não revela<strong>do</strong>? Assim que os<<strong>br</strong> />

raios solares lhe incidissem, ficaria irremediavelmente destruí<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, suponhamos<<strong>br</strong> />

que o criminoso não admitia a possibilidade de amanhecer jamais. Afigurava-selhe<<strong>br</strong> />

que a noite era, por assim dizer, imortal.<<strong>br</strong> />

- Espere um momento - atalhou Kaunas.<<strong>br</strong> />

- Não há necessidade de esperar por coisa alguma - volveu Urth. - Mercúrio é o<<strong>br</strong> />

único planeta conheci<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema solar que volta sempre a mesma face para o Sol<<strong>br</strong> />

Mesmo entran<strong>do</strong> em linha de conta <strong>com</strong> a li<strong>br</strong>ação, três oitavos da sua superfície<<strong>br</strong> />

mantêm-se permanentemente nas trevas e o Observatório Polar situa-se nessa zona.<<strong>br</strong> />

Durante dez anos, habituou-se às noites imortais, Dr. Kaunas, e um filme que fosse<<strong>br</strong> />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> no exterior não correria o menor perigo de se inutilizar.<<strong>br</strong> />

«Consoante Mandei referiu no início da nossa conversa, o senhor soltou um grito<<strong>br</strong> />

no momento em que ele ajustou o polariza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> quarto de Villiers e a claridade penetrou<<strong>br</strong> />

pela janela. Precipitou-se para a frente no intuito de alterar a posição <strong>do</strong> polariza<strong>do</strong>r,<<strong>br</strong> />

ou para contemplar o filme destruí<strong>do</strong> pelos raios solares?<<strong>br</strong> />

- Procurei-o unicamente para conversarmos, mas ele encolerizou-se e sofreu um<<strong>br</strong> />

colapso - confessou Kaunas em voz trémula. - Julguei-o morto e tratei de registar o<<strong>br</strong> />

texto <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento <strong>com</strong> o esquadrinha<strong>do</strong>r. No entanto, juro que não o visitei <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

semelhante intenção! - E tombou de joelhos, soluçan<strong>do</strong> convulsivamente.<<strong>br</strong> />

O carro celular levara Kaunas, e os três homens preparavam-se para aban<strong>do</strong>nar as<<strong>br</strong> />

instalações de Wendell Urth.<<strong>br</strong> />

- Espero que não me guarde rancor - observou Talliaferro, voltan<strong>do</strong>-se para Mandel.<<strong>br</strong> />

- Julgo preferível para to<strong>do</strong>s esquecermos o que se passou nas últimas vinte e<<strong>br</strong> />

quatro horas - replicou o outro, secamente.<<strong>br</strong> />

- Falta abordar a questão <strong>do</strong>s meus honorários - lem<strong>br</strong>ou Urth, <strong>com</strong> um sorriso.<<strong>br</strong> />

Ven<strong>do</strong> que Mandel o fitava <strong>com</strong> estranheza, apressou-se a acrescentar: - Não se trata<<strong>br</strong> />

de dinheiro. Quan<strong>do</strong> a transferência da massa for possível para os seres humanos,<<strong>br</strong> />

quero que me proporcionem uma viagem.<<strong>br</strong> />

- Ainda faltam muitos anos para que os deslocamentos através <strong>do</strong> Espaço sejam


possíveis.<<strong>br</strong> />

- Não exijo tanto. Contento-me <strong>com</strong> uma visita a Lower Falls, New Hampshire.<<strong>br</strong> />

- Por que escolheu esse local?<<strong>br</strong> />

O extraterrólogo exibiu subitamente uma expressão mista de ansiedade e timidez.<<strong>br</strong> />

- Conheci uma moça de lá, há vários anos. Passou muito tempo, mas nunca se<<strong>br</strong> />

sabe...


ESTOU EM PORTO MARTE SEM HILDA<<strong>br</strong> />

Tu<strong>do</strong> se desenrolou <strong>com</strong>o num sonho, sem que eu tivesse necessidade de intervir<<strong>br</strong> />

diretamente. Limitei-me a assistir ao desenrolar <strong>do</strong>s acontecimentos. Tanta facilidade<<strong>br</strong> />

devia bastar para que pressentisse uma catástrofe, mas às vezes confio em excesso<<strong>br</strong> />

na minha boa estrela.<<strong>br</strong> />

O caso principiou <strong>com</strong> o meu habitual mês de folga entre duas missões. Mês sim,<<strong>br</strong> />

mês não, constitui a rotina de trabalho normal para os agentes <strong>do</strong> Serviço Galático, e<<strong>br</strong> />

desembarquei em Porto Marte para os usuais três dias de repouso antes <strong>do</strong> salto final<<strong>br</strong> />

para a Terra.<<strong>br</strong> />

Normalmente, Hilda (que Deus a abençoe), esposa dócil e terna em extremo, estaria<<strong>br</strong> />

à minha espera, a fim de desfrutarmos um interlúdio aprazível. No entanto<<strong>br</strong> />

desta vez minha sogra (que Deus a abençoe também, para variar) a<strong>do</strong>eceu <strong>do</strong>is<<strong>br</strong> />

dias antes de eu chegar a Porto Marte e, na noite que precedeu o desembarque,<<strong>br</strong> />

recebi um espaçograma de Hilda anuncian<strong>do</strong> que tinha de permanecer na Terra ao<<strong>br</strong> />

la<strong>do</strong> da mãe, pelo que não me poderia fazer <strong>com</strong>panhia.<<strong>br</strong> />

Enviei a resposta <strong>com</strong> prontidão, deploran<strong>do</strong> o fato e formulan<strong>do</strong> votos para que<<strong>br</strong> />

minha sogra melhorasse e, quan<strong>do</strong> desembarquei: estava em Porto Marte sem Hilda.<<strong>br</strong> />

Após <strong>br</strong>eve ponderação <strong>do</strong> caso, resolvi contactar <strong>com</strong> Flora, protagonista de certos<<strong>br</strong> />

episódios esporádicos <strong>do</strong> meu passa<strong>do</strong>, pelo que entrei numa cabina de vídeo<<strong>br</strong> />

sem me preocupar <strong>com</strong> a despesa envolvida. Entretanto, receava encontrá-a ocupada,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o videofone desliga<strong>do</strong> ou possivelmente morta.<<strong>br</strong> />

Contu<strong>do</strong>, nada disso aconteceu e a sua imagem surgiu no écran <strong>com</strong> prontidão.<<strong>br</strong> />

Não me detenho a descrevê-a, porque além de me faltarem as expressões apropriadas,<<strong>br</strong> />

os <strong>contos</strong> têm um limite, para além <strong>do</strong> qual se transformam em romances. Basta<<strong>br</strong> />

sublinhar que as costuras magnéticas <strong>do</strong> seu roupão metálico... Mas, não. Passemos<<strong>br</strong> />

a assuntos de interesse geral.<<strong>br</strong> />

- Max! - exclamou, <strong>com</strong> aquela voz que... Lá me deixava arrastar novamente pelo<<strong>br</strong> />

entusiasmo. - Há anos que não te via<<strong>br</strong> />

- É verdade, Flora, mas agora aqui me tens ao teu dispor. Sabes uma coisa? Estou<<strong>br</strong> />

em Porto Marte sem Hilda!<<strong>br</strong> />

- Coita<strong>do</strong>! Então, vem pra cá.<<strong>br</strong> />

Percorreu-me um arrepio de satisfação, que se concentrou especialmente em toda<<strong>br</strong> />

a extensão da coluna verte<strong>br</strong>al.<<strong>br</strong> />

- Não me digas que estás livre!<<strong>br</strong> />

A<strong>br</strong>o um pequeno parêntese para esclarecer que Flora só se achava disponível<<strong>br</strong> />

desde que o interessa<strong>do</strong> a prevenisse <strong>com</strong> várias semanas de antecedência. Por isto<<strong>br</strong> />

podem fazer uma pálida ideia da natureza <strong>do</strong>s seus atributos físicos. Acerca <strong>do</strong>s mo-


ais, julgo preferível não me alongar em considerações.<<strong>br</strong> />

- Tinha uma coisa <strong>com</strong>binada, mas cancelo facilmente. Podes avançar.<<strong>br</strong> />

- Não precisas repetir - balbuciei, esforçan<strong>do</strong>-me por não embaciar o écran <strong>com</strong> a<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>binação <strong>do</strong> meu calor e umidade que saturava a atmosfera.<<strong>br</strong> />

Afigura-se-me conveniente introduzir novo parêntese. Flora possuía um apartamento<<strong>br</strong> />

luxuoso no qual existia a gravidade marciana, ou seja, 0,4 da da Terra. Se alguém<<strong>br</strong> />

que ler estas linhas já teve nos <strong>br</strong>aços uma moça num ambiente de semelhante<<strong>br</strong> />

gravidade, não necessita que lhe explique as vantagens de uma <strong>com</strong>odidade dessa<<strong>br</strong> />

natureza. Quanto aos outros, quaisquer explicações resultariam exíguas, e diga-se<<strong>br</strong> />

de passagem que lamento profundamente o seu infortúnio.<<strong>br</strong> />

Cortei a ligação precipitadamente, no intuito de reduzir ao mínimo o tempo que<<strong>br</strong> />

me separava <strong>do</strong> instante em que a veria pessoalmente, e aban<strong>do</strong>nei a cabina. Foi<<strong>br</strong> />

nessa altura que a catástrofe <strong>com</strong>eçou a rondar-me.<<strong>br</strong> />

Rog Crinton, da delegação <strong>do</strong> Serviço Galáctico em Marte, tão mal encara<strong>do</strong> <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

sempre, ou porventura um pouco mais, postou-se na minha frente, <strong>com</strong>o um co<strong>br</strong>a<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

de impostos possui<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>do</strong>m da ubiquidade.<<strong>br</strong> />

- Que demônio pretendes de mim? - rosnei polidamente. - Previno-te de que estou<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> pressa, porque tenho um encontro marca<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Sim, tens um encontro <strong>com</strong>igo - retrucou <strong>com</strong> um sorriso mefistofélico. - Desco<strong>br</strong>i<<strong>br</strong> />

um trabalhinho para ti.<<strong>br</strong> />

Soltei uma risada maquiavélica e revelei-lhe, <strong>com</strong> abundantes pormenores anatômicos,<<strong>br</strong> />

onde podia meter o seu trabalhinho, oferecen<strong>do</strong>-me de caminho para lhe fornecer<<strong>br</strong> />

um martelo destina<strong>do</strong> a facilitar a operação.<<strong>br</strong> />

- É o meu mês de férias, camarada - acrescentei.<<strong>br</strong> />

- Trata-se de um caso de emergência... camarada.<<strong>br</strong> />

- Sê <strong>com</strong>preensivo, homem. Tenho um assunto urgentíssimo para resolver.<<strong>br</strong> />

- Não tanto <strong>com</strong>o este.<<strong>br</strong> />

- Por que não arranjas outro tipo para a missão?<<strong>br</strong> />

- És o único agente de primeira classe em Marte.<<strong>br</strong> />

- Chama um da Terra. Há montes deles à boa-vida na Central.<<strong>br</strong> />

- Isto tem de ser soluciona<strong>do</strong> antes das onze horas da noite. Não me digas que<<strong>br</strong> />

não dispões de três horas?<<strong>br</strong> />

- Bom. - Apertei a cabeça entre as mãos. - Mas primeiro deixa-me fazer uma chamada.<<strong>br</strong> />

Sem assistência! - frisei, fechan<strong>do</strong>-lhe a porta da cabina na cara dele.<<strong>br</strong> />

O rosto de Flora surgiu no écran, <strong>com</strong>o uma miragem num asteroide<<strong>br</strong> />

- Há alguma novidade, Max? Não me venhas dizer que mudaste de ideias, porque<<strong>br</strong> />

acabo de cancelar o outro encontro.<<strong>br</strong> />

- Nada disso, querida - articulei <strong>com</strong> um sorriso que devia ser amarelo. - Não faltarei.<<strong>br</strong> />

Mas apareceu uma coisa...<<strong>br</strong> />

- Outra mulher?<<strong>br</strong> />

- Que ideia! Não pode haver outra numa cidade onde te encontres. É um assunto<<strong>br</strong> />

de serviço. Mas garanto-te que não demora praticamente nada.<<strong>br</strong> />

- Bom - aquiesceu num tom que deixava transparecer uma ponta de desapontamento.<<strong>br</strong> />

- Mas vê se te apressas, sim?<<strong>br</strong> />

Desliguei e saí da cabina.<<strong>br</strong> />

- Pronto, grande cretino - vociferei a Rog.- Explica lá que em<strong>br</strong>ulhada concebeste<<strong>br</strong> />

para me oferecer.<<strong>br</strong> />

Instalamo-nos num «reserva<strong>do</strong>» <strong>do</strong> bar <strong>do</strong> espaçoporto e Rog anunciou:


- O Gigante de Antares chega de Sírio às oito horas; dentro de trinta minutos, portanto.<<strong>br</strong> />

- E depois?<<strong>br</strong> />

- Entre outros, desembarcarão três homens, os quais aguardarão o Papa-Espaço<<strong>br</strong> />

da Terra das onze horas, partin<strong>do</strong> para Capela pouco depois. Assim que subirem para<<strong>br</strong> />

o Papa-Espaço ficarão fora da nossa jurisdição.<<strong>br</strong> />

- Adiante.<<strong>br</strong> />

- Entre as oito e as onze, encontrar-se-ão numa sala de espera especial e tu estarás<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> eles. Trouxe uma imagem tridimensional de cada um, para que os reconheças<<strong>br</strong> />

sem dificuldade. Dispões de três horas para determinar qual <strong>do</strong>s três transporta<<strong>br</strong> />

contraban<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- De que espécie?<<strong>br</strong> />

- Espaciolina alterada.<<strong>br</strong> />

- Espaciolina alterada?<<strong>br</strong> />

Tenham paciência, mas vou a<strong>br</strong>ir mais um parêntese. Todas as pessoas que efetuam<<strong>br</strong> />

uma viagem espacial pela primeira vez necessitam de ingerir uma <strong>do</strong>se de Espaciolina,<<strong>br</strong> />

para evitar as vertigens associadas à queda livre e psicoses permanentes e<<strong>br</strong> />

mergulhar o passageiro num esta<strong>do</strong> de apatia, que todavia não origina efeitos secundários<<strong>br</strong> />

graves. Quem quiser viajar <strong>com</strong>odamente, deve tomar... Mas isto não é um<<strong>br</strong> />

programa publicitário.<<strong>br</strong> />

- Precisamente: Espaciolina alterada - confirmou Rog. - Pode ser modificada quimicamente,<<strong>br</strong> />

por meio de uma reação simples efetuada em qualquer sótão, numa droga<<strong>br</strong> />

de potência elevada perigosa <strong>com</strong>o o alcaloide mais hedion<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- E só agora é que nos inteiramos?<<strong>br</strong> />

- Não. O Serviço Galático estava ao corrente <strong>do</strong> assunto há vários anos e evitamos<<strong>br</strong> />

que os outros tomassem conhecimento <strong>do</strong> fato. Mas agora, o mal <strong>com</strong>eça a se alastrar<<strong>br</strong> />

de forma alarmante.<<strong>br</strong> />

- Em que senti<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Um <strong>do</strong>s três homens que aguardarão neste espaçoporto traz consigo uma quantidade<<strong>br</strong> />

substancial de Espaciolina. Os químicos de Capela, que se situa fora da nossa<<strong>br</strong> />

jurisdição, tratarão de analisá-la e estabelecer meios de sintetizá-la. A partir desse<<strong>br</strong> />

momento, surgirá o dilema de aniquilarmos a maior ameaça de drogas de to<strong>do</strong>s os<<strong>br</strong> />

tempos suprimin<strong>do</strong> o mal no seu ponto de partida, ou enfrentan<strong>do</strong> um perigo irresistível.<<strong>br</strong> />

- Queres dizer: suprimir radicalmente o uso da Espaciolina?<<strong>br</strong> />

- Exatamente. O que equivalerá a pôr termo às viagens espaciais.<<strong>br</strong> />

Considerei oportuno perguntar:<<strong>br</strong> />

- Qual <strong>do</strong>s três transporta o produto?<<strong>br</strong> />

O sorriso mefistofélico de Rog assumiu laivos de positivo sadismo.<<strong>br</strong> />

- Se o soubéssemos, não te in<strong>com</strong>odávamos. É o que deves averiguar.<<strong>br</strong> />

- Chamaste-me unicamente para revistar três pessoas?<<strong>br</strong> />

- Se tocares num inocente, arriscas-te a um corte de cabelo até à laringe. To<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

eles são individualidades importantes nos respectivos planetas. Chamam-se Edward<<strong>br</strong> />

Harponaster, Joaquin Lipsky e Andiamo Ferrucci.<<strong>br</strong> />

Não se equivocava. Os nomes eram-me familiares, e chamar-lhes importantes consistia<<strong>br</strong> />

em ficar aquém da verdade. Em to<strong>do</strong> o caso, argumentei:<<strong>br</strong> />

- Parece-te que fulanos tão ricos se iam sujar por?...<<strong>br</strong> />

- Há trilhões de créditos envolvi<strong>do</strong>s. Portanto, qualquer deles nem olharia para<<strong>br</strong> />

trás. E não restam dúvidas de que um está implica<strong>do</strong> no assunto, segun<strong>do</strong> Jack<<strong>br</strong> />

Hawk desco<strong>br</strong>iu antes de morrer.


- Jack Hawk morreu?<<strong>br</strong> />

- Sim. Liquida<strong>do</strong> por um desses tipos. Por conseguinte, trata de apurar qual. Se o<<strong>br</strong> />

fizeres antes das onze horas, conta <strong>com</strong> a promoção, um acréscimo de ordena<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

substancial e a salvação de toda a Galáxia. Se falhares e acusares um inocente, ocorrerá<<strong>br</strong> />

um incidente diplomático interestelar que te projetará na lista negra de to<strong>do</strong>s os<<strong>br</strong> />

serviços secretos.<<strong>br</strong> />

- E se não acusar ninguém?<<strong>br</strong> />

- Equivalerá a indicares um inocente, pela parte que toca ao Serviço Galáctico.<<strong>br</strong> />

- Resumin<strong>do</strong>: tenho de acusar alguém, mas só o culpa<strong>do</strong>, de contrário servem-me<<strong>br</strong> />

a minha própria cabeça numa bandeja?<<strong>br</strong> />

- Cortada em fatias delgadíssimas. Vejo que <strong>com</strong>eças a entender a situação, preza<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

Max.<<strong>br</strong> />

Embora a expressão natural de Rog seja suficiente para azedar o leite numa área<<strong>br</strong> />

de vários quilômetros, nunca exibira um ar tão hedion<strong>do</strong> <strong>com</strong>o nesse instante.<<strong>br</strong> />

Assim que o vi pelas costas, tratei de contactar novamente <strong>com</strong> Flora.<<strong>br</strong> />

- Então? - inquiriu, assim que me viu no écran.<<strong>br</strong> />

- É só para te dizer que talvez demore mais um bocadinho, querida. Mas te garanto<<strong>br</strong> />

que mal me despachar...<<strong>br</strong> />

- Se adivinhasse...<<strong>br</strong> />

- Não te impacientes, porque não faltarei. Quan<strong>do</strong> nos virmos, darás por bem<<strong>br</strong> />

emprega<strong>do</strong> o tempo que esperaste.<<strong>br</strong> />

Sentia-me um pouco chatea<strong>do</strong>, mas ainda não estava preocupa<strong>do</strong>. Acabava de me<<strong>br</strong> />

separar de Rog, quan<strong>do</strong> me ocorreu o méto<strong>do</strong> de identificar o culpa<strong>do</strong>. Seria facílimo<<strong>br</strong> />

e bastariam cinco minutos, após o que me dirigiria velozmente para os <strong>br</strong>aços de Flora.<<strong>br</strong> />

Os grandes industriais raramente efetuam viagens espaciais, preferin<strong>do</strong> recorrer às<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>unicações transvideo para tratar de negócios. Portanto, quan<strong>do</strong> efetuam um deslocamento<<strong>br</strong> />

a fim de participar em uma conferência, tomam <strong>do</strong>ses apreciáveis de Espaciolina.<<strong>br</strong> />

Assim, aquele que transportasse o contraban<strong>do</strong> não se arriscaria a ingerir o produto,<<strong>br</strong> />

porquanto sob a influência da Espaciolina poderia praticar algum ato involuntário,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o jogar fora a droga ou falar demais. Em outras palavras, necessitaria conservar<<strong>br</strong> />

perfeito <strong>do</strong>mínio so<strong>br</strong>e si mesmo.<<strong>br</strong> />

Deste mo<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> seria extremamente simples.<<strong>br</strong> />

O Gigante de Antares chegou na hora e trouxeram Lipsky em primeiro lugar. Tinha<<strong>br</strong> />

lábios grossos, cabeça quadrangular e cabelo castanho <strong>com</strong> alguns vestígios grisalhos.<<strong>br</strong> />

Lançou-me um olhar baço e sentou-se <strong>com</strong> indiferença. Como sublinhei noutro<<strong>br</strong> />

lugar, a Espaciolina produz alheamento quase absoluto. Saudei-o e replicou <strong>com</strong> uma<<strong>br</strong> />

serie de palavras incoerentes habituais num indivíduo sob o efeito <strong>do</strong> produto.<<strong>br</strong> />

Andiamo Ferrucci foi o seguinte. Usava bigode sob o efeito negro e tinha as faces<<strong>br</strong> />

marcadas pela varíola. A sua reação não diferiu da de Lipsky, quan<strong>do</strong> lhe falei.<<strong>br</strong> />

Por exclusão de partes, o culpa<strong>do</strong> só podia ser Harponaster, e tratei de conservar<<strong>br</strong> />

a micro-pistola na palma da mão e o laço magnético prepara<strong>do</strong> para a primeira<<strong>br</strong> />

emergência.<<strong>br</strong> />

O terceiro suspeito era alto e magro, quase calvo e parecen<strong>do</strong> mais velho que na<<strong>br</strong> />

imagem tridimensional. Não precisei de muito tempo para verificar que estava tão<<strong>br</strong> />

Espaciolina<strong>do</strong> <strong>com</strong>o os outros. Mastiguei uma imprecação, e principiava a deixar-me<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>minar pelo desespero quan<strong>do</strong> me acudiu uma inspiração. Um deles fingia-se sob a


ação <strong>do</strong> produto! Tornava-se simples simular o esta<strong>do</strong> de apatia, <strong>com</strong>o provavam os<<strong>br</strong> />

numerosos abusos verifica<strong>do</strong>s em transportes espaciais por indivíduos que se permitiam<<strong>br</strong> />

determinadas liberdades, atribuin<strong>do</strong> a causa à Espaciolina.<<strong>br</strong> />

Olhei-os prolongadamente e experimentei um arrepio na coluna verte<strong>br</strong>al, agora<<strong>br</strong> />

por razões diferentes. Que aconteceria se eu não acusasse o culpa<strong>do</strong>? Eram oito e<<strong>br</strong> />

meia, e Flora não me esperaria eternamente. Achava-me impossibilita<strong>do</strong> de revistálos<<strong>br</strong> />

porque, embora não estivessem em condições de se opor, o fato ficar-lhes-ia vinca<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

na memória e exerceriam as represálias apropriadas assim que o efeito da Espaciolina<<strong>br</strong> />

se extinguisse. Tentei o<strong>br</strong>igá-os a falar por várias vezes, mas apenas obtinha<<strong>br</strong> />

a torrente de palavras incoerentes. Entretanto, o culpa<strong>do</strong> ria-se de mim intimamente.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> voltei a consultar o relógio eram já <strong>nove</strong> e um quarto e entrei na cabina a<<strong>br</strong> />

fim de tentar animar Flora.<<strong>br</strong> />

- Ah, és tu? - articulou <strong>com</strong> uma expressão grave.<<strong>br</strong> />

- Com certeza, querida. Quem esperavas?<<strong>br</strong> />

- Várias pessoas. Alguém que não faltasse ao prometi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Ainda não consegui terminar o trabalho.<<strong>br</strong> />

- Qual trabalho? Queres-me lançar areia aos olhos?<<strong>br</strong> />

- Palavra de honra que, dentro de meia hora...<<strong>br</strong> />

- Não tens vergonha de me deixares aqui sozinha?<<strong>br</strong> />

- Garanto-te que não te arrependerás.<<strong>br</strong> />

- Tinha um encontro marca<strong>do</strong> <strong>com</strong> alguém importante e cancelei-o por tua causa.<<strong>br</strong> />

Afinal, estou aqui aban<strong>do</strong>nada <strong>com</strong>o uma leprosa. Já pensaste na minha reputação,<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> o fato transpirar?<<strong>br</strong> />

Proferi algumas palavras que considerei tranquiliza<strong>do</strong>ras e cortei a ligação.<<strong>br</strong> />

Regressei à sala de espera e sentei-me diante <strong>do</strong>s três suspeitos. À falta de melhor<<strong>br</strong> />

ocupação, entreguei-me a cogitações nas quais Flora desempenhava funções de destaque.<<strong>br</strong> />

Por fim, decidin<strong>do</strong> que nada tinha a perder, optei por falar dela.<<strong>br</strong> />

- Meus senhores, existe uma garota nesta cidade, cujo nome me abstenho de<<strong>br</strong> />

mencionar para não a <strong>com</strong>prometer, que é um verdadeiro amor. Permitam-me que a<<strong>br</strong> />

descreva.<<strong>br</strong> />

E tratei de o fazer. Já que me via impossibilita<strong>do</strong> de procurá-la, tentaria evocá-a<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o maior realismo admissível, sem omitir o seu apartamento de baixa gravidade<<strong>br</strong> />

onde se experimentavam sensações in<strong>com</strong>paráveis, enquanto eles escutavam <strong>com</strong> a<<strong>br</strong> />

deferência que a Espaciolina insufla em to<strong>do</strong>s os que a ingerem.<<strong>br</strong> />

Finalmente, o altifalante anunciou a chegada <strong>do</strong> Papa-Espaço e um funcionário <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

espaçoporto surgiu para conduzir os três suspeitos à nave. Levantaram-se simultaneamente<<strong>br</strong> />

e desfilaram para a saída. No momento em que Ferrucci passava junto de<<strong>br</strong> />

mim, pousei-lhe a mão no om<strong>br</strong>o e declarei:<<strong>br</strong> />

- Você fica, seu assassino imun<strong>do</strong>. - E o laço magnético rodeou-lhe os pulsos antes<<strong>br</strong> />

que ele pudesse pestanejar.<<strong>br</strong> />

Ferrucci debateu-se <strong>com</strong>o um demônio, pois não se achava sob o efeito da Espaciolina.<<strong>br</strong> />

Desco<strong>br</strong>iram o produto altera<strong>do</strong> em pequenos invólucros de plástico dispersos<<strong>br</strong> />

pelos bolsos.<<strong>br</strong> />

Mais tarde, Rog, sorrin<strong>do</strong> e meio louco de alívio, perguntou-me:<<strong>br</strong> />

- Como o conseguiste?<<strong>br</strong> />

- Depreendi desde o princípio que um deles se fingia sob o efeito da Espaciolina e<<strong>br</strong> />

resolvi... - Fiz uma pausa e considerei que não convinha divulgar determina<strong>do</strong>s pormenores<<strong>br</strong> />

-...contar-lhes ane<strong>do</strong>tas picantes. Dois escutaram-me <strong>com</strong> indiferença, mas<<strong>br</strong> />

Ferrucci <strong>com</strong>eçou a respirar <strong>com</strong> dificuldade e notei-lhe pequenas gotas de suor na


fronte, reagin<strong>do</strong> <strong>com</strong>o se não tivesse toma<strong>do</strong> Espaciolina. Convenci-me da sua culpabilidade<<strong>br</strong> />

e dei-lhe voz de prisão quan<strong>do</strong> se preparava para embarcar. - Sem transição,<<strong>br</strong> />

pedi: - Importas-te de me passar um cheque de mil créditos, para umas despesas urgentes?<<strong>br</strong> />

- Até dez mil, se quiseres.<<strong>br</strong> />

- Já que insistes...<<strong>br</strong> />

Entrei na cabina uma vez mais, estabeleci contacto <strong>com</strong> Flora para preveni-la de<<strong>br</strong> />

que não tardaria em estar junto dela, desliguei e pus-me a caminho.<<strong>br</strong> />

- Max! Max! - gritou alguém, corren<strong>do</strong> ao meu encontro. - Rog Crinton disse-me<<strong>br</strong> />

que te encontraria aqui. A mãezinha já está boa e meti-me imediatamente no Papa-<<strong>br</strong> />

Espaço para vir ter contigo. Que história é essa de dez mil créditos?<<strong>br</strong> />

- Olá, Hilda - articulei sem me voltar, refletin<strong>do</strong> que Flora necessitaria de continuar<<strong>br</strong> />

a aguardar, agora mais prolongadamente.<<strong>br</strong> />

Por fim, rodei nos calcanhares e <strong>com</strong>eti um <strong>do</strong>s atos mais difíceis da minha vida.<<strong>br</strong> />

Sorri.


OS ABUTRES BONDOSOS<<strong>br</strong> />

Havia já quinze anos que os hurrianos mantinham sua base na face invisível da<<strong>br</strong> />

Lua.<<strong>br</strong> />

Era alga sem precedentes; inaudito. Nenhum hurriano poderia nem sonhar que os<<strong>br</strong> />

enganariam tanto tempo. As esquadrilhas de descontaminação estavam dispostas e<<strong>br</strong> />

esperan<strong>do</strong> durante aqueles quinze anos; prontas para descer <strong>com</strong> exalações através<<strong>br</strong> />

das nuvens radioativas e salvar o que pudesse salvar-se para os escassos so<strong>br</strong>eviventes...<<strong>br</strong> />

Em troca, naturalmente, de um pagamento justo e equitativo.<<strong>br</strong> />

Porém o planeta havia gira<strong>do</strong> quinze vezes em torno <strong>do</strong> seu sol. Cada vez que<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>pletava uma revolução, o satélite havia gira<strong>do</strong> quase treze vezes em torno <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

planeta. E durante to<strong>do</strong> aquele tempo, a guerra nuclear não havia <strong>com</strong>eça<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Os grandes primatas inteligentes faziam explodir bombas nucleares em diversos<<strong>br</strong> />

pontos da superfície <strong>do</strong> planeta. A estratosfera <strong>do</strong> mesmo estava esquentan<strong>do</strong> extraordinariamente<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> despejos radioativos. Porém a guerra seguia sem estalar.<<strong>br</strong> />

Devi-en desejava <strong>com</strong> toda sua alma que o aliviassem. Era o quarto capitão que se<<strong>br</strong> />

achava à frente daquela expedição coloniza<strong>do</strong>ra (se ainda se podia continuar sen<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

chamada assim, depois de quinze anos de animação suspensa), e nada lhe havia alegra<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mais que um quinto capitão viesse substituí-lo. A iminente chegada <strong>do</strong> Arquiadministra<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

envia<strong>do</strong> pelo planeta mãe para que informasse pessoalmente so<strong>br</strong>e a<<strong>br</strong> />

situação, indicava que sua substituição, talvez, estivesse próxima. Tomara!<<strong>br</strong> />

Achava-se so<strong>br</strong>e a superfície da Lua, meti<strong>do</strong> em seu traje espacial e pensan<strong>do</strong> em<<strong>br</strong> />

Hurria, seu planeta natal. Enquanto pensava, movia incansavelmente <strong>com</strong>pri<strong>do</strong>s e<<strong>br</strong> />

delga<strong>do</strong>s <strong>br</strong>aços, <strong>com</strong>o se seu instinto milenar lhe fizesse ansiar pelas árvores ancestrais.<<strong>br</strong> />

Só se alçava <strong>nove</strong>nta centímetros so<strong>br</strong>e o solo. O pouco que podia ver-se dele,<<strong>br</strong> />

através <strong>do</strong> visor transparente <strong>do</strong> seu capacete, era um rosto negro e aveluda<strong>do</strong>, de<<strong>br</strong> />

fronte enrugada e nariz carnoso e móvel. A pequena mecha de pelos finos que formava<<strong>br</strong> />

sua barba contrastava vivamente, pois era de um <strong>br</strong>anco puríssimo. N parte<<strong>br</strong> />

traseira <strong>do</strong> escafandro, um pouco mais abaixo <strong>do</strong> centro, via-se um bojo destina<strong>do</strong> a<<strong>br</strong> />

alojar <strong>com</strong>odamente a curta e grossa cauda <strong>do</strong>s hurrianos.<<strong>br</strong> />

Devi-en não se preocupava minimamente por sua aparência, é claro, porém se<<strong>br</strong> />

dava conta perfeitamente das diferenças que separavam os hurrianos das restantes<<strong>br</strong> />

inteligências da galáxia. Somente os hurrianos eram tão pequenos; unicamente eles<<strong>br</strong> />

possuíam cauda e eram vegetarianos..., e somente eles se haviam salvo da inevitável<<strong>br</strong> />

guerra nuclear que havia destruin<strong>do</strong> as demais espécies racionais conhecidas.<<strong>br</strong> />

Erguia-se na planície amurada de muitos quilômetros de extensão..., tão vasta na<<strong>br</strong> />

realidade, que sua borda elevada e circular (que em Hurria seria chamada de uma<<strong>br</strong> />

cratera, se fosse menor) perdia-se atrás <strong>do</strong> horizonte. Junto à parede meridional <strong>do</strong>


circo, em lugar bastante protegi<strong>do</strong> da ação direta <strong>do</strong>s raios solares, havia cresci<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

uma cidade. É claro, <strong>com</strong>eçou <strong>com</strong>o um acampamento provisório, porém, <strong>com</strong> o<<strong>br</strong> />

transcurso <strong>do</strong>s anos, os hurrianos trouxeram fêmeas de sua espécie e nasceram filhos.<<strong>br</strong> />

Atualmente havia ali escolas e <strong>com</strong>plicadas plantações hidropônicas, grandes<<strong>br</strong> />

depósitos de água e tu<strong>do</strong> quanto era necessário para abastecer uma cidade em um<<strong>br</strong> />

mun<strong>do</strong> sem ar.<<strong>br</strong> />

Era ridículo! E tu<strong>do</strong> porque um planeta que tinha armas atômicas não se decidia a<<strong>br</strong> />

desencadear uma guerra.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r, cuja chegada era iminente, se faria sem dúvida a mesma<<strong>br</strong> />

pergunta que Devi-en se havia formula<strong>do</strong> em um incontável número de vezes: Porque<<strong>br</strong> />

não havia si<strong>do</strong> iniciada uma guerra nuclear?<<strong>br</strong> />

Devi-en observou <strong>com</strong>o os toscos e pesa<strong>do</strong>s mauvs preparavam o terreno para a<<strong>br</strong> />

aterrissagem, alisan<strong>do</strong> as desigualdades <strong>do</strong> mesmo e estenden<strong>do</strong> a capa protetora<<strong>br</strong> />

de cerâmica, destinada a absorver o empuxo hiperatômico que se exerceria conta o<<strong>br</strong> />

campo, <strong>com</strong> o fim de evitar o menos incômo<strong>do</strong> para os passageiros que ocupariam a<<strong>br</strong> />

astronave.<<strong>br</strong> />

Mesmo cobertos por seus escafandros espaciais, os mauvs aparentavam força, porém<<strong>br</strong> />

era unicamente força muscular. Mais além via-se a figura de um hurriano dan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ordens, que os mauvs obedeciam <strong>com</strong> <strong>do</strong>cilidade, naturalmente.<<strong>br</strong> />

A raça mauviana era a única, entre as restantes espécies de grandes primatas inteligentes,<<strong>br</strong> />

que pagava tributo <strong>com</strong> algo <strong>com</strong>pletamente insólito: sua contribuição pessoal,<<strong>br</strong> />

em lugar de enviar artigos de consumo. Aquilo constituía um tributo verdadeiramente<<strong>br</strong> />

útil, melhor que o aço, o alumínio ou as especiais.<<strong>br</strong> />

Uma voz ressoou no receptor de Devi-en:<<strong>br</strong> />

- Avistamos a nave, Senhor. Aterrissará antes de uma hora.<<strong>br</strong> />

- Muito bem, disse Devi-en. Que preparem meu carro para levar-me à nave, enquanto<<strong>br</strong> />

iniciam a aterrissagem.<<strong>br</strong> />

Algo lhe dizia que as coisas não iam muito bem.<<strong>br</strong> />

Apareceu o Arqui-administra<strong>do</strong>r, escolta<strong>do</strong> por um séquito de cinco mauvs, sua<<strong>br</strong> />

guarda pessoal. Penetraram na cidade <strong>com</strong> ele, um de cada la<strong>do</strong> e três fecha<strong>do</strong> a<<strong>br</strong> />

marcha. Ajudaram-no a despojar-se de seu escafandro e logo tiraram os seus.<<strong>br</strong> />

Seus corpos quase sem pelos, suas largas e toscas feições, seus narizes aplasta<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

e pomos faciais salientes, eram repulsivos porém não causavam espanto. Embora tivessem<<strong>br</strong> />

o <strong>do</strong><strong>br</strong>o da estatura <strong>do</strong>s hurrianos e fossem muito mais forni<strong>do</strong>s que estes,<<strong>br</strong> />

havia uma <strong>do</strong>cilidade em seu olhar, algo tão submisso em seu aspecto, que não inspiravam<<strong>br</strong> />

temos, apesar de seus grossos e musculosos troncos e seus poderosos <strong>br</strong>aços,<<strong>br</strong> />

que pendiam desampara<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r os despediu <strong>com</strong> um gesto e eles se foram <strong>com</strong>o um ban<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de cães obedientes. Na realidade, ele não necessitava da sua proteção, porém o cargo<<strong>br</strong> />

que ostentava requeria um séquito de cinco mauvs, e tinha que ater-se ao protocolo.<<strong>br</strong> />

Nem durante a refeição, nem durante o interminável ritual de boas vindas, falaram<<strong>br</strong> />

de assuntos de Esta<strong>do</strong>, porém quan<strong>do</strong> chegou o momento que era mais adequa<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

para ir <strong>do</strong>rmir, o Arqui-administra<strong>do</strong>r acariciou a barbicha <strong>com</strong> seus pequenos de<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

e perguntou:<<strong>br</strong> />

- Quanto tempo teremos que esperar ainda por este planeta, Capitão?<<strong>br</strong> />

Devi-en observou que estava muito envelheci<strong>do</strong>. O pelo de suas extremidades superiores<<strong>br</strong> />

era grisalho e as mechas <strong>do</strong>s cotovelos eram semelhantes, em <strong>br</strong>ancura,


<strong>com</strong> sua barba.<<strong>br</strong> />

- Não saberia dizê-lo, Alteza – repôs Devi-en humildemente. - Não seguiram o caminho<<strong>br</strong> />

costumeiro.<<strong>br</strong> />

- Isto salta à vista. O que eu pergunto é porque não o seguiram. O Conselho opina<<strong>br</strong> />

que teus informes prometem mais que dão. Falas de teorias, porém não de dás nenhum<<strong>br</strong> />

detalhe. Tens que saber que em Hurria já <strong>com</strong>eçamos a ficar fartos deste assunto.<<strong>br</strong> />

Se sabes algo que todavia não nos hás <strong>com</strong>unica<strong>do</strong>, agora é o momento de<<strong>br</strong> />

dizer-me.<<strong>br</strong> />

- A questão é difícil de demonstrar, Alteza. Nunca havíamos podi<strong>do</strong> observar uma<<strong>br</strong> />

raça durante tanto tempo. Até muito recentemente não nos dedicávamos a observar<<strong>br</strong> />

o que importa. To<strong>do</strong>s os anos acreditávamos que a guerra se iniciaria de um momento<<strong>br</strong> />

para outro, e somente desde que eu sou capitão nos temos dedica<strong>do</strong> a estudar<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> maior intensidade a essa gente. Uma das poucas vantagens que nos trouxe<<strong>br</strong> />

essa longa espera foi que pudemos aprender bem alguns de seus principais idiomas.<<strong>br</strong> />

- Ah sim? Sem ao menos desembarcar no planeta?<<strong>br</strong> />

Davi-en explicou:<<strong>br</strong> />

- Algumas de nossas naves que penetraram na atmosfera planetária em missões<<strong>br</strong> />

de observação, particularmente durante os primeiros anos, captaram bastantes emissões<<strong>br</strong> />

de rádio. Utilizei nossos <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res linguísticos para decifrá-las, e ao largo<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong> <strong>com</strong>ecei a formar uma ideia básica para <strong>com</strong>preende-las.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r olhava-o surpreso, conten<strong>do</strong>, a duras penas, uma exclamação<<strong>br</strong> />

de assom<strong>br</strong>o, que teria si<strong>do</strong> <strong>com</strong>pletamente supérflua.<<strong>br</strong> />

- E já desco<strong>br</strong>iste algo interessante?<<strong>br</strong> />

- É possível, Alteza, porém o que consegui averiguar é tão estranho e parece tão<<strong>br</strong> />

difícil obter provas palpáveis que eu não me atrevi a mencioná-lo em meus informes<<strong>br</strong> />

oficiais.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r entendeu. Muito rígi<strong>do</strong> perguntou:<<strong>br</strong> />

- Lhe importaria em expor-me suas opiniões..., de um mo<strong>do</strong> extra oficial?<<strong>br</strong> />

- O farem <strong>com</strong> muito gosto, Senhor, - repôs imediatamente Devi-en. - Os habitantes<<strong>br</strong> />

deste planeta pertencem, é claro, ao grupo <strong>do</strong>s primatas superiores. E se acham<<strong>br</strong> />

anima<strong>do</strong>s por um espírito de luta, que cria ente eles inumeráveis rivalidades.<<strong>br</strong> />

Seu interlocutor deixou escapar algo que parecia um suspiro de alívio, e passou rapidamente<<strong>br</strong> />

a língua pelo nariz.<<strong>br</strong> />

- Por um momento – disse – havia cruza<strong>do</strong> meu cére<strong>br</strong>o a terrível ideia que estivessem<<strong>br</strong> />

desprovi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> espírito de luta que pudess.. Porém rogo que prossigas.<<strong>br</strong> />

- Possuem espírito de luta e emulação. – disse-lhe Devi-en – E muito superior ao<<strong>br</strong> />

normal, lhe asseguro.<<strong>br</strong> />

- Então, porque não se produz o curso natural <strong>do</strong>s acontecimentos?<<strong>br</strong> />

- até certo ponto, as coisas seguem o curso marca<strong>do</strong>, Alteza. Após o largo perío<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de incubação costuma<strong>do</strong>, <strong>com</strong>eçaram a mecanizar-se; e depois disso, as matanças<<strong>br</strong> />

normais entre primatas superiores se converteram em verdadeiras guerras destrutivas.<<strong>br</strong> />

Ao terminar seu mais recente conflito bélico em grande escala, surgiram as armas<<strong>br</strong> />

nucleares e a guerra terminou imediatamente.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r assentiu.<<strong>br</strong> />

- E depois? - perguntou.<<strong>br</strong> />

- Depois disto – repôs Devi-en -, o habitual seria que explodisse uma nova guerra,<<strong>br</strong> />

desta vez <strong>com</strong> armas atômicas, e durante a mesma teriam si<strong>do</strong> desenvolvidas rapidamente<<strong>br</strong> />

as armas nucleares, adquirin<strong>do</strong> um terrível poder destrui<strong>do</strong>r, para ser utiliza<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ao estilo típico <strong>do</strong>s grandes primatas, <strong>com</strong> o resulta<strong>do</strong> que teria reduzi<strong>do</strong> a população,<<strong>br</strong> />

em um instante, a um punha<strong>do</strong> de so<strong>br</strong>eviventes famintos que subsistiriam


penosamente em um mun<strong>do</strong> povoa<strong>do</strong> de ruínas - Naturalmente, porém isso não<<strong>br</strong> />

aconteceu.<<strong>br</strong> />

- Porque não aconteceu?<<strong>br</strong> />

- Existe uma possível explicação. Uma vez metida pelo caminho da mecanização,<<strong>br</strong> />

esta raça progrediu <strong>com</strong> uma rapidez extraordinária.<<strong>br</strong> />

- E então – repôs o dignatário hurriano -. O que isso importa? Desse mo<strong>do</strong> desco<strong>br</strong>iram<<strong>br</strong> />

as armas nucleares mais ce<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Correto, porém depois da última guerra mundial, continuaram aperfeiçoan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

suas armas nucleares <strong>com</strong> uma rapidez insólita. Esse é o inconveniente. A potência<<strong>br</strong> />

destas armas havia chega<strong>do</strong> a ser aterra<strong>do</strong>ra antes que a nova guerra houvesse ti<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

tempo de <strong>com</strong>eçar, e agora a situação chegou a um ponto em que nem sequer estes<<strong>br</strong> />

belicosos primatas se atrevem a meter-se em uma guerra.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r a<strong>br</strong>iu desmesuradamente seus olhinhos negros e re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- Mas isto é impossível. Não me importa o talento técnico que possuam estes seres.<<strong>br</strong> />

A ciência militar só progride durante a guerra e graças a ela.<<strong>br</strong> />

- Talvez não seja assim no caso destes seres em particular. Entretanto, ainda que<<strong>br</strong> />

assim fosse, o curioso <strong>do</strong> caso é que já estão meti<strong>do</strong>s em uma guerra; não de verdade,<<strong>br</strong> />

porém guerra, apesar de tu<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não de verdade, porém guerra apesar de tu<strong>do</strong>? - repetiu o Arqui-administra<strong>do</strong>r,<<strong>br</strong> />

estupefato -. Que significa isso?<<strong>br</strong> />

- Não sei <strong>com</strong> segurança – disse Devi-en, moven<strong>do</strong> o nariz <strong>com</strong> exasperação -. Aí<<strong>br</strong> />

é onde falham meus intentos em ordenar de uma maneira lógica as informações díspares<<strong>br</strong> />

que possuímos Neste planeta tem lugar o que eles chamaram uma Guerra Fria.<<strong>br</strong> />

Seja o que seja, é algo que impulsiona enormemente suas investigações, porém não<<strong>br</strong> />

provoca o aniquilamento nuclear.<<strong>br</strong> />

- Impossível! - exclamou o Arqui-administra<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

- Aí está o planeta, Alteza. E aqui estamos nós. Quinze anos esperan<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r levantou seus <strong>com</strong>pri<strong>do</strong>s <strong>br</strong>aços, cruzan<strong>do</strong>-os so<strong>br</strong>e a cabeça<<strong>br</strong> />

até que suas mãos tocaram o om<strong>br</strong>os opostos.<<strong>br</strong> />

- Nesse caso, só existe uma solução. O Conselho levou em conta a possibilidade de<<strong>br</strong> />

que este planeta alcançou uma espécia de impasse, uma espécie de paz armada que<<strong>br</strong> />

se mantém em equilí<strong>br</strong>io à beira de uma guerra nuclear. Algo pareci<strong>do</strong> ao que acabas<<strong>br</strong> />

de desco<strong>br</strong>ir, embora nenhum tenha da<strong>do</strong> os argumentos que tu apresentaste.<<strong>br</strong> />

Porém é uma situação admissível.<<strong>br</strong> />

- Sim, Alteza?<<strong>br</strong> />

- Sim – repôs o Arqui-administra<strong>do</strong>r, fazen<strong>do</strong> um esforço visível -. Quanto mais<<strong>br</strong> />

tempo se prolongue esta situação de equilí<strong>br</strong>io, maiores serão as possibilidades para<<strong>br</strong> />

que algum primata superior descu<strong>br</strong>a a maneira de efetuar viagens interestelares.<<strong>br</strong> />

Então, esta raça se esparramaria pela galáxia, à qual aportaria suas lutas e rivalidades.<<strong>br</strong> />

Compreendes?<<strong>br</strong> />

- E que temos que fazer então?<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r afun<strong>do</strong>u a cabeça entre os <strong>br</strong>aços, <strong>com</strong>o se nem ele mesmo<<strong>br</strong> />

quisesse ouvir o que ia dizer. Com voa afogada, disse:<<strong>br</strong> />

- Para tirar-lhes <strong>do</strong> precário equilí<strong>br</strong>io em que se encontram, Capitão, não há mais<<strong>br</strong> />

remédio que dar-lhes um empurrão. E isso faremos nós.<<strong>br</strong> />

O estômago de Davi-en revolveu-se e a ceia que havia ingeri<strong>do</strong> lhe subiu à garganta,<<strong>br</strong> />

produzin<strong>do</strong> náuseas.<<strong>br</strong> />

- Nós lhes daremos o empurrão, Alteza?<<strong>br</strong> />

Sua mente se negava a admitir aquela monstruosa possibilidade.<<strong>br</strong> />

Porém o Arqui-administra<strong>do</strong>r lhe disse sem rodeios:


- Lhes ajudaremos a <strong>com</strong>eçar sua guerra atômica. - Parecia <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela mesma<<strong>br</strong> />

repugnância e desgosto que que afetavam Devi-en. Num sussurro acrescentou; -<<strong>br</strong> />

Não temos mais remédio.<<strong>br</strong> />

Devi-en estava quase sem fala. Também, num sussurro, perguntou:<<strong>br</strong> />

- Porém, <strong>com</strong>o pode fazer-se uma coisa tão horrível, Alteza?<<strong>br</strong> />

- Não sei... E não me olhes assim. A decisão não depende de mim. Corresponde ao<<strong>br</strong> />

Conselho. Estou certo que <strong>com</strong>preenderá as consequências que teria para a galáxia a<<strong>br</strong> />

irrupção no espaço de uma raça de grandes primatas inteligentes e poderosos, não<<strong>br</strong> />

pacificada por uma guerra nuclear.<<strong>br</strong> />

Devi-en estremeceu ante esta perspectiva. O espírito de luta e emulação solto pela<<strong>br</strong> />

galáxia... Mesmo assim , insistiu:<<strong>br</strong> />

- Porém, <strong>com</strong>o se <strong>com</strong>eça uma guerra nuclear? Como se Faz?<<strong>br</strong> />

- Ignoro-o <strong>com</strong>pletamente, já te disse. Porém deve existir alguma norma; talvez<<strong>br</strong> />

uma..., uma mensagem que pudéssemos enviar... Ou uma tempestade que pudéssemos<<strong>br</strong> />

impulsionar reunin<strong>do</strong> informações nublosas... Podemos alterar consideravelmente<<strong>br</strong> />

suas condições meteorológicas, se nos propusermos a tal.<<strong>br</strong> />

- Porém, crê, Alteza, que isto bastaria para originar uma guerra nuclear? - perguntou<<strong>br</strong> />

Devi-en, cético.<<strong>br</strong> />

- Talvez não. Mencionei unicamente <strong>com</strong>o um exemplo. Porém esses primatas sabem.<<strong>br</strong> />

Leve em conta que são eles que iniciam as guerras nucleares de verdade. Isso<<strong>br</strong> />

se acha impresso no seu cére<strong>br</strong>o. E agora vem a decisão principal a<strong>do</strong>tada pelo Conselho.<<strong>br</strong> />

Devi-en notou o leve rui<strong>do</strong> que fazia sua cauda ao golpear suavemente a adeira.<<strong>br</strong> />

Tentou evitá-lo sem conseguir.<<strong>br</strong> />

- Qual é a decisão, Alteza?<<strong>br</strong> />

- Capturar um primata superior na própria superfície <strong>do</strong> planeta. Raptá-lo.<<strong>br</strong> />

- Um primata selvagem?<<strong>br</strong> />

- No momento, no planeta só existem primatas selvagens. Ao menos não foram<<strong>br</strong> />

ainda <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- E o que o Conselho acredita que conseguiremos <strong>com</strong> isto?<<strong>br</strong> />

Devi-en afun<strong>do</strong>u a cabeça to<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> pode entre seus om<strong>br</strong>os. Tremia-lhe a pele<<strong>br</strong> />

das axilas pela repulsa que experimentava. Capturar um daqueles grandes primatas<<strong>br</strong> />

selvagens! Tentou imaginar um deles, ainda não <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong> pelos em<strong>br</strong>utece<strong>do</strong>res<<strong>br</strong> />

efeitos e uma guerra nuclear, e ainda não altera<strong>do</strong> pela civiliza<strong>do</strong>ra eugenia hurriana.<<strong>br</strong> />

O Arqui-admnistra<strong>do</strong>r não fez a menor tentativa em ocultar a evidente repulsa que<<strong>br</strong> />

ele também sentia, porém disse:<<strong>br</strong> />

- Irás à frente da expedição de captura, Capitão. Pense que é pelo bem da galáxia.<<strong>br</strong> />

Devi-en havia visto bastantes vezes o planeta, porém cada vez que rodeava a Lua<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> sua nave e aquele mun<strong>do</strong> aparecia em seu campo de visão, lhe <strong>do</strong>minava uma<<strong>br</strong> />

onda de insofrível nostalgia<<strong>br</strong> />

Era um planeta formoso, muito semelhante a Hurria, quanto às dimensões e características,<<strong>br</strong> />

porém mais selvagem e grandioso. Sua contemplação, feita da desolada<<strong>br</strong> />

Lua, causava uma impressão extraordinária.<<strong>br</strong> />

Perguntou-se quantos planetas <strong>com</strong>o aquele figurariam então nas listas de colonização<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s hurrianos. Quantos outros planetas existiriam, a respeito <strong>do</strong>s quais os grupos<<strong>br</strong> />

de meticulosos observa<strong>do</strong>res <strong>com</strong>unicariam mudanças de aparência periódicos,<<strong>br</strong> />

que poderiam interpretar-se <strong>com</strong>o causa<strong>do</strong>s por sistemas de cultivo artificiais de<<strong>br</strong> />

plantas alimentícias? Quantas veze no <strong>futuro</strong> chegaria um dia em que a radioativida-


de na alta atmosfera de um daqueles planetas <strong>com</strong>eçaria a subir, quan<strong>do</strong> que as esquadrilhas<<strong>br</strong> />

de colonização partiriam resolutamente ao observar aqueles sinas inequívocos?<<strong>br</strong> />

… Como era o caso daquele planeta.<<strong>br</strong> />

Causava verdadeira pena a confiança <strong>com</strong> que os hurrianos procederam a princípio.<<strong>br</strong> />

Devi-en tinha ri<strong>do</strong> <strong>com</strong> vontade ao ler aqueles primeiros informes, se não estivesse<<strong>br</strong> />

ocupa<strong>do</strong> na mesma empresa. As navezinhas de exploração <strong>do</strong>s hurrianos haviam<<strong>br</strong> />

se acerca<strong>do</strong> <strong>do</strong> planeta para recolher da<strong>do</strong>s geográficos e localizar os centro<<strong>br</strong> />

populacionais. Foram logo avista<strong>do</strong>r, porém isso já pouco importava,estan<strong>do</strong> tão próxima,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o eles acreditavam, a explosão final.<<strong>br</strong> />

Tão próxima?... Foram passan<strong>do</strong> os anos e as navezinhas de reconhecimento <strong>com</strong>eçaram<<strong>br</strong> />

a a<strong>do</strong>tar maiores precauções, e se afastaram <strong>do</strong> planeta.<<strong>br</strong> />

A nave de Devi-en também avançava cautelosamente naquela ocasião. Seus tripulantes<<strong>br</strong> />

estavam muito nervosos por causa <strong>do</strong> caráter repelente que tinha aquela missão;<<strong>br</strong> />

por mais que Devi-en lhes assegurasse que não pensavam em causar dano ao<<strong>br</strong> />

grande primata que iam capturar, eles se mostravam inquietos. Ainda assim tinham<<strong>br</strong> />

que proceder <strong>com</strong> calma. A captura tinha que efetuar-se em um lugar deserto. Assim,<<strong>br</strong> />

permaneceram vários dias na nave, imóveis a uma altura de dezesseis quilômetros,<<strong>br</strong> />

pairan<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e uma região fragosa, deserta e inculta. À medida que transcorria<<strong>br</strong> />

o tempo, o nervosismo da tripulação aumentava. Somente os estóli<strong>do</strong>s mauvs conservavam<<strong>br</strong> />

a calma.<<strong>br</strong> />

Até que um dia a tela lhes mostrou um daqueles seres, que avançava só por um<<strong>br</strong> />

terreno desigual, <strong>com</strong> um <strong>com</strong>pri<strong>do</strong> bastão em uma mão e uma mochila nas costas.<<strong>br</strong> />

A nave desceu silenciosamente, a velocidade supersônica. O próprio Devi-en, <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

pelo eriça<strong>do</strong>, empunhava os controles.<<strong>br</strong> />

Puderam ouvir o que aquele ser dizia das coisas antes que o capturassem, e estas<<strong>br</strong> />

frases foram os primeiros <strong>com</strong>entários registra<strong>do</strong>s para serem analisa<strong>do</strong>s mais tarde<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r mentálico.<<strong>br</strong> />

A primeira frase, pronunciada pelo grande primata quan<strong>do</strong> este avistou a nave<<strong>br</strong> />

quase em cima da sua cabeça, foi captada pelo telemicrofone direcional, e foi a seguinte:<<strong>br</strong> />

- Meu Deus! Um disco voa<strong>do</strong>r!<<strong>br</strong> />

Devi-en <strong>com</strong>preendeu a segunda parte da frase. Era assim <strong>com</strong>o os grande primatas<<strong>br</strong> />

denominavam as naves hurrianas; aquele termo havia si<strong>do</strong> posto em voga durante<<strong>br</strong> />

aqueles anos de observação descuidada.<<strong>br</strong> />

Aquela criatura selvagem pronunciou sua segunda frase quan<strong>do</strong> a embarcaram na<<strong>br</strong> />

nave, debaten<strong>do</strong>-se <strong>com</strong>o uma fera porem sem poder livrar-se <strong>do</strong> férreo a<strong>br</strong>aço <strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

imperturbáveis mauvs.<<strong>br</strong> />

Devi-en, arfante, <strong>com</strong> seu nariz carnoso tremen<strong>do</strong> ligeiramente, adiantou-se para<<strong>br</strong> />

recebê-lo, e aquele ser (cuja face desagradável e sem pelos estava coberta de uma<<strong>br</strong> />

secreção oleosa) vociferou:<<strong>br</strong> />

- Era o que faltava! Um macaco!<<strong>br</strong> />

Devi-en <strong>com</strong>preendeu também a segunda parte da frase. Com aquela palavra se<<strong>br</strong> />

designava uma espécie de pequenos primatas em um <strong>do</strong>s principais idiomas <strong>do</strong> planeta.<<strong>br</strong> />

O cativo, de uma selvageria extraordinária, era quase impossível de manejar. Foi<<strong>br</strong> />

necessária infinita paciência antes de poder dirigir-lhe a palavra de uma maneira razoável.<<strong>br</strong> />

A princípio sofria crises atrás de crises. O primata se deu conta quase imediatamente<<strong>br</strong> />

que o levavam da Terra, e o que Devi-en acreditava ser uma emocionante<<strong>br</strong> />

experiência para ele, resultou ser tu<strong>do</strong> ao contrário. Passava o tempo falan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s


seus filhos e de uma fêmea.<<strong>br</strong> />

«Tem mulheres e filhos – pensou Devi-en, cheio de <strong>com</strong>paixão -, e à sua maneira<<strong>br</strong> />

os ama, pois são primatas superiores.»<<strong>br</strong> />

Logo teve que fazê-lo <strong>com</strong>preender que os mauvs, que o custodiavam e o sujeitavam<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> seus acessos de violência se faziam necessários, não lhe fariam dano, e<<strong>br</strong> />

que ninguém pensava em maltratá-lo.<<strong>br</strong> />

(Devi-en sentia náuseas ante a ideia que um ser racional pudesse causar dano a<<strong>br</strong> />

outro. Era-lhe difícil, dificílimo, falar daquele tema,embora só fosse para admitir a<<strong>br</strong> />

possibilidade por um momento e negá-la em seguida. O ser arrebata<strong>do</strong> daquele planeta<<strong>br</strong> />

considerava <strong>com</strong> grande suspeita aquelas hesitações. Aqueles grandes primatas<<strong>br</strong> />

eram assim.)<<strong>br</strong> />

Durante o quinto dia, quan<strong>do</strong> talvez por causa <strong>do</strong> seu esgotamento aquele ser permaneceu<<strong>br</strong> />

muito tempo tranquilo, Devi-en pode falar <strong>com</strong> ele em seu próprio camarote,<<strong>br</strong> />

e logo ele se encolerizou quan<strong>do</strong> o hurriano se pôs a explicar, sem dar a maior<<strong>br</strong> />

importância à coisa, que eles esperavam que explodisse uma guerra nuclear.<<strong>br</strong> />

- Então vocês estão esperanto isto, eh? - gritou aquele ser -. O que os faz estar<<strong>br</strong> />

tão seguros de que haverá uma guerra?<<strong>br</strong> />

Devi-en não estava seguro de si, claro, porém respondeu:<<strong>br</strong> />

- Sempre acaba por produzir-se uma guerra nuclear. Nós nos propomos em vir em<<strong>br</strong> />

sua ajuda depois dela.<<strong>br</strong> />

- Depois dela, eh?<<strong>br</strong> />

Começou a proferir palavras incoerentes. Moveu os <strong>br</strong>aços <strong>com</strong> violência e os<<strong>br</strong> />

mauvs posta<strong>do</strong>s junto dele tiveram que sujeitá-lo <strong>com</strong> suavidade e levá-lo.<<strong>br</strong> />

Devi-en suspirou. Já tinha uma boa coleção de frases pronunciadas pelo primata...<<strong>br</strong> />

Talvez o <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r conseguisse desentranhar algo graças a elas. Quanto a ele, as<<strong>br</strong> />

achava <strong>com</strong>pletamente disparatadas.<<strong>br</strong> />

Além disso, aquele ser não medrava. Seu corpo estava quase totalmente desprovi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de pelo, coisa que a observação a longa distância não havia revela<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> às<<strong>br</strong> />

peles artificiais <strong>com</strong> que se co<strong>br</strong>iam, fosse para gerar calor ou por causa da repulsão<<strong>br</strong> />

instintiva que aqueles grandes primatas experimentavam pela epiderme desprovida<<strong>br</strong> />

de pelo.<<strong>br</strong> />

Fato surpreendente: no rosto daquele ser havia <strong>com</strong>eça<strong>do</strong> a <strong>br</strong>otar um cabelo pareci<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ao que co<strong>br</strong>ia o rosto <strong>do</strong> hurriano, embora mais abundante e mais escuro.<<strong>br</strong> />

Porém o principal era que não medrava. Havia emagreci<strong>do</strong> muito, pois apenas provava<<strong>br</strong> />

uns boca<strong>do</strong>s, e se aquilo durasse muito, sua saude se ressentiria. Devi-en não<<strong>br</strong> />

queria de moco algum, assumir aquela responsabilidade.<<strong>br</strong> />

No dia seguinte, o grande primata se mostrava muito calmo. Quase falava <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

animação, voltan<strong>do</strong> ao tema da guerra nuclear, que era o que mais parecia interessá-lo.<<strong>br</strong> />

(Que atração tão terrível exercia aquele tema so<strong>br</strong>e a mente <strong>do</strong>s grandes primatas!,<<strong>br</strong> />

disse consigo Devi-en)<<strong>br</strong> />

- Dizem que sempre acaba produzin<strong>do</strong>-se a guerra nuclear? - disse o primata –<<strong>br</strong> />

Isto significa que existem outros seres além de nós, vocês e... eles?<<strong>br</strong> />

Indicou os mauvs, posta<strong>do</strong>s junto dele.<<strong>br</strong> />

- Existem milhares de espécies inteligentes, que habitam em milhares de mun<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Muitos milhares – respondeu Devi-en.<<strong>br</strong> />

- E to<strong>do</strong>s eles têm guerras nucleares?


- To<strong>do</strong>s quantos tenham alcança<strong>do</strong> determina<strong>do</strong> nível técnico. To<strong>do</strong>s menos nós.<<strong>br</strong> />

Nós somos diferente. Nos falta espírito de luta. Em troca, possuímos o instinto de cooperação.<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que vocês sabem que ocorrerão guerras nucleares e não fazem nada<<strong>br</strong> />

para evitá-las?<<strong>br</strong> />

- Sim, fazemos o que podemos – respondeu Devi-en senti<strong>do</strong> -. Nos esforçamos por<<strong>br</strong> />

prestar-lhes ajuda. Nos antigos tempos <strong>do</strong> meu povo, quan<strong>do</strong> desco<strong>br</strong>imos as viagens<<strong>br</strong> />

interplanetárias, não <strong>com</strong>preendíamos os grandes primatas, os quais rechaçavam<<strong>br</strong> />

sistematicamente nosso oferecimentos de amizade, até que renunciamos a continuar<<strong>br</strong> />

oferecen<strong>do</strong>-a, Foi então quan<strong>do</strong> desco<strong>br</strong>imos mun<strong>do</strong>s cobertos de ruínas radioativas.<<strong>br</strong> />

Até que por fim chegamos a um mun<strong>do</strong> envolvi<strong>do</strong> em uma terrível guerra<<strong>br</strong> />

nuclear. Ficamos horroriza<strong>do</strong>s, porém nada pudemos fazer. Pouco a pouco fomos<<strong>br</strong> />

desco<strong>br</strong>in<strong>do</strong> a verdade. Atualmente, já nos achamos em disposição de intervir em<<strong>br</strong> />

qualquer mun<strong>do</strong> que haja alcança<strong>do</strong> a era nuclear. Depois da guerra que o destrói,<<strong>br</strong> />

intervimos <strong>com</strong> nossos equipamentos de descontaminação e nosso analisa<strong>do</strong>res eugênicos.<<strong>br</strong> />

- Que são analisa<strong>do</strong>res eugênicos?<<strong>br</strong> />

Devi-en havia cria<strong>do</strong> aquela expressão por analogia <strong>com</strong> o que conhecia <strong>do</strong> idioma<<strong>br</strong> />

daqueles primatas. Agora, medin<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>samente suas palavras, contestou:<<strong>br</strong> />

- Regulamos as uniões e as esterilizamos para extirpar o possível instinto belicoso<<strong>br</strong> />

nos so<strong>br</strong>eviventes.<<strong>br</strong> />

Por um momento acreditou que o primata ia mostrar novamente sua cólera.<<strong>br</strong> />

Porém em lugar disto, seu selvagem interlocutor disse <strong>com</strong> voa monótona:<<strong>br</strong> />

- Convertem-nos em dóceis criaturas, certo?<<strong>br</strong> />

E indicou novamente os mauvs.<<strong>br</strong> />

- Não, não. Esses são diferentes. Simplesmente, conseguimos que os so<strong>br</strong>eviventes<<strong>br</strong> />

se contentem em viver no seio de uma sociedade pacífica, sem ambições de conquista,<<strong>br</strong> />

nem agressão, submetida à nossa égide. Sem esta premissa, se destruiriam<<strong>br</strong> />

mutuamente, <strong>com</strong>o se destruíram, antes da nossa chegada.<<strong>br</strong> />

- E vocês, que oferecem em troca disto?<<strong>br</strong> />

Devi-en olhou <strong>com</strong> expressão de dúvida ao selvagem. Era verdadeiramente necessário<<strong>br</strong> />

explicar-lhe qual era o prazer fundamental da vida. Entretanto, lhe perguntou:<<strong>br</strong> />

- Não lhe satisfaz ajudar ao próximo?<<strong>br</strong> />

- Prossiga. Deixan<strong>do</strong> isso de la<strong>do</strong>, que ganham em troca?<<strong>br</strong> />

- Naturalmente, Hurria recebe certos tributos.<<strong>br</strong> />

- Ahá!<<strong>br</strong> />

- Considero que o menos que pode fazer uma espécie que nos deve sua salvação é<<strong>br</strong> />

pagar-nos de alguma maneira – protestou Devi-en -. Além disso, temos que amortizar<<strong>br</strong> />

os gastos da operação. Não lhes pedimos muito, e sempre coisas que se adaptem<<strong>br</strong> />

à própria natureza <strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong>. Por exemplo, pode ser um envio anual de madeira,<<strong>br</strong> />

se se trata de um mun<strong>do</strong> selvático; sais de manganês, em um mun<strong>do</strong> que o<<strong>br</strong> />

tenha... Como o mun<strong>do</strong> de onde procedem os mauvs é muito po<strong>br</strong>e em recursos naturais,<<strong>br</strong> />

se ofereceram a facilitar-nos certo número deles para que os empreguemos<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o ajudantes pessoais. Possuem uma força tremente, notável inclusive entre os<<strong>br</strong> />

grandes primatas, e os submetemos à ação de drogas in<strong>do</strong>lores anti-cere<strong>br</strong>ais<<strong>br</strong> />

- Fazem deles uma espécie de zumbis, então!<<strong>br</strong> />

Devi-en conjecturou o significa<strong>do</strong> daquela palavra, e respondeu <strong>com</strong> indignação:<<strong>br</strong> />

- Nada disso! Fazemos unicamente para que fiquem contentes <strong>com</strong> seu papel de<<strong>br</strong> />

servi<strong>do</strong>res e se esqueçam de suas casas. Não queremos de mo<strong>do</strong> algum que se sintam<<strong>br</strong> />

tristes! Ten<strong>do</strong> em conta que são seres inteligentes!


- E que fariam <strong>com</strong> a Terra, se nós iniciássemos uma guerra nuclear?<<strong>br</strong> />

- Tivemos quinze anos para decidir – respondeu Devi-en -. Vosso mun<strong>do</strong> é muito<<strong>br</strong> />

rico em ferro e criou uma magnífica indústria siderúrgica. Me parece que lhe pediríamos<<strong>br</strong> />

ferro. - suspirou -. Porém nesse caso vossa contribuição não <strong>com</strong>pensaria os<<strong>br</strong> />

gastos. Levamos pelo menos dez anos mais em nossa espera.<<strong>br</strong> />

- A quantas raças impõem este tipo de contribuições? - perguntou-lhe o grande<<strong>br</strong> />

primata.<<strong>br</strong> />

- Desconheço o número exato. Acho que uns mil.<<strong>br</strong> />

- Então, vocês são os pequenos reis da galáxia, não lhe prece? Mil mun<strong>do</strong>s se aniquilam<<strong>br</strong> />

para contribuir <strong>com</strong> o vosso bem estar. Além disso são outra coisa.<<strong>br</strong> />

O selvagem <strong>com</strong>eçava a alçar a a voz, a qual adquiria um tom agu<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- São uns abutres – declarou.<<strong>br</strong> />

- Abutres – disse Devi-en, tentan<strong>do</strong> recordar aquela palavra.<<strong>br</strong> />

- Devora<strong>do</strong>res de carniça. Uns passarões que esperam até que algum po<strong>br</strong>e animal<<strong>br</strong> />

morra de sede no deserto, e então descem para <strong>com</strong>er seu cadáver.<<strong>br</strong> />

Devi-en notou que enjoava ao evocar em sua mene aquela horrível imagem. Sentiu-se<<strong>br</strong> />

desfalecer. Com voz débil, disse:<<strong>br</strong> />

- Não, não... Nós ajudamos às outras espécies.<<strong>br</strong> />

- Esperam que estoure a guerra, <strong>com</strong>o um ban<strong>do</strong> de abutres.<<strong>br</strong> />

Transcorreram vários dias antes que Devi-en se sentisse capaz de entrevistar-se<<strong>br</strong> />

novamente <strong>com</strong> o selvagem. Esteve a ponto de faltar <strong>com</strong> o respeito ao Arqui-administra<strong>do</strong>r,<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> este insistiu uma vez e outra vez que lhe faltavam da<strong>do</strong>s suficientes<<strong>br</strong> />

para realizar uma análise <strong>com</strong>pleta da estrutura mentas daqueles selvagens.<<strong>br</strong> />

Audazmente, Devi-en afirmou:<<strong>br</strong> />

- Com certeza, há da<strong>do</strong>s mais que suficientes para dar alguma solução ao nosso<<strong>br</strong> />

problema.<<strong>br</strong> />

O nariz <strong>do</strong> Arqui-administra<strong>do</strong>r tremeu, e sua língua rosada passou so<strong>br</strong>e ele reflexivamente.<<strong>br</strong> />

- Talvez exista uma solução, porém não confio nela. Nos enfrentamos <strong>com</strong> uma<<strong>br</strong> />

espécie que se aparta por <strong>com</strong>pleto da corrente. Isto nós já sabíamos. Não podemos<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>eter o mais leve equívoco.. Uma coisa, antes de terminar. Capturamos um exemplar<<strong>br</strong> />

extremamente inteligente. A menos que... A menos que represente o tipo moral<<strong>br</strong> />

de sua raça.<<strong>br</strong> />

Esta ideia pareceu erguer o Arqui-administra<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

Devi-en, disse:<<strong>br</strong> />

- Este selvagem evocou a horrível imagem daquele... daquele pássaro... daquele<<strong>br</strong> />

chama<strong>do</strong>...<<strong>br</strong> />

- Abutre – <strong>com</strong>pletou o Arqui-administra<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

- Essa imagem dá a toda nossa missão uma luz <strong>com</strong>pletamente diferente. Desde<<strong>br</strong> />

então tenho si<strong>do</strong> incapaz de <strong>com</strong>er <strong>com</strong>o é devi<strong>do</strong>, nem de <strong>do</strong>rmir. Para dizer a verdade,<<strong>br</strong> />

temo que terei que pedir-lhe demissão...<<strong>br</strong> />

- Porém não antes de terminar o que nos há trazi<strong>do</strong> aqui – disse o Arqui-administra<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> firmeza -. Acredita que gosto de sentir-me um... devora<strong>do</strong>r de carniça?...<<strong>br</strong> />

Deves reunir mais da<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Finalmente Devi-en assentiu. Naturalmente o havia entendi<strong>do</strong>. O Arqui-administra<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

não desejava mais que qualquer outro hurriano originar uma guerra atômica. Demorou<<strong>br</strong> />

no assunto tanto quanto permiti<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Devi-en se dispôs a cele<strong>br</strong>ar uma nova entrevista <strong>com</strong> o selvagem. Foi algo <strong>com</strong>-


pletamente insuportável, e foi a última que cele<strong>br</strong>ou.<<strong>br</strong> />

O selvagem mostrava uma contusão na bochecha, <strong>com</strong>o se houvesse resisti<strong>do</strong> novamente<<strong>br</strong> />

aos mauvs. Realmente havia ofereci<strong>do</strong> resistência. Havia-os enfrenta<strong>do</strong> tantas<<strong>br</strong> />

vezes que os mauvs, apesar de to<strong>do</strong>s seus esforços para não causar-lhe<<strong>br</strong> />

dano,não tinham podi<strong>do</strong> evitar feri-lo em uma ocasião. Era de se supor que o selvagem<<strong>br</strong> />

se daria conta de até que ponto eles tentavam não causar-lhe dano, e que isso<<strong>br</strong> />

deveria tê-lo aplaca<strong>do</strong>. Ao contrário, era <strong>com</strong>o se o convencimento da segurança em<<strong>br</strong> />

que se achava o estimulasse a oferecer mais resistência.<<strong>br</strong> />

(Aquelas espécies de primatas superiores eram malignas, malignas e viciosas, disse<<strong>br</strong> />

para si mesmo Devi-en, <strong>com</strong> tristeza.)<<strong>br</strong> />

Durante mais de uma hora a conversação girou em torno de questões sem importância,<<strong>br</strong> />

até que o selvagem perguntou ousadamente:<<strong>br</strong> />

- Quanto tempo disse que estão nos observan<strong>do</strong>, espantalho?<<strong>br</strong> />

- Quinze <strong>do</strong>s vossos anos – respondeu Devi-en.<<strong>br</strong> />

- Isso faz senti<strong>do</strong>. Os primeiros discos voa<strong>do</strong>res foram vistos pouco depois da segunda<<strong>br</strong> />

guerra mundial. Quanto tempo faltava então para a guerra nuclear?<<strong>br</strong> />

Com automática sinceridade, Devi-en contestou:<<strong>br</strong> />

- Oxalá eu soubesse.<<strong>br</strong> />

E interrompeu-se de repente.<<strong>br</strong> />

O selvagem prosseguiu><<strong>br</strong> />

- Eu acreditava que a guerra nuclear era inevitável... A última vez que nos vimos<<strong>br</strong> />

disseste que haviam permaneci<strong>do</strong> aqui dez anos ou mais. Estiveram esperan<strong>do</strong> que<<strong>br</strong> />

explodisse a guerra durante dez anos, correto?<<strong>br</strong> />

- Prefiro não discutir o tema.<<strong>br</strong> />

- Não - vociferou o selvagem -. E que pensam fazer, diga-me. Quanto tempo pensam<<strong>br</strong> />

esperar? Porque não nos dão um empurrão? Não se limitem a esperar, abutres,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>ecem uma.<<strong>br</strong> />

Devi-en se pôs em pé de um salto.<<strong>br</strong> />

- Que está dizen<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Que estão esperan<strong>do</strong>, asquerosos...? - Pronunciou um epíteto <strong>com</strong>pletamente in<strong>com</strong>preensível<<strong>br</strong> />

e logo prosseguiu, quase sem ar -: Não é isso que fazem os abutres<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> algum po<strong>br</strong>e animal fraco e macilento, ou talvez um homem, tarda demasia<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

a morrer? Não podem esperar. Baixam em ban<strong>do</strong> e arrancam-lhes os olhos a bicadas.<<strong>br</strong> />

Então esperam que esteja <strong>com</strong>pletamente indefeso, para precipitar sua morte.<<strong>br</strong> />

Devi-en se apresou a ordenar que o levassem e logo retirou-se à sua cabine, onde<<strong>br</strong> />

permaneceu encerra<strong>do</strong> por várias horas, sentin<strong>do</strong>-se verdadeiramente mal. Naquela<<strong>br</strong> />

noite não conseguiu conciliar o sono. A palavra «abutre» ressoava em seus ouvi<strong>do</strong>s,<<strong>br</strong> />

e aquela horrível imagem final bailava ante seus olhos.<<strong>br</strong> />

Devi-en disse <strong>com</strong> firmeza e decisão:<<strong>br</strong> />

- Alteza, não posso prosseguir falan<strong>do</strong> <strong>com</strong> o selvagem. Embora você necessite de<<strong>br</strong> />

mais da<strong>do</strong>s, sinto muito. Porém não posso ajudá-lo.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r parecia abati<strong>do</strong> e cansa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Eu <strong>com</strong>preen<strong>do</strong>. Isso de <strong>com</strong>parar-nos <strong>com</strong> abutres..., claro, no podes suportar.<<strong>br</strong> />

Entretanto você deve ter nota<strong>do</strong> que essa ideia não faz marcas nele. Os grandes primatas<<strong>br</strong> />

são imunes a estas coisas; são seres duros e desapieda<strong>do</strong>s. Sua mentalidade


é assim. Espantoso.<<strong>br</strong> />

- Não posso proporcionar-lhe mais da<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

- De acor<strong>do</strong>, de acor<strong>do</strong>. Eu <strong>com</strong>preen<strong>do</strong>... Ademais, cada nova coisa que sabemos<<strong>br</strong> />

só serve para reforçar a verdade definitiva; a verdade que eu acreditava que só era<<strong>br</strong> />

hipotética, que eu esperava ardentemente que fosse.<<strong>br</strong> />

Enterrou a cabeça entre seus <strong>br</strong>aços encaneci<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- Existe um meio de desencadear esta guerra atômica.<<strong>br</strong> />

- Ah, sim? Que devemos fazer?<<strong>br</strong> />

- É algo muito simples, de uma eficácia direta. Algo que talvez não teria me ocorri<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

jamais. Nem a ti.<<strong>br</strong> />

- Em que consiste, Alteza?<<strong>br</strong> />

Devi-en sentia-se <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por um grande temor em conhecer aquele segre<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- O que atualmente mantém a paz nesse planeta é o temos que <strong>com</strong>partem ambos<<strong>br</strong> />

os ban<strong>do</strong>s em pugna em assumir a responsabilidade de iniciar uma guerra. Se um<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is o fizesse, imediatamente o outro..., bem, digamos de uma vez..., tomaria<<strong>br</strong> />

imediatamente represálias.<<strong>br</strong> />

Devi-en assentiu.<<strong>br</strong> />

- Se somente uma bomba atômica caísse no território de um <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s – prosseguiu<<strong>br</strong> />

o Arqui-administra<strong>do</strong>r -, os agredi<strong>do</strong>s suporiam imediatamente que a agressão<<strong>br</strong> />

partia <strong>do</strong> outro ban<strong>do</strong>. Compreenderiam que não podiam esperar passivamente e ser<<strong>br</strong> />

objeto de novos ataques. Em poucas horas, talvez antes, lançariam um contra- ataque;<<strong>br</strong> />

por sua vez, o outro ban<strong>do</strong> replicaria a este. Em poucas semanas a guerra teria<<strong>br</strong> />

termina<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Porém, <strong>com</strong>o o<strong>br</strong>igaremos a um <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>s a lançar a primeira bomba?<<strong>br</strong> />

- Não o<strong>br</strong>igaremos, Capitão. Esta é a questão. Lançaremos a primeira bomba nós<<strong>br</strong> />

mesmos.<<strong>br</strong> />

- Como?<<strong>br</strong> />

Devi-en sentiu que ia desmaiar.<<strong>br</strong> />

- O que ouviste. Após analisar a mente de um grande primata,o resulta<strong>do</strong> lógico é<<strong>br</strong> />

este.<<strong>br</strong> />

- Mas, <strong>com</strong>o podemos fazer isso?<<strong>br</strong> />

- Montaremos uma bomba. É uma operação bastante fácil. Uma nave a transportará<<strong>br</strong> />

até o planeta e a deixará cair so<strong>br</strong>e uma zona habitada.<<strong>br</strong> />

- Habitada?<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r desviou a vista e afirmou <strong>com</strong> marca<strong>do</strong> nervosismo.<<strong>br</strong> />

- Do contrário, não conseguiríamos o efeito deseja<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Compreen<strong>do</strong> – disse Devi-en, imaginan<strong>do</strong> abutres, duzias de abutres.<<strong>br</strong> />

Não podia afastar de si aquele pensamento. Imaginava eles <strong>com</strong>o enormes aves<<strong>br</strong> />

escamosas, semelhantes à pequenas e inofensivas criaturas aladas de Hurria, porém<<strong>br</strong> />

imensamente maiores), <strong>com</strong> asas mem<strong>br</strong>anosas e longos bicos afia<strong>do</strong>s <strong>com</strong>o navalhas,<<strong>br</strong> />

descen<strong>do</strong> em círculos para picar os olhos <strong>do</strong>s moribun<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Co<strong>br</strong>iu os olhos <strong>com</strong> uma mão. Com voz trêmula, perguntou:<<strong>br</strong> />

- Quem pilotará a nave? Quem lançara a bomba?<<strong>br</strong> />

A voz <strong>do</strong> Arqui-administra<strong>do</strong>r era apenas um pouco mais segura que a de Devi-en,<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> respondeu:<<strong>br</strong> />

- Não sei.<<strong>br</strong> />

- Eu não – rechaçou Devi-en -. Não posso. Nenhum hurriano será capaz de fazêlo...<<strong>br</strong> />

por nenhum preço.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r oscilou <strong>com</strong>o se fosse cair.<<strong>br</strong> />

- Talvez pudéssemos dar ordens aos mauvs...


- Quem lhes daria tão nefastas ordens?<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r suspirou profundamente.<<strong>br</strong> />

- Chamarei o Conselho. Talvez eles tenham to<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s e sejam capazes de indicar-nos<<strong>br</strong> />

o que devo fazer.<<strong>br</strong> />

Assim, ten<strong>do</strong> transcorri<strong>do</strong> pouco mais de quinze anos desde sua chegada, os hurrianos<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>eçaram a desmantelar sua base na outra face da Lua.<<strong>br</strong> />

Nada se havia feito. Os grandes primatas <strong>do</strong> planeta não se haviam destruí<strong>do</strong> mutuamente<<strong>br</strong> />

em uma guerra nuclear; esta talvez não explodisse nunca.<<strong>br</strong> />

E, apesar da terrível ameaça que isso significava para o <strong>futuro</strong>, Devi-en experimentava<<strong>br</strong> />

uma alegre agonia. De nada servia pensar no <strong>futuro</strong>. O presente importava;<<strong>br</strong> />

o presente, que lhe distanciava <strong>do</strong> mais horrível <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Viu <strong>com</strong>o a Lua se afundava até converter-se em uma manchinha luminosa, junto<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o planeta e o próprio sol <strong>do</strong> sistema, até que este se perdeu entre as constelações<<strong>br</strong> />

Somente então experimentou alívio. Somente então sentiu um leve assomo <strong>do</strong> que<<strong>br</strong> />

teria podi<strong>do</strong> acontecer.<<strong>br</strong> />

Voltan<strong>do</strong>-se para o Arqui-administra<strong>do</strong>r, disse:<<strong>br</strong> />

- Talvez tu<strong>do</strong> teria i<strong>do</strong> bem se houvéssemos ti<strong>do</strong> um pouco mais de paciência. Talvez<<strong>br</strong> />

terminassem por meterem-se em uma guerra nuclear.<<strong>br</strong> />

- Tenho minhas dúvidas – respondeu o Arqui-administra<strong>do</strong>r -. A análise mentálica<<strong>br</strong> />

de..., já sabes.<<strong>br</strong> />

Devi-en sabia muito bem a quem se referia. O selvagem aprisiona<strong>do</strong> havia si<strong>do</strong> devolvi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

a seu planeta <strong>com</strong> a maior delicadeza possível. Os acontecimentos das últimas<<strong>br</strong> />

semanas foram apaga<strong>do</strong>s da sua mente. Depositaram-no perto de um pequeno<<strong>br</strong> />

povoa<strong>do</strong>, não muito distante <strong>do</strong> lugar onde foi captura<strong>do</strong>. Seus semelhantes suporiam<<strong>br</strong> />

que se haveria perdi<strong>do</strong>. Atribuiriam sua falta de peso, seus ferimentos e sua<<strong>br</strong> />

amnésia aos sofrimentos que tinha ti<strong>do</strong> de suportar.<<strong>br</strong> />

Porém o dano que ele havia causa<strong>do</strong>...<<strong>br</strong> />

Se ao menos no o houvessem leva<strong>do</strong> à Lua... Talvez tivessem termina<strong>do</strong> por aceitar<<strong>br</strong> />

a ideia de iniciar uma guerra. Quiçá teriam chaga<strong>do</strong> inclusive a fa<strong>br</strong>icar uma bomba,<<strong>br</strong> />

e a imaginar algum sistema indireto de <strong>com</strong>an<strong>do</strong> à distância para lançá-la.<<strong>br</strong> />

Foi a imagem <strong>do</strong>s abutres, evocada pelo selvagem, o que pôs tu<strong>do</strong> a perder.<<strong>br</strong> />

Aquela terrível palavra havia desfeito moralmente a Devi-en e ao Arqui-administra<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> enviaram a Hurria to<strong>do</strong>s o da<strong>do</strong>s reuni<strong>do</strong>s, o efeito que os mesmos produziram<<strong>br</strong> />

no Conselho foi notável. A consequência disto: não tar<strong>do</strong>u em receber ordem de<<strong>br</strong> />

desmantelar a base.<<strong>br</strong> />

Devi-en observou:<<strong>br</strong> />

- Não penso em participar nunca mais em projetos de colonização.<<strong>br</strong> />

O Arqui-administra<strong>do</strong>r disse tristemente:<<strong>br</strong> />

- É possível que nenhum de nós volte a participar deles, quan<strong>do</strong> os selvagens deste<<strong>br</strong> />

planeta se espalharem pelo espaço. A aparição na galáxia destes seres de tão belicosa<<strong>br</strong> />

mentalidade significará o fim de... de...<<strong>br</strong> />

O nariz de Devi-en se contraiu. O fim de tu<strong>do</strong>; de to<strong>do</strong> o bem que Hurria havia semea<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

a mãos cheias na galáxia; de to<strong>do</strong> bem que teria segui<strong>do</strong> semean<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Deveríamos ter lança<strong>do</strong>... - disse, sem <strong>com</strong>pletar a frase.<<strong>br</strong> />

De que servia dizer mais? Não tinham podi<strong>do</strong> lançar a bomba nem tivesse si<strong>do</strong> por<<strong>br</strong> />

toda a galáxia. Se tivessem podi<strong>do</strong> fazê-lo, teriam demonstra<strong>do</strong> que pensavam <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

os grandes primatas, e há coisas muito piores ainda que o fim de todas as coisas.<<strong>br</strong> />

Devi-en voltou a pensar nos abutres.


TODOS OS PROBLEMAS DO MUNDO<<strong>br</strong> />

A maior indústria da Terra se centrava ao re<strong>do</strong>r de Multivac - Multivac, o <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

gigante que tinha cresci<strong>do</strong> por cinquenta anos até que suas várias ramificações<<strong>br</strong> />

tivessem se espalha<strong>do</strong> de Washington, D.C. aos subúrbios e que seus tentáculos<<strong>br</strong> />

atingissem cada cidade na Terra.<<strong>br</strong> />

Um exército de serventes civis o alimentava <strong>com</strong> da<strong>do</strong>s constantemente e outro<<strong>br</strong> />

exército correlacionava e interpretava as respostas que ele dava. Um batalhão de engenheiros<<strong>br</strong> />

patrulhava seu interior enquanto minas e fá<strong>br</strong>icas se consumiam para<<strong>br</strong> />

manter seus estoques de reserva de partes so<strong>br</strong>essalentes sempre <strong>com</strong>pletos, sempre<<strong>br</strong> />

acura<strong>do</strong>s, sempre satisfatórios de todas as maneiras.<<strong>br</strong> />

Multivac dirigia a economia da Terra e ajudava a ciência terrestre. Mais importante<<strong>br</strong> />

de tu<strong>do</strong>, era o repositório central de to<strong>do</strong>s os fatos conheci<strong>do</strong>s so<strong>br</strong>e cada terráqueo<<strong>br</strong> />

E a cada dia era parte das funções de Multivac tomar os quatro bilhões de conjuntos<<strong>br</strong> />

de fatos so<strong>br</strong>e cada ser humano que preenchiam seus arquivos e extrapolar esses<<strong>br</strong> />

fatos para o dia seguinte. Cada Departamento Correcional na Terra recebia os<<strong>br</strong> />

da<strong>do</strong>s apropria<strong>do</strong>s para sua própria jurisdição, o conjunto to<strong>do</strong> de da<strong>do</strong>s era apresenta<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

em um grande relatório à Diretoria Correcional Central em Washington, D.C.<<strong>br</strong> />

Bernard Gulliman estava na quarta semana de seu mandato anual <strong>com</strong>o Diretor da<<strong>br</strong> />

Diretoria Correcional Central e se acostumou o suficiente para aceitar o relatório matinal<<strong>br</strong> />

sem ficar assusta<strong>do</strong> por ele. Como sempre, era um bloco de folhas <strong>com</strong> uma<<strong>br</strong> />

grossura de mais ou menos seis polegadas. Ele sabia agora, não se esperava que ele<<strong>br</strong> />

lesse aquilo. (Nenhum humano poderia.) Ainda assim, era diverti<strong>do</strong> olhar por ele.<<strong>br</strong> />

Havia a lista usual de crimes previsíveis: fraudes de to<strong>do</strong>s os tipos, extorsões, rebeliões,<<strong>br</strong> />

agressões, incêndios.<<strong>br</strong> />

Ele olhou para um cabeçalho em particular e sentiu um pequeno choque ao ver<<strong>br</strong> />

aquilo, e outro ao ver um segun<strong>do</strong> registro. Não um, mas <strong>do</strong>is. Dois assassinatos em<<strong>br</strong> />

primeiro grau. Ele não tinha visto <strong>do</strong>is em um único dia em to<strong>do</strong> seu mandato <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

Diretor até agora.<<strong>br</strong> />

Ele apertou o botão <strong>do</strong> inter<strong>com</strong>unica<strong>do</strong>r de duas vias e esperou que o rosto calmo<<strong>br</strong> />

de seu coordena<strong>do</strong>r aparecesse na tela.<<strong>br</strong> />

"Ali," disse Gulliman, "Há <strong>do</strong>is assassinatos em primeiro grau hoje. Há qualquer<<strong>br</strong> />

problema in<strong>com</strong>um?"<<strong>br</strong> />

"Não, senhor." O rosto de feições escuras <strong>com</strong> seus olhos pretos, agu<strong>do</strong>s parecia<<strong>br</strong> />

irrequieto. "Ambos os casos são de probabilidade muito baixa."<<strong>br</strong> />

"Eu sei disso," disse Gulliman. "Eu observei que nenhuma probabilidade é maior <strong>do</strong>


que 15%. Mesmo assim, Multivac tem uma reputação para manter. Ele virtualmente<<strong>br</strong> />

acabou <strong>com</strong> o crime, e o público julga isso pela sua marca <strong>com</strong> os assassinatos em<<strong>br</strong> />

primeiro grau que é, é claro, o crime mais espetacular."<<strong>br</strong> />

Ali Othman aquiesceu. "Sim, senhor. Eu enten<strong>do</strong> bem isso."<<strong>br</strong> />

"Você também entende, eu espero," Gulliman disse, "que eu não quero um único<<strong>br</strong> />

caso consuma<strong>do</strong> desse tipo durante meu mandato. Se qualquer outro crime escapar,<<strong>br</strong> />

eu posso desculpar. Se um homicídio em primeiro grau escapar, eu terei a sua cabeça.<<strong>br</strong> />

Entendeu?"<<strong>br</strong> />

"Sim, senhor. A análise <strong>com</strong>pleta <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is assassinatos em potencial já está <strong>com</strong> os<<strong>br</strong> />

distritos policiais envolvi<strong>do</strong>s. Os criminosos e as vitimas em potencial estão sob observação.<<strong>br</strong> />

Eu tenho re-checa<strong>do</strong> as probabilidades de consumação e elas já estão<<strong>br</strong> />

cain<strong>do</strong>."<<strong>br</strong> />

"Muito bom." disse Gulliman, e cortou a ligação.<<strong>br</strong> />

Ele voltou para a lista <strong>com</strong> um sentimento desconfortável que talvez ele tivesse<<strong>br</strong> />

si<strong>do</strong> muito pomposo. - Mas então, alguém tinha que ser firme <strong>com</strong> esse pessoal permanente<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> serviço civil e se certificar que eles não imaginassem que eles controlavam<<strong>br</strong> />

tu<strong>do</strong>, incluin<strong>do</strong> o Diretor. Particularmente este Othman, que vinha trabalhan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> Multivac desde que ambos eram consideravelmente mais jovens, e tinha um ar<<strong>br</strong> />

de proprietário que podia ser enervante.<<strong>br</strong> />

Para Gulliman, este assunto de crime era a chance politica de uma vida. Até agora,<<strong>br</strong> />

nenhum Diretor tinha passa<strong>do</strong> por seu mandato sem um assassinato ocorren<strong>do</strong> em<<strong>br</strong> />

algum lugar da Terra, em algum momento. O Diretor anterior tinha acaba<strong>do</strong> seu<<strong>br</strong> />

mandato <strong>com</strong> um recorde de oito, três a mais (a mais de fato) que seu predecessor.<<strong>br</strong> />

Agora Gulliman tencionava em ter nenhum. Ele seria, ele decidiu, o primeiro Diretor<<strong>br</strong> />

sem qualquer assassinato em qualquer lugar da Terra durante seu mandato. Depois<<strong>br</strong> />

disso, e a publicidade favorável que resultaria.<<strong>br</strong> />

Ele sequer olhou o resto <strong>do</strong> relatório. Ele estimou havia pelo menos <strong>do</strong>is mil casos<<strong>br</strong> />

de espancamento da esposa em potencial lista<strong>do</strong>s. Sem duvida, nem to<strong>do</strong>s poderiam<<strong>br</strong> />

ser deti<strong>do</strong>s a tempo. Talvez 30% fossem consuma<strong>do</strong>s. Mas a incidência estava cain<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

e consumações estavam cain<strong>do</strong> ainda mais rápi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Multivac tinha adiciona<strong>do</strong> espancamento da esposa em sua lista de crimes previsíveis<<strong>br</strong> />

há apenas cinco anos e o homem <strong>com</strong>um ainda não estava acostuma<strong>do</strong> a pensar<<strong>br</strong> />

que se ele pensasse em espancar sua mulher, aquilo seria sabi<strong>do</strong> adiantadamente.<<strong>br</strong> />

Assim que a convicção se filtrasse através da sociedade, as mulheres primeiramente<<strong>br</strong> />

sofreriam menos lesões e então, eventualmente, nenhuma.<<strong>br</strong> />

Alguns casos de espancamento <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> estavam na lista, também, Gulliman notou.<<strong>br</strong> />

Ali Othman fechou a conexão e olhou para a tela de onde a cabeça careca de Gulliman<<strong>br</strong> />

tinha sumi<strong>do</strong>. Então ele olhou para seu assistente, Rafe Lemmy, e disse, "O<<strong>br</strong> />

que nós fazemos?"<<strong>br</strong> />

"Não me pergunte. Ele está preocupa<strong>do</strong> <strong>com</strong> apenas um ou <strong>do</strong>is assassinatos sem<<strong>br</strong> />

importância."<<strong>br</strong> />

"É um risco terrível tentar lidar <strong>com</strong> esta coisa nós mesmos. Ainda assim se nós<<strong>br</strong> />

contarmos a ele, ele vai ter um ataque de primeira classe. Esses políticos de carreira<<strong>br</strong> />

tem suas peles <strong>com</strong> que se preocupar, então ele é capaz de se intrometer e fazer as<<strong>br</strong> />

coisas piores."<<strong>br</strong> />

Lemmy concor<strong>do</strong>u <strong>com</strong> a cabeça e colocou um lábio inferior grosso entre seus<<strong>br</strong> />

dentes. "O problema é, no entanto, e se nós deixarmos escapar? Isto pode ser o pró-


prio fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, você sabe."<<strong>br</strong> />

"Se nós deixarmos escapar, quem se importa <strong>com</strong> o que acontecerá conosco? Nós<<strong>br</strong> />

seremos apenas parte da catástrofe geral." Então ele disse de maneira mais otimista.<<strong>br</strong> />

"Mas droga, a probabilidade é apenas 12,3%. Em qualquer outra coisa, exceto talvez<<strong>br</strong> />

assassinato, nós deixamos as probabilidades crescerem um pouco antes de tomar<<strong>br</strong> />

qualquer ação. Ainda pode haver correção espontânea."<<strong>br</strong> />

"Eu não contaria <strong>com</strong> isso." disse Lemmy secamente.<<strong>br</strong> />

"Eu não preten<strong>do</strong>. Eu estava apenas mencionan<strong>do</strong> o fato. Ainda, <strong>com</strong> esta probabilidade,<<strong>br</strong> />

eu sugiro que nos limitemos a simples observação por agora. Ninguém podia<<strong>br</strong> />

planejar um crime <strong>com</strong>o este sozinho; devem haver cúmplices"<<strong>br</strong> />

"Multivac não mencionou nenhum."<<strong>br</strong> />

"Eu sei. Ainda assim..." Sua voz murmurou.<<strong>br</strong> />

Então eles olharam para os detalhes <strong>do</strong> crime não incluí<strong>do</strong> na lista entregue para<<strong>br</strong> />

Gulliman; um crime muito pior que assassinato em primeiro grau, um crime nunca<<strong>br</strong> />

tenta<strong>do</strong> antes na história <strong>do</strong> Multivac; e pensavam no que fazer.<<strong>br</strong> />

Ben Manners se considerava o jovem de 16 anos mais feliz de Baltimore. Isso era,<<strong>br</strong> />

talvez, duvi<strong>do</strong>so. Mas ele era certamente um <strong>do</strong>s mais felizes, e um <strong>do</strong>s mais excita<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Ao menos, ele era um <strong>do</strong>s poucos admiti<strong>do</strong>s nas galerias <strong>do</strong> estádio durante a aplicação<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s jovens de 18 anos. Seu irmão mais velho estava para ser aplica<strong>do</strong>, então<<strong>br</strong> />

seus pais se candidataram para receberem ingressos para assistir o evento e eles<<strong>br</strong> />

permitiram que Ben fizesse isso também. Mas quan<strong>do</strong> Multivac escolheu entre to<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

os inscritos, foi Ben quem recebeu o ingresso.<<strong>br</strong> />

Dois anos mais tarde, o próprio Ben seria aplica<strong>do</strong>, mas ver seu irmão mais velho<<strong>br</strong> />

Michael agora era a melhor coisa mais próxima disso.<<strong>br</strong> />

Seu pais tinham o vesti<strong>do</strong> (ou supervisionaram ele nisso, de qualquer maneira)<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> to<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong>, <strong>com</strong>o representante da família e o enviaram <strong>com</strong> várias mensagens<<strong>br</strong> />

para Michael, que tinha saí<strong>do</strong> de casa dias atrás para os exames físicos e neurológicos<<strong>br</strong> />

preliminares.<<strong>br</strong> />

O estádio era nos arre<strong>do</strong>res da cidade e Ben, apenas explodin<strong>do</strong> <strong>com</strong> seu próprio<<strong>br</strong> />

orgulho, foi leva<strong>do</strong> ao seu lugar. Abaixo dele, agora, havia filas e filas de centenas de<<strong>br</strong> />

centenas de jovens de 18 anos (rapazes a direita, moças a esquerda), to<strong>do</strong>s <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

distrito de Baltimore. Em várias épocas <strong>do</strong> ano, eventos similares estariam<<strong>br</strong> />

ocorren<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, mas este era Baltimore, este era o importante. Lá embaixo<<strong>br</strong> />

(em algum lugar) estava Mike, o próprio irmão de Ben.<<strong>br</strong> />

Ben olhou o topo das cabeças, pensan<strong>do</strong> de que algum mo<strong>do</strong> ele poderia reconhecer<<strong>br</strong> />

seu irmão. Ele não conseguiu, é claro, porém um homem apareceu na plataforma<<strong>br</strong> />

erguida em frente da multidão e Ben parou de olhar para escutar.<<strong>br</strong> />

O homem disse, "Boa tarde, Aplicantes e Convida<strong>do</strong>s. Eu sou Ran<strong>do</strong>lph T. Hoch, no<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>an<strong>do</strong> das cerimonias de Baltimore este ano. Os aplicantes me conheceram várias<<strong>br</strong> />

vezes durante o programa de testes físicos e neurológicos deste exame. Grande parte<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> trabalho está feito, mas a parte mais importante foi deixada por ultimo. O próprio<<strong>br</strong> />

aplicante, sua personalidade, deve ir para os arquivos de Multivac.<<strong>br</strong> />

"Cada ano, isto requer algumas explicações para os jovens que chegam à idade<<strong>br</strong> />

adulta. Até agora" (ele se voltou para os jovens diante dele e seus olhos não voltaram<<strong>br</strong> />

para a galeria) "você não eram adultos, vocês não eram indivíduos aos olhos de<<strong>br</strong> />

Multivac exceto quan<strong>do</strong> vocês eram especialmente separa<strong>do</strong>s <strong>com</strong>o tal por seus pais


ou seu governo.<<strong>br</strong> />

"Até agora, quan<strong>do</strong> o tempo para a atualização anual de informação chegava,<<strong>br</strong> />

eram seus pais quem <strong>com</strong>pletavam os da<strong>do</strong>s so<strong>br</strong>e vocês. Agora chegou a hora para<<strong>br</strong> />

vocês assumirem esse dever vocês mesmos. É uma grande honra, é uma grande responsabilidade.<<strong>br</strong> />

Seus pais nos contaram que educação vocês tiveram, quais <strong>do</strong>enças,<<strong>br</strong> />

quais hábitos, um grande número de coisas. Mas agora vocês precisam nos contar<<strong>br</strong> />

muito mais, seus pensamentos mais pessoais; seus necessidades mais secretas.<<strong>br</strong> />

"Isto é difícil de fazer na primeira vez, até embaraçoso, mas precisa ser feito. Uma<<strong>br</strong> />

vez feito, Multivac terá uma analise <strong>com</strong>pleta de to<strong>do</strong>s vocês em seus arquivos. Ele<<strong>br</strong> />

vai entender suas ações e reações. Ele será até capaz de prever <strong>com</strong> precisão razoável<<strong>br</strong> />

as suas futuras ações e reações.<<strong>br</strong> />

"Desta forma, Multivac protegerá vocês. Se vocês estiverem em perigo de acidente,<<strong>br</strong> />

ele saberá. Se alguém pensar em ferir vocês, ele saberá. Se vocês pensarem em<<strong>br</strong> />

ferir alguém, ele saberá e vocês serão para<strong>do</strong>s a tempo para que não seja necessário<<strong>br</strong> />

punir vocês.<<strong>br</strong> />

"Com seu conhecimento de to<strong>do</strong>s vocês, Multivac será capaz de ajudar a Terra a<<strong>br</strong> />

ajustar sua economia e suas leis para o bem de to<strong>do</strong>s. Se você tiver um problema<<strong>br</strong> />

pessoal, vocês poderão vir até Multivac <strong>com</strong> ele e <strong>com</strong> seu conhecimento de to<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

vocês, Multivac será capaz de ajuda-os.<<strong>br</strong> />

"Agora vocês tem vários formulários para preencher. Pensem cuida<strong>do</strong>samente e<<strong>br</strong> />

respondam acuradamente <strong>com</strong>o puderem. Não escondam nada por vergonha ou precaução.<<strong>br</strong> />

Ninguém saberá suas respostas exceto Multivac a não ser que seja necessário<<strong>br</strong> />

conhecer as respostas para poder protegê-os. E então apenas oficiais autoriza<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> governo saberão.<<strong>br</strong> />

"Pode ocorrer a vocês esticar a verdade um pouquinho aqui ou ali. Não façam isso.<<strong>br</strong> />

Nós saberemos se vocês o fizerem. Todas as suas respostas formam um padrão. Se<<strong>br</strong> />

algumas respostas forem falsas, elas não <strong>com</strong>binaram <strong>com</strong> o padrão e Multivac as<<strong>br</strong> />

desco<strong>br</strong>irá. Se todas as suas respostas forem falsas, haverá um padrão distorci<strong>do</strong> de<<strong>br</strong> />

um tipo que Multivac reconhecerá. Então vocês devem dizer a verdade."<<strong>br</strong> />

Eventualmente, no entanto, tu<strong>do</strong> estava termina<strong>do</strong>: o preenchimento de formulários;<<strong>br</strong> />

as cerimonias e os discursos que se seguiram.<<strong>br</strong> />

À tarde, Ben, de pé nas pontas <strong>do</strong>s pés, finalmente viu Michael, que ainda vestia a<<strong>br</strong> />

toga que tinha usa<strong>do</strong> durante a "parada <strong>do</strong>s adultos". Eles se cumprimentaram <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

júbilo.<<strong>br</strong> />

Eles dividiram um jantar leve e tomaram o expresso para casa, vivos e acesos <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

a grandeza <strong>do</strong> dia.<<strong>br</strong> />

Eles não estavam prepara<strong>do</strong>s, portanto, para a transição súbita ao chegar em<<strong>br</strong> />

casa. Foi um choque ator<strong>do</strong>ante para ambos serem para<strong>do</strong>s por um rapaz de rosto<<strong>br</strong> />

frio num uniforme <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da própria porta da frente da cada deles; terem<<strong>br</strong> />

seus <strong>do</strong>cumentos inspeciona<strong>do</strong>s antes que pudessem entrar em sua própria casa;<<strong>br</strong> />

encontrarem seus pais senta<strong>do</strong>s desesperança<strong>do</strong>s na sala de estar, a marca da tragédia<<strong>br</strong> />

em seus rostos.<<strong>br</strong> />

Joseph Manners, parecen<strong>do</strong> muito mais velho <strong>do</strong> que era naquela manhã, olhou de<<strong>br</strong> />

seus olhos confusos, afunda<strong>do</strong>s para seus filhos (um <strong>com</strong> a toga de sua maturidade<<strong>br</strong> />

ainda so<strong>br</strong>e o <strong>br</strong>aço) e disse, "Parece que eu estou sob prisão <strong>do</strong>miciliar."<<strong>br</strong> />

Bernard Gulliman não podia e não leu o relatório to<strong>do</strong>. Ele apenas leu o resumo e<<strong>br</strong> />

aquilo foi muito gratificante, de fato.<<strong>br</strong> />

Uma geração inteira, parecia, cresceu acostumada ao fato que Multivac podia pre-


ver a ocorrência de crimes graves. Eles aprenderam que Agente Correcionais estariam<<strong>br</strong> />

em cena antes que o crime pudesse ser <strong>com</strong>eti<strong>do</strong>. Eles desco<strong>br</strong>iram que a consumação<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> crime levava à inevitável punição. Gradualmente, eles foram convenci<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

que não havia maneira de alguém enganar Multivac.<<strong>br</strong> />

O resulta<strong>do</strong> foi, naturalmente, que até a intenção de crime caiu. E <strong>com</strong>o tais intenções<<strong>br</strong> />

caíram e <strong>com</strong>o a capacidade de Multivac foi aumentada, crimes menores puderam<<strong>br</strong> />

ser adiciona<strong>do</strong>s à lista que ele podia prever a cada manhã, e esses crimes, também,<<strong>br</strong> />

estavam diminuin<strong>do</strong> sua incidência.<<strong>br</strong> />

Então Gulliman tinha ordena<strong>do</strong> que fosse feita uma analise (por Multivac naturalmente)<<strong>br</strong> />

da capacidade de Multivac de voltar sua atenção ao problema de prever as<<strong>br</strong> />

probabilidades de incidência de <strong>do</strong>enças. Médicos poderiam ser alerta<strong>do</strong>s para certos<<strong>br</strong> />

pacientes que poderiam desenvolver diabetes no ano que vem, ou sofrer um ataque<<strong>br</strong> />

de tuberculose, ou desenvolver um câncer<<strong>br</strong> />

Um grama de prevenção...<<strong>br</strong> />

E o relatório era favorável!<<strong>br</strong> />

Depois disso, a lista <strong>do</strong>s possíveis crimes <strong>do</strong> dia chegou e não havia um assassinato<<strong>br</strong> />

em primeiro grau na lista.<<strong>br</strong> />

Gulliman ligou para Ali Othman num grande bom humor. "Othman, <strong>com</strong>o os números<<strong>br</strong> />

de crimes das listas diárias da semana passada se <strong>com</strong>param <strong>com</strong> aqueles na minha<<strong>br</strong> />

primeira semana <strong>com</strong>o Diretor?"<<strong>br</strong> />

Eles tinham caí<strong>do</strong>, aparentemente, em 8 por cento e Gulliman estava realmente feliz.<<strong>br</strong> />

Nenhuma falha sua, mas o eleitora<strong>do</strong> poderia não saber disso. Ele agradeceu sua<<strong>br</strong> />

sorte que ele tivesse chega<strong>do</strong> no momento certo, no próprio clímax <strong>do</strong> Multivac,<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>ença, também, poderia ser colocada sob seu a<strong>br</strong>angente e protetor conhecimento.<<strong>br</strong> />

Gulliman prosperaria <strong>com</strong> isso.<<strong>br</strong> />

Othman deu de om<strong>br</strong>os. "Bem, ele está feliz."<<strong>br</strong> />

"Quan<strong>do</strong> nós estouramos a bolha?" disse Lemmy "Colocar Manners sob observação<<strong>br</strong> />

apenas aumentou as probabilidades, e a prisão <strong>do</strong>miciliar deu outro aumento nelas."<<strong>br</strong> />

"E eu não sei disso?" Disse Othman rabugentamente. "O que eu não sei é porque."<<strong>br</strong> />

"Cúmplices, talvez, <strong>com</strong>o você disse. Com Manners <strong>com</strong> problemas, o resto teria<<strong>br</strong> />

que atacar de uma vez ou desistirem."<<strong>br</strong> />

"Apenas a ultima opção. Com as nossas mãos em um, o resto fugiria para um lugar<<strong>br</strong> />

seguro e desapareceria. Alem disso, porque os cúmplices não foram identifica<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

por Multivac?"<<strong>br</strong> />

"Bem, então, contamos ao Gulliman?"<<strong>br</strong> />

"Não, ainda não. As probabilidades ainda são apenas de 17,3%. Vamos deixar que<<strong>br</strong> />

fiquem um pouco mais drásticas primeiro."<<strong>br</strong> />

Elizabeth Manners disse ao seu filho caçula, "Vá para seu quarto, Ben."<<strong>br</strong> />

"Mas o que está acontecen<strong>do</strong>, Mãe?" Ben perguntou, a voz que<strong>br</strong>an<strong>do</strong> <strong>com</strong> este<<strong>br</strong> />

estranho final para o que tinha si<strong>do</strong> um dia glorioso.<<strong>br</strong> />

"Por favor!"<<strong>br</strong> />

Ele saiu relutantemente, passan<strong>do</strong> pela porta que levava à escada, subin<strong>do</strong> fazen<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

barulho e descen<strong>do</strong> de novo em silencio.<<strong>br</strong> />

E Mike Manners, o filho mais velho, o novo adulto e a esperança da família, disse<<strong>br</strong> />

em uma voz e tom que espelhava a de seu irmão, "O que está acontecen<strong>do</strong>?"


Joe Manners disse, "Com o céu <strong>com</strong>o minha testemunha, filho, eu não sei. Eu não<<strong>br</strong> />

fiz nada."<<strong>br</strong> />

"Bem, claro que você não fez nada." Mike olhou para seu franzino, pacifico pai em<<strong>br</strong> />

espanto. "Eles devem estar aqui porque você esta pensan<strong>do</strong> em fazer alguma coisa."<<strong>br</strong> />

"Eu não estou."<<strong>br</strong> />

A Sra. Manners interrompeu irada, "Como ele pode estar pensan<strong>do</strong> em fazer algo<<strong>br</strong> />

que merecesse tu<strong>do</strong> - tu<strong>do</strong> isso." Ela sacudiu o <strong>br</strong>aço, num gesto para a concha fechada<<strong>br</strong> />

de homens <strong>do</strong> governo ao re<strong>do</strong>r da casa. "Quan<strong>do</strong> eu era uma garotinha, lem<strong>br</strong>o<<strong>br</strong> />

que o pai de um amigo meu estava trabalhan<strong>do</strong> em um banco, e eles o chamaram<<strong>br</strong> />

uma vez e disseram para deixar o dinheiro em paz e ele deixou. Eram cinquenta<<strong>br</strong> />

mil dólares Ele não tinha realmente pego. Ele estava apenas pensan<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e pegar<<strong>br</strong> />

isso. Eles não mantinham essas coisas confidenciais naqueles dias <strong>com</strong>o agora; a história<<strong>br</strong> />

se espalhou. É <strong>com</strong>o eu soube a respeito disso.<<strong>br</strong> />

"Mas eu quero dizer," ela continuou, esfregan<strong>do</strong> juntas suas mãos rechonchudas<<strong>br</strong> />

lentamente, "eram cinquenta mil dólares; cinquenta - mil – dólares Ainda tu<strong>do</strong> que<<strong>br</strong> />

eles fizeram foi chamá-lo; um telefonema. O que seu pai poderia estar planejan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

para que fosse preciso a vinda de uma duzia de homens e cercar a casa?"<<strong>br</strong> />

Joe Manners disse, os olhos cheios de <strong>do</strong>r, "Eu não estou planejan<strong>do</strong> nenhum crime,<<strong>br</strong> />

nem o menor deles. Eu juro."<<strong>br</strong> />

Mike, cheio da consciente sabe<strong>do</strong>ria de um novo adulto, disse, "Talvez é alguma<<strong>br</strong> />

coisa inconsciente, pai. Algum ressentimento contra seu supervisor."<<strong>br</strong> />

"Para que eu quisesse mata-o? Não!"<<strong>br</strong> />

"Eles não te contaram o que é, pai?"<<strong>br</strong> />

Sua mãe interrompeu de novo, "Não, eles não contaram. Nós perguntamos. Eu<<strong>br</strong> />

disse que eles estavam arruinan<strong>do</strong> a nossa permanência na <strong>com</strong>unidade só por estarem<<strong>br</strong> />

aqui. O minimo que eles podiam fazer é nos dizer so<strong>br</strong>e o que é tu<strong>do</strong> isso para<<strong>br</strong> />

que nós pudéssemos nos defender, para que pudéssemos explicar."<<strong>br</strong> />

"E eles não contaram?"<<strong>br</strong> />

"Eles não contaram."<<strong>br</strong> />

Mike se levantou <strong>com</strong> suas pernas separadas e suas mãos nos bolsos. Ele disse,<<strong>br</strong> />

preocupa<strong>do</strong>, "Nossa, mãe, Multivac não <strong>com</strong>ete erros."<<strong>br</strong> />

Seu pai bateu seu punho, sentin<strong>do</strong>-se indefeso, no <strong>br</strong>aço <strong>do</strong> sofá. "Eu digo a você<<strong>br</strong> />

que eu não estou planejan<strong>do</strong> crime algum."<<strong>br</strong> />

A porta se a<strong>br</strong>iu sem uma batida e um homem de uniforme entrou <strong>com</strong> passos largos,<<strong>br</strong> />

decidi<strong>do</strong>s. Seu rosto tinha uma aparência oficial, vidrada. Ele disse, "Você é Joseph<<strong>br</strong> />

Manners?"<<strong>br</strong> />

Joe Manners se levantou. "Sim. Agora o que você quer de mim?"<<strong>br</strong> />

"Joseph Manners, você está preso por ordem <strong>do</strong> governo," e apresentou rapidamente<<strong>br</strong> />

sua identificação <strong>com</strong>o um oficial correcional. "Eu devo pedir que venha <strong>com</strong>igo."<<strong>br</strong> />

"Por qual razão? O que eu fiz?"<<strong>br</strong> />

"Eu não tenho permissão para discutir isso."<<strong>br</strong> />

"Mas eu não posso ser preso apenas por planejar um crime até se eu estiver fazen<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

isso. Para ser preso, eu preciso ter feito alguma coisa. Você não pode me<<strong>br</strong> />

prender de outra maneira. É contra a lei."<<strong>br</strong> />

O oficial era impermeável à logica. "Você terá que vir <strong>com</strong>igo."<<strong>br</strong> />

A Sra. Manners gritou e caiu no sofá, choran<strong>do</strong> histericamente. Joseph Manners<<strong>br</strong> />

não podia se forçar a violar o código impresso nele por toda sua vida para realmente<<strong>br</strong> />

resistir a um oficial, mas ele se demorava, forçan<strong>do</strong> o oficial correcional a usar força<<strong>br</strong> />

muscular para puxa-o para a frente.


E Manners perguntava enquanto ia, "Mas diga-me o que é. Apenas me diga. Se eu<<strong>br</strong> />

soubesse - É homicídio? Eu devo supostamente estar planejan<strong>do</strong> um assassinato?"<<strong>br</strong> />

A porta se fechou atrás dele e Mike Manners, rosto páli<strong>do</strong> e de repente não se sentin<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

nada adulto, olhou primeiro para a porta, então para sua mãe que chorava.<<strong>br</strong> />

Ben Manners, atrás da porta e de repente se sentin<strong>do</strong> muito adulto, apertou seus<<strong>br</strong> />

lábios e pensou que ele sabia exatamente o que fazer.<<strong>br</strong> />

Se Multivac tirou, Multivac podia também devolver. Ben tinha esta<strong>do</strong> nas cerimonias<<strong>br</strong> />

naquele mesmo dia. Ele tinha ouvi<strong>do</strong> aquele homem, Ran<strong>do</strong>lph Hoch, falar de<<strong>br</strong> />

Multivac e de tu<strong>do</strong> que Multivac podia fazer. Ele podia dirigir o governo e ele podia<<strong>br</strong> />

também se des<strong>do</strong><strong>br</strong>ar e ajudar qualquer pessoa <strong>com</strong>um que viesse a ele procuran<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

por ajuda.<<strong>br</strong> />

Qualquer um podia pedir a ajuda de Multivac e qualquer um significava Ben.<<strong>br</strong> />

Nem sua mãe, nem Mike estavam em condições de pará-o agora, e ele tinha algum<<strong>br</strong> />

dinheiro que tinha so<strong>br</strong>a<strong>do</strong> da quantia que eles tinham da<strong>do</strong> a ele para sua<<strong>br</strong> />

grande viagem naquele dia. Se mais tarde eles desco<strong>br</strong>issem que eles tinha sumi<strong>do</strong> e<<strong>br</strong> />

se preocupassem <strong>com</strong> isso, paciência. Agora, sua primeira lealdade era <strong>com</strong> seu pai.<<strong>br</strong> />

Ele correu para a saída <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s e o oficial na porta olhou para seus <strong>do</strong>cumentos<<strong>br</strong> />

e deixou ele ir.<<strong>br</strong> />

Harold Quimby cuidava <strong>do</strong> departamento de perguntas da Subestação Baltimore<<strong>br</strong> />

de Multivac. Ele se considerava um mem<strong>br</strong>o <strong>do</strong> <strong>br</strong>aço <strong>do</strong> serviço civil que era o mais<<strong>br</strong> />

importante de to<strong>do</strong>s. De certa forma, ele podia estar certo, e aqueles que o ouviam<<strong>br</strong> />

discutin<strong>do</strong> o assunto tinham que ser feitos de ferro para não se impressionar.<<strong>br</strong> />

Uma coisa era que, Quimby poderia dizer, Multivac era essencialmente um invasor<<strong>br</strong> />

de privacidade. Nos últimos cinquenta anos, a humanidade tinha que aceitar que<<strong>br</strong> />

seus pensamentos e impulsos não eram mais segre<strong>do</strong>, que ela não tinha nenhum<<strong>br</strong> />

canto secreto onde podia esconder qualquer coisa. E a humanidade tinha que ter<<strong>br</strong> />

algo em retorno.<<strong>br</strong> />

É claro, ela conseguiu prosperidade, paz e segurança, mas isso era abstrato.<<strong>br</strong> />

Cada homem e mulher precisava de algo pessoal <strong>com</strong>o seu ou sua re<strong>com</strong>pensa<<strong>br</strong> />

por aban<strong>do</strong>nar a privacidade, e cada um conseguiu isso. Ao alcance de cada ser humano<<strong>br</strong> />

havia uma estação <strong>do</strong> Multivac <strong>com</strong> sistemas nos quais ele podia gratuitamente<<strong>br</strong> />

entrar <strong>com</strong> seu próprios problemas e perguntas sem controle ou censura, e <strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

quais, em questão de minutos, ele receberia respostas.<<strong>br</strong> />

A qualquer momento, cinco milhões de circuitos individuais <strong>do</strong> quadrilhão ou mais<<strong>br</strong> />

de Multivac poderiam estar envolvi<strong>do</strong>s neste programa de pergunta-e-resposta.<<strong>br</strong> />

As respostas poderiam não ser sempre as certas, mas eram as melhores disponíveis,<<strong>br</strong> />

e cada questiona<strong>do</strong>r sabia que a resposta era a melhor disponível e tinha fé<<strong>br</strong> />

nela. Era isso que contava.<<strong>br</strong> />

E agora um jovem ansioso de 16 anos lentamente apareceu da fila de homens e<<strong>br</strong> />

mulheres que aguardavam (cada rosto naquela fila ilumina<strong>do</strong> por uma diferente mistura<<strong>br</strong> />

de esperança <strong>com</strong> me<strong>do</strong> ou ansiedade ou até angustia - sempre <strong>com</strong> a esperança<<strong>br</strong> />

pre<strong>do</strong>minan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a pessoa se aproximava cada vez mais de Multivac).<<strong>br</strong> />

Sem olhar para cima, Quimby pegou o formulário preenchi<strong>do</strong> que estava sen<strong>do</strong> entregue<<strong>br</strong> />

a ele e disse, "Cabine 5-B."<<strong>br</strong> />

Ben disse, "Como eu faço uma pergunta, senhor?"<<strong>br</strong> />

Quimby olhou para cima então, <strong>com</strong> um pouco de surpresa. Para adultos geralmente<<strong>br</strong> />

não faziam uso <strong>do</strong> serviço. Ele disse gentilmente, "Você já fez isso antes, filho?"


"Não, senhor."<<strong>br</strong> />

Quimby apontou para o modelo em sua mesa. "Você usa isto. Você vê <strong>com</strong>o funciona?<<strong>br</strong> />

Como uma máquina de escrever. Não tente escrever ou imprimir nada <strong>com</strong> a<<strong>br</strong> />

mão. Apenas use a máquina. Agora você vai até a cabine 5-B, e se você precisar de<<strong>br</strong> />

ajuda, apenas aperte o botão vermelho e alguém irá aparecer. Desce aquele corre<strong>do</strong>r,<<strong>br</strong> />

filho, à direita."<<strong>br</strong> />

Ele olhou o jovem descer pelo corre<strong>do</strong>r e sair da vista e sorriu. Ninguém nunca tinha<<strong>br</strong> />

se afasta<strong>do</strong> de Multivac. É claro, sempre havia uma certa porcentagem de cultura<<strong>br</strong> />

inútil: pessoas que perguntavam questões pessoais so<strong>br</strong>e seus vizinhos ou perguntas<<strong>br</strong> />

obscenas so<strong>br</strong>e personalidades proeminentes; estudantes tentan<strong>do</strong> enganar<<strong>br</strong> />

seus professores ou achan<strong>do</strong>-se espertos para atrapalhar Multivac perguntan<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e<<strong>br</strong> />

o Para<strong>do</strong>xo da Classe-de-Todas-As-Classes de Russell e por ai afora.<<strong>br</strong> />

Multivac podia cuidar de tu<strong>do</strong> aquilo. Ele não precisava de ajuda.<<strong>br</strong> />

Além disso, cada pergunta e resposta era <strong>com</strong>posta e formada, mais outro item de<<strong>br</strong> />

fato monta<strong>do</strong> para cada individuo. Até a questão mais trivial e a mais impertinente,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o refletiam a personalidade <strong>do</strong> questiona<strong>do</strong>r, ajudavam a humanidade por ajudarem<<strong>br</strong> />

Multivac a conhecer a humanidade.<<strong>br</strong> />

Quimby voltou sua atenção para a próxima pessoa na fila, uma mulher de meiaidade,<<strong>br</strong> />

descarnada e angular, <strong>com</strong> um olhar problemático em seus olhos.<<strong>br</strong> />

Ali Othman andava pelo <strong>com</strong>primento de seu escritório, seus pés baten<strong>do</strong> desesperadamente<<strong>br</strong> />

no carpete. "A probabilidade ainda sobe. É de 22,4% agora. Droga! Nós<<strong>br</strong> />

temos Joseph Manners realmente preso e ainda sobe." Ele transpirava claramente.<<strong>br</strong> />

Lemmy se afastou <strong>do</strong> telefone. "Nenhuma confissão ainda. Ele está sob Sondagem<<strong>br</strong> />

Psíquica e não há sinal de crime. Ele pode estar dizen<strong>do</strong> a verdade."<<strong>br</strong> />

Othman disse, "Então Multivac está louco?"<<strong>br</strong> />

Outro telefone tocou para a vida. Othman atendeu rapidamente, feliz pela interrupção.<<strong>br</strong> />

O rosto de um oficial correcional veio à vida na tela. O oficial perguntou, "Senhor,<<strong>br</strong> />

há alguma instrução para a família Manners? Eles tem permissão de ir e vir<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o sempre?"<<strong>br</strong> />

"O que você quer dizer, <strong>com</strong>o sempre?"<<strong>br</strong> />

"As instruções originais eram para a prisão <strong>do</strong>miciliar de Joseph Manners. Nada foi<<strong>br</strong> />

dito so<strong>br</strong>e o resto da família, senhor."<<strong>br</strong> />

"Bem, estenda para o resto da família até que você seja informa<strong>do</strong> em contrario."<<strong>br</strong> />

"Senhor, este é o ponto. A mãe e o filho mais velho exigem informações so<strong>br</strong>e o filho<<strong>br</strong> />

caçula. O filho mais novo sumiu e eles afirmam que ele está sob custódia e desejam<<strong>br</strong> />

ir até o quartel-general perguntar so<strong>br</strong>e isso."<<strong>br</strong> />

Othman enrugou a testa e disse quase num cochicho. "Filho mais novo? O quanto<<strong>br</strong> />

mais novo?"<<strong>br</strong> />

"Dezesseis, senhor."<<strong>br</strong> />

"Dezesseis e ele sumiu. Você não sabe para onde?"<<strong>br</strong> />

"Ele teve permissão de sair, senhor. Não havia ordens para segurá-lo."<<strong>br</strong> />

"Espere na linha. Não se mova." Othman colocou a ligação em suspenso, então<<strong>br</strong> />

desarrumou seu cabelo preto-carvão <strong>com</strong> ambas as mãos e gritou, "Burro! Burro!<<strong>br</strong> />

Burro!"<<strong>br</strong> />

Lemmy se assustou. "Que diabos?"<<strong>br</strong> />

"O homem tem um filho de 16 anos," engasgou Othman. "Um garoto de 16 anos<<strong>br</strong> />

não é um adulto e não é registra<strong>do</strong> independentemente por Multivac, mas apenas<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o parte <strong>do</strong> arquivo de seu pai." Ele olhou para Lemmy "To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não sabe


que até <strong>com</strong>pletar 18 um jovem não preenche seus próprios relatórios para Multivac<<strong>br</strong> />

mas que seu pai faz isso por ele? Eu não sei disso? Você não sabe?"<<strong>br</strong> />

“Você quer dizer que Multivac não quis dizer Joe Manners?" disse Lemmy<<strong>br</strong> />

"Multivac quis dizer seu filho menor, e o jovem sumiu, agora. Com um monte de<<strong>br</strong> />

oficiais ao re<strong>do</strong>r de sua casa, ele calmamente sai e vai em você sabe qual missão."<<strong>br</strong> />

Ele retornou para o circuito de telefone no qual o oficial correcional ainda esperava,<<strong>br</strong> />

a pausa de um minuto dan<strong>do</strong> a Othman tempo suficiente para se re<strong>com</strong>por e assumir<<strong>br</strong> />

um semblante frio e controla<strong>do</strong>. (Não poderia ter um ataque diante <strong>do</strong>s olhos<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> oficial, não importan<strong>do</strong> o quanto isso ajudaria em purgar sua angustia.)<<strong>br</strong> />

Ele disse, "Oficial, localize o jovem que desapareceu. Use cada homem que você<<strong>br</strong> />

tenha, se necessário. Use cada homem disponível no distrito, se necessário. Eu darei<<strong>br</strong> />

as ordens apropriadas. Você precisa encontrar aquele garoto custe o que custar."<<strong>br</strong> />

"Sim, senhor."<<strong>br</strong> />

A ligação foi cortada. Othman disse, "Corra outra vez as probabilidades, Lemmy"<<strong>br</strong> />

Cinco minutos depois, Lemmy disse, "Desceu para 19,6 por cento. Caiu."<<strong>br</strong> />

Othman respirou fun<strong>do</strong>. "Nós estamos no caminho certo afinal."<<strong>br</strong> />

Ben Manners sentou-se na Cabine 5-B e digitou lentamente, "Meu nome é Benjamin<<strong>br</strong> />

Manners, numero MB-71833412. Meu pai, Joseph Manners, foi preso mas não<<strong>br</strong> />

sabemos qual crime ele está planejan<strong>do</strong>. Há alguma maneira para nós podermos ajuda-o?"<<strong>br</strong> />

Ele se sentou e esperou. Ele podia ter apenas 16 anos mas ele era velho o suficiente<<strong>br</strong> />

para saber que em algum lugar aquelas palavras estavam sen<strong>do</strong> carregadas na<<strong>br</strong> />

mais <strong>com</strong>plexa estrutura jamais concebida pelo homem; que um trilhão de fatos seriam<<strong>br</strong> />

mistura<strong>do</strong>s e coordena<strong>do</strong>s num conjunto, e daquele conjunto, Multivac podia<<strong>br</strong> />

abstrair a melhor ajuda.<<strong>br</strong> />

A máquina fez um barulho e um cartão emergiu. Tinha uma resposta nele, uma<<strong>br</strong> />

longa resposta. Começava, "Pegue o expresso para Washington, D.C. Agora mesmo.<<strong>br</strong> />

Desça na parada da Avenida Connecticut. Você vai encontrar uma saída especial,<<strong>br</strong> />

marcada "Multivac" <strong>com</strong> um guarda. Informe o guarda que você é um courier especial<<strong>br</strong> />

para o Dr. Trumbull e ele vai deixá-o entrar.<<strong>br</strong> />

"Você estará em um corre<strong>do</strong>r. Continue por ele até você chegar a uma pequena<<strong>br</strong> />

porta marcada "Interior". Entre e diga aos homens lá dentro, "Mensagem para o<<strong>br</strong> />

Doutor Trumbull." Você terá permissão para passar. Proceda ---"<<strong>br</strong> />

Continuava dessa maneira. Ben não podia ver a ligação <strong>com</strong> sua pergunta, mas ele<<strong>br</strong> />

tinha fé <strong>com</strong>pleta em Multivac. Ele saiu corren<strong>do</strong>, na direção <strong>do</strong> expresso para Washington.<<strong>br</strong> />

Os oficiais Correcionais traçaram Ben Manners até a estação de Baltimore uma<<strong>br</strong> />

hora depois que ele saiu. Um choca<strong>do</strong> Harold Quimby se encontrou aterroriza<strong>do</strong> <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

o numero e a importância <strong>do</strong>s homens que se focavam nele na procura por um jovem<<strong>br</strong> />

de 16 anos.<<strong>br</strong> />

"Sim, um garoto," ele disse, "mas eu não sei para onde ele foi depois que ele saiu<<strong>br</strong> />

daqui. Eu não tinha jeito de saber que alguém estava procuran<strong>do</strong> por ele. Nós aceitamos<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong>s os usuários aqui. Sim, eu posso pegar o registro da questão e da resposta."<<strong>br</strong> />

Eles olharam para o registro e o televisionaram para o Quartel-General Central<<strong>br</strong> />

imediatamente.<<strong>br</strong> />

Othman leu aquilo, rolou seus olhos e desmaiou. Eles o despertaram quase imediatamente.<<strong>br</strong> />

Ele disse para Lemmy fracamente, "Faça <strong>com</strong> que eles peguem aquele ga-


oto. E tire uma cópia da resposta de Multivac para mim. Não há mais saída, nenhuma<<strong>br</strong> />

saída agora. Eu tenho que ver Gulliman agora."<<strong>br</strong> />

Bernard Gulliman nunca tinha visto antes Ali Othman tão perturba<strong>do</strong>, e ver os<<strong>br</strong> />

olhos selvagens <strong>do</strong> coordena<strong>do</strong>r agora enviou um toque de água gelada espinha<<strong>br</strong> />

abaixo.<<strong>br</strong> />

Ele gaguejou, "O que você quer dizer, Othman? O que você quer dizer <strong>com</strong> pior<<strong>br</strong> />

que assassinato?"<<strong>br</strong> />

"Muito pior <strong>do</strong> que apenas assassinato."<<strong>br</strong> />

Gulliman estava bem páli<strong>do</strong> "Você quer dizer o assassinato de uma alta autoridade<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> governo?" (Passou pela mente dele que ele mesmo ----)<<strong>br</strong> />

Othman aquiesceu. "Não apenas uma autoridade governamental. A autoridade governamental."<<strong>br</strong> />

"O Secretário-Geral?" Gulliman disse num cochicho assusta<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

"Mais <strong>do</strong> que isso, até. Muito mais. Nós lidamos <strong>com</strong> um plano para assassinar<<strong>br</strong> />

Multivac!"<<strong>br</strong> />

"O Que!"<<strong>br</strong> />

"Pela primeira vez na história <strong>do</strong> Multivac, o <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r emitiu um relatório que<<strong>br</strong> />

ele mesmo estava em perigo."<<strong>br</strong> />

"Porque eu não fui informa<strong>do</strong> de uma vez?"<<strong>br</strong> />

Othman contou a verdade parcialmente. "A situação era tão sem precedentes, senhor,<<strong>br</strong> />

que nós exploramos a situação primeiro antes de pensar em coloca-a no registro<<strong>br</strong> />

oficial."<<strong>br</strong> />

"Mas Multivac foi salvo, não é? Ele foi salvo?"<<strong>br</strong> />

"As probabilidades de dano caíram para abaixo de 4%. Eu estou esperan<strong>do</strong> pelo<<strong>br</strong> />

relatório agora."<<strong>br</strong> />

"Mensagem para o Doutor Trumbull," disse Ben Manners para o homem na cabina,<<strong>br</strong> />

trabalhan<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>samente no que parecia ser os controles de um cruza<strong>do</strong>r estratosférico<<strong>br</strong> />

a jato, enormemente desenvolvi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

"Claro, Jim. " disse o homem. "Vá em frente."<<strong>br</strong> />

Ben olhou para as instruções e correu. Eventualmente, ele encontraria uma pequena<<strong>br</strong> />

alavanca de controle a qual ele devia mudar para a posição BAIXO no momento<<strong>br</strong> />

em que uma certa luz indica<strong>do</strong>ra ficasse vermelha.<<strong>br</strong> />

Ele ouviu uma voz agitada atrás dele, então outra, e subitamente, <strong>do</strong>is homens o<<strong>br</strong> />

seguravam pelos cotovelos. Seus pés foram levanta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> chão.<<strong>br</strong> />

Um homem disse, "Venha conosco, garoto."<<strong>br</strong> />

A face de Ali Othman não ficou mais tranquila <strong>com</strong> as noticias, até quan<strong>do</strong> Gulliman<<strong>br</strong> />

disse <strong>com</strong> grande alivio, "Se nós temos o garoto, então Multivac está seguro."<<strong>br</strong> />

"Por enquanto."<<strong>br</strong> />

Gulliman colocou uma mão tremula na testa. "Que meia hora eu tive. Você pode<<strong>br</strong> />

imaginar o que a destruição de Multivac até mesmo por um pequeno tempo significaria.<<strong>br</strong> />

O governo entraria em colapso; a economia que<strong>br</strong>aria. Significaria uma destruição<<strong>br</strong> />

pior -" Sua cabeça se virou a<strong>br</strong>uptamente, "O que você quer dizer <strong>com</strong> por enquanto?"<<strong>br</strong> />

"O garoto, este Ben Manners, não tinha intenção de causar dano. Ele e sua família<<strong>br</strong> />

devem ser liberta<strong>do</strong>s e <strong>com</strong>pensação por prisão errônea dada a eles. Ele estava apenas<<strong>br</strong> />

seguin<strong>do</strong> as instruções de Multivac para ajudar seu pai e fez isso. Seu pai está li-


vre agora."<<strong>br</strong> />

"Você quer dizer que Multivac man<strong>do</strong>u o garoto puxar uma alavanca sob condições<<strong>br</strong> />

que queimariam circuitos suficientes para precisar de um mês de reparos? Você quer<<strong>br</strong> />

dizer que Multivac sugeriria sua própria destruição para o conforto de um homem?"<<strong>br</strong> />

"É pior <strong>do</strong> que isso, senhor. Multivac não apenas deu essas instruções <strong>com</strong>o selecionou<<strong>br</strong> />

a família Manners em primeiro lugar porque Ben Manners se parecia exatamente<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> um <strong>do</strong>s assistentes <strong>do</strong> Dr. Trumbull poden<strong>do</strong> chegar até Multivac sem ser<<strong>br</strong> />

impedi<strong>do</strong>."<<strong>br</strong> />

"O que você quer dizer <strong>com</strong> a família foi selecionada?"<<strong>br</strong> />

"Bem, o garoto nunca iria fazer a pergunta se seu pai não tivesse si<strong>do</strong> preso. Seu<<strong>br</strong> />

pai nunca teria si<strong>do</strong> preso se Multivac não o acusa<strong>do</strong> de planejar a destruição de<<strong>br</strong> />

Multivac. As próprias ações de Multivac <strong>com</strong>eçaram a série de eventos que quase<<strong>br</strong> />

causaram a destruição de Multivac."<<strong>br</strong> />

"Mas não há senti<strong>do</strong> nisso." Gulliman disse imploran<strong>do</strong>. Ele sentia-se pequeno e indefeso<<strong>br</strong> />

e ele estava virtualmente de joelhos, pedin<strong>do</strong> a este Othman, este homem<<strong>br</strong> />

que passou quase uma vida <strong>com</strong> Multivac, para reassegurá-lo.<<strong>br</strong> />

Othman não o fez. Ele disse, "Esta é a primeira tentativa de Multivac neste senti<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

até onde sei. De certa maneira, ele planejou bem. Ele escolheu a família certa. Ele<<strong>br</strong> />

cuida<strong>do</strong>samente não distinguiu entre pai e filho para nos fazer perder a pista. Ele<<strong>br</strong> />

ainda é um ama<strong>do</strong>r no jogo, no entanto. Ele não pode superar suas próprias instruções<<strong>br</strong> />

que o levaram a reportar que a probabilidade de sua própria destruição crescia<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> cada passo que tomávamos no caminho erra<strong>do</strong>. Ele não pode evitar de gravar a<<strong>br</strong> />

resposta que deu ao jovem. Com pratica suficiente, ele provavelmente vai aprender a<<strong>br</strong> />

enganar. Ele vai aprender a esconder certos fatos, falhar de registar certos outros.<<strong>br</strong> />

De agora em diante, cada instrução ele der pode ter as sementes de sua própria destruição.<<strong>br</strong> />

Nós nunca saberemos. E por mais cuida<strong>do</strong>sos que sejamos, eventualmente<<strong>br</strong> />

Multivac terá sucesso. Eu acho, Sr. Gulliman, que você será o ultimo Diretor desta organização."<<strong>br</strong> />

Gulliman socou sua mesa <strong>com</strong> fúria "Mas porque, porque, porque? Maldito seja,<<strong>br</strong> />

porque? O que está erra<strong>do</strong> <strong>com</strong> ele? Ele não pode ser conserta<strong>do</strong>?"<<strong>br</strong> />

"Eu acho que não.", disse Othman, em sutil desespero. "Eu nunca pensei so<strong>br</strong>e<<strong>br</strong> />

isso antes. Eu nunca tive a ocasião até isto acontecer, mas agora que eu penso nisso,<<strong>br</strong> />

parece-me que nós chegamos ao fim da linha porque Multivac é bom demais. Multivac<<strong>br</strong> />

se tornou tão <strong>com</strong>plexo, que suas reações não são mais de uma maquina, mas<<strong>br</strong> />

de um ser vivo."<<strong>br</strong> />

"Você está louco, mas mesmo assim?"<<strong>br</strong> />

"Por mais de cinquenta anos nós estivemos carregan<strong>do</strong> os problemas da humanidade<<strong>br</strong> />

no Multivac, neste ser vivo. Nós pedimos a ele para que cuidasse de nós, de<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong> juntos e de cada um individualmente. Nós pedimos a ele que tomasse to<strong>do</strong>s os<<strong>br</strong> />

nossos segre<strong>do</strong>s para si mesmo; nós pedimos a ele que absorvesse nosso mal e nos<<strong>br</strong> />

protegesse contra ele. Cada um de nós traz seus próprios problemas para ele, adicionan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

seu peso ao far<strong>do</strong>. Agora, nós estamos planejan<strong>do</strong> carregar o far<strong>do</strong> da <strong>do</strong>ença<<strong>br</strong> />

humana em Multivac, também."<<strong>br</strong> />

Othman fez uma pausa por um momento, então exclamou, "Sr. Gulliman, Multivac<<strong>br</strong> />

suporta to<strong>do</strong>s os problemas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em seus om<strong>br</strong>os e ele está cansa<strong>do</strong>."<<strong>br</strong> />

"Loucura. Loucura de verão." Gulliman murmurou.<<strong>br</strong> />

"Então deixe-me mostrar uma coisa. Deixe-me fazer um teste. Posso ter a permissão<<strong>br</strong> />

de usar o linha de circuito <strong>do</strong> Multivac aqui <strong>do</strong> seu escritório?"<<strong>br</strong> />

"Porque?"<<strong>br</strong> />

"Para fazer uma pergunta que ninguém nunca perguntou para Multivac antes?"


"Você vai causar danos a ele?" perguntou Gulliman em rápi<strong>do</strong> alarme.<<strong>br</strong> />

O Diretor hesitou por um momento. Então ele disse, "Vá em frente."<<strong>br</strong> />

Othman usou o instrumento na mesa de Gulliman. Seus de<strong>do</strong>s digitaram a pergunta<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> toques hábeis: "Multivac, o que você gostaria para si mais <strong>do</strong> que qualquer<<strong>br</strong> />

outra coisa?"<<strong>br</strong> />

O momento entre a pergunta e a resposta esticou-se insuportavelmente, mas nem<<strong>br</strong> />

Othman nem Gulliman respiravam.<<strong>br</strong> />

E houve um barulho e um cartão saiu. Era um cartão pequeno. Nele, em letras<<strong>br</strong> />

precisas, estava a resposta:<<strong>br</strong> />

"Eu quero morrer."


MEU NOME SE ESCREVE COM S<<strong>br</strong> />

Marshal Zebatinsky sentia-se um tolo. Era <strong>com</strong>o se houvesse olhos observan<strong>do</strong>-o<<strong>br</strong> />

através da embaçada vidraça da loja e por cima das encardidas divisórias de madeira<<strong>br</strong> />

- olhos que o vigiavam. Não confiava nas velhas roupas que tinha ressuscita<strong>do</strong> nem<<strong>br</strong> />

nas abas abaixadas <strong>do</strong> chapéu, que jamais usaria em outra situação, nem, muito menos,<<strong>br</strong> />

nos óculos que carregava no estojo.<<strong>br</strong> />

Sentia-se ridículo e isso fazia <strong>com</strong> que as rugas de sua testa ficassem mais profundas,<<strong>br</strong> />

deixan<strong>do</strong> o seu rosto precocemente envelheci<strong>do</strong> um pouco mais páli<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Nunca seria capaz de explicar a alguém por que um físico nuclear <strong>com</strong>o ele estava<<strong>br</strong> />

visitan<strong>do</strong> um numerologista. (Nunca, pensou. Nunca.) Diabo, a única justificativa que<<strong>br</strong> />

tinha era o fato de ter sucumbi<strong>do</strong> às pressões de sua mulher.<<strong>br</strong> />

O numerologista estava senta<strong>do</strong> atrás de uma mesa velha, que parecia ter si<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>prada de segunda mão. Nenhuma mesa poderia envelhecer tanto sob os cuida<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

de um só <strong>do</strong>no. O mesmo poderia ser dito de suas roupas. Era moreno, baixinho,<<strong>br</strong> />

e estu<strong>do</strong>u Zebatinsky <strong>com</strong> pequenos olhos escuros e muito vivos.<<strong>br</strong> />

- Você é o primeiro físico que tenho <strong>com</strong>o cliente, Dr. Zebatinsky.<<strong>br</strong> />

Zebatinsky corou.<<strong>br</strong> />

- Espero poder contar <strong>com</strong> sua discrição.<<strong>br</strong> />

O numerologista sorriu e as rugas vincaram o canto de sua boca, estican<strong>do</strong> a pele<<strong>br</strong> />

ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> queixo.<<strong>br</strong> />

- Todas as minhas consultas são confidenciais.<<strong>br</strong> />

- Acho que devo lhe contar uma coisa - disse Zebatinsky. - Não acredito em numerologia<<strong>br</strong> />

e nem preten<strong>do</strong> <strong>com</strong>eçar a acreditar agora. Se isso faz alguma diferença, me<<strong>br</strong> />

diga logo.<<strong>br</strong> />

- Mas então por que está aqui?<<strong>br</strong> />

- Minha mulher acha que você tem alguma coisa a dizer, seja o que for. Estou aqui<<strong>br</strong> />

porque prometi a ela que viria. - Ele deu de om<strong>br</strong>os e a sensação de estar fazen<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

uma asneira se acentuou.<<strong>br</strong> />

- O que é que você está procuran<strong>do</strong>? Dinheiro? Segurança? Vida longa? O quê?<<strong>br</strong> />

Zebatinsky silenciou por um longo momento e o numerologista o estu<strong>do</strong>u calmamente,<<strong>br</strong> />

sem fazer nenhum gesto para apressá-o.<<strong>br</strong> />

Zebatinsky pensou: O que eu digo agora? Que, apesar de ter apenas 34 anos, não<<strong>br</strong> />

tenho nenhuma perspectiva?<<strong>br</strong> />

- Quero sucesso - disse ele. - Reconhecimento.<<strong>br</strong> />

- Um trabalho melhor?<<strong>br</strong> />

- Um trabalho diferente. Um tipo diferente de trabalho. No momento, faço parte de


uma equipe, obedecen<strong>do</strong> ordens. Equipes! As pesquisas <strong>do</strong> governo são sempre assim.<<strong>br</strong> />

Você é um simples violinista perdi<strong>do</strong> no meio de uma orquestra sinfônica.<<strong>br</strong> />

- E você quer solar.<<strong>br</strong> />

- Quero sair desse anonimato e me... me projetar. - Zebatinsky se sentiu coagi<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

numa espécie de delírio, a colocar isso em palavras para alguém que não fosse sua<<strong>br</strong> />

mulher. Ele acrescentou:<<strong>br</strong> />

- Há 25 anos, <strong>com</strong> o meu tipo de preparação e a minha capacidade, eu teria trabalha<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

na implantação da primeira usina nuclear. Hoje, eu seria o diretor de uma delas<<strong>br</strong> />

ou estaria lideran<strong>do</strong> um desses grupos que fazem pesquisas universitárias. Mas,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o <strong>com</strong>ecei agora, onde estarei daqui a 25 anos? Não tenho nenhuma perspectiva.<<strong>br</strong> />

Continuarei trabalhan<strong>do</strong> em equipe, carregan<strong>do</strong> a bola apenas <strong>do</strong>is por cento <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

jogo. Estou me afundan<strong>do</strong> no meio de uma enorme multidão de anônimos físicos nucleares,<<strong>br</strong> />

e o que quero é uma oportunidade para <strong>br</strong>ilhar, se é que você me entende.<<strong>br</strong> />

O numerologista balançou a cabeça calmamente.<<strong>br</strong> />

- Você deve saber, Dr. Zebatinsky, que não posso lhe garantir sucesso.<<strong>br</strong> />

Apesar <strong>do</strong> seu ceticismo, Zebatinsky ficou desaponta<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não? Então que diabo você pode me garantir!<<strong>br</strong> />

- Posso aumentar suas chances. Meu trabalho é basicamente estatístico. Como<<strong>br</strong> />

você lida <strong>com</strong> átomos, acho que deve estar a par das leis da estatística.<<strong>br</strong> />

- Você está? - perguntou o físico, carrancu<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Para ser sincero, estou. Sou um matemático e trabalho matematicamente. Não<<strong>br</strong> />

estou lhe dizen<strong>do</strong> isso para aumentar meus honorários. Eles são tabela<strong>do</strong>s. Cinquenta<<strong>br</strong> />

dólares. Mas já que você é um cientista, você pode apreciar a natureza <strong>do</strong> meu<<strong>br</strong> />

trabalho melhor <strong>do</strong> que os clientes normais. Será um prazer poder explicar-lhe <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

isso funciona.<<strong>br</strong> />

- Preferia que não, se você não se importa. Não tenho interesse em saber o valor<<strong>br</strong> />

numérico das letras, seus significa<strong>do</strong>s místicos, esse tipo de coisa. Para mim isso não<<strong>br</strong> />

é matemática. Vamos direto ao assunto...<<strong>br</strong> />

- Então você só quer minha ajuda desde que não o amole dizen<strong>do</strong> os tolos princípios<<strong>br</strong> />

em que me baseei para ajudá-o? É isso?<<strong>br</strong> />

- Exatamente.<<strong>br</strong> />

- Mas você ainda está partin<strong>do</strong> da suposição de que sou um numerologista, o que<<strong>br</strong> />

não sou. Eu me autodenomino assim porque assim a polícia não vem me perturbar e<<strong>br</strong> />

- O homenzinho deu uma risadinha seca - os psiquiatras também não. Sou um matemático,<<strong>br</strong> />

um matemático honesto.<<strong>br</strong> />

Zebatinsky sorriu.<<strong>br</strong> />

- Eu me baseio nos <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res - disse o numerologista. - Estu<strong>do</strong> a probabilidade<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s <strong>futuro</strong>s.<<strong>br</strong> />

- O quê?<<strong>br</strong> />

- Isso por acaso soa pior <strong>do</strong> que a numerologia para você? Por quê? <strong>com</strong> da<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

precisos e um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r capaz de fazer operações numéricas, o <strong>futuro</strong> pode ser<<strong>br</strong> />

previsto, pelo menos as suas probabilidades. Quan<strong>do</strong> você calcula a trajetória de um<<strong>br</strong> />

míssil <strong>com</strong> o objetivo de disparar um anti-míssil, não está preven<strong>do</strong> o <strong>futuro</strong>? O míssil<<strong>br</strong> />

e o anti-míssil não se chocariam se o <strong>futuro</strong> fosse previsto erradamente. É isso o que<<strong>br</strong> />

eu faço. Só que eu li<strong>do</strong> <strong>com</strong> um maior número de variáveis, o que torna menos exatos<<strong>br</strong> />

os resulta<strong>do</strong>s a que eu chego.<<strong>br</strong> />

- Você quer dizer que vai prever o meu <strong>futuro</strong>?<<strong>br</strong> />

- Aproximadamente. Uma vez ten<strong>do</strong> feito isso, Vou modificar os da<strong>do</strong>s, basea<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

apenas na troca <strong>do</strong> seu nome. Coloco essas mudanças <strong>do</strong> seu nome no programa.<<strong>br</strong> />

Depois tento <strong>com</strong> outros nomes. Estu<strong>do</strong> cada um desses novos <strong>futuro</strong>s e procuro um


que possibilite lhe dar mais chances de reconhecimento <strong>do</strong> que o que você teria no<<strong>br</strong> />

seu <strong>futuro</strong> normal.<<strong>br</strong> />

Deixe-me explicar isso de outra maneira. Vou achar um <strong>futuro</strong> para você, em que<<strong>br</strong> />

as probabilidades de reconhecimento sejam maiores <strong>do</strong> que as que você teria no seu<<strong>br</strong> />

<strong>futuro</strong> normal.<<strong>br</strong> />

- Por que mudar meu nome?<<strong>br</strong> />

- Tenho várias razões para fazer apenas essa mudança. A primeira delas é que se<<strong>br</strong> />

trata de uma troca simples. Afinal, se fizer grandes mudanças ou muitas trocas, aparecerão<<strong>br</strong> />

tantas novas variáveis que não serei capaz de interpretar os resulta<strong>do</strong>s. Minha<<strong>br</strong> />

máquina não é muito moderna. Em segun<strong>do</strong> lugar, essa é uma mudança que<<strong>br</strong> />

tem lógica. Não poderia mudar seu peso, nem a cor <strong>do</strong>s seus olhos, ou seu temperamento.<<strong>br</strong> />

Em terceiro, essa é uma mudança significativa. Os nomes são muito importantes<<strong>br</strong> />

para as pessoas. Em último lugar, essa é uma mudança <strong>com</strong>um, que muitas<<strong>br</strong> />

pessoas fazem quase to<strong>do</strong>s os dias.<<strong>br</strong> />

- E se você não achar um <strong>futuro</strong> melhor? - disse Zebatinsky.<<strong>br</strong> />

- Esse é um risco que você vai ter que correr. Mas você não vai ficar pior <strong>do</strong> que<<strong>br</strong> />

está agora, meu amigo.<<strong>br</strong> />

Zebatinsky encarou o homem <strong>com</strong> um jeito constrangi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não acredito em nada disso. Jamais acreditei em numerologia.<<strong>br</strong> />

O numerologista suspirou.<<strong>br</strong> />

- Eu pensava que uma pessoa <strong>com</strong>o você se sentiria mais à vontade <strong>com</strong> a verdade.<<strong>br</strong> />

Eu quero ajudá-o e ainda há muita coisa para você fazer. Se você parte <strong>do</strong> princípio<<strong>br</strong> />

de que sou um numerologista, isso vai atrapalhar nosso trabalho. Pensei que,<<strong>br</strong> />

contan<strong>do</strong> a verdade, você me deixaria ajudá-o.<<strong>br</strong> />

- Se você pode ver o <strong>futuro</strong>...<<strong>br</strong> />

- Por que não sou o homem mais rico da terra? É isso? Mas eu sou rico... tenho<<strong>br</strong> />

tu<strong>do</strong> o que quero. Você quer reconhecimento, enquanto o que eu quero é ficar em<<strong>br</strong> />

paz.<<strong>br</strong> />

Faço meu trabalho. Ninguém me in<strong>com</strong>oda. Isso para mim é o mesmo que ter um<<strong>br</strong> />

tesouro. O pouco dinheiro de que preciso consigo de pessoas <strong>com</strong>o você. É bom ajudar<<strong>br</strong> />

as pessoas, e um psiquiatra talvez me dissesse que isso me dá uma sensação de<<strong>br</strong> />

poder e alimenta meu ego. Bem... Você quer que o ajude?<<strong>br</strong> />

- Quanto é mesmo que você co<strong>br</strong>a?<<strong>br</strong> />

- Cinquenta dólares. Precisarei de um grande número de informações a respeito de<<strong>br</strong> />

sua biografia, mas tenho um formulário prepara<strong>do</strong> para orientá-o. Talvez seja um<<strong>br</strong> />

pouco longo. Mas se você puder colocá-o no correio até o fim dessa semana, terei<<strong>br</strong> />

uma resposta lá pelo dia...<<strong>br</strong> />

- Ele mordeu os lábios e franziu a testa enquanto calculava. - Lá pelo dia 20 <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mês que vem.<<strong>br</strong> />

- Cinco semanas? Para que tanto tempo?<<strong>br</strong> />

- Tenho outro trabalho, meu amigo, e outros clientes. Se fosse um farsante, poderia<<strong>br</strong> />

fazer isso muito mais rápi<strong>do</strong>. Combina<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

Zebatinsky se levantou.<<strong>br</strong> />

- OK, <strong>com</strong>bina<strong>do</strong>. Mas não se esqueça que isso fica entre nós.<<strong>br</strong> />

- Eu lhe devolverei o seu formulário quan<strong>do</strong> lhe disser quais as mudanças que tem<<strong>br</strong> />

que fazer, e você tem a minha palavra de que jamais farei qualquer outro uso dessas<<strong>br</strong> />

informações.<<strong>br</strong> />

O físico nuclear parou na altura da porta.<<strong>br</strong> />

- Você não tem me<strong>do</strong> que eu possa contar a alguém que você não é um numerologista?


O numerologista balançou cabeça.<<strong>br</strong> />

- Ninguém acreditaria em você, meu amigo. Isso sem falar que você jamais admitiria<<strong>br</strong> />

que esteve aqui.<<strong>br</strong> />

No dia 20, Marshall Zebatinsky estava diante da porta descascada, olhan<strong>do</strong> para os<<strong>br</strong> />

la<strong>do</strong>s, em frente à loja onde se via a palavra "Numerologia" impressa num pequeno<<strong>br</strong> />

cartaz prega<strong>do</strong> na vidraça embaçada, pouco legível embaixo da poeira. Ele investigou<<strong>br</strong> />

o la<strong>do</strong> de dentro, praticamente desejan<strong>do</strong> que houvesse mais alguém ali e, assim,<<strong>br</strong> />

pudesse ter uma desculpa para ir logo para casa.<<strong>br</strong> />

Tinha tenta<strong>do</strong> afastar esses pensamentos de sua cabeça várias vezes. Nunca conseguia<<strong>br</strong> />

passar muito tempo preenchen<strong>do</strong> o formulário que o numerologista lhe dera.<<strong>br</strong> />

Sentia-se embaraça<strong>do</strong> ao respondê-o. Achava uma grande besteira colocar o nome<<strong>br</strong> />

de seus amigos, o custo de sua casa, se sua mulher tinha feito algum aborto e, caso<<strong>br</strong> />

tivesse, quan<strong>do</strong>. Deixava-o logo de la<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Mas também não conseguia aban<strong>do</strong>ná-o em definitivo. Voltava a ele todas as noites.<<strong>br</strong> />

Talvez isso fosse por causa <strong>do</strong> <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r. Não admitia que aquele baixinho presunçoso<<strong>br</strong> />

pudesse ter um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r. A tentação de desmascarar o blefe, de pagar<<strong>br</strong> />

para ver, estava se tornan<strong>do</strong> irresistível.<<strong>br</strong> />

Finalmente, ele enviou o formulário <strong>com</strong>pleto pelo correio, colocan<strong>do</strong> <strong>nove</strong> centavos<<strong>br</strong> />

de selos sem pesar a carta. Se ela voltasse, ele pensou, desistiria da ideia A carta<<strong>br</strong> />

não voltou.<<strong>br</strong> />

Ele olhou para dentro da loja e viu que estava vazia. Zebatinsky não teve outra escolha<<strong>br</strong> />

senão entrar. Uma campainha tilintou.<<strong>br</strong> />

O velho numerologista apareceu atrás de uma cortina.<<strong>br</strong> />

- Sim? Ah, Dr. Zebatinsky.<<strong>br</strong> />

- Você se lem<strong>br</strong>a de mim? - perguntou Zebatinsky, tentan<strong>do</strong> sorrir.<<strong>br</strong> />

- É claro.<<strong>br</strong> />

- E qual é o veredito?<<strong>br</strong> />

O numerologista esfregou suas mãos grossas.<<strong>br</strong> />

- Antes de irmos a ele, senhor, há um pequeno...<<strong>br</strong> />

- O problema diz respeito ao pagamento?<<strong>br</strong> />

- O trabalho já está pronto, senhor. Mereço ser pago por ele. Zebatinsky não fez<<strong>br</strong> />

nenhuma objeção. Estava prepara<strong>do</strong> para pagar. Se já tinha i<strong>do</strong> tão longe, seria besteira<<strong>br</strong> />

desistir por causa <strong>do</strong> dinheiro. Ele contou cinco notas de dez dólares e colocouas<<strong>br</strong> />

em cima <strong>do</strong> balcão.<<strong>br</strong> />

- Então?<<strong>br</strong> />

Calmamente, o numerologista voltou a contar as notas e guar<strong>do</strong>u-as na gaveta da<<strong>br</strong> />

escrivaninha.<<strong>br</strong> />

- Seu caso é muito interessante - disse o numerologista. - Eu aconselharia que o<<strong>br</strong> />

senhor mudasse seu nome para Sebatinsky.<<strong>br</strong> />

- Seba... <strong>com</strong>o é que se escreve isso?<<strong>br</strong> />

- S-e-b-a-t-i-n-s-k-y. Zebatinsky encarou-o, indigna<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Você quer dizer que só preciso mudar a inicial? Trocar um z por um S? Só isso?<<strong>br</strong> />

- Basta isso. Desde que seja adequada, uma pequena mudança é mais segura <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

que uma grande.<<strong>br</strong> />

- Mas <strong>com</strong>o essa mudança pode afetar alguma coisa?<<strong>br</strong> />

- Outro nome poderia? - perguntou o numerologista delicadamente. - Não posso<<strong>br</strong> />

dizer. Sei que, de alguma maneira, é possível, mas isso é tu<strong>do</strong> que posso dizer. Lem-


e-se de que não posso garantir o resulta<strong>do</strong>. É claro que, se você não quer fazer a<<strong>br</strong> />

troca, deixe as coisas <strong>com</strong>o estão. Mas, nesse caso, não lhe restituirei o pagamento.<<strong>br</strong> />

- O que eu faço? - perguntou Zebatinsky. - É só sair dizen<strong>do</strong> por aí que meu nome<<strong>br</strong> />

se escreve <strong>com</strong> S?<<strong>br</strong> />

- Se você quer um conselho, consulte um advoga<strong>do</strong>. Mude seu nome legalmente.<<strong>br</strong> />

Ele pode orientá-o nesses pequenos detalhes.<<strong>br</strong> />

- Demora muito? Quero dizer, para as coisas melhorarem?<<strong>br</strong> />

- Como posso lhe dizer? Talvez nunca. Talvez amanhã.<<strong>br</strong> />

- Mas você viu o <strong>futuro</strong>. Você alega que vê.<<strong>br</strong> />

- Não numa bola de cristal. Não, não Dr. Zebatinsky. Tu<strong>do</strong> o que sai <strong>do</strong> meu <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

é em códigos. Posso lhe desfiar um rosário de probabilidades, mas não tive<<strong>br</strong> />

nenhuma visão.<<strong>br</strong> />

Zebatinsky se virou e saiu rapidamente daquele lugar. Cinquenta dólares para mudar<<strong>br</strong> />

uma letra! Cinquenta dólares para virar Sebatinsky! Deus, que nome! Pior <strong>do</strong> que<<strong>br</strong> />

Zebatinsky.<<strong>br</strong> />

Passou-se outro mês antes que ele se decidisse a ir procurar um advoga<strong>do</strong>. Ele lhe<<strong>br</strong> />

disse que poderia mudar seu nome de novo na hora que bem quisesse e entendesse.<<strong>br</strong> />

Por que não tentar, pensou consigo. Diabos, não existia nenhuma lei contra isso.<<strong>br</strong> />

Herry Brand consultou seu arquivo, página por página, <strong>com</strong> o olho clínico de quem<<strong>br</strong> />

estava na Segurança há quatorze anos. Não precisava ler todas as palavras. Qualquer<<strong>br</strong> />

coisa estranha saltaria <strong>do</strong> papel e lhe daria um soco no olho.<<strong>br</strong> />

- Na minha opinião, o homem está limpo - disse Herry Brand, que também parecia<<strong>br</strong> />

limpo, <strong>com</strong> sua volumosa barriga e uma pele fresca e rosada, <strong>com</strong>o se tivesse acaba<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de sair de um banho. Era <strong>com</strong>o se o fato de estar em constante contato <strong>com</strong> to<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

o tipo de pessoas e fraquezas humanas, desde a mais simples ignorância até a mais<<strong>br</strong> />

sofisticada traição, o impelisse a estar sempre se lavan<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

O tenente Albert Quincy, que tinha trazi<strong>do</strong> o arquivo para ele, era jovem e tinha<<strong>br</strong> />

consciência das responsabilidades que cabiam a um oficial da Segurança da Estação<<strong>br</strong> />

Hanford.<<strong>br</strong> />

- Mas por que Sebatinsky? - questionou.<<strong>br</strong> />

- E por que não?<<strong>br</strong> />

- Porque não faz senti<strong>do</strong>. Zebatinsky é um nome estrangeiro e eu o trocaria também<<strong>br</strong> />

se tivesse si<strong>do</strong> batiza<strong>do</strong> <strong>com</strong> ele. Mas trocaria por alguma coisa anglo-saxônica.<<strong>br</strong> />

Se Zebatinsky tivesse feito isso, teria lógica e eu não teria me preocupa<strong>do</strong> <strong>com</strong> o<<strong>br</strong> />

seu caso. Mas por que trocar um z por um S? Precisamos desco<strong>br</strong>ir o que se esconde<<strong>br</strong> />

por trás de sua atitude.<<strong>br</strong> />

- Alguém já fez essa pergunta a ele?<<strong>br</strong> />

- Acho que sim. Numa conversa banal, é claro. Tive a preocupação de providenciar<<strong>br</strong> />

que alguém o fizesse. A desculpa que ele deu foi a de que estava cansa<strong>do</strong> de ser o<<strong>br</strong> />

último <strong>do</strong> alfabeto.<<strong>br</strong> />

- Isso tem lógica, não, tenente?<<strong>br</strong> />

- Mas por que não trocou seu nome para Sands ou Smith, já que queria um S? E<<strong>br</strong> />

se já está tão cansa<strong>do</strong> de um z, por que não trocou logo tu<strong>do</strong> e foi para um A? Por<<strong>br</strong> />

que não um nome <strong>com</strong>o... ahn... Aarons?<<strong>br</strong> />

- Esse nome também não tem nada de anglo-saxônico - resmungou Brand, para<<strong>br</strong> />

acrescentar: - Mas não há nada que possa segurar o homem. Não importa que ele<<strong>br</strong> />

tenha muda<strong>do</strong> para um nome estranho. Isso não depõe contra ninguém.<<strong>br</strong> />

O tenente Quincy parecia tremendamente infeliz.


- Diga-me, tenente, por que está tão contraria<strong>do</strong>? Você tem alguma coisa na cabeça?<<strong>br</strong> />

Alguma teoria? Uma pista? O que é?<<strong>br</strong> />

O tenente franziu a testa. Suas so<strong>br</strong>ancelhas se juntaram e seus lábios se apertaram.<<strong>br</strong> />

- Que seja, senhor. O homem é um russo.<<strong>br</strong> />

- Não, não. Ele já é da terceira geração de americanos,<<strong>br</strong> />

- O que eu quero dizer é que seu nome é russo.<<strong>br</strong> />

O rosto de Brand perdeu um pouco de sua suavidade.<<strong>br</strong> />

- Não, tenente, errou de novo. O nome é polonês.<<strong>br</strong> />

O tenente levantou as mãos impacientemente, <strong>com</strong> as palmas para cima.<<strong>br</strong> />

- Dá no mesmo.<<strong>br</strong> />

Brand, cujo nome de solteira de sua mãe era Wiszewski, vociferou:<<strong>br</strong> />

- Jamais diga isso a um polonês, tenente. - E acrescentou <strong>com</strong> um ar pensativo: -<<strong>br</strong> />

Tampouco a um russo.<<strong>br</strong> />

- O que estou queren<strong>do</strong> dizer, senhor - disse o tenente, redimin<strong>do</strong>-se, é que tanto<<strong>br</strong> />

os poloneses <strong>com</strong>o os russos estão <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da Cortina de Ferro.<<strong>br</strong> />

- To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sabe disso.<<strong>br</strong> />

- E Zebatinsky ou Sebatinsky, independente da maneira <strong>com</strong>o você o chame, deve<<strong>br</strong> />

ter parentes lá.<<strong>br</strong> />

- Ele é da terceira geração. Pode ser que tenha primos em segun<strong>do</strong> grau lá. E daí?<<strong>br</strong> />

- Nada demais. Um monte de gente deve ter parentes distantes lá. Mas Zebatinsky<<strong>br</strong> />

mu<strong>do</strong>u o nome.<<strong>br</strong> />

- Continue.<<strong>br</strong> />

- Talvez ele esteja tentan<strong>do</strong> desviar as atenções. Talvez algum primo seu esteja fican<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

muito famoso por lá e Zebatinsky está <strong>com</strong> me<strong>do</strong> de que um eventual parentesco<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> ele possa vir a atrapalhar suas chances de vencer na vida.<<strong>br</strong> />

- Mudar de nome não o ajudaria em nada. Ainda assim ele teria um primo em segun<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

grau.<<strong>br</strong> />

- Certo, mas assim ele deixaria de se sentir <strong>com</strong>o se estivesse esfregan<strong>do</strong> esse parentesco<<strong>br</strong> />

na nossa cara.<<strong>br</strong> />

- Você já ouviu falar de algum Zebatinsky de lá <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Não, senhor.<<strong>br</strong> />

- Então, não pode ser tão famoso. Como nosso Zebatinsky poderia saber de sua<<strong>br</strong> />

existência?<<strong>br</strong> />

- Ele deve manter algum contato <strong>com</strong> seus parentes. Nas circunstâncias atuais,<<strong>br</strong> />

isso seria suspeito para um físico nuclear.<<strong>br</strong> />

Metodicamente, Brand voltou a consultar os seus arquivos.<<strong>br</strong> />

- Isso é muito vago, tenente. É tão vago que pode ser ignora<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Pode me dar outra explicação, senhor, para que Zebatinsky tenha muda<strong>do</strong> seu<<strong>br</strong> />

nome de uma hora para a outra?<<strong>br</strong> />

- Não. Tenho que admitir que não tenho.<<strong>br</strong> />

- Então eu acho que nós devemos investigar. Devíamos procurar algum Zebatinsky<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> e tentar fazer alguma conexão entre os <strong>do</strong>is. - A voz <strong>do</strong> tenente elevou-se<<strong>br</strong> />

à medida que lhe passava uma nova ideia pela cabeça. - Ele pode estar mudan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

seu nome <strong>com</strong> o objetivo de desviar a atenção deles. Para protegê-os, quero<<strong>br</strong> />

dizer.<<strong>br</strong> />

- Ele está fazen<strong>do</strong> justamente o contrário, nesse caso.<<strong>br</strong> />

- Talvez ele não perceba isso, mas a sua intenção era protegê-os. Brand suspirou.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem, vamos atacar por esse ângulo. Mas se nada aparecer, tenente, deixamos<<strong>br</strong> />

o assunto de la<strong>do</strong>. Deixe os arquivos <strong>com</strong>igo.


Quan<strong>do</strong> a informação finalmente chegou a Brand, ele tinha esqueci<strong>do</strong> <strong>com</strong>pletamente<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> tenente e de suas teorias. Quan<strong>do</strong> recebeu uma lista <strong>com</strong> 17 biografias de<<strong>br</strong> />

17 cidadãos russos e poloneses, to<strong>do</strong>s eles chama<strong>do</strong>s Zebatinsky, seu primeiro pensamento<<strong>br</strong> />

foi: "Que diabo é isso?"<<strong>br</strong> />

Então ele se lem<strong>br</strong>ou, praguejou baixinho e <strong>com</strong>eçou a ler.<<strong>br</strong> />

Começou pelo la<strong>do</strong> americano. Marshall Zebatinsky (impressões digitais) nasceu<<strong>br</strong> />

em Búfalo, Nova York (data e características físicas). Seu pai tinha nasci<strong>do</strong> em Búfalo<<strong>br</strong> />

também, e a mãe em Oswego, Nova York. Seus avós paternos nasceram em Bialystok,<<strong>br</strong> />

Polônia (data de entrada nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, data de cidadania e fotografias).<<strong>br</strong> />

Os 17 cidadãos russos e poloneses chama<strong>do</strong>s Zebatinsky eram to<strong>do</strong>s descendentes<<strong>br</strong> />

de pessoas que, há mais ou menos meio século, tinham vivi<strong>do</strong> em Bailystok ou perto<<strong>br</strong> />

de Bailystok. Aparentemente, podiam ser parentes, mas isso não era especifica<strong>do</strong> em<<strong>br</strong> />

nenhum <strong>do</strong>s casos. (As informações pessoais no Leste europeu, quan<strong>do</strong> havia eram<<strong>br</strong> />

muito imprecisas em consequência da I Guerra Mundial.)<<strong>br</strong> />

Brand folheou as histórias individuais <strong>do</strong>s Zebatinsky, homens e mulheres que restavam<<strong>br</strong> />

(era surpreendente <strong>com</strong>o a Inteligência trabalhava bem; provavelmente os<<strong>br</strong> />

russos tinham o mesmo tipo de perfeccionismo). Ele parou numa delas e sua testa<<strong>br</strong> />

lisa se encheu de rugas ao franzir as so<strong>br</strong>ancelhas. Colocou essa biografia de la<strong>do</strong> e<<strong>br</strong> />

continuou.<<strong>br</strong> />

No fim, ele empilhou to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>ssiês, só deixan<strong>do</strong> aquele de fora.<<strong>br</strong> />

Observan<strong>do</strong> a biografia, ele tamborilou na mesa <strong>com</strong> suas unhas bem cuidadas.<<strong>br</strong> />

Com uma certa relutância, ele foi procurar o Dr. Paul Kristow, da Comissão de<<strong>br</strong> />

Energia Atômica.<<strong>br</strong> />

O Dr. Kristow ouviu a história <strong>com</strong> uma expressão fria. De vez em quan<strong>do</strong> ele levantava<<strong>br</strong> />

o mindinho até seu nariz bulboso, <strong>com</strong>o se fosse tirar um grão de poeira.<<strong>br</strong> />

Seus cabelos grisalhos <strong>com</strong>eçavam a rarear, e eram corta<strong>do</strong>s rente. Mais um pouco e<<strong>br</strong> />

estaria careca.<<strong>br</strong> />

- Não - disse ele. - Nunca ouvi falar de nenhum russo chama<strong>do</strong> Zebatinsky. Também<<strong>br</strong> />

não sei de nenhum Zebatinsky americano.<<strong>br</strong> />

Brand passou as mãos pelas têmporas e disse calmamente:<<strong>br</strong> />

- Não acho que isso seja importante, mas não entrego os pontos facilmente. Há<<strong>br</strong> />

um jovem tenente pegan<strong>do</strong> no meu pé, e você sabe <strong>com</strong>o eles são. Não quero fazer<<strong>br</strong> />

nada que o leve a procurar uma <strong>com</strong>issão <strong>do</strong> Congresso. Além disso, o fato é que um<<strong>br</strong> />

desses camaradas Zebatinsky, o russo Mikhail Andreyevich Zebatinsky, é um físico<<strong>br</strong> />

nuclear. Você tem certeza que nunca ouviu falar dele?<<strong>br</strong> />

- Mikhail Andreyevich Zebatinsky? Não... Não, nunca. Mas prova nada.<<strong>br</strong> />

Poderia dizer que não passa de uma coincidência, mas isso seria fazer pouco caso<<strong>br</strong> />

da situação. Um Zebatinsky aqui e outro lá, ambos físicos nucleares, e o daqui resolveu<<strong>br</strong> />

mudar seu nome de repente para Sebatinsky, e sai muito ansioso por aí. Ele não<<strong>br</strong> />

deixa que ninguém pronuncie seu nome erra<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> isso acontece, ele é enfático<<strong>br</strong> />

ao dizer que seu nome se escreve <strong>com</strong> S. Isso é suficiente para fazer <strong>com</strong> que meu<<strong>br</strong> />

paranoico tenente <strong>com</strong>ece a ver espiões por toda parte. Outra coisa engraçada é que<<strong>br</strong> />

o Zebatinsky russo saiu de cena há mais ou menos um ano.<<strong>br</strong> />

- Executa<strong>do</strong>! - disse o Dr. Kristow, impassível.<<strong>br</strong> />

- Talvez. Naturalmente, eu faria a mesma afirmação, mas os russos não são mais<<strong>br</strong> />

tolos <strong>do</strong> que nós para saírem matan<strong>do</strong> físicos nucleares à toa. Por que, no meio de<<strong>br</strong> />

tanta gente, iria desaparecer exatamente um físico nuclear? Não preciso lhe dizer.<<strong>br</strong> />

- Uma pesquisa ultra-secreta que vazou. Acho que é nisso que você está pensan-


<strong>do</strong>. Você acredita mesmo nessa hipótese?<<strong>br</strong> />

- Coloque todas essas coisas juntas, acrescente a intuição <strong>do</strong> tenente, e eu <strong>com</strong>eço<<strong>br</strong> />

a ficar desconfia<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Deixe essa biografia <strong>com</strong>igo. - O Dr. Kristow pegou a folha de papel e leu-a duas<<strong>br</strong> />

vezes. Balançou a cabeça e acrescentou: - Darei uma checada nos Arquivos Nucleares.<<strong>br</strong> />

Os Arquivos Nucleares ocupavam uma parede <strong>do</strong> escritório <strong>do</strong> Dr. Kristow, guarda<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

em caixas transparentes, cheias de microfilmes. O homem da Comissão de Energia<<strong>br</strong> />

Atômica colocou os índices no projetor e Brand os examinou <strong>com</strong> a paciência de<<strong>br</strong> />

quem está passan<strong>do</strong> uma tropa em revista.<<strong>br</strong> />

- Um Mikhail Zebatinsky assinou ou co-assinou meia dúzia de artigos nos jornais<<strong>br</strong> />

soviéticos nos últimos anos - murmurou o Dr. Kristow. - Vamos dar uma olhada nos<<strong>br</strong> />

resumos, talvez possamos chegar a alguma conclusão a partir disso. Não duvi<strong>do</strong> que<<strong>br</strong> />

encontremos alguma coisa.<<strong>br</strong> />

Um seletor puxou os slides apropria<strong>do</strong>s. O Dr. Kristow alinhou-os, projetou-os, e,<<strong>br</strong> />

aos poucos, seu rosto foi toma<strong>do</strong> por uma expressão de curiosidade.<<strong>br</strong> />

- Isso é estranho - disse ele.<<strong>br</strong> />

- O que é estranho? - perguntou Brand.<<strong>br</strong> />

O Dr. Kristow se sentou.<<strong>br</strong> />

- Acho melhor não dizer nada por enquanto. Você pode me arranjar uma lista de<<strong>br</strong> />

outros físicos nucleares que saíram de circulação na Rússia, no ano passa<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

- Você achou alguma coisa?<<strong>br</strong> />

- Não é isso. Não haveria nada importante nesses artigos, se não olhasse para eles<<strong>br</strong> />

saben<strong>do</strong> que o homem que o escreveu pode estar envolvi<strong>do</strong> numa pesquisa ultra-secreta.<<strong>br</strong> />

Acima de tu<strong>do</strong>, você está colocan<strong>do</strong> minhocas em minha cabeça... - Ele deu de<<strong>br</strong> />

om<strong>br</strong>os. - Não é nada.<<strong>br</strong> />

- Gostaria que você me dissesse o que tem em mente - disse Brand, num tom sério.<<strong>br</strong> />

- Estamos no mesmo barco.<<strong>br</strong> />

- Já que você pensa assim... é bem possível que esse homem estivesse a ponto de<<strong>br</strong> />

desco<strong>br</strong>ir os reflexos de raios gama.<<strong>br</strong> />

- O que isso significa?<<strong>br</strong> />

- Se um escu<strong>do</strong> protetor contra os raios gama pudesse ser inventa<strong>do</strong>, seria possível<<strong>br</strong> />

construir a<strong>br</strong>igos individuais para nos proteger da poeira nuclear. Uma bomba de<<strong>br</strong> />

hidrogênio pode destruir uma cidade, mas a poeira nuclear poderia dizimar uma população<<strong>br</strong> />

num raio de milhares e milhares de milhas.<<strong>br</strong> />

Brand disse de pronto: - Estamos fazen<strong>do</strong> algum trabalho nessa área?<<strong>br</strong> />

- Não.<<strong>br</strong> />

- E se eles <strong>do</strong>minarem essa tecnologia antes de nós, poderão destruir os Esta<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

Uni<strong>do</strong>s totalmente, arrasan<strong>do</strong> umas dez cidades, assim que concluírem o programa<<strong>br</strong> />

de a<strong>br</strong>igos.<<strong>br</strong> />

- Isso ainda vai demorar muito. Mas por que estamos fazen<strong>do</strong> tanta onda? Tu<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

isso está basea<strong>do</strong> num homem que mu<strong>do</strong>u uma letra <strong>do</strong> seu nome.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem, eu estou louco - disse Brand. - Mas não Vou aban<strong>do</strong>nar a luta nesse<<strong>br</strong> />

ponto. Não nesse ponto. Eu vou conseguir sua lista de físicos nucleares desapareci<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

nem que tenha que ir a Moscou.<<strong>br</strong> />

Ele conseguiu a lista. Estudaram to<strong>do</strong>s os artigos escritos pelos russos desapareci<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Convocaram to<strong>do</strong>s os mem<strong>br</strong>os da Comissão, reunin<strong>do</strong> as maiores autoridades<<strong>br</strong> />

nucleares <strong>do</strong> país.


O Dr. Kristow estava sain<strong>do</strong> de uma dessas reuniões noturnas, da qual até o presidente<<strong>br</strong> />

tinha participa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Brand se encontrou <strong>com</strong> ele. Ambos pareciam arrasa<strong>do</strong>s, precisan<strong>do</strong> de boas horas<<strong>br</strong> />

de sono.<<strong>br</strong> />

- E aí? - perguntou Brand. Kristow balançou a cabeça.<<strong>br</strong> />

- A maioria concorda. Alguns ainda estão em dúvida, mas a maioria concorda.<<strong>br</strong> />

- E você? Está certo <strong>do</strong> que deve fazer?<<strong>br</strong> />

- Nem um pouco, mas posso lhe explicar o que penso. Acho mais fácil acreditar<<strong>br</strong> />

que os soviéticos estão trabalhan<strong>do</strong> no protetor de raios gama <strong>do</strong> que acreditar que<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s que desco<strong>br</strong>imos não têm a menor ligação.<<strong>br</strong> />

- Já decidiram alguma coisa so<strong>br</strong>e a nossa necessidade de também <strong>com</strong>eçarmos a<<strong>br</strong> />

pesquisar esses escu<strong>do</strong>s?<<strong>br</strong> />

- Sim. - Kristow passou as costas da mão so<strong>br</strong>e os seus cabelos curtos e eriça<strong>do</strong>s,<<strong>br</strong> />

provocan<strong>do</strong> um som seco e sussurrante. - Vamos entrar <strong>com</strong> tu<strong>do</strong> nisso. Conhecen<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

os artigos <strong>do</strong>s homens que desapareceram, podemos chegar juntinho <strong>do</strong>s seus calcanhares.<<strong>br</strong> />

Acho até que podemos ultrapassá-os. Mas é claro que eles vão desco<strong>br</strong>ir que<<strong>br</strong> />

também estamos trabalhan<strong>do</strong> nisso.<<strong>br</strong> />

- Não se preocupe <strong>com</strong> eles - disse Brand. - Não se preocupe <strong>com</strong> eles. Isso evitará<<strong>br</strong> />

um ataque <strong>do</strong>s russos. Não vejo vantagem nenhuma em trocar dez das nossas cidades<<strong>br</strong> />

por dez das deles... se os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s estiverem protegi<strong>do</strong>s, eles precisariam ser<<strong>br</strong> />

muito estúpi<strong>do</strong>s para não perceber isso.<<strong>br</strong> />

- Mas não queremos que eles descu<strong>br</strong>am isso agora. E o americano Zebatinsky-Sebatinsky?<<strong>br</strong> />

Brand assumiu um ar solene e acrescentou:<<strong>br</strong> />

- Não há nada que possa <strong>com</strong>prometê-o até agora. Diabo, nós estamos em cima<<strong>br</strong> />

dele, e eu concor<strong>do</strong> <strong>com</strong> você, é claro. Ele está num lugar muito perigoso para nós e<<strong>br</strong> />

não podemos nos dar o luxo de mantê-o lá, mesmo que sua ficha esteja limpa.<<strong>br</strong> />

- Nós não podemos chutá-o, sem mais nem menos, pois isso chamará a atenção<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s russos.<<strong>br</strong> />

- Você tem alguma sugestão?<<strong>br</strong> />

Eles estavam atravessan<strong>do</strong> o longo corre<strong>do</strong>r, em direção ao eleva<strong>do</strong>r, totalmente<<strong>br</strong> />

deserto a essa hora da madrugada.<<strong>br</strong> />

- Dei uma olhada no seu escritório - disse o Dr. Kristow. - Ele é um bom homem,<<strong>br</strong> />

melhor <strong>do</strong> que a maioria, e não está satisfeito <strong>com</strong> o seu trabalho. Ele não tem espírito<<strong>br</strong> />

de equipe.<<strong>br</strong> />

- E daí?<<strong>br</strong> />

- Mas ele nasceu para fazer trabalhos acadêmicos. Poderíamos oferecer-lhe uma<<strong>br</strong> />

cadeira de física numa grande universidade. Acho que isso o deixaria feliz. Há muitas<<strong>br</strong> />

áreas de trabalho que não ameaçam a nossa segurança e, assim, poderemos mantêo<<strong>br</strong> />

ao mesmo tempo sob observação sem despertar a suspeita <strong>do</strong>s russos, pois pareceria<<strong>br</strong> />

uma promoção natural. O que você acha?<<strong>br</strong> />

Brand concor<strong>do</strong>u <strong>com</strong> a cabeça.<<strong>br</strong> />

- Me parece uma boa ideia Vou levá-a para o chefe. Entraram no eleva<strong>do</strong>r e Brand<<strong>br</strong> />

se permitiu pensar a respeito de tu<strong>do</strong> o que estava acontecen<strong>do</strong>. Que final para uma<<strong>br</strong> />

história que tinha <strong>com</strong>eça<strong>do</strong> por causa da letra de um nome.<<strong>br</strong> />

Marshall Sebatinsky mal podia falar.<<strong>br</strong> />

- Juro que não sei <strong>com</strong>o isso aconteceu - disse para sua esposa. - Sempre achei


que eles não conseguiriam distinguir entre eu e um detector de mésons. Santo Deus,<<strong>br</strong> />

Sophie, Professor Associa<strong>do</strong> de Física em Princeton. Pense só.<<strong>br</strong> />

- Você acha que isso foi por causa <strong>do</strong> seu discurso na reunião da APS? - perguntou<<strong>br</strong> />

Sophie.<<strong>br</strong> />

- Não enten<strong>do</strong> <strong>com</strong>o. Era um artigo sem a menor inspiração, uma vez que to<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mun<strong>do</strong> na divisão conhecia o assunto de cor e saltea<strong>do</strong>. - Ele estalou os de<strong>do</strong>s. – Devia<<strong>br</strong> />

ser Princeton que estava me investigan<strong>do</strong>. Foi isso. Você se lem<strong>br</strong>a de to<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

aqueles formulários que preenchi nesses últimos seis meses; aquelas entrevistas sem<<strong>br</strong> />

propósito. Estava <strong>com</strong>eçan<strong>do</strong> a pensar que estava sob suspeita de subversão. Isso<<strong>br</strong> />

era Princeton me investigan<strong>do</strong>. São muito exigentes.<<strong>br</strong> />

- Talvez tenha si<strong>do</strong> por causa da mudança <strong>do</strong> nome - disse Sophie.<<strong>br</strong> />

- Veja o que estou dizen<strong>do</strong>. Finalmente, serei <strong>do</strong>no de minha vida profissional. Vou<<strong>br</strong> />

me destacar. Tão logo eu tenha uma chance de fazer meu trabalho sem... - Ele fez<<strong>br</strong> />

uma pausa e olhou para a mulher. - Meu nome! Você quer dizer o S?<<strong>br</strong> />

- A proposta só lhe foi feita depois da mudança <strong>do</strong> nome, não foi?<<strong>br</strong> />

- Não muito depois. Não, isso foi apenas coincidência. Eu lhe disse antes, Sophie,<<strong>br</strong> />

que só gastei aqueles cinquenta dólares para agradá-a. Deus, <strong>com</strong>o tenho me senti<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

tolo nesses últimos seis meses, insistin<strong>do</strong> nesse estúpi<strong>do</strong> S.<<strong>br</strong> />

Imediatamente, Sophie se colocou na defensiva.<<strong>br</strong> />

- Não o o<strong>br</strong>iguei a fazer isso, Marshall. Eu sugeri, mas não o importunei. Não diga<<strong>br</strong> />

que eu fiz isso. Além <strong>do</strong> mais, a mudança só lhe fez bem. Tenho certeza de que o<<strong>br</strong> />

novo nome o aju<strong>do</strong>u.<<strong>br</strong> />

Sebatinsky sorriu <strong>com</strong> indulgência.<<strong>br</strong> />

- Isso não passa de superstição.<<strong>br</strong> />

- Pouco me importa o que você acha, desde que não mude o nome de novo.<<strong>br</strong> />

- Não, acho que não. Tive tanto trabalho para conseguir que escrevessem meu<<strong>br</strong> />

nome <strong>com</strong> S que não penso nem em tentar fazer <strong>com</strong> que as pessoas mudem de<<strong>br</strong> />

novo. Talvez eu possa mudar meu nome para Jones, que tal? - Ele deu um riso quase<<strong>br</strong> />

histérico.<<strong>br</strong> />

Mas Sophie não.<<strong>br</strong> />

- Deixe <strong>com</strong>o está.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem, estou apenas <strong>br</strong>incan<strong>do</strong>. Qualquer dia desses passarei na loja daquele<<strong>br</strong> />

velho e direi para o numerologista que tu<strong>do</strong> funcionou e lhe darei mais dez dólares.<<strong>br</strong> />

Isso a deixará satisfeita?<<strong>br</strong> />

Ele estava suficientemente empolga<strong>do</strong> para fazer isso na semana seguinte. Desta<<strong>br</strong> />

vez, não usou nenhum disfarce. Estava sem chapéu, <strong>com</strong> os óculos que usava e um<<strong>br</strong> />

casaco <strong>com</strong>um. Achava-se eufórico quan<strong>do</strong> chegou na frente da loja e deu um passo<<strong>br</strong> />

para o la<strong>do</strong> para permitir que uma mulher cansada e mal-humorada passasse <strong>com</strong> o<<strong>br</strong> />

carrinho de bebê em que carregava seus filhos gêmeos. Colocou a mão na maçaneta<<strong>br</strong> />

da porta e o polegar no trinco de ferro. O trinco não cedeu à pressão <strong>do</strong> seu polegar.<<strong>br</strong> />

A porta estava trancada. O cartaz poeirento e sujo, <strong>com</strong> a inscrição "Numerologista",<<strong>br</strong> />

não estava mais lá, <strong>com</strong>o só agora ele percebia. Outra placa, <strong>com</strong>eçan<strong>do</strong> a amarelar<<strong>br</strong> />

e a empenar <strong>com</strong> a luz <strong>do</strong> sol, tinha a seguinte inscrição: "Aluga-se."<<strong>br</strong> />

Sebatinsky deu de om<strong>br</strong>os. Assunto encerra<strong>do</strong>. Fez o melhor que pôde.<<strong>br</strong> />

Haround, feliz por ter-se livra<strong>do</strong> da excrescência corporal, dava cambalhotas de felicidade,<<strong>br</strong> />

e seu turbilhão de energia irradiou uma lua púrpura pelas distâncias inco-


mensuráveis <strong>do</strong> hiperespaço.<<strong>br</strong> />

- Venci? - disse ele. - Venci?<<strong>br</strong> />

Mestack se encolheu. Seu turbilhão de energia era quase <strong>com</strong>o uma esfera de luz<<strong>br</strong> />

no infinito.<<strong>br</strong> />

- Ainda não fiz as contas.<<strong>br</strong> />

- Vá em frente. Nem <strong>com</strong> to<strong>do</strong> o tempo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> você conseguirá mudar o resulta<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Caramba, é um alívio voltar a ser energia pura. Aquele corpo caquético me fez<<strong>br</strong> />

perder um microciclo de tempo. Mas a minha vitória <strong>com</strong>pensou.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem - disse Mestack. - Admito que você interrompeu uma guerra nuclear<<strong>br</strong> />

no planeta.<<strong>br</strong> />

- Isso é ou não é um efeito Classe A?<<strong>br</strong> />

- Isso é um efeito Classe A. Claro que é.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem. Agora cheque e veja se não peguei esse efeito Classe A <strong>com</strong> um estímulo<<strong>br</strong> />

Classe F. Eu só mudei uma letra de um nome.<<strong>br</strong> />

- O quê?<<strong>br</strong> />

- Não se esqueça. Está tu<strong>do</strong> lá. Eu planejei para você.<<strong>br</strong> />

- Desisto - disse Mestack, relutante. - Um estímulo Classe F.<<strong>br</strong> />

- Então venci. Admita.<<strong>br</strong> />

- Nenhum de nós vencerá, quan<strong>do</strong> o Vigia der uma olhada nisso.<<strong>br</strong> />

Haround, que tinha si<strong>do</strong> um velho numerologista na Terra e ainda estava um pouco<<strong>br</strong> />

inseguro <strong>com</strong> a sensação de alívio de não ser mais um ser humano, disse:<<strong>br</strong> />

- Você não estava preocupa<strong>do</strong> <strong>com</strong> isso quan<strong>do</strong> fez a aposta.<<strong>br</strong> />

- Não achava que você fosse tolo o suficiente para continuar <strong>com</strong> essa <strong>br</strong>incadeira.<<strong>br</strong> />

- Pura perda de energia! Além disso, por que se preocupar? O Vigia nunca detectará<<strong>br</strong> />

um estímulo Classe F.<<strong>br</strong> />

- Talvez não, mas ele detectará um efeito Classe A. Essas formas corporais ainda<<strong>br</strong> />

estarão lá daqui a dúzias de microciclos. O Vigia perceberá isso.<<strong>br</strong> />

- O problema, Mestack, é que você não quer pagar a aposta. Você está tiran<strong>do</strong> o<<strong>br</strong> />

corpo fora.<<strong>br</strong> />

- Eu pagarei. Mas espere só o Vigia desco<strong>br</strong>ir que nós estivemos trabalhan<strong>do</strong> num<<strong>br</strong> />

problema não detecta<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> uma mudança proibida. Claro, se nós... - Ele fez<<strong>br</strong> />

uma pausa.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem, nós desfaremos a troca. Ele nunca perceberá. O <strong>br</strong>ilhante modelo de<<strong>br</strong> />

energia de Mestack avivou-se velhacamente.<<strong>br</strong> />

- Se você não quiser que ele perceba, precisará de outro estímulo Classe F.<<strong>br</strong> />

Haround hesitou.<<strong>br</strong> />

- Eu posso fazer isso.<<strong>br</strong> />

- Duvi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Tenho certeza de que faço.<<strong>br</strong> />

- Você seria capaz de fazer uma nova aposta? - As radiações de Mestack estavam<<strong>br</strong> />

formigan<strong>do</strong> de júbilo.<<strong>br</strong> />

- Está certo - disse Haround, empolga<strong>do</strong>. - Colocarei aquelas formas corporais no<<strong>br</strong> />

lugar em que estavam antes, e o Vigia nunca perceberá a diferença.<<strong>br</strong> />

Mestack aproveitou a oportunidade.<<strong>br</strong> />

- Suspenda a primeira aposta, então. Triplique a bolada. Haround foi <strong>do</strong>mina<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

pela cobiça.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem. Topo. Triplico a aposta.<<strong>br</strong> />

- Então está feito.<<strong>br</strong> />

- Feito.


A ÚLTIMA PERGUNTA<<strong>br</strong> />

A última pergunta foi feita pela primeira vez, meio de <strong>br</strong>incadeira, no dia 21 de<<strong>br</strong> />

maio de 2061, na época em que a humanidade <strong>com</strong>eçava sua caminhada na direção<<strong>br</strong> />

da luz. A pergunta surgiu em consequência de uma aposta de cinco dólares entre<<strong>br</strong> />

duas pessoas que tinham exagera<strong>do</strong> no uísque <strong>com</strong> soda, e aconteceu da maneira<<strong>br</strong> />

que se segue.<<strong>br</strong> />

Alexander Adell e Bertram Lupov eram <strong>do</strong>is fiéis servi<strong>do</strong>res de Multivac. Como<<strong>br</strong> />

qualquer ser humano, eles sabiam o que se escondia por trás da fria, rui<strong>do</strong>sa e faiscante<<strong>br</strong> />

fachada - milhas e milhas de fachada - daquele gigantesco <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r. Mas<<strong>br</strong> />

não tinham mais <strong>do</strong> que uma vaga noção <strong>do</strong> plano geral de relês e circuitos que há<<strong>br</strong> />

muito tempo havia se desenvolvi<strong>do</strong> a ponto de não poder mais ser totalmente controla<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

por um simples mortal.<<strong>br</strong> />

Multivac era auto-ajustável e auto-regulável. Tinha que ser assim, já que nenhum<<strong>br</strong> />

homem poderia ajustá-o e regulá-o adequadamente, ou <strong>com</strong> a rapidez necessária.<<strong>br</strong> />

Por isso, Adell e Lupov cuidavam <strong>do</strong> monstruoso gigante apenas superficialmente,<<strong>br</strong> />

mas <strong>com</strong> impecável <strong>com</strong>petência. Alimentavam-no <strong>com</strong> da<strong>do</strong>s, adaptavam as perguntas<<strong>br</strong> />

de acor<strong>do</strong> <strong>com</strong> as necessidades <strong>do</strong> sistema e traduziam as respostas que ele<<strong>br</strong> />

emitia. Certamente, eles, e to<strong>do</strong>s os outros <strong>com</strong>o eles, tinham total liberdade para<<strong>br</strong> />

partilhar das gloriosas conquistas de Multivac.<<strong>br</strong> />

Durante décadas Multivac tinha ajuda<strong>do</strong> a projetar as naves e a delinear as trajetórias<<strong>br</strong> />

que permitiram que o homem alcançasse a Lua, Marte e Vênus; mas, a partir<<strong>br</strong> />

daí, os escassos recursos da Terra não eram suficientes para prover as naves, que<<strong>br</strong> />

precisavam de muito <strong>com</strong>bustível para fazer viagens mais longas. A Terra explorava<<strong>br</strong> />

seu carvão e seu urânio, <strong>com</strong> uma eficiência cada vez maior, mas essas reservas estavam<<strong>br</strong> />

se esgotan<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Mas aos poucos Multivac acumulou conhecimento suficiente para analisar questões<<strong>br</strong> />

importantes <strong>com</strong> mais fundamento, e no dia 14 de maio de 2061, o que era apenas<<strong>br</strong> />

uma teoria transformou-se num fato.<<strong>br</strong> />

A energia <strong>do</strong> Sol foi armazenada, convertida e utilizada numa escala planetária.<<strong>br</strong> />

Toda a Terra desligou os fornos de carvão e as usinas nucleares e acionou os sistemas<<strong>br</strong> />

que conectavam tu<strong>do</strong> o que havia nela a uma pequena estação, <strong>com</strong> uma milha<<strong>br</strong> />

de diâmetro, que girava em torno <strong>do</strong> planeta num ponto equidistante entre a Terra e<<strong>br</strong> />

a Lua. Toda a Terra passou a funcionar movida pelos invisíveis raios de energia solar.


Sete dias não foram suficientes para ofuscar a glória desse feito. Adell e Lupov finalmente<<strong>br</strong> />

conseguin<strong>do</strong> escapar das solenidades públicas, encontraram-se a sós num<<strong>br</strong> />

lugar em que ninguém pensaria em procurá-os, as desertas câmeras subterrâneas,<<strong>br</strong> />

onde podiam ver as partes aban<strong>do</strong>nadas <strong>do</strong> poderoso corpo de Multivac. Esqueci<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

preguiçoso, classifican<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>com</strong> um clique-claque de satisfação, Multivac também<<strong>br</strong> />

merecia umas férias - e os rapazes respeitavam esse direito. Em princípio, não<<strong>br</strong> />

tinham intenção de perturbá-o.<<strong>br</strong> />

Traziam uma garrafa de bebida e tu<strong>do</strong> o que desejavam naquele momento era relaxar<<strong>br</strong> />

juntos enquanto tomavam uns tragos.<<strong>br</strong> />

- É surpreendente pensar nisso - disse Adell. Seu rosto largo apresentava sinais de<<strong>br</strong> />

cansaço, e ele mexia calmamente seu drinque <strong>com</strong> um bastão de vidro, observan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

as pedras de gelo chocan<strong>do</strong>-se dentro <strong>do</strong> copo. - Agora temos toda a energia de que<<strong>br</strong> />

precisamos, podemos usá-a à vontade. É tanta energia que, se quiséssemos, poderíamos<<strong>br</strong> />

transformar a Terra numa imensa massa de ferro impuro derreti<strong>do</strong>, e ainda assim<<strong>br</strong> />

ela não acabaria. Toda a energia que viermos a precisar, para sempre, para to<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

o sempre.<<strong>br</strong> />

Lupov levantou a cabeça e olhou meio de la<strong>do</strong>. Ele tinha o costume de fazer isso<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> queria contestar alguém, <strong>com</strong>o pretendia fazer agora, em parte porque tivera<<strong>br</strong> />

que carregar os copos e o gelo.<<strong>br</strong> />

- Para sempre, não - disse ele.<<strong>br</strong> />

- É quase isso, cara. Até que o Sol se apague, Bert.<<strong>br</strong> />

- Isso não é para sempre.<<strong>br</strong> />

- Tá bom, tá bom. Bilhões e bilhões de anos. Talvez vinte bilhões de anos. Está satisfeito?<<strong>br</strong> />

Lupov passou os de<strong>do</strong>s entre os seus raros cabelos, <strong>com</strong>o estivesse se certifican<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de que ainda restavam alguns fios, e sorveu seu drinque lentamente.<<strong>br</strong> />

- Vinte bilhões de anos não são a eternidade.<<strong>br</strong> />

- Bem, a gente não vai viver tanto tempo assim, vai?<<strong>br</strong> />

- Se fosse por causa disso poderíamos continuar <strong>com</strong> o carvão e o urânio.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem, mas agora podemos ligar nossas espaçonaves na Estação Solar e ir e<<strong>br</strong> />

voltar para Plutão milhões de vezes sem nos preocuparmos <strong>com</strong> o <strong>com</strong>bustível. Você<<strong>br</strong> />

não conseguiria isso <strong>com</strong> o carvão e o urânio. Pergunte a Multivac, já que você não<<strong>br</strong> />

acredita em mim.<<strong>br</strong> />

- Não preciso perguntar a Multivac. Eu sei disso.<<strong>br</strong> />

- Então, não menospreze o que Multivac fez por nós - disse Adell, inflama<strong>do</strong>. - Ele<<strong>br</strong> />

foi <strong>br</strong>ilhante.<<strong>br</strong> />

- Quem disse que não? O que eu disse foi que o Sol não durará para sempre. Foi<<strong>br</strong> />

apenas isso que eu disse. Nós estamos garanti<strong>do</strong>s por vinte bilhões de anos. E depois<<strong>br</strong> />

disso? - Lupov apontou um de<strong>do</strong> meio trêmulo para o amigo. - E não venha me<<strong>br</strong> />

dizer que podemos recorrer a outro sol.<<strong>br</strong> />

Os <strong>do</strong>is ficaram em silêncio durante um tempo. De vez em quan<strong>do</strong> Adell levava seu<<strong>br</strong> />

copo à boca, e aos poucos os olhos de Lupov foram se fechan<strong>do</strong>. Estavam totalmente<<strong>br</strong> />

relaxa<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

De repente, Lupov a<strong>br</strong>iu os olhos.<<strong>br</strong> />

- Você está pensan<strong>do</strong> que um dia recorreremos a outro sol, não é?<<strong>br</strong> />

- Não estou pensan<strong>do</strong> em nada.<<strong>br</strong> />

- É claro que você pensou nisso. Seu forte não é lógica, esse é o seu problema.<<strong>br</strong> />

Você é <strong>com</strong>o o cara daquela história que, no meio de um inespera<strong>do</strong> temporal, correu<<strong>br</strong> />

na direção de um grupo de árvores e se protegeu embaixo de uma delas. Ele não<<strong>br</strong> />

estava preocupa<strong>do</strong> porque imaginava que quan<strong>do</strong> uma árvore ficasse molhada iria


para baixo de outra.<<strong>br</strong> />

- Eu entendi - disse Adell. - Não precisa gritar. Quan<strong>do</strong> o Sol apagar, as estrelas<<strong>br</strong> />

também terão apaga<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Ora, se terão - resmungou Lupov. - Isso tu<strong>do</strong> <strong>com</strong>eçou <strong>com</strong> a explosão cósmica<<strong>br</strong> />

original, o que quer que tenha si<strong>do</strong> isso, e terá um fim quan<strong>do</strong> todas as estrelas se<<strong>br</strong> />

apagarem. Algumas se apagarão antes das outras. Diabo, as gigantes não durarão<<strong>br</strong> />

mais <strong>do</strong> que cem milhões de anos. O Sol durará vinte bilhões de anos e talvez as<<strong>br</strong> />

anãs cem bilhões de anos, por melhores que sejam. Mas em um trilhão de anos tu<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

estará escuro. Mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde, a entropia vai chegar a seu ponto máximo.<<strong>br</strong> />

- Sei tu<strong>do</strong> so<strong>br</strong>e entropia - disse Adell, defenden<strong>do</strong> seu orgulho.<<strong>br</strong> />

- Sabe uma ova!<<strong>br</strong> />

- Sei tanto quanto você.<<strong>br</strong> />

- Então admita que todas as coisas um dia terão um fim.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem, Quem disse que não?<<strong>br</strong> />

- Você, seu bobão. Você disse que teremos para sempre toda a energia de que<<strong>br</strong> />

precisarmos. Você disse para sempre.<<strong>br</strong> />

Era a vez de Adell provocar.<<strong>br</strong> />

- Algum dia talvez possamos re<strong>com</strong>eçar tu<strong>do</strong> de novo - disse ele.<<strong>br</strong> />

- Nunca.<<strong>br</strong> />

- Por que não? Algum dia...<<strong>br</strong> />

- Pergunte a Multivac.<<strong>br</strong> />

- Nunca.<<strong>br</strong> />

- Você pergunta a Multivac. Eu aposto. Quer valer cinco dólares <strong>com</strong>o Multivac vai<<strong>br</strong> />

dizer que isso é impossível?<<strong>br</strong> />

Adell estava bêba<strong>do</strong> o suficiente para tentar, mas não ao ponto de ser incapaz de<<strong>br</strong> />

digitar os símbolos e operações necessários para formular uma pergunta que, em palavras,<<strong>br</strong> />

corresponderia a isso: quan<strong>do</strong> a rede de energia estiver totalmente saturada,<<strong>br</strong> />

a humanidade será capaz de restituir a força <strong>do</strong> Sol, mesmo depois de ele ter perdi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong> o seu vigor?<<strong>br</strong> />

Ou talvez isso pudesse ser coloca<strong>do</strong> de uma maneira mais simples: o sistema de<<strong>br</strong> />

entropia <strong>do</strong> Universo pode ser reverti<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

Multivac caiu num silêncio profun<strong>do</strong>. O lento piscar de luzes parou, da mesma forma<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o os fracos estalos <strong>do</strong>s relês.<<strong>br</strong> />

Então, quan<strong>do</strong> os assusta<strong>do</strong>s técnicos não podiam mais prender a respiração, a<<strong>br</strong> />

impressora atrelada àquela parte de Multivac voltou a funcionar repentinamente. Cinco<<strong>br</strong> />

palavras foram impressas: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATI-<<strong>br</strong> />

VA.<<strong>br</strong> />

- Ainda não - sussurrou Lupov, e saíram corren<strong>do</strong> daquele lugar.<<strong>br</strong> />

Na manhã seguinte, eles, <strong>com</strong> a boca ressecada e a cabeça latejan<strong>do</strong>, tinham esqueci<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

o incidente.<<strong>br</strong> />

Jerrodd, Jerrodine e Jerrodette I e II estavam observan<strong>do</strong> as mudanças na estrelada<<strong>br</strong> />

paisagem pelo visor à medida que a viagem através <strong>do</strong> hiper espaço ia-se consuman<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

em frações de segun<strong>do</strong>s. Logo o <strong>br</strong>ilho de um disco marmóreo se destacou<<strong>br</strong> />

no meio da miríade de estrelas.<<strong>br</strong> />

- Isso é o X-23 - disse Jerrodd, <strong>com</strong> convicção. Apertou firmemente suas mãos finas<<strong>br</strong> />

atrás das costas de tal mo<strong>do</strong> que as juntas <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s em<strong>br</strong>anqueceram.<<strong>br</strong> />

As pequenas Jerrodettes estavam atravessan<strong>do</strong> o hiper espaço pela primeira vez<<strong>br</strong> />

em suas vidas, e se sentiram importantes ao perceber que tinham entra<strong>do</strong> na órbita


de um novo planeta. Elas esqueceram suas <strong>br</strong>incadeiras e, excitadas, <strong>com</strong>eçaram a<<strong>br</strong> />

pular em volta da mãe.<<strong>br</strong> />

- Chegamos em X-23! - gritaram. - Chegamos em X-23! Chegamos...<<strong>br</strong> />

- Silêncio, crianças - interrompeu-as Jerrodine, rispidamente. - Você tem certeza,<<strong>br</strong> />

Jerrodd?<<strong>br</strong> />

- Você já viu Microvac errar alguma vez? - perguntou Jerrodd, olhan<strong>do</strong> para a inexpressiva<<strong>br</strong> />

massa de metal um pouco abaixo <strong>do</strong> teto. Ela ia de uma ponta a outra da<<strong>br</strong> />

sala, desaparecen<strong>do</strong> através das paredes. Era tão <strong>com</strong>prida quanto a nave.<<strong>br</strong> />

Jerrodd não sabia muita coisa a respeito daquela volumosa estrutura metálica. Sabia<<strong>br</strong> />

apenas que se chamava Microvac e que as pessoas podiam lhe fazer qualquer<<strong>br</strong> />

tipo de pergunta; também tinha a incumbência de guiar a nave para um destino predetermina<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

abastecê-a <strong>com</strong> energia das várias estações de força sub-galácticas e<<strong>br</strong> />

processar os da<strong>do</strong>s necessários para as travessias hiperespaciais.<<strong>br</strong> />

Jerrodd e sua família tinham apenas que esperar enquanto viviam nas confortáveis<<strong>br</strong> />

alas residenciais da nave.<<strong>br</strong> />

Uma vez, alguém disse para Jerrodd que o "AC" de Microvac eram as iniciais de<<strong>br</strong> />

analog <strong>com</strong>puter em inglês arcaico, mas ele mal se lem<strong>br</strong>ava disso.<<strong>br</strong> />

Os olhos de Jerrodine lacrimejaram enquanto ela olhava pelo visor.<<strong>br</strong> />

- Estou emocionada. É tão estranho deixar a Terra.<<strong>br</strong> />

- Pelo amor de Deus, Jerrodine - interpelou Jerrodd. - Não tínhamos nada lá. Vamos<<strong>br</strong> />

ter tu<strong>do</strong> em X-23. Você não estará sozinha nem será uma prisioneira. Já tem<<strong>br</strong> />

mais de um milhão de pessoas no planeta. Santo Deus, nossos bisnetos vão procurar<<strong>br</strong> />

novos mun<strong>do</strong>s porque X-23 estará apinha<strong>do</strong> de gente. - Refletiu um pouco e acrescentou:<<strong>br</strong> />

- Do jeito que a humanidade está se multiplican<strong>do</strong>, é uma sorte que os <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res<<strong>br</strong> />

possam programar viagens interestelares.<<strong>br</strong> />

- Eu sei, eu sei - disse Jerrodine, deprimida.<<strong>br</strong> />

- Nosso Microvac é o melhor Microvac <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> - disse Jerrodette, intrometen<strong>do</strong>se.<<strong>br</strong> />

- Concor<strong>do</strong> <strong>com</strong> você - disse Jerrodd, fazen<strong>do</strong> um carinho no cabelo da garota.<<strong>br</strong> />

Era uma agradável sensação ter seu próprio Microvac e Jerrodd sentia-se feliz por<<strong>br</strong> />

pertencer a essa geração. Quan<strong>do</strong> seu pai era jovem, só havia <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>res gigantescos,<<strong>br</strong> />

que se espalhavam por centenas de milhas. Só podia haver um por planeta.<<strong>br</strong> />

Eram chama<strong>do</strong>s AC Planetário. Durante milhares de anos, eles vinham aumentan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de tamanho continuamente, mas, de repente, se sofisticaram. No lugar <strong>do</strong>s transistores,<<strong>br</strong> />

vieram as válvulas moleculares, permitin<strong>do</strong> que até mesmo o maior <strong>do</strong>s AC Planetários<<strong>br</strong> />

pudesse caber num espaço equivalente a apenas metade de uma nave.<<strong>br</strong> />

Jerrodd rejubilou-se, o que acontecia sempre quan<strong>do</strong> pensava que seu Microvac<<strong>br</strong> />

pessoal era muitas vezes mais <strong>com</strong>plexo <strong>do</strong> que o velho e primitivo Multivac que <strong>com</strong>eçou<<strong>br</strong> />

a explorar a energia solar e quase tão <strong>com</strong>plexo quanto o AC Planetário (o<<strong>br</strong> />

maior da Terra) que tinha resolvi<strong>do</strong> o problema das travessias hiperespaciais, tornan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

possíveis as viagens interestelares.<<strong>br</strong> />

- Tantos planetas, tantas estrelas - suspirou Jerrodine, ocupada <strong>com</strong> seus próprios<<strong>br</strong> />

pensamentos. - Acho que sempre haverá famílias procuran<strong>do</strong> novos planetas, assim<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o nós estamos fazen<strong>do</strong> agora.<<strong>br</strong> />

- Não para sempre - disse Jerrodd, sorrin<strong>do</strong>. - Algum dia isso acabará, mesmo que<<strong>br</strong> />

demore bilhões de anos. Muitos bilhões de anos. Até as estrelas se acabam, você<<strong>br</strong> />

sabe. A entropia um dia vai chegar ao seu ponto máximo.<<strong>br</strong> />

- O que é entropia, papai? - perguntou Jerrodette II, <strong>com</strong> voz estridente.<<strong>br</strong> />

- Querida, entropia é só uma palavra, que significa a quantidade de energia gasta


pelo Universo. Tu<strong>do</strong> um dia se acaba, assim <strong>com</strong>o seu pequeno robô, lem<strong>br</strong>a?<<strong>br</strong> />

- Você não pode colocar uma bateria nova, <strong>com</strong>o fez <strong>com</strong> meu robô?<<strong>br</strong> />

- As estrelas são baterias, meu amor. Depois que elas se acabam não há mais baterias.<<strong>br</strong> />

Jerrodette I a<strong>br</strong>iu um berreiro.<<strong>br</strong> />

- Não deixe que isso aconteça, papai. Não deixe que as estrelas se acabem.<<strong>br</strong> />

- Veja só o que você fez - sussurrou Jerrodine, exasperada.<<strong>br</strong> />

- Como é que eu ia saber que isso ia assustá-as? - sussurrou Jerrodd de volta.<<strong>br</strong> />

- Pergunte a Microvac - gemeu Jerrodette I. - Pergunte a ele <strong>com</strong>o pode acender<<strong>br</strong> />

as estrelas de novo.<<strong>br</strong> />

- Faça isso - disse Jerrodine. - Isso vai acalmá-as. (Jerrodette II também estava<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>eçan<strong>do</strong> a chorar.)<<strong>br</strong> />

Jerrodd deu de om<strong>br</strong>os.<<strong>br</strong> />

- Calma, crianças. Eu perguntarei a Microvac. Não se preocupem, ele nos explicará.<<strong>br</strong> />

Ele fez a pergunta a Microvac, acrescentan<strong>do</strong> rapidamente: imprima a resposta.<<strong>br</strong> />

Jerrodd escondeu na palma da mão o pequeno pedaço de celuloide e disse alegremente:<<strong>br</strong> />

- Vejam, meninas. Multivac diz que quan<strong>do</strong> chegar a hora tomará conta de tu<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Não se preocupem.<<strong>br</strong> />

- Agora, crianças - disse Jerrodine, hora de ir para a cama. Logo chegaremos a<<strong>br</strong> />

nossa casa nova.<<strong>br</strong> />

Jerrodd leu as palavras <strong>do</strong> celuloide antes de destruí-o: DADOS INSUFICIENTES<<strong>br</strong> />

PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA<<strong>br</strong> />

Ele deu de om<strong>br</strong>os e olhou pelo visor. X-23 estava bem em frente.<<strong>br</strong> />

VJ-23X de Lameth olhou fixamente para as profundezas negras <strong>do</strong> mapa da Galáxia<<strong>br</strong> />

em pequena escala tridimensional e disse:<<strong>br</strong> />

- Pergunto a mim mesmo se não estamos sen<strong>do</strong> ridículos em ficarmos tão preocupa<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> esse problema.<<strong>br</strong> />

- Nicron balançou a cabeça.<<strong>br</strong> />

- Acho que não. Você sabe que a Galáxia estará superlotada em cinco anos, se<<strong>br</strong> />

continuar crescen<strong>do</strong> na taxa atual.<<strong>br</strong> />

Os <strong>do</strong>is pareciam ter um pouco mais de 20 anos, eram altos e tinham uma boa<<strong>br</strong> />

constituição física.<<strong>br</strong> />

- Mesmo assim... - disse VJ-23X. - Receio ter que mandar um relatório pessimista<<strong>br</strong> />

para o Conselho Galáctico.<<strong>br</strong> />

- Eu não pensaria em outro tipo de relatório. Vamos agitá-os um pouco. Temos<<strong>br</strong> />

que fazer isso.<<strong>br</strong> />

VJ-23X suspirou. - O espaço é infinito. Ainda há pelo menos 100 bilhões de Galáxias<<strong>br</strong> />

para serem exploradas.<<strong>br</strong> />

- Cem bilhões não são o infinito e, à medida que o tempo passa, vão-se tornan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mais finitos ainda. Pense a respeito disso! Há 20 mil anos, a humanidade resolveu o<<strong>br</strong> />

problema da utilização de energia estrelar; alguns séculos depois, as viagens interestelares<<strong>br</strong> />

se tornaram possíveis. A humanidade levou um milhão de anos para povoar<<strong>br</strong> />

um pequeno mun<strong>do</strong>; depois disso, precisou de apenas 15 mil anos para povoar o<<strong>br</strong> />

resto da Galáxia. Agora, a cada 10 anos, a população <strong>do</strong><strong>br</strong>a...<<strong>br</strong> />

- Graças à imortalidade - interrompeu-o VJ-23X.<<strong>br</strong> />

- Muito bem. A imortalidade existe e temos que levar isso em conta. Admito que


ela tenha o seu la<strong>do</strong> desagradável. O AC Galáctico resolveu muitos problemas para<<strong>br</strong> />

agente, mas, ao resolver o problema da velhice e da morte, deixou-nos sem solução<<strong>br</strong> />

para os outros.<<strong>br</strong> />

- Ainda assim, você não gostaria de aban<strong>do</strong>nar a vida, acho eu.<<strong>br</strong> />

- De jeito nenhum - vociferou MQ-17J, suavizan<strong>do</strong> em seguida. - Pelo menos por<<strong>br</strong> />

enquanto. Ainda estou muito novo. Quantos anos você tem?<<strong>br</strong> />

- Estou <strong>com</strong> 223. E você?<<strong>br</strong> />

- Ainda não fiz nem duzentos. Mas vamos voltar para o ponto. A população <strong>do</strong><strong>br</strong>a<<strong>br</strong> />

a cada dez anos. Uma vez que essa Galáxia esteja superlotada, iremos superlotar<<strong>br</strong> />

uma outra em mais dez anos. <strong>com</strong> mais dez anos teremos mais duas Galáxias superlotadas.<<strong>br</strong> />

Outra década, quatro novas Galáxias. Em cem anos, teremos superlota<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mil Galáxias.<<strong>br</strong> />

Em mil, um milhão de Galáxias. Em dez mil anos, to<strong>do</strong> o Universo. E depois?<<strong>br</strong> />

- Além disso - disse VJ-23X, ainda tem o problema <strong>do</strong>s transportes. Eu me pergunto<<strong>br</strong> />

quantas unidades de força solar serão necessárias para transportar Galáxias de indivíduos<<strong>br</strong> />

de uma Galáxia para a outra.<<strong>br</strong> />

- Esse é assunto muito importante. Nesse momento, a humanidade já consome<<strong>br</strong> />

duas unidades de força solar por ano.<<strong>br</strong> />

- A maior parte dela é desperdiçada. Afinal, só nossa Galáxia produz mil unidades<<strong>br</strong> />

de força solar por ano e nós usamos apenas duas delas.<<strong>br</strong> />

- Concor<strong>do</strong>, mas mesmo que tivéssemos um aproveitamento de cem por cento, estaríamos<<strong>br</strong> />

apenas adian<strong>do</strong> o final. Nossa necessidade de energia está crescen<strong>do</strong> numa<<strong>br</strong> />

proporção geométrica mais rápida ainda <strong>do</strong> que a de nossa população. Ficaremos<<strong>br</strong> />

sem energia antes mesmo de <strong>com</strong>eçarmos a nos preocupar <strong>com</strong> as Galáxias. Boa<<strong>br</strong> />

questão. Muito boa mesmo.<<strong>br</strong> />

- Teremos que construir novas estrelas <strong>com</strong> gases interestelares.<<strong>br</strong> />

- Ou reaproveitan<strong>do</strong> o calor? - perguntou MQ-17J, sarcástico.<<strong>br</strong> />

- Talvez haja uma maneira de reverter a entropia. Podemos fazer essa pergunta ao<<strong>br</strong> />

AC Galáctico.<<strong>br</strong> />

VJ-23X não estava falan<strong>do</strong> sério, mas MQ-17J tirou seu cartão de entrada <strong>do</strong> AC e<<strong>br</strong> />

colocou-o em cima da mesa, à sua frente.<<strong>br</strong> />

- Eu já estava pensan<strong>do</strong> nisso - disse ele. - Esse é o tipo de coisa que, algum dia,<<strong>br</strong> />

a humanidade terá que enfrentar.<<strong>br</strong> />

Encarou som<strong>br</strong>iamente o seu pequeno cartão. Ele tinha apenas duas polegadas cúbicas,<<strong>br</strong> />

e não havia nada dentro dele, mas estava conecta<strong>do</strong>, através <strong>do</strong> hiperespaço,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o grande AC Galáctico que servia a toda a humanidade. Consideran<strong>do</strong> o hiperespaço,<<strong>br</strong> />

ele era parte integral <strong>do</strong> AC Galáctico.<<strong>br</strong> />

MQ-17J se perguntou se, em algum dia de sua vida imortal, veria o AC Galáctico<<strong>br</strong> />

de perto. A máquina ficava num pequeno mun<strong>do</strong> à parte, numa emaranhada rede de<<strong>br</strong> />

raios de força, que alimentava a matéria dentro da qual ondas de sub-mésons tomavam<<strong>br</strong> />

o lugar das velhas e primitivas válvulas moleculares. A despeito de seus <strong>com</strong>ponentes<<strong>br</strong> />

sub-etéricos, sabia-se que o AC Galáctico tinha trezentos metros de <strong>com</strong>primento.<<strong>br</strong> />

MQ-17J perguntou subitamente ao seu cartão.<<strong>br</strong> />

- A entropia pode ser revertida?<<strong>br</strong> />

VJ-23X arregalou os olhos e disse, espanta<strong>do</strong>:<<strong>br</strong> />

- Não tinha a intenção de fazer <strong>com</strong> que você perguntasse isso.<<strong>br</strong> />

- Por que não?<<strong>br</strong> />

- Nós <strong>do</strong>is sabemos que a entropia não pode ser revertida. Você não pode fazer<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> que a fumaça e as cinzas voltem a ser uma árvore.


- Há árvores no seu mun<strong>do</strong>? - perguntou MQ-17J. O som <strong>do</strong> AC Galáctico os silenciou.<<strong>br</strong> />

Sua voz fina e bonita saiu <strong>do</strong> pequeno cartão em cima da mesa. Ele disse:<<strong>br</strong> />

- NÃO HÁ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.<<strong>br</strong> />

- Veja - disse VJ-23X.<<strong>br</strong> />

Com isso, os <strong>do</strong>is homens voltaram ao problema <strong>do</strong> relatório que tinham que entregar<<strong>br</strong> />

para o Conselho Galáctico.<<strong>br</strong> />

A mente de Zee Prime abarcou a nova Galáxia <strong>com</strong> um leve interesse nas incontáveis<<strong>br</strong> />

constelações que a pontilhavam. Ele nunca tinha visto essa Galáxia antes. Será<<strong>br</strong> />

que algum dia veria todas elas? Eram tantas, cada uma delas <strong>com</strong> sua carga de humanidade.<<strong>br</strong> />

Mas uma carga que era quase <strong>com</strong>o um peso morto. Cada vez mais, a essência<<strong>br</strong> />

verdadeira <strong>do</strong> homem se encontrava aqui fora, no espaço.<<strong>br</strong> />

Mentes, não corpos! Os corpos imortais permaneciam lá nos planetas, em suspensão<<strong>br</strong> />

através <strong>do</strong>s éons. Algumas vezes, eles despertavam para atividades materiais,<<strong>br</strong> />

mas isso estava se tornan<strong>do</strong> cada vez mais raro. Poucos novos indivíduos estavam<<strong>br</strong> />

adquirin<strong>do</strong> o direito de existir e se juntar a uma multidão incrivelmente poderosa,<<strong>br</strong> />

mas o que importava? Havia pouco espaço no Universo para novos indivíduos.<<strong>br</strong> />

Zee Prime foi acorda<strong>do</strong> de seus devaneios ao cruzar <strong>com</strong> o filamento de uma outra<<strong>br</strong> />

mente.<<strong>br</strong> />

- Eu sou Zee Prime - disse ele. - E você?<<strong>br</strong> />

- Eu sou Dee Sub Wun. É sua Galáxia?<<strong>br</strong> />

- Nós a chamamos apenas de Galáxia. E a sua?<<strong>br</strong> />

- Nós a chamamos assim também. To<strong>do</strong>s os homens chamam suas Galáxias de Galáxia,<<strong>br</strong> />

nada mais. Por que não?<<strong>br</strong> />

- É verdade. Todas as Galáxias são iguais.<<strong>br</strong> />

- Nem todas as Galáxias. A raça humana deve ser oriunda de uma galáxia específica.<<strong>br</strong> />

Isso a faz diferente.<<strong>br</strong> />

- Qual delas? - perguntou Zee Prime.<<strong>br</strong> />

- Não sei dizer. O AC Universal deve saber.<<strong>br</strong> />

- Vamos perguntar isso a ele. De repente fiquei curioso.<<strong>br</strong> />

A consciência de Zee Prime se espalhou pelas Galáxias, até que elas se tornaram<<strong>br</strong> />

minúsculas, dan<strong>do</strong> lugar a uma nova miríade, mais difusa, so<strong>br</strong>e um fun<strong>do</strong> muito<<strong>br</strong> />

maior.<<strong>br</strong> />

Centenas de bilhões delas, todas <strong>com</strong> seus seres imortais, todas carregan<strong>do</strong> sua<<strong>br</strong> />

carga de inteligência, <strong>com</strong> mentes que flutuavam livremente através <strong>do</strong> espaço.<<strong>br</strong> />

E ainda assim uma delas era única entre todas porque era a Galáxia original.<<strong>br</strong> />

Uma delas teve, num passa<strong>do</strong> vago e distante, um perío<strong>do</strong> em que foi a única Galáxia<<strong>br</strong> />

habitada pelo homem.<<strong>br</strong> />

Zee Prime foi consumi<strong>do</strong> pela curiosidade de conhecer essa Galáxia.<<strong>br</strong> />

- AC Universal! - gritou ele. - De que Galáxia a humanidade se originou?<<strong>br</strong> />

AC Universal ouviu, pois tinha um receptor em to<strong>do</strong>s os mun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Universo, e<<strong>br</strong> />

esse receptor se <strong>com</strong>unicava, através <strong>do</strong> hiperespaço, <strong>com</strong> algum lugar desconheci<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

no qual AC Universal trabalhava silenciosamente.<<strong>br</strong> />

Zee Prime sabia de apenas um homem cujos pensamentos tinham alcança<strong>do</strong> um<<strong>br</strong> />

ponto em que se pudesse sentir o AC Universal, e ele falou apenas de um globo <strong>br</strong>ilhante,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> menos de um metro de diâmetro, que mal dava para ser visto.<<strong>br</strong> />

- Como é que AC Universal pode ser só isso? - perguntou Zee Prime.


- A maior parte dele - tinha si<strong>do</strong> a resposta - está no hiper espaço. Só não posso<<strong>br</strong> />

imaginar que forma ele adquire ali.<<strong>br</strong> />

Nem ninguém poderia, pois Zee Prime sabia que muito tempo havia passa<strong>do</strong> desde<<strong>br</strong> />

o dia em que algum homem participara da criação de um AC Universal. A partir<<strong>br</strong> />

de então, cada AC Universal projetou e construiu seu sucessor. Cada um, durante<<strong>br</strong> />

uma experiência de um milhão de anos ou mais, acumulava os da<strong>do</strong>s necessários<<strong>br</strong> />

para construir um sucessor ainda melhor, mais <strong>com</strong>plexo e mais capaz, ao qual incorporavam<<strong>br</strong> />

seu próprio banco de da<strong>do</strong>s e suas características.<<strong>br</strong> />

AC Universal interrompeu o devaneio <strong>do</strong>s pensamentos de Zee Prime não <strong>com</strong> palavras,<<strong>br</strong> />

mas <strong>com</strong> sinais. A mente de Zee Prime foi conduzida através <strong>do</strong> reluzente mar<<strong>br</strong> />

de Galáxias, e uma, em particular, cresceu até transformar-se em estrelas.<<strong>br</strong> />

Um pensamento veio a seu encontro, infinitamente distante, mas infinitamente claro:<<strong>br</strong> />

"ESTA E A GALÁXIA ORIGINAL DO HOMEM "<<strong>br</strong> />

Mas, no fim das contas, essa era igual a todas, tão igual quanto qualquer outra.<<strong>br</strong> />

Zee Prime reprimiu seu desapontamento.<<strong>br</strong> />

Dee Sub Wun, cuja mente tinha a<strong>com</strong>panha<strong>do</strong> a de Zee Prime, disse repentinamente:<<strong>br</strong> />

- Alguma dessas estrelas é a estrela original <strong>do</strong> Homem?<<strong>br</strong> />

AC Universal disse:<<strong>br</strong> />

- A ESTRELA ORIGINAL DO HOMEM SE TRANSFORMOU NUMA NOVA AGORA E<<strong>br</strong> />

UMA ANÃ BRANCA.<<strong>br</strong> />

- Os homens que estavam nela morreram? - perguntou Zee Prime, perplexo, sem<<strong>br</strong> />

saber o que pensar.<<strong>br</strong> />

- Nesses casos, um novo mun<strong>do</strong> é construí<strong>do</strong> para seus corpos físicos.<<strong>br</strong> />

- Sim, é claro - disse Zee Prime, mas uma sensação de perda o oprimiu mesmo assim.<<strong>br</strong> />

Sua mente libertou-se <strong>do</strong>s laços <strong>com</strong> a Galáxia Original <strong>do</strong> Homem, deixan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

que flutuasse de volta para o seu lugar e se perdesse entre as minúsculas manchas<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> Universo. Não queria vê-a nunca mais.<<strong>br</strong> />

- O que está erra<strong>do</strong>? - perguntou Dee Sub Wun.<<strong>br</strong> />

- As estrelas estão morren<strong>do</strong>. A estrela original está morta.<<strong>br</strong> />

- Todas elas morrerão. Por que não?<<strong>br</strong> />

- Mas quan<strong>do</strong> toda energia se acabar, nossos corpos também morrerão, e você e<<strong>br</strong> />

eu <strong>com</strong> eles.<<strong>br</strong> />

- Mas isso levará bilhões de anos.<<strong>br</strong> />

- Não quero que isso aconteça mesmo daqui a bilhões de anos.<<strong>br</strong> />

AC Universal! Existe alguma maneira de evitar a morte das estrelas?<<strong>br</strong> />

Dee Sub Wun disse, num tom diverti<strong>do</strong>:<<strong>br</strong> />

- Você está queren<strong>do</strong> saber <strong>com</strong>o se pode reverter a entropia? E AC Universal respondeu:<<strong>br</strong> />

- OS DADOS AINDA SÃO INSUFICIENTES PARA DAR UMA RESPOSTA SIGNIFICATI-<<strong>br</strong> />

VA.<<strong>br</strong> />

Os pensamentos de Zee Prime voaram de volta para sua própria Galáxia. Ele cortou<<strong>br</strong> />

a transmissão de pensamentos para Dee Sub Wun, cujo corpo podia estar esperan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

numa Galáxia a um trilhão de anos-luz de distância, ou na estrela vizinha à <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

próprio Zee Prime. Isso não importava.<<strong>br</strong> />

Deprimi<strong>do</strong>, Zee Prime <strong>com</strong>eçou a colecionar hidrogênio interestrelar, <strong>com</strong> a intenção<<strong>br</strong> />

de construir uma pequena estrela só para ele. Se algum dia as estrelas deveriam<<strong>br</strong> />

morrer, ele podia, ao menos, construir algumas.


Homem pensou consigo mesmo, já que, de alguma forma, Homem, mentalmente,<<strong>br</strong> />

era único. Ele era feito de trilhões e trilhões e trilhões de corpos atemporais-, cada<<strong>br</strong> />

um no seu lugar, descansan<strong>do</strong> tranquilo e inalterável, cada um protegi<strong>do</strong> por autômatos<<strong>br</strong> />

perfeitos, igualmente inalteráveis, enquanto as mentes de to<strong>do</strong>s os corpos se<<strong>br</strong> />

fundiam livremente umas <strong>com</strong> as outras, indistinguíveis. Homem disse:<<strong>br</strong> />

- O Universo está morren<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Homem olhou para a escuridão das Galáxias. As estrelas gigantes, esbanja<strong>do</strong>ras<<strong>br</strong> />

de energia, tinham-se apaga<strong>do</strong> há muito, voltan<strong>do</strong> para uma escuridão mais escura<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> que a de seu passa<strong>do</strong> remoto. Agora, quase todas eram anãs <strong>br</strong>ancas, condenadas<<strong>br</strong> />

ao fim.<<strong>br</strong> />

Novas estrelas tinham si<strong>do</strong> construídas a partir da poeira interestelar, algumas<<strong>br</strong> />

através de um processo natural, outras por intermédio da ação <strong>do</strong> Homem, mas essas<<strong>br</strong> />

também estavam se acaban<strong>do</strong>. As anãs <strong>br</strong>ancas ainda podiam se chocar, e, da<<strong>br</strong> />

poderosa energia despendida no atrito, construir novas estrelas, mas apenas uma estrela<<strong>br</strong> />

para cada mil estrelas destruídas, e essas também caminhavam em direção ao<<strong>br</strong> />

fim.<<strong>br</strong> />

Homem disse:<<strong>br</strong> />

- Se seguirmos os conselhos de AC Cósmico e pouparmos cuida<strong>do</strong>samente a energia<<strong>br</strong> />

que ainda resta no Universo, ela durará milhões de anos.<<strong>br</strong> />

- Mas, mesmo assim - respondeu Homem - isso tu<strong>do</strong> vai acabar algum dia. Mesmo<<strong>br</strong> />

sen<strong>do</strong> poupada e reaproveitada, a energia gasta já se foi, não pode mais ser reconstruída.<<strong>br</strong> />

A entropia deve atingir seu ponto máximo.<<strong>br</strong> />

Homem disse:<<strong>br</strong> />

- A entropia não pode ser revertida? Vamos perguntar ao AC Cósmico.<<strong>br</strong> />

O AC Cósmico envolveu-os, mas não no espaço. Não restava nenhum fragmento<<strong>br</strong> />

dele no espaço. Ele estava no hiperespaço e era feito de alguma coisa que não era<<strong>br</strong> />

nem matéria nem energia. A discussão so<strong>br</strong>e o seu tamanho e sua natureza não tinha<<strong>br</strong> />

mais nenhum significa<strong>do</strong> em quaisquer termos que Homem pudesse <strong>com</strong>preender.<<strong>br</strong> />

- AC Cósmico - perguntou Homem, é possível reverter a entropia?<<strong>br</strong> />

AC Cósmico disse:<<strong>br</strong> />

- OS DADOS AINDA SÃO INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.<<strong>br</strong> />

Homem disse:<<strong>br</strong> />

- Reúna da<strong>do</strong>s adicionais.<<strong>br</strong> />

O AC Cósmico disse:<<strong>br</strong> />

- ESTOU FAZENDO ISSO HÁ CENTENAS DE BILHÕES DE ANOS. ESSA PERGUNTA<<strong>br</strong> />

FOI FEITA MUITAS VEZES A MEUS ANTECESSORES. TODOS OS DADOS QUE TENHO<<strong>br</strong> />

CONTINUAM INSUFICIENTES.<<strong>br</strong> />

- Haverá algum tempo - disse Homem - em que os da<strong>do</strong>s serão suficientes, ou<<strong>br</strong> />

esse problema é insolúvel em todas as circunstâncias possíveis?<<strong>br</strong> />

O AC Cósmico disse:<<strong>br</strong> />

- NENHUM PROBLEMA É INSOLÚVEL EM TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS POSSÍVEIS.<<strong>br</strong> />

Homem disse:<<strong>br</strong> />

- Quan<strong>do</strong> você terá da<strong>do</strong>s suficientes para responder a essa pergunta?<<strong>br</strong> />

O AC Cósmico disse:<<strong>br</strong> />

- OS DADOS AINDA SÃO INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA<<strong>br</strong> />

- Você continuará trabalhan<strong>do</strong> nisso? - perguntou Homem.<<strong>br</strong> />

O AC Cósmico disse: - SIM.


- Nós esperaremos - disse Homem.<<strong>br</strong> />

As estrelas e as Galáxias morreram e se apagaram, e, depois de dez trilhões de<<strong>br</strong> />

anos de desgaste, o espaço ficou escuro.<<strong>br</strong> />

Um por um, Homem se fundiu <strong>com</strong> AC, cada corpo físico foi perden<strong>do</strong> sua identidade<<strong>br</strong> />

mental de uma tal maneira que não podia ser considerada uma perda, mas<<strong>br</strong> />

uma conquista.<<strong>br</strong> />

A última mente de Homem fez uma pausa antes de se fundir, contemplan<strong>do</strong> o espaço<<strong>br</strong> />

que, agora, não continha nada mais <strong>do</strong> que os resíduos da última estrela a se<<strong>br</strong> />

apagar e uma matéria incrivelmente tênue, agitada ao acaso pelas últimas ondas <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

calor que se dissipava assintoticamente, até o zero absoluto.<<strong>br</strong> />

- AC, isso é o fim? - perguntou Homem. - Este caos não pode ser reverti<strong>do</strong> novamente<<strong>br</strong> />

em Universo? Isso não pode ser feito?<<strong>br</strong> />

AC disse:<<strong>br</strong> />

- OS DADOS AINDA SÃO INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.<<strong>br</strong> />

A última mente de Homem fundiu-se e restou apenas AC - mas apenas no hiperespaço.<<strong>br</strong> />

Matéria e energia tinham acaba<strong>do</strong>, e <strong>com</strong> elas o espaço e o tempo. Mesmo AC só<<strong>br</strong> />

existia graças à última pergunta, que estava sem resposta desde que <strong>do</strong>is técnicos<<strong>br</strong> />

meio bêba<strong>do</strong>s a tinham feito, há dez trilhões de anos, a um <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r que, <strong>com</strong>para<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

a AC, era menos ainda <strong>do</strong> que o homem era para Homem.<<strong>br</strong> />

Todas as outras perguntas tinham si<strong>do</strong> respondidas, e enquanto essa última pergunta<<strong>br</strong> />

não fosse respondida AC não poderia liberar sua consciência.<<strong>br</strong> />

To<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s possíveis tinham si<strong>do</strong> coleta<strong>do</strong>s. Não existia mais nada a inserir.<<strong>br</strong> />

Mas to<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s já coleta<strong>do</strong>s ainda tinham que ser <strong>com</strong>pletamente correlaciona<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

e confronta<strong>do</strong>s <strong>com</strong> todas as <strong>com</strong>binações possíveis.<<strong>br</strong> />

Um intervalo interminável se passou enquanto ele fazia isso.<<strong>br</strong> />

Enfim, AC alcançou a resposta que permitiria reverter a entropia.<<strong>br</strong> />

Agora não havia mais nenhum homem para quem AC pudesse dar a resposta da<<strong>br</strong> />

última pergunta. Não importa. A resposta - por demonstração - também cuidaria disso.<<strong>br</strong> />

Durante outro intervalo interminável, AC pensou na melhor maneira de fazer isso.<<strong>br</strong> />

Cuida<strong>do</strong>samente, AC organizou o programa.<<strong>br</strong> />

A consciência de AC abarcou tu<strong>do</strong> o que uma vez tinha si<strong>do</strong> o Universo e pairou<<strong>br</strong> />

so<strong>br</strong>e o que agora era o Caos. Passo a passo, isso devia ser feito.<<strong>br</strong> />

E AC disse:<<strong>br</strong> />

FAÇA-SE A LUZ!<<strong>br</strong> />

E fez-se a Luz...


O GAROTINHO FEIO<<strong>br</strong> />

Como sempre fazia antes de a<strong>br</strong>ir a <strong>com</strong>plexa fechadura da porta, Edith Fellowes<<strong>br</strong> />

ajeitou o uniforme e depois an<strong>do</strong>u na direção da linha invisível que havia entre o é e<<strong>br</strong> />

o que não é. Trazia consigo seu bloco de anotações e sua caneta, apesar de há muito<<strong>br</strong> />

tempo só registrar em relatório as coisas que achava absolutamente necessárias.<<strong>br</strong> />

Dessa vez ela também carregava uma mala. (Jogos para o garoto, disse, sorrin<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

para o guarda - o qual já nem pensava mais em questioná-a, e acenou para que entrasse.)<<strong>br</strong> />

Como sempre, o garotinho feio sabia que ela estava entran<strong>do</strong> e correu na sua direção.<<strong>br</strong> />

- Srta. Fellowes - gritou ele, <strong>com</strong> sua voz macia e in<strong>com</strong>preensível.<<strong>br</strong> />

- Timmie - disse ela, passan<strong>do</strong> a mão so<strong>br</strong>e os desgrenha<strong>do</strong>s cabelos castanhos de<<strong>br</strong> />

sua cabeça deformada. - Alguma coisa errada?<<strong>br</strong> />

- Jerry vai voltar novamente? - perguntou. - Desculpe por tu<strong>do</strong> o que aconteceu.<<strong>br</strong> />

- Deixe isso pra lá, Timmie. Era por isso que você estava choran<strong>do</strong>?<<strong>br</strong> />

Ele desviou o olhar.<<strong>br</strong> />

- Não foi só isso, Srta. Fellowes. É que andei sonhan<strong>do</strong> novamente.<<strong>br</strong> />

- O mesmo sonho? - A Srta. Fellowes mordeu os lábios. É claro que o caso de Jerry<<strong>br</strong> />

traria o sonho de volta.<<strong>br</strong> />

Ele concor<strong>do</strong>u. Tentou sorrir, mostran<strong>do</strong> os dentes de sua boca proeminente. -<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> serei grande o suficiente para ir lá fora, Srta. Fellowes?<<strong>br</strong> />

- Logo, logo - disse ela suavemente, sentin<strong>do</strong> seu coração se partir. - Logo, logo.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes deixou que a pegasse pela mão, sentin<strong>do</strong> prazer <strong>com</strong> o calor que<<strong>br</strong> />

emanava da áspera palma da mão dele.<<strong>br</strong> />

Ele a puxou através das três salas que formavam o conjunto Seção Stasis 1 - muito<<strong>br</strong> />

confortável, é verdade, mas que nunca deixara de ser uma eterna prisão para o garotinho<<strong>br</strong> />

feio, durante to<strong>do</strong>s os sete anos (foram sete anos mesmo?) de sua vida.<<strong>br</strong> />

Ele a conduziu para a única janela da sala, de onde olharam para a raquítica floresta<<strong>br</strong> />

que fazia parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> é (agora escondi<strong>do</strong> pela noite), onde uma cerca<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> instruções pintadas proibia os homens de andarem por ali sem permissão.<<strong>br</strong> />

Ele pressionou o nariz contra a janela.<<strong>br</strong> />

- Lá fora, Srta. Fellowes?<<strong>br</strong> />

- Lugares melhores. Bem mais bonitos - disse ela tristemente, olhan<strong>do</strong> para o rosto<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> seu po<strong>br</strong>e prisioneiro, de perfil contra a janela. A testa era chata e os cabelos<<strong>br</strong> />

caíam em tufos so<strong>br</strong>e ela. A parte de trás <strong>do</strong> seu crânio era saliente e parecia tornar<<strong>br</strong> />

a cabeça mais pesada ainda, <strong>com</strong>o se inclinada para a frente, fazen<strong>do</strong> <strong>com</strong> que to<strong>do</strong>


o seu corpo se curvasse. Apesar da idade, já tinha rugas encrespan<strong>do</strong> a pele so<strong>br</strong>e<<strong>br</strong> />

seus olhos. Sua boca enorme era mais proeminente <strong>do</strong> que o seu nariz largo e achata<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

e ele não tinha propriamente queixo, mas um osso maxilar que fazia uma pequena<<strong>br</strong> />

curva para baixo e para trás. Era pequeno para a idade que tinha, e suas pernas<<strong>br</strong> />

rechonchudas eram arqueadas.<<strong>br</strong> />

Ele era um garotinho muito feio, mas Edith Fellowes o amava profundamente.<<strong>br</strong> />

Como o rosto dela estava fora <strong>do</strong> campo de visão de Timmie, ela permitiu que seus<<strong>br</strong> />

lábios tremessem um pouco.<<strong>br</strong> />

Eles não iriam matá-o. Ela faria qualquer coisa para impedi-os Qualquer coisa.<<strong>br</strong> />

A<strong>br</strong>iu a mala e <strong>com</strong>eçou a tirar as roupas que havia dentro dela.<<strong>br</strong> />

A primeira vez que Edith Fellowes atravessou a soleira da porta da Stasis tinha si<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

há pouco mais de três anos. Naquela época, não tinha a menor ideia <strong>do</strong> que significava<<strong>br</strong> />

Stasis ou <strong>do</strong> que se fazia naquele lugar. Ninguém sabia, a não ser as pessoas<<strong>br</strong> />

que trabalhavam lá. Na verdade, sua fama só <strong>com</strong>eçou a se espalhar pelo mun<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

apenas um dia depois da chegada da Srta. Fellowes.<<strong>br</strong> />

Nessa ocasião, sabia-se apenas que tinham convoca<strong>do</strong> uma mulher <strong>com</strong> conhecimento<<strong>br</strong> />

de psicologia, experiência em clínica química, e que gostava de crianças.<<strong>br</strong> />

Edith Fellowes tinha si<strong>do</strong> enfermeira numa maternidade e acreditava que preenchia<<strong>br</strong> />

esses requisitos.<<strong>br</strong> />

Gerald Hoskins, cuja placa de identificação so<strong>br</strong>e a mesa tinha um PhD depois <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

nome, coçou a face <strong>com</strong> o polegar e olhou-a fixamente.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes imediatamente se empertigou e sentiu seu rosto (<strong>com</strong> o nariz ligeiramente<<strong>br</strong> />

assimétrico e so<strong>br</strong>ancelhas muito carregadas) se contrair.<<strong>br</strong> />

Ele não é nenhum galã, pensou ela, ressentida. Está fican<strong>do</strong> gor<strong>do</strong>, barrigu<strong>do</strong>, e<<strong>br</strong> />

tem uma boca mal-humorada. Mas o salário prometi<strong>do</strong> era consideravelmente maior<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> que o de suas expectativas. Ela resolveu esperar.<<strong>br</strong> />

- Você realmente ama as crianças? - disse Hoskins.<<strong>br</strong> />

- Eu não diria que sim, se não amasse.<<strong>br</strong> />

- Ou será que ama apenas as belas crianças? A<strong>do</strong>ráveis, rechonchudas, <strong>com</strong> um<<strong>br</strong> />

belo narizinho e maneiras encanta<strong>do</strong>ras?<<strong>br</strong> />

- Crianças são crianças - respondeu a Srta. Fellowes. - E as que não são bonitas<<strong>br</strong> />

são exatamente as que mais precisam de ajuda.<<strong>br</strong> />

- Então acho que você está contratada...<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que eu devo assumir o trabalho agora?<<strong>br</strong> />

Ele sorriu levemente. Por um instante seu rosto largo assumiu uma expressão<<strong>br</strong> />

charmosa.<<strong>br</strong> />

- Tomo decisões rápidas - disse ele. - Até agora, no entanto, a proposta é para<<strong>br</strong> />

uma experiência. Posso voltar atrás <strong>com</strong> a mesma rapidez. Está pronta para aceitar o<<strong>br</strong> />

trabalho?<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes apertou sua bolsa e tentou avaliar rapidamente a situação, mas<<strong>br</strong> />

logo desistiu e resolveu seguir os seus impulsos.<<strong>br</strong> />

- Está bem.<<strong>br</strong> />

- Muito bem. Vamos inaugurar o Stasis esta noite. Acho que seria melhor que estivesse<<strong>br</strong> />

lá para assumir o seu emprego de uma vez. Isso será às oito horas, e eu gostaria<<strong>br</strong> />

muito que você pudesse chegar às sete e meia.<<strong>br</strong> />

- Mas o que...<<strong>br</strong> />

- Muito bem. Muito bem. Isso é tu<strong>do</strong> por enquanto. - A um sinal, uma secretária<<strong>br</strong> />

sorridente entrou para a<strong>com</strong>panhá-a até a saída.


Ao sair da sala, a Srta. Fellowes virou-se de costas e observou por um momento a<<strong>br</strong> />

porta fechada <strong>do</strong> Dr. Hoskins. O que era a Stasis? Esse grande galpão construí<strong>do</strong> -<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> seus emprega<strong>do</strong>s de crachá, corre<strong>do</strong>res improvisa<strong>do</strong>s, e uma inconfundível aparência<<strong>br</strong> />

de empresa de engenharia, o que isso tu<strong>do</strong> tinha a ver <strong>com</strong> crianças?<<strong>br</strong> />

Ela se perguntou se devia voltar à noite ou ir embora e dar uma lição naquele homem<<strong>br</strong> />

arrogante. Mas desde então já sabia que estaria de volta, mesmo que fosse<<strong>br</strong> />

apenas para evitar um sentimento de frustração. Tinha que desco<strong>br</strong>ir a respeito das<<strong>br</strong> />

crianças.<<strong>br</strong> />

Ela voltou às 19:30 e não precisou anunciar a sua entrada. To<strong>do</strong>s pareciam saber<<strong>br</strong> />

quem ela era e qual a sua função. Enquanto entrava, tinha um pressentimento funesto.<<strong>br</strong> />

O Dr. Hoskins estava lá, mas olhou-a <strong>com</strong> indiferença.<<strong>br</strong> />

- Srta. Fellowes - murmurou.<<strong>br</strong> />

Não se deu nem o trabalho de lhe oferecer uma cadeira, mas ela puxou uma e,<<strong>br</strong> />

calmamente, levou-a para perto <strong>do</strong> parapeito, onde se a<strong>com</strong>o<strong>do</strong>u.<<strong>br</strong> />

Eles estavam num balcão, olhan<strong>do</strong> para um grande buraco lá embaixo, cheio de<<strong>br</strong> />

aparelhos, parecen<strong>do</strong> uma mistura de painel de controle de uma nave <strong>com</strong> um grande<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

Num la<strong>do</strong>, estavam as divisões que pareciam reproduzir um apartamento sem teto,<<strong>br</strong> />

uma gigantesca casa de bonecas vista de cima.<<strong>br</strong> />

Ela podia ver um fogão eletrônico e uma geladeira numa das salas e, ao la<strong>do</strong>, um<<strong>br</strong> />

banheiro. Certamente o objeto que vislum<strong>br</strong>ou numa terceira sala só podia ser parte<<strong>br</strong> />

de uma cama, uma pequena cama.<<strong>br</strong> />

Hoskins estava falan<strong>do</strong> <strong>com</strong> um outro homem, que, juntamente <strong>com</strong> a Srta. Fellowes,<<strong>br</strong> />

eram os únicos ocupantes <strong>do</strong> balcão. Hoskins não fez nenhuma menção de<<strong>br</strong> />

apresentá-os.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes deu uma olhadela pelo canto <strong>do</strong> olho. Ele era magro e, para uma<<strong>br</strong> />

pessoa de meia-idade, era de boa aparência. Tinha um pequeno bigode e olhos perspicazes,<<strong>br</strong> />

que pareciam observar tu<strong>do</strong> ao seu re<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

Ele estava dizen<strong>do</strong>:<<strong>br</strong> />

- Não Vou nem fingir que enten<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que está acontecen<strong>do</strong> aqui, Dr. Hoskins.<<strong>br</strong> />

Quero dizer, não enten<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que está ao alcance de um leigo razoavelmente inteligente.<<strong>br</strong> />

Ainda assim, a parte que menos enten<strong>do</strong> é a que se refere à seletividade.<<strong>br</strong> />

O senhor não pode alcançar além de uma certa distância; isso parece óbvio: quanto<<strong>br</strong> />

mais longe se vai, mais imprecisos são os resulta<strong>do</strong>s, e é necessário empregar mais<<strong>br</strong> />

energia. Mas por outro la<strong>do</strong> o Sr. também não pode alcançar aquém de um certo limite.<<strong>br</strong> />

Isso me parece contraditório.<<strong>br</strong> />

- Posso tornar as coisas mais simples, Deveney, se você me permitir usar uma analogia.<<strong>br</strong> />

( Ao ouvir aquele nome, a Srta. Fellowes reconheceu imediatamente o homem<<strong>br</strong> />

e não pôde deixar de sentir-se impressionada. Aquele era sem dúvida Candide Deveney,<<strong>br</strong> />

o editor de ciência <strong>do</strong> Telenotícias, sempre presente às grandes descobertas científicas.<<strong>br</strong> />

Ela lem<strong>br</strong>ou-se de ter visto aquele rosto na tela, quan<strong>do</strong> foi noticia<strong>do</strong> o desembarque<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> homem em Marte. Era evidente que o Dr. Hoskins estava fazen<strong>do</strong> algo<<strong>br</strong> />

importante ali.)<<strong>br</strong> />

- Por favor - disse Deveney. - Dê um exemplo concreto, se acha que isso pode ajudar.<<strong>br</strong> />

- Você não pode ler um livro <strong>com</strong>um se ele estiver a três metros de distância, mas<<strong>br</strong> />

pode lê-o se o colocar a meio metro <strong>do</strong>s olhos. Portanto, quanto mais perto melhor.<<strong>br</strong> />

Mas se você o trouxer a uma polegada <strong>do</strong>s olhos, já não pode ler novamente. Estar<<strong>br</strong> />

perto demais também pode atrapalhar.


- Hum-hum - fez Deveney.<<strong>br</strong> />

- Veja outro exemplo. Seu om<strong>br</strong>o direito está a 30 polegadas <strong>do</strong> seu de<strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

direito, mas você pode tocar o om<strong>br</strong>o <strong>com</strong> esse de<strong>do</strong>. Seu cotovelo direito está<<strong>br</strong> />

situa<strong>do</strong> a apenas metade dessa distância; mas você não pode tocá-o <strong>com</strong> o indica<strong>do</strong>r<<strong>br</strong> />

direito. Mais uma vez, estar perto demais pode ser um obstáculo.<<strong>br</strong> />

- Posso usar esses exemplos em minha reportagem? - perguntou Deveney.<<strong>br</strong> />

- Eu ficaria grato. Há muito tempo espero a oportunidade de dar matéria para reportagem<<strong>br</strong> />

a alguém <strong>com</strong>o você. Dar-lhe-ei to<strong>do</strong>s os detalhes. Já está na hora <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mun<strong>do</strong> inteiro olhar so<strong>br</strong>e o nosso om<strong>br</strong>o e ver o que estamos realizan<strong>do</strong>. (A Srta.<<strong>br</strong> />

Fellowes se viu admiran<strong>do</strong> sua convicção. Havia força nele.)<<strong>br</strong> />

- Quantos anos você pretende voltar atrás?<<strong>br</strong> />

- Quarenta mil anos.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes prendeu a respiração. Anos?<<strong>br</strong> />

Havia expectativa no ar. Os homens que estavam no <strong>com</strong>an<strong>do</strong> mal se mexiam. Um<<strong>br</strong> />

homem falou ao microfone <strong>com</strong> uma voz monótona, usan<strong>do</strong> frases curtas que não<<strong>br</strong> />

faziam o menor senti<strong>do</strong> para ela.<<strong>br</strong> />

Deveney se de<strong>br</strong>uçou na grade <strong>do</strong> balcão, <strong>com</strong> os olhos arregala<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- Podemos ver alguma coisa, Dr. Hoskins?<<strong>br</strong> />

- O quê? Não. Não veremos nada antes de o trabalho ser concluí<strong>do</strong>. Detectamos as<<strong>br</strong> />

coisas por um princípio <strong>com</strong>o o radar, só que usamos o méson, em vez da radiação.<<strong>br</strong> />

Em condições adequadas, o méson alcança o passa<strong>do</strong>. Alguns mésons são refleti<strong>do</strong>s,<<strong>br</strong> />

e analisamos esses reflexos.<<strong>br</strong> />

- Isso parece difícil.<<strong>br</strong> />

Hoskins sorriu novamente, <strong>com</strong>o sempre de maneira <strong>br</strong>eve.<<strong>br</strong> />

- Esse é o produto final de cinquenta anos de pesquisa, quarenta <strong>do</strong>s quais antes<<strong>br</strong> />

que eu me juntasse a ela. Sim, é muito difícil.<<strong>br</strong> />

O homem ao microfone levantou a mão.<<strong>br</strong> />

- Nós nos fixamos num trecho de tempo específico durante semanas, desmem<strong>br</strong>an<strong>do</strong>-o<<strong>br</strong> />

e refazen<strong>do</strong>-o depois de calcular nosso próprio movimento no Tempo, certifican<strong>do</strong>-nos<<strong>br</strong> />

de que poderíamos manipular o fluxo de tempo <strong>com</strong> precisão suficiente.<<strong>br</strong> />

Isso deve funcionar agora.<<strong>br</strong> />

Mas sua testa reluzia de suor.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> Edith Fellowes deu por si, tinha saí<strong>do</strong> da cadeira e se de<strong>br</strong>uça<strong>do</strong> na grade<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> balcão, mas não havia nada para ver. O homem ao microfone disse baixinho:<<strong>br</strong> />

- Agora.<<strong>br</strong> />

Fez-se um <strong>br</strong>eve silêncio, e então o som de um grito lancinante e aterroriza<strong>do</strong> de<<strong>br</strong> />

criança ecoou pelas salas da casa de boneca. Terror. Terror total.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes virou-se na direção <strong>do</strong> grito. A criança! Ela tinha esqueci<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Hoskins esmurrou a grade e disse <strong>com</strong> uma voz firme, triunfante:<<strong>br</strong> />

- Falei que ia dar certo<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes foi empurrada para baixo da pequena escada em espiral, pressionada<<strong>br</strong> />

pela dura palma da mão de Hoskins entre seus om<strong>br</strong>os. Ele não lhe explicou<<strong>br</strong> />

nada.<<strong>br</strong> />

Os homens que estavam no controle agora circulavam à vontade, sorrin<strong>do</strong>, fuman<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

observan<strong>do</strong> os três quan<strong>do</strong> entraram no salão principal. Um suave zumbi<strong>do</strong> vinha<<strong>br</strong> />

da casa de boneca.<<strong>br</strong> />

- Não há nenhum perigo em entrar em Stasis - disse Hoskins para Deveney. - Já fiz<<strong>br</strong> />

isso milhares de vezes. Dá uma sensação estranha, mas passa logo, não faz mal nenhum.<<strong>br</strong> />

Ele atravessou uma porta aberta para demonstrar o que dizia, e Deveney, sorrin<strong>do</strong>


sem graça e prenden<strong>do</strong> a respiração, a<strong>com</strong>panhou-o.<<strong>br</strong> />

- Srta. Fellowes - disse Hoskins. - Por favor. - Ele fez um movimento impaciente<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o de<strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r, intiman<strong>do</strong>-a.<<strong>br</strong> />

Ela balançou a cabeça e, apesar da tensão, obedeceu-o.<<strong>br</strong> />

Ao passar pela porta, sentiu <strong>com</strong>o que uma onda atravessan<strong>do</strong> seu corpo, uma cócega<<strong>br</strong> />

não-localizada.<<strong>br</strong> />

Mas, uma vez lá dentro, tu<strong>do</strong> lhe pareceu normal. Havia o cheiro da madeira fresca<<strong>br</strong> />

da casa de bonecas, e... de... de estrume.<<strong>br</strong> />

Havia silêncio agora, ninguém falava, mas ouvia-se aquele arrastar seco de pés, e<<strong>br</strong> />

o barulho de uma mão arranhan<strong>do</strong> a madeira... depois, um gemi<strong>do</strong> baixinho.<<strong>br</strong> />

- Onde é que ele está? - perguntou ela, aflita. - Esses imbecis não se preocupam<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> ele?<<strong>br</strong> />

O menino estava no quarto de <strong>do</strong>rmir; ou pelo menos, no quarto onde havia uma<<strong>br</strong> />

cama.<<strong>br</strong> />

Estava nu, <strong>com</strong> seu pequeno peito sujo arfan<strong>do</strong> rui<strong>do</strong>samente. Tufos de mato sujo<<strong>br</strong> />

e áspero se espalhavam ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s seus pés descalços. O cheiro de estrume vinha<<strong>br</strong> />

daí, junto <strong>com</strong> alguma coisa podre.<<strong>br</strong> />

Hoskins a<strong>com</strong>panhou o seu olhar aterroriza<strong>do</strong> e disse, aborreci<strong>do</strong>:<<strong>br</strong> />

- Não podemos arrastar um garoto sozinho, para fora de seu tempo. Por segurança,<<strong>br</strong> />

tivemos que trazer uma área mais larga ao seu re<strong>do</strong>r. Ou você preferiria que ele<<strong>br</strong> />

tivesse chega<strong>do</strong> sem uma perna ou <strong>com</strong> somente metade da cabeça?<<strong>br</strong> />

- Por favor! - disse a Srta. Fellowes, enjoada. - Nós vamos ficar aqui olhan<strong>do</strong>? A<<strong>br</strong> />

po<strong>br</strong>e criança está aterrorizada. E também está imunda.<<strong>br</strong> />

Ela tinha toda a razão. Além de estar <strong>com</strong> o corpo cheio de graxa e crostas de sujeira,<<strong>br</strong> />

sua coxa estava <strong>com</strong> uma ferida inflamada.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> Hoskins se aproximou dele, o menino, que parecia ter um pouco mais de<<strong>br</strong> />

três anos, curvou-se e deu um passo para trás. Arreganhou os dentes e chiou, <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

se fosse um gato. Com um gesto rápi<strong>do</strong>, Hoskins prendeu seus <strong>br</strong>aços e levantou-o,<<strong>br</strong> />

enquanto ele se debatia e gritava.<<strong>br</strong> />

- Segure-o, agora! - disse a Srta. Fellowes. - Ele precisa de um banho morno, primeiro.<<strong>br</strong> />

Precisa ser lava<strong>do</strong>. Vocês têm o equipamento necessário? Então tragam-no<<strong>br</strong> />

aqui.<<strong>br</strong> />

Tragam alguém para me ajudar a segurá-o. Depois, pelo amor de Deus, tirem to<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

esse lixo daqui!<<strong>br</strong> />

Sentia-se à vontade agora, dan<strong>do</strong> as ordens, voltava a ser a enfermeira eficiente,<<strong>br</strong> />

não mais uma especta<strong>do</strong>ra confusa. Olhou para a criança <strong>com</strong> um olho clínico... e<<strong>br</strong> />

hesitou, chocada. Por baixo de toda a sujeira, de toda a gritaria, de seus mem<strong>br</strong>os<<strong>br</strong> />

espernean<strong>do</strong> inutilmente, ela enxergou por fim o menino.<<strong>br</strong> />

Era a criança mais feia que já tinha visto. Era um menino horroroso, da cabeça deformada<<strong>br</strong> />

às pernas tortas.<<strong>br</strong> />

Ela conseguiu lavar o garoto <strong>com</strong> a ajuda de três homens, enquanto outros se esmeravam<<strong>br</strong> />

na limpeza <strong>do</strong> quarto. Trabalhou em silêncio, sentin<strong>do</strong>-se ultrajada, irritan<strong>do</strong>-se<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> os gritos e esperneios <strong>do</strong> menino, e <strong>com</strong> os respingos daquela água imunda<<strong>br</strong> />

que a ensopavam.<<strong>br</strong> />

O Dr. Hoskins tinha da<strong>do</strong> a entender que a criança não seria bonita, mas isso estava<<strong>br</strong> />

bem longe <strong>do</strong> fato de se tratar de uma criança repulsivamente disforme. Sem falar<<strong>br</strong> />

no fe<strong>do</strong>r que emanava <strong>do</strong> garoto, que nem água e sabão pareciam capazes de resolver.<<strong>br</strong> />

Ela teve uma vontade louca de jogar o garoto, ensaboa<strong>do</strong> <strong>com</strong>o estava, nos <strong>br</strong>aços<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> Dr. Hoskins e ir embora; mas havia o seu orgulho profissional. Tinha aceito<<strong>br</strong> />

uma tarefa, afinal de contas. E havia aquela expressão nos olhos <strong>do</strong> Dr. Hoskins. Um


olhar frio, que parecia estar dizen<strong>do</strong>: Somente crianças bonitas, Srta. Fellowes?<<strong>br</strong> />

Ele estava observan<strong>do</strong> calmamente num canto à parte, <strong>com</strong> um meio sorriso no<<strong>br</strong> />

rosto, quan<strong>do</strong> flagrou seus olhos, <strong>com</strong>o se estivesse se divertin<strong>do</strong> <strong>com</strong> a sua indignação.<<strong>br</strong> />

Ela decidiu esperar mais um pouco antes de pedir as contas. Isso só a rebaixaria<<strong>br</strong> />

mais ainda.<<strong>br</strong> />

Sentiu-se melhor ao ver o garoto razoavelmente limpo e cheiran<strong>do</strong> a sabonete.<<strong>br</strong> />

Seus gritos viraram soluços de cansaço. Seus olhos, medrosos e desconfia<strong>do</strong>s, iam<<strong>br</strong> />

de um la<strong>do</strong> para outro da sala, observan<strong>do</strong> todas as pessoas atentamente.<<strong>br</strong> />

Agora que estava limpo, a nudez acentuava ainda mais a magreza <strong>do</strong> corpo, que<<strong>br</strong> />

tiritava de frio depois <strong>do</strong> banho.<<strong>br</strong> />

- Tragam um camisolão para a criança - disse a Srta. Fellowes, autoritária.<<strong>br</strong> />

O camisolão apareceu na mesma hora. Era <strong>com</strong>o se tu<strong>do</strong> já tivesse si<strong>do</strong> providencia<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

esperan<strong>do</strong> apenas as suas ordens para entrar em funcionamento. Era <strong>com</strong>o se<<strong>br</strong> />

estivessem deixan<strong>do</strong> as coisas sob sua inteira responsabilidade, <strong>com</strong> o intuito de testá-a.<<strong>br</strong> />

Deveney se aproximou e disse:<<strong>br</strong> />

- Vou segurá-o para você, senhorita. Você não vai conseguir sozinha.<<strong>br</strong> />

- O<strong>br</strong>igada - disse ela.<<strong>br</strong> />

De fato, foi uma batalha vesti-o, mas o camisolão foi coloca<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> o garoto<<strong>br</strong> />

esboçou um gesto de rasgá-o ela bateu na sua mão.<<strong>br</strong> />

O garoto corou, mas não chorou. Encarou-a, e os de<strong>do</strong>s largos de sua mão tatearam<<strong>br</strong> />

a flanela <strong>do</strong> camisolão, <strong>com</strong>o se estivessem tentan<strong>do</strong> entender o que era aquilo.<<strong>br</strong> />

E agora?, pensou a Srta. Fellowes, angustiada.<<strong>br</strong> />

To<strong>do</strong>s pareciam estar <strong>com</strong> as funções vitais suspensas, esperan<strong>do</strong> por ela... até<<strong>br</strong> />

mesmo o garotinho feio.<<strong>br</strong> />

- Vocês têm <strong>com</strong>ida? Leite? - disse a Srta. Fellowes, rispidamente.<<strong>br</strong> />

Tinham. Trouxeram um carrinho <strong>com</strong> um <strong>com</strong>partimento refrigera<strong>do</strong>, conten<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

três litros de leite, um aquece<strong>do</strong>r e um suprimento de vitaminas em cápsulas, xarope<<strong>br</strong> />

de co<strong>br</strong>e-cobalto-ferro e outras coisas que ela não reparou direito. Tinha várias latas<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> <strong>com</strong>ida quente para criança.<<strong>br</strong> />

Ela <strong>com</strong>eçou apenas <strong>com</strong> o leite, leite puro. O radar aqueceu o leite à temperatura<<strong>br</strong> />

preestabelecida em questão de segun<strong>do</strong>s e desligou-se automaticamente. Ela colocou<<strong>br</strong> />

a bebida num pires, pois tinha certeza de que o garoto era um selvagem e não<<strong>br</strong> />

saberia <strong>com</strong>o segurar um copo.<<strong>br</strong> />

- Beba. Beba - ordenou a Srta. Fellowes.<<strong>br</strong> />

Ela fez um gesto, <strong>com</strong>o se estivesse levan<strong>do</strong> o leite para a boca. Os olhos <strong>do</strong> garoto<<strong>br</strong> />

a a<strong>com</strong>panharam, mas ele não se mexeu.<<strong>br</strong> />

De repente, ela decidiu recorrer a medidas mais drásticas. Agarrou os <strong>br</strong>aços <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

garoto <strong>com</strong> uma das mãos e mergulhou a outra no leite. Passou o leite so<strong>br</strong>e os lábios<<strong>br</strong> />

dele. A bebida escorreu pelas bochechas e pelo queixo.<<strong>br</strong> />

Durante um momento, a criança articulou um choro esganiça<strong>do</strong>, mas interrompeuo<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> sua língua passou pelos lábios molha<strong>do</strong>s. A Srta. Fellowes deu um passo<<strong>br</strong> />

para trás.<<strong>br</strong> />

O garoto se aproximou <strong>do</strong> pires, curvou-se e, depois, olhou atentamente para cima<<strong>br</strong> />

e para trás, <strong>com</strong>o se esperasse um ataque <strong>do</strong> inimigo; curvou-se de novo e lambeu o<<strong>br</strong> />

leite avidamente, <strong>com</strong>o um gato. Ele fez um barulho indescritível. Não usou as mãos<<strong>br</strong> />

para levantar o pires.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes não conseguiu disfarçar o que sentia.<<strong>br</strong> />

Talvez Deveney tenha percebi<strong>do</strong> isso, pois perguntou:


- A enfermeira sabe, Dr. Hoskins?<<strong>br</strong> />

- Sabe o quê? - interpelou a Srta. Fellowes.<<strong>br</strong> />

- Deveney hesitou, mas Hoskins (de novo <strong>com</strong> aquele olhar irônico) disse:<<strong>br</strong> />

- Pode dizer. - Deveney se dirigiu à Srta. Fellowes.<<strong>br</strong> />

- Pode não suspeitar, senhorita, mas é a primeira mulher-civilizada na História a<<strong>br</strong> />

cuidar de uma criança de Neanderthal.<<strong>br</strong> />

Ela se virou para Hoskins, controlan<strong>do</strong> sua fúria.<<strong>br</strong> />

- Devia ter-me conta<strong>do</strong>, <strong>do</strong>utor.<<strong>br</strong> />

- Por quê? Faz alguma diferença?<<strong>br</strong> />

- Você disse que era uma criança.<<strong>br</strong> />

- E não é uma criança? Você já teve um cachorrinho ou um gatinho? Eles se parecem<<strong>br</strong> />

mais <strong>com</strong> a gente? E se fosse um chimpanzé, você estaria sentin<strong>do</strong> repulsa?<<strong>br</strong> />

Você é uma enfermeira, Srta. Fellowes. Diz o seu currículo que você trabalhou numa<<strong>br</strong> />

maternidade durante três anos. Já se recusou a cuidar de uma criança deformada?<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes sentiu que seu argumento fora derrota<strong>do</strong>. Disse, agora muito menos<<strong>br</strong> />

decidida.<<strong>br</strong> />

- Devia ter-me avisa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Teria então recusa<strong>do</strong> o cargo? Vai recusá-o agora?<<strong>br</strong> />

- Ele a encarou friamente, enquanto Deveney observava <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da sala, e a<<strong>br</strong> />

criança de Neanderthal, que tinha acaba<strong>do</strong> o leite e lambia o prato, olhou para ela<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o rosto molha<strong>do</strong> e os olhos muito abertos e expectantes.<<strong>br</strong> />

O garoto apontou para o leite e, de repente, explodiu numa série de sons curtos,<<strong>br</strong> />

repeti<strong>do</strong>s indefinidamente; sons que queriam dizer alguma coisa, numa língua gutural<<strong>br</strong> />

e elaborada.<<strong>br</strong> />

- Santo Deus, ele fala - disse a Srta. Fellowes, surpresa.<<strong>br</strong> />

- É claro - disse Hoskins. - Homo neanderthalensis não é propriamente uma outra<<strong>br</strong> />

espécie, mas uma subespécie <strong>do</strong> Homo sapiens. Por que ele não deveria falar? Provavelmente<<strong>br</strong> />

ele está pedin<strong>do</strong> mais leite.<<strong>br</strong> />

Automaticamente a Srta. Fellowes pegou a garrafa de leite, mas Hoskins segurou<<strong>br</strong> />

seu pulso.<<strong>br</strong> />

- Agora, Srta. Fellowes, antes de continuarmos <strong>com</strong> isso, vai ficar ou não <strong>com</strong> o<<strong>br</strong> />

trabalho?<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes balançou a cabeça, irritada.<<strong>br</strong> />

- Por quê? Não vai alimentá-o, se eu for embora? Vou ficar <strong>com</strong> ele, sim... por enquanto.<<strong>br</strong> />

Ela despejou o leite.<<strong>br</strong> />

- Vamos deixar a senhorita <strong>com</strong> o garoto - disse Hoskins. - Essa é a única porta<<strong>br</strong> />

para Stasis 1 e ela é hermeticamente fechada e vigiada. Gostaria que você aprendesse<<strong>br</strong> />

os segre<strong>do</strong>s da fechadura que, é claro, será programada para aceitar suas impressões<<strong>br</strong> />

digitais, a exemplo <strong>do</strong> que acontece <strong>com</strong>igo. O espaço so<strong>br</strong>e sua cabeça - ele<<strong>br</strong> />

olhou para cima, na direção <strong>do</strong> buraco que havia no telha<strong>do</strong> da casa de boneca -<<strong>br</strong> />

também é vigia<strong>do</strong> e nós seremos avisa<strong>do</strong>s se houver algum problema.<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que estarei sen<strong>do</strong> vigiada? - disse a Srta. Fellowes, indignada. Subitamente,<<strong>br</strong> />

lem<strong>br</strong>ou-se da ampla visão que tivera <strong>do</strong> interior da casa de bonecas, quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

estava no balcão.<<strong>br</strong> />

- Não, não - disse Hoskins, num tom de voz sério. - Sua privacidade será totalmente<<strong>br</strong> />

respeitada. A vigilância será apenas eletrônica, controlada pelo <strong>com</strong>puta<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

A senhorita ficará <strong>com</strong> ele essa noite, e, até segunda ordem, durante todas as noites.<<strong>br</strong> />

Terá os dias de folga, de acor<strong>do</strong> <strong>com</strong> a tabela que achar conveniente. Deixaremos<<strong>br</strong> />

isso a seu critério.


A Srta. Fellowes olhou ao re<strong>do</strong>r da casa de boneca <strong>com</strong> um ar intriga<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Mas por que tu<strong>do</strong> isso, Dr. Hoskins? O garoto é perigoso?<<strong>br</strong> />

- É uma questão de energia, Srta. Fellowes. Ele nunca deve sair dessas salas. Nunca.<<strong>br</strong> />

Nem por um instante. Por nenhuma razão. Nem para salvar a vida dele. Nem<<strong>br</strong> />

mesmo para salvar sua vida, Srta. Fellowes. Está claro?<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes levantou o queixo.<<strong>br</strong> />

- Enten<strong>do</strong> as ordens, Dr. Hoskins, e uma enfermeira profissional está acostumada a<<strong>br</strong> />

colocar as responsabilidades acima da própria segurança pessoal.<<strong>br</strong> />

- Bem, pode me chamar sempre que precisar de ajuda. Os <strong>do</strong>is homens saíram.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes voltou-se para o menino. Ele a observava. Ainda havia leite no pires.<<strong>br</strong> />

Diligentemente, ela tentou mostrar-lhe <strong>com</strong>o levar o pires até os lábios. Ele resistiu,<<strong>br</strong> />

mas deixou que lhe tocasse sem gritar.<<strong>br</strong> />

Seus olhos assusta<strong>do</strong>s não paravam de segui-a, atento a qualquer movimento que<<strong>br</strong> />

ela fizesse. Ela se viu tentan<strong>do</strong> acalmá-o, passan<strong>do</strong> as mãos vagarosamente so<strong>br</strong>e os<<strong>br</strong> />

seus cabelos, deixan<strong>do</strong> que ele visse cada parte <strong>do</strong>s seus movimentos e se assegurasse<<strong>br</strong> />

de que não havia perigo.<<strong>br</strong> />

Por um instante conseguiu afagar-lhe os cabelos.<<strong>br</strong> />

- Vou ter que lhe mostrar <strong>com</strong>o se usa o banheiro - disse a Srta. Fellowes. - Você<<strong>br</strong> />

acha que pode aprender?<<strong>br</strong> />

Ela falou baixinho, <strong>do</strong>cemente, saben<strong>do</strong> que ele não entenderia as palavras, mas<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> a esperança de que reagisse à suavidade de sua voz.<<strong>br</strong> />

O garoto tentou articular uma nova frase na sua estranha língua.<<strong>br</strong> />

- Posso segurar sua mão? - perguntou ela.<<strong>br</strong> />

Ela estendeu-lhe as mãos e o garoto olhou para elas. A Srta. Fellowes esperou. As<<strong>br</strong> />

mãos <strong>do</strong> garoto se insinuaram na direção das suas.<<strong>br</strong> />

- Isso... isso - disse ela.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> a mão <strong>do</strong> garoto estava bem próxima à dela, ele perdeu a coragem e puxou-a<<strong>br</strong> />

de volta.<<strong>br</strong> />

- Tentaremos depois - disse ela calmamente. - Você gostaria de sentar aqui? -<<strong>br</strong> />

acrescentou, apalpan<strong>do</strong> o colchão da cama.<<strong>br</strong> />

As horas se passaram vagarosamente e ela não fez muitos progressos. Não conseguiu<<strong>br</strong> />

nada <strong>com</strong> a cama ou <strong>com</strong> o banheiro. Na verdade, depois de a criança ter da<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

inconfundíveis sinais de sono, deitou-se no chão frio e, <strong>com</strong> um movimento rápi<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

rolou para debaixo da cama.<<strong>br</strong> />

Ela se curvou para vê-o. Os olhos dele <strong>br</strong>ilharam para ela enquanto estalava a língua.<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem - disse ela. - Se você se sente mais seguro assim, então fique aí.<<strong>br</strong> />

Fechou a porta <strong>do</strong> quarto e se retirou para a cama que lhe tinha si<strong>do</strong> destinada no<<strong>br</strong> />

quarto maior. Por insistência sua, tinham improvisa<strong>do</strong> um <strong>do</strong>ssel so<strong>br</strong>e ela. Ela pensou:<<strong>br</strong> />

esses estúpi<strong>do</strong>s vão ter que colocar um espelho nesse quarto, um gaveteiro<<strong>br</strong> />

maior e um banheiro separa<strong>do</strong>, se esperam que eu passe as noites aqui.<<strong>br</strong> />

Teve dificuldade para <strong>do</strong>rmir. Viu-se preocupada <strong>com</strong> possíveis barulhos que pudessem<<strong>br</strong> />

vir <strong>do</strong> quarto ao la<strong>do</strong>. Em to<strong>do</strong> caso, ele não poderia fugir. As paredes eram<<strong>br</strong> />

lisas e muito altas, mas... e se o garoto pudesse escalá-as <strong>com</strong>o um macaco? Bem,<<strong>br</strong> />

Hoskins disse que havia dispositivos de segurança observan<strong>do</strong> através <strong>do</strong> teto.<<strong>br</strong> />

De repente, pensou: será que ele é perigoso? Agressivo?<<strong>br</strong> />

Com certeza, Hoskins não deixaria que isso acontecesse. Com certeza, não a deixaria<<strong>br</strong> />

sozinha ali se...<<strong>br</strong> />

Tentou sorrir para si mesma. Não passava de uma criança de três ou quatro anos.<<strong>br</strong> />

Ainda assim, não conseguira cortar-lhe as unhas. E se ele a atacasse <strong>com</strong> dentadas e


unhadas enquanto <strong>do</strong>rmia...<<strong>br</strong> />

Sua respiração ficou agitada. Ah, que ridículo, e ao mesmo tempo... Ela ouvia<<strong>br</strong> />

atenta e aflita. Dessa vez reconheceu um som. O garoto estava choran<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Não era um guincho de raiva ou de me<strong>do</strong>. Não era um berro ou um grito. Chorava<<strong>br</strong> />

mansamente, o choro era o soluço <strong>do</strong> coração parti<strong>do</strong> de uma criança solitária, muito<<strong>br</strong> />

solitária.<<strong>br</strong> />

Pela primeira vez, pensou <strong>com</strong> uma <strong>do</strong>r no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> peito: coitadinho! É claro, era<<strong>br</strong> />

uma criança. O que importava a forma de sua cabeça? Era uma criança que tinha<<strong>br</strong> />

si<strong>do</strong> afastada <strong>do</strong>s pais de uma maneira muito <strong>br</strong>utal, <strong>com</strong>o jamais acontecera <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

outro garoto. Não tinha perdi<strong>do</strong> apenas o pai e a mãe, mas toda a sua espécie. Arranca<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>utalmente de seu tempo, agora era a única criatura <strong>do</strong> seu tipo no mun<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

A última. A única.<<strong>br</strong> />

A pena que sentia dele se tornou mais forte ainda, e <strong>com</strong> ela a vergonha pela sua<<strong>br</strong> />

própria insensibilidade. Ajeitan<strong>do</strong> a camisola para ocultar as pernas ("que ridículo",<<strong>br</strong> />

pensou; "amanhã terei que conseguir um roupão de banho"), saiu da cama e entrou<<strong>br</strong> />

no quarto <strong>do</strong> garoto.<<strong>br</strong> />

- Garotinho - sussurrou. - Garotinho.<<strong>br</strong> />

Estava a ponto de se meter embaixo da cama, mas, <strong>com</strong> me<strong>do</strong> de uma possível<<strong>br</strong> />

mordida, desistiu. Em vez disso acendeu a luz e afastou a cama. O po<strong>br</strong>ezinho estava<<strong>br</strong> />

encolhi<strong>do</strong> num canto, <strong>com</strong> os joelhos encosta<strong>do</strong>s no queixo, olhan<strong>do</strong>-a <strong>com</strong> olhos lacrimejantes<<strong>br</strong> />

e apreensivos.<<strong>br</strong> />

Sob a luz tênue, ela não percebia sua feiura<<strong>br</strong> />

- Po<strong>br</strong>e garoto - disse ela. - Po<strong>br</strong>e garoto. - Ele se empertigou quan<strong>do</strong> ela lhe acariciou<<strong>br</strong> />

os cabelos, mas depois relaxou. - Po<strong>br</strong>e garoto. Posso pegar em você?<<strong>br</strong> />

Ela se sentou no chão a seu la<strong>do</strong> e, devagar e ritmadamente, acariciou seus cabelos,<<strong>br</strong> />

sua face, seus <strong>br</strong>aços. Suavemente, <strong>com</strong>eçou a cantar uma música lenta e delicada.<<strong>br</strong> />

Ele levantou sua cabeça para ela, e, <strong>com</strong>o se estivesse procuran<strong>do</strong> a origem daquele<<strong>br</strong> />

som, observou sua boca na escuridão.<<strong>br</strong> />

Aproveitan<strong>do</strong> a sua distração enquanto a ouvia, ela o trouxe mais para perto. Calmamente<<strong>br</strong> />

puxou sua cabeça da maneira mais delicada possível, encostan<strong>do</strong>-a no seu<<strong>br</strong> />

om<strong>br</strong>o. Colocou o <strong>br</strong>aço sob suas coxas e, <strong>com</strong> um movimento sutil e lento, levou-o<<strong>br</strong> />

para o colo.<<strong>br</strong> />

Ela continuou cantan<strong>do</strong> o mesmo verso várias vezes, enquanto o balançava para a<<strong>br</strong> />

frente e para trás.<<strong>br</strong> />

Ele parou de chorar. Depois de um tempo sua respiração mostrou que estava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Cuida<strong>do</strong>samente empurrou a cama dele de volta para a parede e deitou-o. Co<strong>br</strong>iuo<<strong>br</strong> />

e ficou contemplan<strong>do</strong>. Seu rosto parecia tão tranquilo e indefeso enquanto<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>rmia...<<strong>br</strong> />

Não importava que fosse tão feio. Realmente.<<strong>br</strong> />

Começou a sair na ponta <strong>do</strong>s pés, quan<strong>do</strong> pensou: e se ele acordar?<<strong>br</strong> />

Ela voltou, travan<strong>do</strong> uma feroz batalha consigo mesma, suspirou e se deitou na<<strong>br</strong> />

cama <strong>com</strong> a criança.<<strong>br</strong> />

A cama era pequena para ela. Sentia-se apertada e inquieta <strong>com</strong> a ausência <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>ssel, mas as mãos da criança estavam apertan<strong>do</strong> as suas. De alguma forma acabou<<strong>br</strong> />

a<strong>do</strong>rmecen<strong>do</strong> naquela posição.<<strong>br</strong> />

Acor<strong>do</strong>u <strong>com</strong> um so<strong>br</strong>essalto e um desejo selvagem de gritar, mas conseguiu<<strong>br</strong> />

transformar esse último num simples murmúrio. O garoto estava olhan<strong>do</strong>-a, os olhos<<strong>br</strong> />

arregala<strong>do</strong>s.


Passou-se um longo momento até se lem<strong>br</strong>ar que tinha deita<strong>do</strong> na cama dele.<<strong>br</strong> />

Agora, calmamente, sem tirar os olhos dele, esticou uma das pernas cuida<strong>do</strong>samente<<strong>br</strong> />

e deixou-a tocar no chão; depois fez o mesmo <strong>com</strong> a outra.<<strong>br</strong> />

Lançou um olhar rápi<strong>do</strong> e apreensivo na direção <strong>do</strong> teto aberto, então espreguiçou-se<<strong>br</strong> />

rapidamente, relaxan<strong>do</strong> os músculos.<<strong>br</strong> />

Nesse momento os de<strong>do</strong>s curtos e grossos <strong>do</strong> garoto a alcançaram e tocaram nos<<strong>br</strong> />

seus lábios. Ele disse alguma coisa.<<strong>br</strong> />

Ela se retraiu <strong>com</strong> o toque. O menino era terrivelmente feio à luz <strong>do</strong> dia.<<strong>br</strong> />

Ele falou novamente. A<strong>br</strong>iu a boca e fez um gesto <strong>com</strong> a mão, <strong>com</strong>o se alguma<<strong>br</strong> />

coisa estivesse sain<strong>do</strong> dela.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes adivinhou o que ele queria dizer e falou, hesitan<strong>do</strong>:<<strong>br</strong> />

- Você quer que eu cante?<<strong>br</strong> />

O garoto não respondeu, mas continuou olhan<strong>do</strong> para sua boca.<<strong>br</strong> />

Com uma voz desafinada pela tensão, a Srta. Fellowes <strong>com</strong>eçou a pequena canção<<strong>br</strong> />

que tinha canta<strong>do</strong> na noite anterior e o garotinho feio sorriu. Balançou o corpo desajeitadamente,<<strong>br</strong> />

tentan<strong>do</strong> a<strong>com</strong>panhar o ritmo da música, fazen<strong>do</strong> um pequeno barulho<<strong>br</strong> />

que poderia ter si<strong>do</strong> o <strong>com</strong>eço de uma gargalhada.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes suspirou. A música tem o <strong>do</strong>m de encantar até os corações selvagens.<<strong>br</strong> />

Isso poderia ajudar...<<strong>br</strong> />

- Espere - disse ela. - Deixa eu me arrumar. Em um minuto estarei pronta. Depois<<strong>br</strong> />

farei o café para você.<<strong>br</strong> />

Ela trabalhou rapidamente, consciente de que estava sen<strong>do</strong> observada o tempo<<strong>br</strong> />

to<strong>do</strong>. O garoto continuava na cama, observan<strong>do</strong>-a quan<strong>do</strong> estava à vista. Nessas horas,<<strong>br</strong> />

ela lhe sorria e acenava. No fim, ele acenou de volta, e ela se sentiu encantada<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> isso.<<strong>br</strong> />

- Você quer mingau de aveia? - disse ela finalmente. Não demorou muito para prepará-o<<strong>br</strong> />

e acenou para ele, chaman<strong>do</strong>-o.<<strong>br</strong> />

Não soube se ele tinha entendi<strong>do</strong> o gesto ou se farejara o cheiro <strong>do</strong> mingau, mas<<strong>br</strong> />

o fato é que se levantou da cama.<<strong>br</strong> />

Tentou mostrar <strong>com</strong>o se usava uma colher, mas ele se afastou dela <strong>com</strong> me<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

(Temos tempo de so<strong>br</strong>a, pensou.) Ela fez questão de insistir para que ele levantasse<<strong>br</strong> />

a tigela <strong>com</strong> as mãos. Ele fez isso desajeitadamente e sujou tu<strong>do</strong> a seu re<strong>do</strong>r, mas<<strong>br</strong> />

conseguiu <strong>com</strong>er a maior parte <strong>do</strong> mingau.<<strong>br</strong> />

Em seguida, tentou fazer <strong>com</strong> que ele bebesse leite num copo, e o garotinho choramingou<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> viu que a abertura era muito pequena para enfiar o rosto dentro<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> recipiente. Ela segurou sua mão, ajustan<strong>do</strong>-a em torno <strong>do</strong> copo e, fazen<strong>do</strong> <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

que o tocasse <strong>com</strong> a ponta <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s, forçou sua boca contra a borda.<<strong>br</strong> />

Mais uma vez ele fez uma grande bagunça, mas acabou beben<strong>do</strong> quase tu<strong>do</strong>. E<<strong>br</strong> />

ela estava acostumada <strong>com</strong> bagunças.<<strong>br</strong> />

O banheiro, para sua surpresa e alívio, foi uma experiência menos frustrante.<<strong>br</strong> />

Ele entendia o que ela esperava que fizesse.<<strong>br</strong> />

Ela se viu baten<strong>do</strong> carinhosamente na sua cabeça.<<strong>br</strong> />

- Bom menino - disse ela. - Menino esperto. Para o cúmulo de seu prazer, ele sorriu<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> isso.<<strong>br</strong> />

Ela pensou: quan<strong>do</strong> ele sorri, é quase suportável. De verdade.<<strong>br</strong> />

Mais tarde os homens da imprensa chegaram.<<strong>br</strong> />

Ela colocou o garoto nos <strong>br</strong>aços e ele a agarrou selvagemente, enquanto, <strong>do</strong> outro<<strong>br</strong> />

la<strong>do</strong> da porta aberta, os jornalistas <strong>com</strong>eçavam a trabalhar <strong>com</strong> suas câmaras. O tumulto<<strong>br</strong> />

assustou o garoto e ele <strong>com</strong>eçou a chorar, mas ainda se passaram dez minutos


antes que a Srta. Fellowes fosse autorizada a sair e a colocar o garoto no quarto ao<<strong>br</strong> />

la<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Ela voltou vermelha de raiva, saiu <strong>do</strong> apartamento (pela primeira vez, em 18 horas)<<strong>br</strong> />

e fechou a porta atrás de si.<<strong>br</strong> />

- Acho que vocês exageraram. Vou precisar de um tempo até acalmá-o. Vão embora.<<strong>br</strong> />

- Certo, certo - disse o cavalheiro <strong>do</strong> Times Herald. - Mas ele é um Neanderthal de<<strong>br</strong> />

verdade ou é algum truque?<<strong>br</strong> />

- Eu lhe asseguro - disse repentinamente a voz de Hoskins, vin<strong>do</strong> da escuridão,<<strong>br</strong> />

que isso não é uma <strong>br</strong>incadeira. A criança é um autêntico Homo neanderthalensis.<<strong>br</strong> />

- É menino ou menina?<<strong>br</strong> />

- Menino - disse a Srta. Fellowes, rapidamente.<<strong>br</strong> />

- Um menino-macaco - disse o cavalheiro <strong>do</strong> News. - Foi isso que nós vimos aqui.<<strong>br</strong> />

Um menino-macaco. Como ele se <strong>com</strong>porta, enfermeira?<<strong>br</strong> />

- Ele se <strong>com</strong>porta exatamente <strong>com</strong>o um menino - rebateu irritada a Srta. Fellowes,<<strong>br</strong> />

defenden<strong>do</strong>-o. - E ele não é um menino-macaco. Seu nome é... é Timothy, Timmie...<<strong>br</strong> />

e ele tem um <strong>com</strong>portamento absolutamente normal.<<strong>br</strong> />

Foi ao acaso que escolheu o nome Timothy. Foi o primeiro que lhe ocorreu.<<strong>br</strong> />

- Timmie, o menino-macaco - disse o cavalheiro <strong>do</strong> News, e, <strong>com</strong>o se viu mais tarde,<<strong>br</strong> />

Timmie, o menino-macaco, foi o nome <strong>com</strong> que a criança se tornou mundialmente<<strong>br</strong> />

conhecida.<<strong>br</strong> />

O cavalheiro <strong>do</strong> Globe virou-se para Hoskins e disse:<<strong>br</strong> />

- Doutor, o que pretende fazer <strong>com</strong> o menino-macaco? Hoskins deu de om<strong>br</strong>os.<<strong>br</strong> />

- Meu plano original foi concluí<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> consegui trazer o garoto para aqui. No<<strong>br</strong> />

entanto, imagino que os antropólogos e psicólogos ficarão muito interessa<strong>do</strong>s. Nós<<strong>br</strong> />

temos aqui, afinal de contas, uma criatura que deu origem à raça humana. Temos<<strong>br</strong> />

muito o que aprender so<strong>br</strong>e nós mesmos e nossos ancestrais, examinan<strong>do</strong>-o.<<strong>br</strong> />

- Quanto tempo pretende mantê-o aqui?<<strong>br</strong> />

- Até que precisemos mais deste espaço <strong>do</strong> que dele. Um boca<strong>do</strong> de tempo, talvez.<<strong>br</strong> />

O cavalheiro <strong>do</strong> News disse:<<strong>br</strong> />

- Pode trazê-o para cá, a céu aberto, para colocarmos nossos equipamentos subetéricos<<strong>br</strong> />

e fazer um programa <strong>com</strong> ele?<<strong>br</strong> />

- Desculpe, mas a criança não pode sair de Stasis.<<strong>br</strong> />

- O que é Stasis exatamente?<<strong>br</strong> />

- Ah - e Hoskins se permitiu um <strong>do</strong>s seus raros e <strong>br</strong>eves sorrisos. - Isso levaria um<<strong>br</strong> />

boca<strong>do</strong> de tempo para ser explica<strong>do</strong>, cavalheiro. Em Stasis o Tempo não existe da<<strong>br</strong> />

maneira que estamos acostuma<strong>do</strong>s a conhecer. Estas salas estão dentro de uma bolha<<strong>br</strong> />

invisível, que não faz parte <strong>do</strong> nosso Universo propriamente dito. Foi por isso que<<strong>br</strong> />

a criança pôde ser arrancada <strong>do</strong> seu tempo dessa forma.<<strong>br</strong> />

- Calma, espere aí - disse o cavalheiro <strong>do</strong> News, inquieto. - O que quer dizer? A<<strong>br</strong> />

enfermeira entrou e saiu da sala sem que nada acontecesse.<<strong>br</strong> />

- E qualquer um de vocês pode fazer o mesmo - disse Hoskins, em tom casual. -<<strong>br</strong> />

Você estaria se moven<strong>do</strong> numa linha paralela à força temporal, sem que houvesse<<strong>br</strong> />

perda ou ganho significativos de energia. A criança, no entanto, foi trazida de um<<strong>br</strong> />

passa<strong>do</strong> muito distante, passou através dessas linhas e ganhou potencial temporal.<<strong>br</strong> />

Trazê-a para dentro <strong>do</strong> universo e <strong>do</strong> nosso próprio tempo absorveria energia suficiente<<strong>br</strong> />

para destruir todas as linhas <strong>do</strong> lugar, provavelmente acabaria <strong>com</strong> toda a força<<strong>br</strong> />

de uma cidade <strong>com</strong>o Washington. Tivemos que armazenar os entulhos que vieram<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> ele no local, e vamos removê-os aos poucos.<<strong>br</strong> />

À medida que Hoskins falava, os jornalistas faziam anotações. Não entendiam


nada e estavam certos de que seus leitores também não entenderiam, mas isso soava<<strong>br</strong> />

bastante científico, e era o que contava.<<strong>br</strong> />

O cavalheiro <strong>do</strong> Times-Herald disse:<<strong>br</strong> />

- O senhor estaria disponível para nos dar uma entrevista em cadeia nacional esta<<strong>br</strong> />

noite?<<strong>br</strong> />

- Acho que sim - disse Hoskins sem pensar duas vezes, e to<strong>do</strong>s eles foram embora.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes a<strong>com</strong>panhou-os até a saída. Assim <strong>com</strong>o os jornalistas, ela não tinha<<strong>br</strong> />

entendi<strong>do</strong> quase nada so<strong>br</strong>e essas coisas de Stasis e força temporal, mas percebeu<<strong>br</strong> />

que a prisão de Timmie (ela se viu repentinamente pensan<strong>do</strong> no garotinho <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

Timmie) era algo objetivo, e não uma imposição arbitrária <strong>do</strong> autoritário Dr. Hoskins.<<strong>br</strong> />

Aparentemente, seria de to<strong>do</strong> impossível deixá-o sair de Stasis. Po<strong>br</strong>e criança. Po<strong>br</strong>e<<strong>br</strong> />

criança.<<strong>br</strong> />

De repente, percebeu que o garoto estava choran<strong>do</strong> e correu para consolá-o.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes não pôde ver a entrevista coletiva <strong>do</strong> Dr. Hoskins. Apesar <strong>do</strong> programa<<strong>br</strong> />

ter si<strong>do</strong> transmiti<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s os lugares <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e até para o la<strong>do</strong> oculto<<strong>br</strong> />

da Lua, não chegou ao apartamento em que ela morava <strong>com</strong> o garotinho feio. Mas<<strong>br</strong> />

ele estava lá na manhã seguinte, radiante e jovial.<<strong>br</strong> />

- Como foi a entrevista? - perguntou a Srta. Fellowes.<<strong>br</strong> />

- Muito boa. E <strong>com</strong>o está... Timmie?<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes se sentiu agradecida por ele chamá-o por esse nome.<<strong>br</strong> />

- Vai in<strong>do</strong> muito bem. Agora apareça aqui, Timmie, este senhor não vai machucáo.<<strong>br</strong> />

Mas Timmie continuou na outra sala, <strong>com</strong> uma mecha <strong>do</strong> cabelo emaranha<strong>do</strong> aparecen<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

atrás da divisória da porta e, uma vez ou outra, o canto de um olho.<<strong>br</strong> />

- Na verdade - acrescentou a Srta. Fellowes - ele está se adaptan<strong>do</strong> muito bem.<<strong>br</strong> />

Ele é bastante inteligente.<<strong>br</strong> />

- Está surpresa?<<strong>br</strong> />

Ela hesitou um pouco.<<strong>br</strong> />

- Sim, estou - disse ela. - Acho que cheguei a pensar que ele era um garoto-macaco.<<strong>br</strong> />

- Bem, garoto-macaco ou não, ele fez um grande bem para nós. Ele projetou Stasis<<strong>br</strong> />

para o mun<strong>do</strong>. Nós estamos em evidência, Srta. Fellowes, ficamos famosos.<<strong>br</strong> />

Era <strong>com</strong>o se ele precisasse <strong>com</strong>partilhar seu triunfo <strong>com</strong> alguém, mesmo que fosse<<strong>br</strong> />

apenas <strong>com</strong> ela.<<strong>br</strong> />

- Oh... - Ela o deixou falar.<<strong>br</strong> />

Ele colocou as mãos nos bolsos e disse:<<strong>br</strong> />

- Trabalhamos quase sem dinheiro durante dez anos, mendigan<strong>do</strong> qualquer tipo de<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>ação em to<strong>do</strong>s os lugares. Tivemos que arriscar tu<strong>do</strong> num único golpe. Era tu<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ou nada. E quan<strong>do</strong> eu digo golpe é exatamente isso que estou queren<strong>do</strong> dizer. Essa<<strong>br</strong> />

tentativa de trazer o Neanderthal levou to<strong>do</strong>s os centavos que pudemos pedir empresta<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ou roubar, e uma parte dele foi rouba<strong>do</strong> mesmo... fun<strong>do</strong>s de outros projetos,<<strong>br</strong> />

usa<strong>do</strong>s para este, sem permissão. Se a experiência não tivesse si<strong>do</strong> bem-sucedida<<strong>br</strong> />

eu estaria perdi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- É por isso que não tem teto? - perguntou a Srta. Fellowes, a<strong>br</strong>uptamente.<<strong>br</strong> />

- Ahn? - Hoskins olhou para cima.<<strong>br</strong> />

- Não havia dinheiro para o teto?<<strong>br</strong> />

- Bem, não foi bem assim. Não sabíamos ao certo qual a idade exata <strong>do</strong> Neanderthal.<<strong>br</strong> />

Só podemos observar muito pouco através <strong>do</strong> Tempo, e podíamos pegar um espécime<<strong>br</strong> />

grande e selvagem. Havia a possibilidade de termos que lidar <strong>com</strong> ele a distância,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o um animal engaiola<strong>do</strong>.


- Mas já que não foi um desses que trouxe, acho que agora vocês podem construir<<strong>br</strong> />

um teto.<<strong>br</strong> />

- Agora sim. Agora temos dinheiro de so<strong>br</strong>a. Estão prometen<strong>do</strong> <strong>do</strong>ação de to<strong>do</strong>s os<<strong>br</strong> />

lugares. Isso tu<strong>do</strong> é maravilhoso, Srta. Fellowes. - Seu rosto largo resplandeceu <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

um sorriso demora<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> ele saiu, até suas costas pareciam estar sorrin<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes pensou: é um homem muito simpático quan<strong>do</strong> a<strong>br</strong>e a guarda e se<<strong>br</strong> />

esquece de ser científico.<<strong>br</strong> />

Num momento de devaneio, ela se perguntou se ele seria casa<strong>do</strong>... mas, embaraçada,<<strong>br</strong> />

espantou o pensamento.<<strong>br</strong> />

- Timmie - chamou. - Venha cá, Timmie.<<strong>br</strong> />

À medida que os meses passavam, a Srta. Fellowes <strong>com</strong>eçou a se sentir cada vez<<strong>br</strong> />

mais uma parte integrante de Stasis. Deram-lhe um pequeno escritório <strong>com</strong> seu<<strong>br</strong> />

nome na porta, bem perto da casa de bonecas (<strong>com</strong>o ela continuava chaman<strong>do</strong> a<<strong>br</strong> />

bolha de Stasis.) Deram-lhe um aumento substancial. A casa de bonecas foi coberta<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> um teto; melhoraram a mobília, acrescentaram um segun<strong>do</strong> banheiro - e, mesmo<<strong>br</strong> />

assim, ela ganhou um apartamento somente para si no térreo <strong>do</strong> Instituto e, em<<strong>br</strong> />

certas ocasiões, não ficava <strong>com</strong> Timmie durante a noite. Um interfone foi instala<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

ligan<strong>do</strong> seu apartamento <strong>com</strong> a casa de boneca, e Timmie aprendeu a usá-o.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes se acostumou <strong>com</strong> Timmie. Até mesmo sua feiura parou de in<strong>com</strong>odá-a.<<strong>br</strong> />

Um dia se viu prestan<strong>do</strong> atenção num simples garoto na rua, achan<strong>do</strong>-o<<strong>br</strong> />

pouco atraente, <strong>com</strong> sua testa alta e seu queixo bem-desenha<strong>do</strong>. Teve que se dar<<strong>br</strong> />

um beliscão para que<strong>br</strong>ar o encanto.<<strong>br</strong> />

As esporádicas visitas de Hoskins se tornavam cada vez mais agradáveis. Era óbvio<<strong>br</strong> />

que ele gostava de fugir de seus crescentes <strong>com</strong>promissos <strong>com</strong>o Chefe de Stasis, e<<strong>br</strong> />

se apegava à criança que dera origem a tu<strong>do</strong>, mas a Srta. Fellowes tinha a impressão<<strong>br</strong> />

de que ele também gostava de conversar <strong>com</strong> ela. (Ela também desco<strong>br</strong>iu alguns fatos<<strong>br</strong> />

a respeito de Hoskins. Ele tinha inventa<strong>do</strong> o méto<strong>do</strong> de analisar os reflexos <strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

feixes mesônicos de penetração <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e o méto<strong>do</strong> para estabelecer Stasis; sua<<strong>br</strong> />

frieza era apenas um mo<strong>do</strong> de disfarçar uma natureza gentil; e, ah, sim, ele era casa<strong>do</strong>.)<<strong>br</strong> />

A única coisa a que a Srta. Fellowes não podia se adaptar era ao fato de estar engajada<<strong>br</strong> />

numa experiência científica. A despeito de tu<strong>do</strong> que pudesse fazer, via-se pessoalmente<<strong>br</strong> />

envolvida, chegan<strong>do</strong> a ponto de <strong>br</strong>igar <strong>com</strong> os fisiologistas.<<strong>br</strong> />

Numa ocasião, Hoskins desceu e a encontrou no meio de uma discussão, <strong>com</strong>pletamente<<strong>br</strong> />

fora de si. Eles não tinham o direito. Eles não tinham o direito... mesmo que<<strong>br</strong> />

ele fosse um Neanderthal, ele não era um animal.<<strong>br</strong> />

Ela os fitava enfurecida, ouvin<strong>do</strong> os soluços de Timmie através da porta, quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

viu Hoskins em pé a sua frente. Ele devia estar lá há alguns minutos.<<strong>br</strong> />

- Posso entrar? - perguntou.<<strong>br</strong> />

Ela anuiu <strong>com</strong> um gesto seco e depois correu na direção de Timmie, que se agarrou<<strong>br</strong> />

a ela, passan<strong>do</strong> suas pequenas pernas tortas - ainda magras, tão magras - em<<strong>br</strong> />

torno dela.<<strong>br</strong> />

Hoskins observou os <strong>do</strong>is.<<strong>br</strong> />

- Ele parece muito infeliz - disse gravemente.<<strong>br</strong> />

- A culpa não é dele - respondeu a Srta. Fellowes. - To<strong>do</strong>s os dias, eles estão em<<strong>br</strong> />

cima <strong>do</strong> garoto, <strong>com</strong> suas amostras de sangue e suas sondas. Eles o submetem a dietas<<strong>br</strong> />

sintéticas que eu não daria nem para um porco.<<strong>br</strong> />

- Esse é o tipo de coisa que eles não podem testar num humano, se é que me en-


tende.<<strong>br</strong> />

- Eles também não podem testar isso <strong>com</strong> Timmie. Dr. Hoskins, eu insisto. O senhor<<strong>br</strong> />

me disse que a chegada de Timmie foi responsável pela projeção de Stasis. O<<strong>br</strong> />

senhor devia ter um mínimo de gratidão por tu<strong>do</strong> o que ele fez e afastar esse pessoal<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> po<strong>br</strong>ezinho, no mínimo até que ele tenha idade suficiente para entender o<<strong>br</strong> />

que está se passan<strong>do</strong>. Depois de uma dessas terríveis sessões, ele tem pesadelos,<<strong>br</strong> />

não consegue <strong>do</strong>rmir direito. Eu estou avisan<strong>do</strong> ao senhor. - Ela teve um súbito acesso<<strong>br</strong> />

de fúria. - Não Vou deixar que eles entrem aqui nunca mais. (Percebeu que tinha<<strong>br</strong> />

grita<strong>do</strong>, mas agora não podia fazer mais nada.)<<strong>br</strong> />

Mais calma, ela acrescentou:<<strong>br</strong> />

- Sei que ele é um Neanderthal, mas há muitas coisas que não estamos levan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

em conta so<strong>br</strong>e os Neanderthalenses. Li um boca<strong>do</strong> de coisas a respeito deles. Eles<<strong>br</strong> />

têm a sua própria cultura. Algumas das maiores invenções humanas foram deles. A<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong>s animais, por exemplo; a roda; várias técnicas de polimento da pedra.<<strong>br</strong> />

Eles tinham até aspirações religiosas; enterravam os mortos junto <strong>com</strong> seus bens,<<strong>br</strong> />

o que é uma prova de que acreditavam na vida depois da morte. A origem da religião<<strong>br</strong> />

pode estar aí. Isso não é suficiente para que Timmie tenha direito a um tratamento<<strong>br</strong> />

humano?<<strong>br</strong> />

Ela deu uma palmadinha na bunda <strong>do</strong> menino e pediu para que fosse para o quarto<<strong>br</strong> />

de <strong>br</strong>inque<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> a porta foi aberta, Hoskins pôde ver a arrumação <strong>do</strong>s <strong>br</strong>inque<strong>do</strong>s, e sorriu<<strong>br</strong> />

levemente, <strong>com</strong>o costumava fazer.<<strong>br</strong> />

- O po<strong>br</strong>e garoto merece esses <strong>br</strong>inque<strong>do</strong>s - disse ela, na defensiva. - Isso é tu<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

o que ele tem, e, depois de tu<strong>do</strong> o que passou, ele merece isso.<<strong>br</strong> />

- Não, não. Sem objeção, eu lhe garanto. Só estava pensan<strong>do</strong> na sua mudança<<strong>br</strong> />

desde que chegou aqui, morren<strong>do</strong> de raiva por ter si<strong>do</strong> empurrada para um Neanderthal.<<strong>br</strong> />

- Acho que não... esperava isso - disse ela, em voz baixa.<<strong>br</strong> />

Hoskins mu<strong>do</strong>u o assunto.<<strong>br</strong> />

- Na sua opinião, qual a idade dele, Srta. Fellowes?<<strong>br</strong> />

- Não sei ao certo - disse ela, já que não sabemos <strong>com</strong>o era o desenvolvimento<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s Neanderthalenses. Pelo tamanho, ele parece ter apenas três anos, mas os Neanderthalenses<<strong>br</strong> />

normalmente são pequenos, e, <strong>com</strong> todas as mudanças por que tem<<strong>br</strong> />

passa<strong>do</strong>, provavelmente parou de crescer. Mas, da maneira <strong>com</strong>o ele está aprenden<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

a falar, eu diria que deve ter bem mais <strong>do</strong> que quatro anos.<<strong>br</strong> />

- É verdade? Os relatórios não mencionam o fato de estar aprenden<strong>do</strong> a falar.<<strong>br</strong> />

- Ele só fala <strong>com</strong>igo. Pelo menos por enquanto. Morre de me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros, e não é<<strong>br</strong> />

para menos. Mas ele sabe pedir <strong>com</strong>ida; ele pode indicar qualquer tipo de necessidade<<strong>br</strong> />

que tenha; entende quase tu<strong>do</strong> que eu digo. É claro - ela olhou-o astutamente,<<strong>br</strong> />

tentan<strong>do</strong> ver se era a hora de tocar nesse assunto - que esse desenvolvimento não<<strong>br</strong> />

vai continuar.<<strong>br</strong> />

- Por quê?<<strong>br</strong> />

- As crianças precisam de estímulos e Timmie tem uma vida muito solitária, em<<strong>br</strong> />

confinamento. Faço o que posso, mas não estou <strong>com</strong> ele o tempo to<strong>do</strong> e não sou<<strong>br</strong> />

tu<strong>do</strong> de que ele necessita. O que eu quero dizer, Dr. Hoskins, é que ele precisa de<<strong>br</strong> />

outro garoto para <strong>br</strong>incarem juntos.<<strong>br</strong> />

Hoskins aquiesceu lentamente.<<strong>br</strong> />

- Infelizmente, ele é o único Neanderthal aqui, não é? Po<strong>br</strong>e criança.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes resolveu provocá-o.


- Você gosta de Timmie, não? - Era tão bom ter alguém que pensasse dessa forma.<<strong>br</strong> />

- Ah, é claro - disse Dr. Hoskins e, desarma<strong>do</strong>, deixou que ela percebesse o cansaço<<strong>br</strong> />

nos seus olhos.<<strong>br</strong> />

De uma vez por todas, ela tirou da cabeça a ideia de convencê-o.<<strong>br</strong> />

- O senhor parece cansa<strong>do</strong>, Dr. Hoskins - disse ela, realmente preocupada.<<strong>br</strong> />

- Pareço, Srta. Fellowes? Terei que treinar para parecer mais disposto.<<strong>br</strong> />

- Acho que Stasis é muito desgastante, isso está lhe deixan<strong>do</strong> estafa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Hoskins deu de om<strong>br</strong>os.<<strong>br</strong> />

- Tem razão. Estamos fazen<strong>do</strong> pesquisas animais, vegetais e minerais. Mas acho<<strong>br</strong> />

que você nunca viu nossa exposição.<<strong>br</strong> />

- Na verdade, não. Mas não é por falta de interesse. É que também tenho anda<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

muito ocupada.<<strong>br</strong> />

- Você não está tão ocupada nesse momento - disse ele, decidi<strong>do</strong>. - Virei buscá-a<<strong>br</strong> />

amanhã, às 11 horas, e a guiarei pessoalmente. Que tal?<<strong>br</strong> />

Ela sorriu de alegria.<<strong>br</strong> />

- Eu a<strong>do</strong>raria.<<strong>br</strong> />

Ele balançou a cabeça, sorriu ao se virar, e saiu.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes suspirou até o fim <strong>do</strong> dia. Realmente - pensar era ridículo, é claro...<<strong>br</strong> />

mas realmente era quase <strong>com</strong>o... <strong>com</strong>o um encontro amoroso.<<strong>br</strong> />

O Dr. Hoskins foi absolutamente pontual no dia seguinte, e chegou sorridente e<<strong>br</strong> />

amável. Ela tinha troca<strong>do</strong> seu uniforme de enfermeira por um vesti<strong>do</strong>. O corte era<<strong>br</strong> />

clássico, mas há anos que não se sentia tão feminina.<<strong>br</strong> />

Ele elogiou sua aparência de uma maneira formal, e ela respondeu <strong>com</strong> uma graça<<strong>br</strong> />

igualmente formal. Era um prelúdio realmente perfeito, pensou ela, para logo em seguida<<strong>br</strong> />

se perguntar: um prelúdio para quê?<<strong>br</strong> />

Afastou esse pensamento, apressan<strong>do</strong>-se para ir dar um tchau a Timmie e assegurar-lhe<<strong>br</strong> />

que logo estaria de volta. Certificou-se de que ele sabia o que <strong>com</strong>er no almoço<<strong>br</strong> />

e onde poderia encontrar a <strong>com</strong>ida.<<strong>br</strong> />

Hoskins levou-a para a nova ala, onde ela jamais tinha i<strong>do</strong>. Ainda dava para se<<strong>br</strong> />

sentir o cheiro de ambiente recém-instala<strong>do</strong>. O som de homens trabalhan<strong>do</strong>, ouvi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

ao longe, era um sinal claro de que as o<strong>br</strong>as de ampliação ainda não tinham si<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

concluídas.<<strong>br</strong> />

- Animais, vegetais e minerais - disse Hoskins, no mesmo tom que tinha usa<strong>do</strong> no<<strong>br</strong> />

dia anterior. - Os animais estão bem ali. É a nossa exposição mais interessante.<<strong>br</strong> />

O espaço estava dividi<strong>do</strong> em várias salas; cada uma era uma bolha Stasis separada.<<strong>br</strong> />

Hoskins a levou para uma das vidraças da bolha e ela olhou para dentro. À primeira<<strong>br</strong> />

vista, o que viu lhe pareceu uma galinha cheia de escamas e rabo. Equili<strong>br</strong>an<strong>do</strong>-se<<strong>br</strong> />

so<strong>br</strong>e duas pernas finas, o bicho corria de um la<strong>do</strong> para o outro, a cabeça <strong>com</strong>o a de<<strong>br</strong> />

um pássaro, ten<strong>do</strong> no alto uma crista óssea, parecida <strong>com</strong> a de um galo. As pequenas<<strong>br</strong> />

patas da frente a<strong>br</strong>iam-se e fechavam-se constantemente, balançan<strong>do</strong>-se no ar.<<strong>br</strong> />

- É o nosso dinossauro - disse Hoskins. - Já está aqui há meses. Não sei quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

poderemos tirá-o daqui.<<strong>br</strong> />

- Dinossauro?<<strong>br</strong> />

- Você esperava um gigante?<<strong>br</strong> />

Ela deu um muxôxo.<<strong>br</strong> />

- É o que se espera. Mas sei que alguns deles são pequenos.


- Ele era tu<strong>do</strong> o que nós queríamos, pode acreditar. Normalmente ele fica sob observação,<<strong>br</strong> />

mas estamos no horário de visitas. Desco<strong>br</strong>imos algumas coisas interessantes.<<strong>br</strong> />

Por exemplo, seu sangue não é <strong>com</strong>pletamente frio. Ele tem um méto<strong>do</strong> imperfeito<<strong>br</strong> />

de manter a temperatura interna mais alta <strong>do</strong> que a <strong>do</strong> ambiente. Infelizmente,<<strong>br</strong> />

é um macho. Desde que nós o trouxemos para cá, temos tenta<strong>do</strong> capturar<<strong>br</strong> />

uma fêmea, mas ainda não tivemos sorte.<<strong>br</strong> />

- Por que uma fêmea?<<strong>br</strong> />

Ele a olhou <strong>com</strong> um ar zombeteiro.<<strong>br</strong> />

- Para que tenhamos uma oportunidade de conseguir ovos férteis e bebês dinossauros.<<strong>br</strong> />

- Ah, é claro.<<strong>br</strong> />

Ele a levou para a seção <strong>do</strong>s crustáceos fossiliza<strong>do</strong>s.<<strong>br</strong> />

- Aquele é o professor Dwayne, da Universidade de Washington - disse ele. - Ele é<<strong>br</strong> />

químico nuclear. Se não me falha a memória, ele está tentan<strong>do</strong> calcular a taxa de<<strong>br</strong> />

isótopos no oxigênio da água.<<strong>br</strong> />

- Para quê?<<strong>br</strong> />

- É uma água primitiva, tem pelo menos meio bilhão de anos. A taxa de isótopos<<strong>br</strong> />

dá a temperatura <strong>do</strong> oceano naquela época. A sua especialidade não são propriamente<<strong>br</strong> />

os crustáceos fossiliza<strong>do</strong>s, mas outros cientistas estão empenha<strong>do</strong>s em dissecá-os.<<strong>br</strong> />

Eles são sortu<strong>do</strong>s porque só precisam de microscópios e bisturis. Cada vez que<<strong>br</strong> />

vai realizar uma experiência Dwayne precisa instalar um espectrógrafo de massa.<<strong>br</strong> />

- Por quê? Ele não pode...<<strong>br</strong> />

- Não, não pode. Ele não pode tirar nada da sala. Também havia amostras de plantas<<strong>br</strong> />

pré-históricas e pedaços de pedras em formação. Aqueles eram os vegetais e minerais.<<strong>br</strong> />

E todas as espécies tinham o seu pesquisa<strong>do</strong>r. Era <strong>com</strong>o um museu; um museu<<strong>br</strong> />

vivo que servia <strong>com</strong>o centro de pesquisas fervilhante de atividade.<<strong>br</strong> />

- E o senhor tem que supervisionar tu<strong>do</strong> isso, Dr. Hoskins?<<strong>br</strong> />

- Só indiretamente, Srta. Fellowes. Tenho subordina<strong>do</strong>s, graças a Deus. Meus interesses<<strong>br</strong> />

são totalmente volta<strong>do</strong>s para os aspectos teóricos <strong>do</strong>s problemas: a natureza<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> tempo, a técnica de detecção intertemporal mesônica, e por aí afora. Trocaria<<strong>br</strong> />

tu<strong>do</strong> isso por um méto<strong>do</strong> de detectar objetos <strong>com</strong> menos de 10 mil anos. Se pudéssemos<<strong>br</strong> />

captar tempos históricos...<<strong>br</strong> />

Ele foi interrompi<strong>do</strong> por uma discussão num estande mais afasta<strong>do</strong>, onde uma voz<<strong>br</strong> />

fina se elevava queixosa. Ele franziu as so<strong>br</strong>ancelhas e, antes de se afastar corren<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

murmurou:<<strong>br</strong> />

- Com licença.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes o seguiu da melhor maneira que pôde, no entanto, sem correr.<<strong>br</strong> />

Um homem mais velho, <strong>com</strong> barba rala e rosto vermelho, estava dizen<strong>do</strong>:<<strong>br</strong> />

- Estão faltan<strong>do</strong> aspectos vitais para <strong>com</strong>pletar minha pesquisa. Será que você não<<strong>br</strong> />

entende isso?<<strong>br</strong> />

Um técnico uniformiza<strong>do</strong>, <strong>com</strong> o monograma SI (de Stasis Incorporação) na capa<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> laboratório, disse:<<strong>br</strong> />

- Dr. Hoskins, o professor Ademewski sabia desde o <strong>com</strong>eço que o espécimen só<<strong>br</strong> />

podia ficar aqui por duas semanas.<<strong>br</strong> />

- Eu não sabia quanto tempo duraria minha pesquisa. Não sou profeta - disse ele,<<strong>br</strong> />

irrita<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- O senhor deve entender - disse o Dr. Hoskins - que nosso espaço é limita<strong>do</strong>. Temos<<strong>br</strong> />

que manter a rotatividade das espécies. Esse pedaço de calcopirita precisa voltar.<<strong>br</strong> />

Há homens esperan<strong>do</strong> pelo próximo espécime.<<strong>br</strong> />

- Por que ele não pode ficar <strong>com</strong>igo, então? Deixe-me tirá-o daqui.


- Você sabe que isso não é possível.<<strong>br</strong> />

- Um pedaço de calcopirita, um miserável pedaço de cinco quilos? Por que não?<<strong>br</strong> />

- Não podemos arcar <strong>com</strong> tanto gasto de energia - disse Hoskins, <strong>br</strong>uscamente. -<<strong>br</strong> />

Você sabe disso.<<strong>br</strong> />

- O problema, Dr. Hoskins - interrompeu o técnico, é que ele tentou remover a pedra<<strong>br</strong> />

contra as regras, e quase furei a bolha enquanto ele estava lá, sem saber que ele<<strong>br</strong> />

estava.<<strong>br</strong> />

Houve um curto silêncio o Dr. Hoskins se voltou friamente para o pesquisa<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

- É verdade, professor?<<strong>br</strong> />

O Professor Ademewski pigarreou.<<strong>br</strong> />

- Não vi nenhum perigo nisso...<<strong>br</strong> />

Ele pegou um puxa<strong>do</strong>r que estava dependura<strong>do</strong> ao alcance de suas mãos, <strong>do</strong> la<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de fora da Sala <strong>do</strong> espécimen. Puxou-o.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes, que a<strong>com</strong>panhava tu<strong>do</strong> <strong>com</strong> muito interesse, olhou a pedra totalmente<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>um que provocara a cena e prendeu a respiração, à medida que a pedra<<strong>br</strong> />

se desintegrava.<<strong>br</strong> />

A sala estava vazia.<<strong>br</strong> />

- Professor - disse Hoskins. - Sua permissão para pesquisar em Stasis será definitivamente<<strong>br</strong> />

cancelada. Sinto muito.<<strong>br</strong> />

- Mas espere...<<strong>br</strong> />

- Sinto muito. O senhor violou uma das regras mais importantes.<<strong>br</strong> />

- Vou entrar <strong>com</strong> um recurso na Associação Internacional...<<strong>br</strong> />

- Entre. Num caso <strong>com</strong>o esse, você verá que não posso ser contesta<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Ele se virou deliberadamente, deixan<strong>do</strong> o professor ainda reclaman<strong>do</strong>, e disse para<<strong>br</strong> />

a Srta. Fellowes (<strong>com</strong> a face ainda <strong>br</strong>anca de raiva):<<strong>br</strong> />

- Gostaria de almoçar <strong>com</strong>igo?<<strong>br</strong> />

Ele a levou para a pequena sala de cantina da gerência. Cumprimentou as pessoas<<strong>br</strong> />

e apresentou-as à Srta. Fellowes, <strong>com</strong> total desembaraço, apesar de ela própria se<<strong>br</strong> />

sentir muito constrangida. O que será que estão imaginan<strong>do</strong>, pensou ela, e desesperadamente<<strong>br</strong> />

tentou manter uma aparência profissional.<<strong>br</strong> />

- O senhor tem esse tipo de problema <strong>com</strong> muita frequência? - perguntou ela. -<<strong>br</strong> />

Quero dizer, <strong>com</strong>o esse que o senhor acabou de ter <strong>com</strong> o professor? - Ela pegou o<<strong>br</strong> />

garfo e <strong>com</strong>eçou a <strong>com</strong>er.<<strong>br</strong> />

- Não - disse Hoskins, enérgico. - Essa foi a primeira vez. É claro que sempre tenho<<strong>br</strong> />

que dissuadir os homens da ideia de retirar as espécies, mas essa foi a primeira<<strong>br</strong> />

vez que alguém tentou fazer isso literalmente.<<strong>br</strong> />

- Lem<strong>br</strong>o que uma vez o senhor falou na energia que isso gastaria.<<strong>br</strong> />

- Isso mesmo. É claro que temos que levar isso em consideração. Há sempre a<<strong>br</strong> />

possibilidade de um acidente, e precisamos ter uma reserva especial de força, designada<<strong>br</strong> />

para suportar o gasto excessivo de uma remoção acidental <strong>do</strong> Stasis, mas isso<<strong>br</strong> />

não quer dizer que desejamos ver a provisão de energia de um ano desaparecer<<strong>br</strong> />

numa questão de segun<strong>do</strong>s... o que acarretaria longos atrasos em nossos planos de<<strong>br</strong> />

expansão. Além disso, imagine se o professor estivesse na sala no momento em que<<strong>br</strong> />

Stasis estivesse para ser perfurada.<<strong>br</strong> />

- Nesse caso, o que teria aconteci<strong>do</strong> <strong>com</strong> ele?<<strong>br</strong> />

- Já fizemos essas experiências <strong>com</strong> objetos inanima<strong>do</strong>s e ratos; ambos desapareceram.<<strong>br</strong> />

Presumo que os ratos tenham volta<strong>do</strong> no Tempo, arrasta<strong>do</strong>s, por assim dizer,<<strong>br</strong> />

no vácuo <strong>do</strong>s objetos que estavam sen<strong>do</strong> manda<strong>do</strong>s de volta para o seu tempo natural.<<strong>br</strong> />

Por essa razão, temos que imobilizar os objetos que não queremos que saiam de<<strong>br</strong> />

Stasis, e isso é um procedimento <strong>com</strong>plica<strong>do</strong>. O professor não teria si<strong>do</strong> imobiliza<strong>do</strong>


e teria volta<strong>do</strong> para o Plioceno no momento em que nós devolvêssemos a pedra...<<strong>br</strong> />

mais, é claro, as duas semanas que ela tinha passa<strong>do</strong> no presente.<<strong>br</strong> />

- Isso teria si<strong>do</strong> terrível.<<strong>br</strong> />

- Não por conta <strong>do</strong> professor, eu lhe garanto. Se ele foi tolo o suficiente para fazer<<strong>br</strong> />

o que fez, merecia isso. Mas imagine o efeito que isso causaria na opinião pública se<<strong>br</strong> />

o fato viesse à tona. Tu<strong>do</strong> o que as pessoas precisariam era serem alertadas quanto<<strong>br</strong> />

ao perigo de nossas experiências e as <strong>do</strong>ações desapareceriam assim.<<strong>br</strong> />

- Ele estalou os de<strong>do</strong>s e mexeu melancolicamente <strong>com</strong> a <strong>com</strong>ida.<<strong>br</strong> />

- O senhor não poderia trazê-o de volta? - perguntou a Srta. Fellowes. - Não daria<<strong>br</strong> />

para fazer a mesma coisa que fez <strong>com</strong> a pedra?<<strong>br</strong> />

- Não, porque uma vez que um objeto é retorna<strong>do</strong>, o ponto original se perde, a<<strong>br</strong> />

menos que o tivéssemos registra<strong>do</strong> antecipadamente, e nesse caso, não haveria por<<strong>br</strong> />

que fazer isso. Nunca há. Encontrar o professor de novo implicaria em voltar a localizar<<strong>br</strong> />

um ponto específico. Isso seria <strong>com</strong>o jogar uma linha dentro <strong>do</strong>s abismos <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

oceano <strong>com</strong> o propósito de pescar um certo peixe em particular. Meu Deus, quan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

penso nas precauções que tomamos para evitar acidentes fico maluco. Temos cada<<strong>br</strong> />

unidade individual de Stasis regulada <strong>com</strong> seu próprio dispositivo de perfuração. Temos<<strong>br</strong> />

que fazer isso, já que cada unidade tem um ponto próprio e precisa ser colapsada<<strong>br</strong> />

separadamente.<<strong>br</strong> />

A questão, no entanto, é que cada dispositivo de perfuração só é ativa<strong>do</strong> no último<<strong>br</strong> />

minuto. É por isso que a atividade só é possível <strong>com</strong> o puxão de uma corda cuida<strong>do</strong>samente<<strong>br</strong> />

colocada <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora <strong>do</strong> Stasis. O puxão é um pesa<strong>do</strong> movimento mecânico,<<strong>br</strong> />

que requer um grande esforço, nada que possa acontecer casualmente.<<strong>br</strong> />

- Mas isso não... muda a História, tirar e recolocar alguma coisa <strong>do</strong> seu tempo natural?<<strong>br</strong> />

Hoskins deu de om<strong>br</strong>os.<<strong>br</strong> />

- Teoricamente, sim. Na prática, a não ser em casos raros, não. Nós transportamos<<strong>br</strong> />

objetos fora da Stasis to<strong>do</strong> o tempo. Moléculas de ar. Bactérias. Poeira. Cerca de dez<<strong>br</strong> />

por cento de nosso consumo de energia é para suprir essas micro-perdas da natureza.<<strong>br</strong> />

Mas mesmo o transporte de objetos acarreta mudanças que são danosas. Pegue<<strong>br</strong> />

o exemplo da calcopirita <strong>do</strong> Pliocene. Por causa de sua ausência durante duas semanas,<<strong>br</strong> />

algum inseto não encontrou o a<strong>br</strong>igo que poderia estar precisan<strong>do</strong>, e por isso<<strong>br</strong> />

morreu. Isso poderia iniciar uma grande série de mudanças, mas a matemática de<<strong>br</strong> />

Stasis calcula que isto é uma série convergente. A quantidade de mudanças diminui<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o tempo e as coisas voltam a ser <strong>com</strong>o antes.<<strong>br</strong> />

- Isso quer dizer que a realidade se cura a si mesma?<<strong>br</strong> />

- De uma certa maneira, sim. Tire um humano de seu tempo, depois mande-o de<<strong>br</strong> />

volta, e você estará a<strong>br</strong>in<strong>do</strong> uma grande ferida. Se for um indivíduo qualquer, essa<<strong>br</strong> />

ferida se cura sozinha. É claro que há muita gente nos escreven<strong>do</strong> diariamente, pedin<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

para trazermos A<strong>br</strong>aham Lincoln para o presente, ou Maomé, ou Lênin. Isso<<strong>br</strong> />

não pode ser feito, é claro. Mesmo que nós os localizássemos, a mudança na realidade,<<strong>br</strong> />

ao se transportar alguém que modela a História, seria grande demais para cicatrizar.<<strong>br</strong> />

Há maneiras de se calcular quan<strong>do</strong> uma mudança pode ser muito grande, e nós<<strong>br</strong> />

evitamos até mesmo nos aproximar desse limite.<<strong>br</strong> />

- Quer dizer que Timmie...<<strong>br</strong> />

- Não, ele não representa nenhum problema quanto a isso. A realidade está segura.<<strong>br</strong> />

Mas... - Ele deu uma olhada rápida e perspicaz para ela e continuou: - Mas deixe<<strong>br</strong> />

isso para lá. Ontem você disse que Timmie precisava de <strong>com</strong>panhia.<<strong>br</strong> />

- Sim. - A Srta. Fellowes sorriu delicada. - Pensei que você não tivesse leva<strong>do</strong> isso<<strong>br</strong> />

a sério.


- É claro que levei. Gosto da criança. Respeito seus sentimentos por ele e estava<<strong>br</strong> />

interessa<strong>do</strong> o suficiente para explicar isso a você. Agora o fiz. Você viu o que nós fazemos.<<strong>br</strong> />

Agora você já <strong>com</strong>preendeu as dificuldades envolvidas, e deve saber que,<<strong>br</strong> />

mesmo <strong>com</strong> toda a boa vontade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, não podemos arranjar uma <strong>com</strong>panhia<<strong>br</strong> />

para Timmie.<<strong>br</strong> />

- Não? - disse a Srta. Fellowes, sentin<strong>do</strong>-se subitamente desanimada.<<strong>br</strong> />

- Mas eu acabei de explicar. É impossível encontrar um outro Neanderthal de sua<<strong>br</strong> />

idade sem ser por mera sorte. Mesmo que pudéssemos, não seria justo multiplicar os<<strong>br</strong> />

riscos, colocan<strong>do</strong> outro ser humano em Stasis.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes largou a colher e disse energicamente.<<strong>br</strong> />

- Mas, Dr. Hoskins, não é bem isso o que quero dizer. Não quero que o senhor traga<<strong>br</strong> />

outro Neanderthal para o presente. Sei que isso é impossível. Mas não é impossível<<strong>br</strong> />

trazer outra criança para <strong>br</strong>incar <strong>com</strong> Timmie.<<strong>br</strong> />

Hoskins olhou-a <strong>com</strong> muito interesse.<<strong>br</strong> />

- Uma criança humana!<<strong>br</strong> />

- Outra criança - disse a Srta. Fellowes, agora <strong>com</strong>pletamente hostil. - Timmie é<<strong>br</strong> />

humano.<<strong>br</strong> />

- Não poderia sonhar <strong>com</strong> uma coisa dessas.<<strong>br</strong> />

- Por que não? Por que não poderia? O que há de erra<strong>do</strong> <strong>com</strong> essa ideia? O senhor<<strong>br</strong> />

arrancou essa criança <strong>do</strong> seu tempo e a transformou num eterno prisioneiro. Não<<strong>br</strong> />

acha que lhe deve alguma coisa? Dr. Hoskins, se existe algum homem nesse mun<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

que poderia ser considera<strong>do</strong> o pai dessa criança, esse homem é o senhor. Por que<<strong>br</strong> />

não pode fazer esse pequeno favor para ele?<<strong>br</strong> />

- Seu pai - disse Hoskins. Ele se levantou desajeitadamente. - Srta. Fellowes, se<<strong>br</strong> />

não se importa, terei que levá-a de volta agora.<<strong>br</strong> />

Eles voltaram para a casa de boneca em <strong>com</strong>pleto silêncio, que não foi que<strong>br</strong>a<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

nenhuma vez.<<strong>br</strong> />

Passou-se um longo tempo até que ela voltasse a ver Hoskins, a não ser de passagem.<<strong>br</strong> />

Algumas vezes ela se sentia chateada <strong>com</strong> isso, mas, nas vezes em que Timmie<<strong>br</strong> />

estava mais macambúzio <strong>do</strong> que o normal, ou quan<strong>do</strong> ele passava horas em silêncio,<<strong>br</strong> />

na janela, sem perspectiva nenhuma, ela pensava furiosa: que homem mais estúpi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

O vocabulário de Timmie se tornava melhor e mais preciso a cada dia. Nunca perdera<<strong>br</strong> />

totalmente um certo sotaque ininteligível, que, para a Srta. Fellowes, soava encanta<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> estava muito excita<strong>do</strong>, ele voltava a estalar a língua, mas essas horas estavam<<strong>br</strong> />

se tornan<strong>do</strong> cada vez mais raras. Ele devia estar se esquecen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s dias que<<strong>br</strong> />

antecederam sua chegada ao presente... a não ser em sonhos.<<strong>br</strong> />

À medida que crescia, os fisiologistas se tornavam menos interessa<strong>do</strong>s, ao contrário<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>s psicólogos. A Srta. Fellowes não sabia qual era o grupo de que gostava menos.<<strong>br</strong> />

As agulhas, injeções, colheita de líqui<strong>do</strong>s e dietas especiais acabaram.<<strong>br</strong> />

Mas agora Timmie era incentiva<strong>do</strong> a ultrapassar barreiras para conseguir <strong>com</strong>ida e<<strong>br</strong> />

água. Tinha que levantar painéis, mover barras, puxar cordões. E os modera<strong>do</strong>s choques<<strong>br</strong> />

elétricos faziam-no chorar, deixan<strong>do</strong> a Srta. Fellowes transtornada.<<strong>br</strong> />

Ela não queria apelar para Hoskins. Não queria ter que falar <strong>com</strong> ele. Cada vez que<<strong>br</strong> />

pensava nele lem<strong>br</strong>ava-se de sua cara na mesa <strong>do</strong> almoço, da última vez em que se<<strong>br</strong> />

encontraram. Seus olhos se molhavam e ela pensava: que homem mais estúpi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Um estúpi<strong>do</strong>.


Um dia, a voz de Hoskins soou inesperadamente dentro da casa de boneca, chaman<strong>do</strong>-a.<<strong>br</strong> />

Ela apareceu friamente, alisan<strong>do</strong> seu uniforme de enfermeira, e parou, confusa, ao<<strong>br</strong> />

se ver na presença de uma mulher pálida, esbelta, e de altura mediana. Os cabelos<<strong>br</strong> />

louros e a pele clara davam-lhe uma aparência de fragilidade. Atrás dela, e seguran<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

sua saia, havia um menino <strong>com</strong> olhos grandes e rosto re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, aparentan<strong>do</strong> uns<<strong>br</strong> />

quatro anos.<<strong>br</strong> />

- Querida, essa é a Srta. Fellowes - disse Hoskins. - Ela é a enfermeira que cuida<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> garoto. Srta. Fellowes, esta é minha esposa. (Essa era sua esposa? Ela não era<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o imaginava. Mas por que não? Um homem <strong>com</strong>o Hoskins escolheria uma pessoa<<strong>br</strong> />

frágil, para contrastar <strong>com</strong> ele. Se era isso o que ele queria...)<<strong>br</strong> />

Ela tentou ser natural ao cumprimentá-a.<<strong>br</strong> />

- Boa tarde, Sra. Hoskins. Esse é o seu... seu filho? (Isso foi uma surpresa. Ela tinha<<strong>br</strong> />

pensa<strong>do</strong> em Hoskins <strong>com</strong>o mari<strong>do</strong>, mas não <strong>com</strong>o pai, a não ser, é claro... subitamente<<strong>br</strong> />

cruzou <strong>com</strong> o olhar grave de Hoskins e corou.)<<strong>br</strong> />

- Sim, este é meu filho, o Jerry - disse Hoskins. - Dê um alô para a Srta. Fellowes,<<strong>br</strong> />

Jerry. (Estaria ele dan<strong>do</strong> ênfase à palavra "este"? Estava dizen<strong>do</strong> que este era seu filho,<<strong>br</strong> />

e não...)<<strong>br</strong> />

Ele se enfiou um pouco mais nas pregas da saia da mãe e resmungou seu alô. Os<<strong>br</strong> />

olhos da Sra. Hoskins estavam olhan<strong>do</strong> curiosamente por so<strong>br</strong>e os om<strong>br</strong>os da Srta.<<strong>br</strong> />

Fellowes, investigan<strong>do</strong> o quarto, procuran<strong>do</strong> alguma coisa.<<strong>br</strong> />

- Vamos entrar - disse Hoskins. - Venha, querida. Você vai sentir um pequeno desconforto<<strong>br</strong> />

quan<strong>do</strong> atravessar a porta, mas isso logo passará.<<strong>br</strong> />

- É para o Jerry entrar também? - perguntou a Srta. Fellowes.<<strong>br</strong> />

- É claro. Ele veio <strong>br</strong>incar <strong>com</strong> Timmie. Você disse que Timmie precisava de um<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>panheiro. Já esqueceu?<<strong>br</strong> />

- Mas... - Ela olhou para ele totalmente surpresa, maravilhada. - Seu filho?<<strong>br</strong> />

- Com que outro garoto, então? - disse ele, rabugento. - Não era isso que você<<strong>br</strong> />

queria? Vamos, querida. Vamos entrar.<<strong>br</strong> />

A Sra. Hoskins colocou Jerry nos <strong>br</strong>aços, <strong>com</strong> um esforço visível, e, hesitan<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

atravessou a porta. Jerry tremeu quan<strong>do</strong> ela fez isso, deixan<strong>do</strong> claro que não tinha<<strong>br</strong> />

gosta<strong>do</strong> da sensação.<<strong>br</strong> />

- Cadê a criatura? - perguntou a Sra. Hoskins, <strong>com</strong> uma voz fina. - Não a estou<<strong>br</strong> />

ven<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Timmie - chamou a Srta. Fellowes. - Venha cá. Timmie son<strong>do</strong>u, na beirada da<<strong>br</strong> />

porta, encaran<strong>do</strong> o garoto que o visitava. Os músculos <strong>do</strong> <strong>br</strong>aço da Sra. Hoskins ficaram<<strong>br</strong> />

visivelmente tensos.<<strong>br</strong> />

- Gerald, você tem certeza de que isso é seguro? - perguntou ela ao mari<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes respondeu de pronto.<<strong>br</strong> />

- Se a senhora quer saber se Timmie é perigoso, é claro que ele não é. Ele é um<<strong>br</strong> />

garoto muito bem educa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Mas ele é um sel... selvagem. (O menino-macaco das histórias nos jornais!)<<strong>br</strong> />

- Ele não é um selvagem - disse a Srta. Fellowes energicamente. - Ele é tão tranquilo<<strong>br</strong> />

e racional quanto se poderia esperar de um garoto de cinco anos e meio. É<<strong>br</strong> />

muita generosidade de sua parte, Sra. Hoskins, permitir que seu filho <strong>br</strong>inque <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

Timmie, mas, por favor, não tenha me<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não estou muito certa se devo concordar - rebateu a Sra. Hoskins, meio esquentada.<<strong>br</strong> />

- Nós já conversamos so<strong>br</strong>e isso, querida - disse Hoskins. - Não vamos discutir de<<strong>br</strong> />

novo so<strong>br</strong>e esse problema. Ponha Jerry no chão.


A Sra. Hoskins obedeceu. O garoto se encostou nela, olhan<strong>do</strong> fixamente para o par<<strong>br</strong> />

de olhos que também o fitavam da porta que havia em frente.<<strong>br</strong> />

- Venha cá, Timmie - disse a Srta. Fellowes. - Não tenha me<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Lentamente, Timmie foi entran<strong>do</strong> na sala. Hoskins se abaixou para desgrudar os<<strong>br</strong> />

de<strong>do</strong>s de Jerry da saia da mãe.<<strong>br</strong> />

- Recue um pouco, querida. Dê uma chance para as crianças. Os garotos se encararam.<<strong>br</strong> />

Apesar de mais jovem, Jerry era um pouco mais alto, e, em <strong>com</strong>paração <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

sua cabeça bem proporcionada e altiva, as deformidades de Timmie ficaram, de repente,<<strong>br</strong> />

quase tão pronunciadas quanto nos primeiros dias. Os lábios da Srta. Fellowes<<strong>br</strong> />

tremeram.<<strong>br</strong> />

Foi o pequeno Neanderthal quem falou primeiro, <strong>com</strong> a voz esganiçada que caracterizava<<strong>br</strong> />

as crianças.<<strong>br</strong> />

- Qual é o seu nome?<<strong>br</strong> />

Repentinamente, Timmie projetou o rosto para a frente, <strong>com</strong>o se estivesse inspecionan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

o rosto <strong>do</strong> outro.<<strong>br</strong> />

Assusta<strong>do</strong>, Jerry respondeu <strong>com</strong> um vigoroso empurrão, que levou Timmie ao<<strong>br</strong> />

chão.<<strong>br</strong> />

Ambos <strong>com</strong>eçaram a chorar muito alto e a Sra. Hoskins colocou seu garoto no<<strong>br</strong> />

colo, enquanto a Srta. Fellowes, ruborizada de raiva, levantava Timmie e o consolava.<<strong>br</strong> />

- Eles não se gostam. Instintivamente, eles não se gostam.<<strong>br</strong> />

- Não mais instintivamente - disse-lhe o mari<strong>do</strong>, esgota<strong>do</strong> - <strong>do</strong> que duas crianças<<strong>br</strong> />

que se estranham. Agora coloque Jerry no chão e deixe que ele se acostume à situação.<<strong>br</strong> />

Na verdade, o melhor que temos a fazer é sair daqui. A Srta. Fellowes pode levar<<strong>br</strong> />

Jerry para meu escritório mais tarde. Eu o levarei para casa.<<strong>br</strong> />

As duas crianças passaram uma hora trocan<strong>do</strong> olhares desconfia<strong>do</strong>s. Jerry gritou<<strong>br</strong> />

por sua mãe, fez malcriações <strong>com</strong> a Srta. Fellowes, e, finalmente, deixou-se ser consola<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

por um pirulito. Timmie chupou um outro e, depois de uma hora, a Srta. Fellowes<<strong>br</strong> />

viu-os <strong>br</strong>incan<strong>do</strong> <strong>com</strong> o mesmo jogo de blocos, ainda que em cantos separa<strong>do</strong>s<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong> quarto.<<strong>br</strong> />

Ela se sentiu meio sentimental, tão agradecida que estava por Hoskins ter trazi<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

Jerry para <strong>br</strong>incar <strong>com</strong> ele.<<strong>br</strong> />

Procurou uma maneira de agradecer-lhe, mas sua formalidade foi um empecilho.<<strong>br</strong> />

Talvez ele não pudesse per<strong>do</strong>á-a por fazê-o se sentir <strong>com</strong>o um pai cruel. Talvez o<<strong>br</strong> />

fato de trazer seu próprio filho fosse uma tentativa, no fim das contas, de mostrar a<<strong>br</strong> />

si mesmo que era um bom pai para Timmie, e, ao mesmo tempo, que não era seu<<strong>br</strong> />

pai.<<strong>br</strong> />

Se fosse assim, tu<strong>do</strong> o que ela poderia dizer era: "O<strong>br</strong>igada. Muito o<strong>br</strong>igada."<<strong>br</strong> />

E tu<strong>do</strong> o que ele poderia dizer era: "Tu<strong>do</strong> bem. Não há de quê." Isso se tornou<<strong>br</strong> />

uma rotina. Duas vezes por semana Jerry era trazi<strong>do</strong> para uma hora de <strong>br</strong>incadeira,<<strong>br</strong> />

que, mais tarde, foi estendida para duas horas. As crianças aprenderam seus respectivos<<strong>br</strong> />

nomes, hábitos, e <strong>br</strong>incavam juntas.<<strong>br</strong> />

Mas, ainda assim, depois <strong>do</strong> primeiro ímpeto de gratidão, a Srta. Fellowes se viu<<strong>br</strong> />

rejeitan<strong>do</strong> Jerry. Ele era maior e mais pesa<strong>do</strong> e, em todas as coisas, um <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r,<<strong>br</strong> />

colocan<strong>do</strong> Timmie num papel totalmente secundário. Mas tu<strong>do</strong> que a reconciliou <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

essa situação foi o fato de que, a despeito de todas as dificuldades, Timmie esperava<<strong>br</strong> />

cada vez mais feliz as periódicas aparições de seu <strong>com</strong>panheiro. Era tu<strong>do</strong> o que ele<<strong>br</strong> />

tinha, lamentava-se ela.<<strong>br</strong> />

E uma vez, enquanto os observava, pensou: os <strong>do</strong>is filhos de Hoskins... um <strong>com</strong>


sua esposa, e outro <strong>com</strong> Stasis.<<strong>br</strong> />

Enquanto ela mesma...<<strong>br</strong> />

Céus, pensou, levantan<strong>do</strong> as mãos para o alto e se sentin<strong>do</strong> envergonhada: estou<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> ciúmes!<<strong>br</strong> />

- Srta. Fellowes - disse Timmie (cuida<strong>do</strong>samente, ela nunca tinha deixa<strong>do</strong> que ele<<strong>br</strong> />

a chamasse de outra forma), quan<strong>do</strong> eu vou para a escola?<<strong>br</strong> />

Ela olhou para baixo, na direção daqueles ansiosos olhos castanhos que a fitavam,<<strong>br</strong> />

e passou as mãos suavemente so<strong>br</strong>e seus cabelos grossos e encrespa<strong>do</strong>s. Essa era a<<strong>br</strong> />

parte mais desgrenhada de sua aparência, pois era ela quem os cortava, enquanto<<strong>br</strong> />

ele se remexia inquieto a cada movimento da tesoura. Ela não recorria a um profissional,<<strong>br</strong> />

pois o corte absolutamente desajeita<strong>do</strong> servia para mascarar a retração da<<strong>br</strong> />

parte da frente da cabeça e as saliências da parte de trás.<<strong>br</strong> />

- Onde você ouviu falar de escolas? - perguntou ela.<<strong>br</strong> />

- Jerry vai para a escola. Jar-dim-de-in-fân-ci-a. - soletrou. - Há muitos lugares<<strong>br</strong> />

onde ele vai. Lá fora. Quan<strong>do</strong> poderei ir lá fora, Srta. Fellowes?<<strong>br</strong> />

Uma pequena <strong>do</strong>r apertou o coração da Srta. Fellowes. Ela viu <strong>com</strong> clareza que<<strong>br</strong> />

não haveria uma maneira de controlar a inevitabilidade de Timmie ouvir mais e mais<<strong>br</strong> />

coisas a respeito <strong>do</strong> outro mun<strong>do</strong>, no qual jamais poderia entrar.<<strong>br</strong> />

- Por quê? - perguntou, tentan<strong>do</strong> parecer engraçada. - O que é que você faria lá?<<strong>br</strong> />

- Jerry diz que eles jogam e vêem filmes. Ele diz que há um monte de crianças lá.<<strong>br</strong> />

Ele diz... ele diz... - Primeiro veio o pensamento, depois ergueu as pequenas mãos<<strong>br</strong> />

em triunfo, <strong>com</strong> os de<strong>do</strong>s grossos separa<strong>do</strong>s. - Ele diz isso tu<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Você gostaria de ver filmes? - disse a Srta. Fellowes. - Eu posso arrumar uns filmes.<<strong>br</strong> />

Uns filmes muito bons. E músicas também.<<strong>br</strong> />

Isso consolou Timmie. Por algum tempo.


Ele via atentamente os filmes, na ausência de Jerry, e a Srta. Fellowes lia em voz<<strong>br</strong> />

alta livros <strong>com</strong>uns para ele.<<strong>br</strong> />

Havia muito o que explicar, mesmo nas histórias mais simples, bastan<strong>do</strong> que ela se<<strong>br</strong> />

referisse a qualquer coisa que não existisse nas suas três salas.<<strong>br</strong> />

Timmie <strong>com</strong>eçou a sonhar <strong>com</strong> mais frequência, agora que o mun<strong>do</strong> exterior ia<<strong>br</strong> />

sen<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> a ele.<<strong>br</strong> />

Os sonhos so<strong>br</strong>e o la<strong>do</strong> de fora eram sempre os mesmos. Ele tentava descrevê-os<<strong>br</strong> />

para a Srta. Fellowes, mas não tinha muito sucesso. Nos seus sonhos, ele estava lá<<strong>br</strong> />

fora, um lugar vazio mas muito grande, <strong>com</strong> crianças e objetos estranhos e indescritíveis,<<strong>br</strong> />

mal digeri<strong>do</strong>s em seus pensamentos, a partir das descrições que ele não entendia<<strong>br</strong> />

muito bem <strong>do</strong>s livros ou retiradas <strong>do</strong> distante mun<strong>do</strong> Neanderthal, <strong>do</strong> qual<<strong>br</strong> />

não se lem<strong>br</strong>ava <strong>com</strong> exatidão.<<strong>br</strong> />

Mas as crianças e objetos o ignoravam. Apesar de ele estar no mun<strong>do</strong>, nunca participava<<strong>br</strong> />

dele, pois era tão sozinho quanto o era nas suas próprias salas... e acordava<<strong>br</strong> />

choran<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes tentava sorrir <strong>do</strong>s seus sonhos, mas havia noites em que ela, depois<<strong>br</strong> />

de ir para o seu apartamento, chorava também.<<strong>br</strong> />

Um dia, à medida que a Srta. Fellowes lia, Timmie colocou a mão sob o queixo<<strong>br</strong> />

dela e levantou-o carinhosamente, de mo<strong>do</strong> que os olhos dela saíssem <strong>do</strong> livro e se<<strong>br</strong> />

encontrassem <strong>com</strong> os seus.<<strong>br</strong> />

- Como você sabe o que dizer, Srta. Fellowes?<<strong>br</strong> />

- Você vê essas marcas? Elas me dizem o que dizer. Essas marcas são as palavras.<<strong>br</strong> />

Ele tirou o livro das mãos dela e olhou as palavras <strong>com</strong> curiosidade, por longo tempo.<<strong>br</strong> />

- Algumas dessas marcas são iguais.<<strong>br</strong> />

Ela sorriu <strong>com</strong> prazer a essa mostra de sua perspicácia.<<strong>br</strong> />

- Sim, são. Você gostaria que lhe mostrasse <strong>com</strong>o fazer as marcas?<<strong>br</strong> />

- Tu<strong>do</strong> bem. Seria um ótimo jogo.<<strong>br</strong> />

Até agora não lhe ocorrera que pudesse aprender a ler. Até o momento em que ele<<strong>br</strong> />

leu um livro para ela, não lhe ocorrera que pudesse aprender a ler.<<strong>br</strong> />

Então, algumas semanas depois, a enormidade <strong>do</strong> que tinha si<strong>do</strong> feito a chocou.<<strong>br</strong> />

Timmie sentou-se em seu colo e a<strong>com</strong>panhou, palavra por palavra, o que estava impresso<<strong>br</strong> />

num livro de criança, len<strong>do</strong> para ela. Ele estava len<strong>do</strong> para ela!<<strong>br</strong> />

Surpresa, ela se esforçou para se levantar.<<strong>br</strong> />

- Agora, Timmie - disse. - Voltarei mais tarde. Quero ver o Dr. Hoskins.<<strong>br</strong> />

Excitada, quase num frenesi, parecia-lhe que podia ter uma resposta para a infelicidade<<strong>br</strong> />

de Timmie. Se ele não podia sair e participar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong> podia ser<<strong>br</strong> />

leva<strong>do</strong> para dentro daquelas três salas de Timmie... o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> em livros, filmes e<<strong>br</strong> />

sons. Ele devia ser educa<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> <strong>com</strong> sua enorme capacidade. O mun<strong>do</strong> lhe<<strong>br</strong> />

devia muito.<<strong>br</strong> />

Ela encontrou Hoskins num humor que era estranhamente análogo ao seu, em esta<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

de graça. Seu escritório estava in<strong>com</strong>umente lota<strong>do</strong>. Por um momento enquanto<<strong>br</strong> />

esperava confusa na ante-sala, pensou que não fosse recebê-a.<<strong>br</strong> />

Mas ele a viu e um sorriso se expandiu por seu rosto largo.<<strong>br</strong> />

- Srta. Fellowes, venha cá.<<strong>br</strong> />

Ele falou rapidamente no interfone e em seguida desligou.<<strong>br</strong> />

- Você ouviu? Não, é claro que não poderia ter ouvi<strong>do</strong>. Nós fizemos. Fizemos de<<strong>br</strong> />

verdade. Conseguimos uma detecção intertemporal a curta distância.


- Quer dizer - ela tentou por um momento separar os pensamentos de suas próprias<<strong>br</strong> />

boas notícias - que pode trazer uma pessoa de uma época histórica para o presente.<<strong>br</strong> />

- É exatamente isso o que quero dizer. Temos um fixa<strong>do</strong>r numa pessoa <strong>do</strong> século<<strong>br</strong> />

XIV, exatamente agora. Imagine. Imagine. Se você soubesse <strong>com</strong>o ficarei feliz em<<strong>br</strong> />

sair da eterna concentração no Mesosóico, trocar os paleontólogos pelos historia<strong>do</strong>res...<<strong>br</strong> />

mas há alguma coisa que você quer me dizer, hein? Bem, vá em frente. Você<<strong>br</strong> />

me encontrou num momento de excelente humor. Terá tu<strong>do</strong> o que quiser.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes sorriu.<<strong>br</strong> />

- Estou feliz. Pergunto por que não estabelecer um sistema de instrução para Timmie?<<strong>br</strong> />

- Instrução? Em quê?<<strong>br</strong> />

- Em tu<strong>do</strong>, ora. Uma escola. Em tu<strong>do</strong> que ele pode aprender.<<strong>br</strong> />

- Mas ele pode aprender?<<strong>br</strong> />

- Ele já está aprenden<strong>do</strong>. Ele pode ler. Eu mesma já lhe ensinei muita coisa.<<strong>br</strong> />

Hoskins se sentou, parecen<strong>do</strong> subitamente deprimi<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não sei, Srta. Fellowes.<<strong>br</strong> />

- Você acabou de dizer que qualquer coisa que lhe pedisse...<<strong>br</strong> />

- Eu sei, e me arrepen<strong>do</strong> disso. Você sabe, Srta. Fellowes, tenho certeza que está<<strong>br</strong> />

a par de que não podemos manter a experiência de Timmie para sempre.<<strong>br</strong> />

Ela o encarou subitamente horrorizada, sem entender exatamente o que ele tinha<<strong>br</strong> />

queri<strong>do</strong> dizer. O que queria dizer <strong>com</strong> "não podemos manter"? <strong>com</strong> um agonizante<<strong>br</strong> />

relâmpago de recordação, ela lem<strong>br</strong>ou-se <strong>do</strong> professor Aderneski e <strong>do</strong> espécimen mineral<<strong>br</strong> />

manda<strong>do</strong> de volta depois de duas semanas.<<strong>br</strong> />

- Mas você está falan<strong>do</strong> a respeito de um garoto - disse. - Não de uma pedra...<<strong>br</strong> />

- Mesmo a um garoto - disse ele, inquieto - não pode ser dada uma importância<<strong>br</strong> />

muito grande, Srta. Fellowes. Agora que esperamos indivíduos <strong>do</strong> tempo histórico,<<strong>br</strong> />

precisaremos de espaço em Stasis, precisaremos de to<strong>do</strong> espaço possível.<<strong>br</strong> />

Ela não entendeu.<<strong>br</strong> />

- Mas você não pode. Timmie... Timmie...<<strong>br</strong> />

- Agora, Srta. Fellowes, por favor, não se desespere. Timmie não irá agora. Talvez<<strong>br</strong> />

isso demore meses. Enquanto isso, faremos tu<strong>do</strong> que estiver ao nosso alcance.<<strong>br</strong> />

Ela ainda o estava encaran<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Deixe-me fazer alguma coisa por você.<<strong>br</strong> />

- Não - sussurrou ela. - Eu não preciso de nada. Ela se levantou <strong>com</strong>o se estivesse<<strong>br</strong> />

num pesadelo e saiu. Timmie, pensou ela, você não morrerá. Você não morrerá.<<strong>br</strong> />

Estava tu<strong>do</strong> muito bem, ficar pensan<strong>do</strong> que Timmie não devia morrer, mas o que<<strong>br</strong> />

ela poderia fazer? Nas primeiras semanas, a Srta. Fellowes agarrou-se apenas à esperança<<strong>br</strong> />

de que a tentativa de trazer um homem <strong>do</strong> século XIV para o presente fracassasse<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>pletamente. A teoria de Hoskins poderia estar errada, ou a tentativa falhar.<<strong>br</strong> />

Então as coisas poderiam continuar <strong>com</strong>o antes.<<strong>br</strong> />

Certamente não era essa a esperança <strong>do</strong> resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e, irracionalmente, a<<strong>br</strong> />

Srta. Fellowes odiou o mun<strong>do</strong> por causa disso. O "Projeto Idade Média" atingiu um<<strong>br</strong> />

clímax de publicidade entusiasmada. A imprensa e a opinião pública ansiavam por alguma<<strong>br</strong> />

coisa desse tipo. Há muito tempo que Stasis não causava tanta sensação. Uma<<strong>br</strong> />

nova pedra ou um outro peixe pré-histórico não era mais excitante. Mas um homem<<strong>br</strong> />

da Idade Média era.<<strong>br</strong> />

Um homem histórico; um adulto falan<strong>do</strong> uma língua conhecida; alguém que pudesse<<strong>br</strong> />

a<strong>br</strong>ir uma nova página da História para o estudioso.


A hora H estava chegan<strong>do</strong>, e dessa vez não era uma questão de três especta<strong>do</strong>res<<strong>br</strong> />

junto a um balcão. Dessa vez haveria uma audiência mundial. Dessa vez os técnicos<<strong>br</strong> />

de Stasis desempenhariam seu papel para quase toda a humanidade.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes era só ansiedade <strong>com</strong> a demora. Quan<strong>do</strong> o jovem Jerry Hoskins<<strong>br</strong> />

apareceu para sua hora de <strong>br</strong>incadeiras <strong>com</strong> Timmie, ela mal o reconheceu. Não era<<strong>br</strong> />

ele que estava esperan<strong>do</strong>. (A secretária que o trazia saiu apressadamente, depois de<<strong>br</strong> />

um rápi<strong>do</strong> aceno para a Srta. Fellowes. Ela estava corren<strong>do</strong> para pegar um bom lugar,<<strong>br</strong> />

para ver o clímax <strong>do</strong> Projeto Idade Média. E era isso que ela também deveria estar<<strong>br</strong> />

fazen<strong>do</strong>, embora suas razões fossem totalmente diferentes, pensou amargamente;<<strong>br</strong> />

se ao menos essa moça idiota chegasse logo!)<<strong>br</strong> />

Jerry aproximou-se silenciosamente dela, embaraça<strong>do</strong>. Ele pegou a reprodução de<<strong>br</strong> />

uma foto <strong>do</strong> bolso.<<strong>br</strong> />

- Sim? O que é isso, Jerry?<<strong>br</strong> />

- Isso não é um retrato de Timmie?<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes olhou para ele e arrancou o pedaço de jornal da mão de Jerry. A<<strong>br</strong> />

excitação <strong>do</strong> Projeto Idade Média reavivara o interesse da imprensa em Timmie.<<strong>br</strong> />

Jerry olhou-a minuciosamente.<<strong>br</strong> />

- Aqui diz que Timmie é um menino-macaco. O que quer dizer isso?<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes segurou os punhos <strong>do</strong> garoto e reprimiu o impulso de sacudi-o.<<strong>br</strong> />

- Nunca diga isso, Jerry. Nunca, está entenden<strong>do</strong>? Isso é uma palavra feia e você<<strong>br</strong> />

não deve usá-a.<<strong>br</strong> />

Jerry livrou-se dela, assusta<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes rasgou o pedaço de jornal <strong>com</strong> um violento movimento de mãos.<<strong>br</strong> />

- Agora vá <strong>br</strong>incar <strong>com</strong> Timmie. Ele tem um novo livro e quer mostrá-o a você.<<strong>br</strong> />

Finalmente a moça chegou. A Srta. Fellowes não a conhecia. Nenhuma das habituais<<strong>br</strong> />

substitutas que utilizava quan<strong>do</strong> tinha algum trabalho para fazer em algum outro<<strong>br</strong> />

lugar estava disponível nesse momento, por causa <strong>do</strong> clímax <strong>do</strong> Projeto Idade<<strong>br</strong> />

Média; mas a secretária de Hoskins tinha lhe prometi<strong>do</strong> achar alguém, e essa devia<<strong>br</strong> />

ser a garota.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes tentou disfarçar a irritação na sua voz.<<strong>br</strong> />

- Você é a moça designada para a Seção Um da Stasis?<<strong>br</strong> />

- Sim, eu sou Mandy Terris. Você é a senhorita Fellowes, não é?<<strong>br</strong> />

- Isso mesmo.<<strong>br</strong> />

- Desculpe o atraso. Há muita excitação.<<strong>br</strong> />

- Eu sei. Agora quero que...<<strong>br</strong> />

- Você vai assistir, eu presumo. - Seu rosto fino, de uma beleza inexpressiva, encheu-se<<strong>br</strong> />

de inveja.<<strong>br</strong> />

- Deixe isso pra lá. Agora eu quero que você entre e conheça Timmie e Jerry. Eles<<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>incarão nas próximas duas horas. Não lhe darão muito trabalho. Eles sabem onde<<strong>br</strong> />

pegar o leite e têm muitos <strong>br</strong>inque<strong>do</strong>s. Na verdade, o melhor será que os deixe sozinhos<<strong>br</strong> />

o maior tempo possível. Agora vou-lhe mostrar onde as coisas estão guardadas.<<strong>br</strong> />

- Esse Timmie é o macaco...<<strong>br</strong> />

- Timmie é um assunto Stasis - disse a Srta. Fellowes, energicamente.<<strong>br</strong> />

- Ele é o tal que não tem permissão para sair, não é?<<strong>br</strong> />

- Sim, agora entre. Estou em cima da hora.<<strong>br</strong> />

Quan<strong>do</strong> ela estava sain<strong>do</strong>, Mandy Terris gritou <strong>com</strong> uma voz aguda atrás dela.<<strong>br</strong> />

- Espero que você consiga um bom lugar, e, se Deus quiser, tu<strong>do</strong> vai dar certo.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes não acreditou que pudesse dar uma resposta racional. Saiu apressada,<<strong>br</strong> />

sem olhar para trás.


Mas o atraso não deixou que conseguisse um bom lugar. O máximo que conseguiu<<strong>br</strong> />

foi ver pelo telão da sala de reuniões. Se ela pudesse estar naquele lugar; se, de alguma<<strong>br</strong> />

forma, pudesse alcançar alguma parte sensível da aparelhagem; se tivesse<<strong>br</strong> />

condições de estragar a experiência...<<strong>br</strong> />

Ela encontrou forças para controlar sua loucura. A destruição por si só não adiantaria<<strong>br</strong> />

muito. Eles consertariam, religariam e fariam tu<strong>do</strong> de novo. E ela nunca mais<<strong>br</strong> />

teria permissão de voltar para Timmie.<<strong>br</strong> />

Nada ajudaria. Nada, a não ser que a experiência fracassasse por si própria, que<<strong>br</strong> />

tivesse um defeito irrecuperável.<<strong>br</strong> />

Ela a<strong>com</strong>panhou a contagem regressiva, seguin<strong>do</strong> cada movimento da tela gigantesca,<<strong>br</strong> />

examinan<strong>do</strong> o rosto <strong>do</strong>s técnicos à medida que o foco passava de um para o<<strong>br</strong> />

outro, esperan<strong>do</strong> pelo olhar de preocupação e incerteza que revelaria que alguma<<strong>br</strong> />

coisa estava dan<strong>do</strong> erra<strong>do</strong>; esperan<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong>...<<strong>br</strong> />

Ela não teve sorte. A contagem chegou a zero e, muito calmamente, totalmente<<strong>br</strong> />

despretensiosa, a experiência foi bem-sucedida.<<strong>br</strong> />

Na nova Stasis, que tinha si<strong>do</strong> instalada lá, estava um camponês, de idade indeterminada,<<strong>br</strong> />

barbu<strong>do</strong>, om<strong>br</strong>os curva<strong>do</strong>s, <strong>com</strong> roupas sujas e esfarrapadas e tamancos,<<strong>br</strong> />

olhan<strong>do</strong> <strong>com</strong>pletamente horroriza<strong>do</strong> para essa mudança repentina e louca que acabava<<strong>br</strong> />

de ocorrer.<<strong>br</strong> />

E enquanto o mun<strong>do</strong> enlouquecia de felicidade, a Srta. Fellowes ficou paralisada<<strong>br</strong> />

de tristeza, levan<strong>do</strong> encontrões e empurrões, quase esmagada, cercada por <strong>com</strong>emorações<<strong>br</strong> />

e derrotada por <strong>com</strong>pleto.<<strong>br</strong> />

O alto-falante que a convocou, <strong>com</strong> uma força estridente, precisou chamá-a três<<strong>br</strong> />

vezes antes que respondesse.<<strong>br</strong> />

- Srta. Fellowes. Srta. Fellowes. Está sen<strong>do</strong> procurada na Seção 1 de Stasis, imediatamente.<<strong>br</strong> />

Srta. Fellowes. Srta. Fel...<<strong>br</strong> />

- Deixe-me passar - gritou ela sem fôlego, enquanto o alto-falante continuava a repetir<<strong>br</strong> />

seu nome sem parar. Ela a<strong>br</strong>iu caminho através da multidão <strong>com</strong> raiva, baten<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

nas pessoas, dan<strong>do</strong> socos <strong>com</strong> os punhos fecha<strong>do</strong>s, andan<strong>do</strong> na direção da porta<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o se estivesse num pesadelo.<<strong>br</strong> />

Mandy Terris estava choran<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não sei <strong>com</strong>o isso aconteceu. Fui só até a pontinha <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r dar uma olhada<<strong>br</strong> />

no vídeo de bolso que eles tinham coloca<strong>do</strong> lá. Só por um minuto. E, antes que pudesse<<strong>br</strong> />

me mexer ou fazer alguma coisa... - Ela gritou, num tom subitamente acusa<strong>do</strong>r.<<strong>br</strong> />

- Você disse que eles não dariam trabalho. Você disse para deixá-os sozinhos...<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes, toda desgrenhada e tremen<strong>do</strong> incontrolavelmente, depositou-lhe<<strong>br</strong> />

um olhar <strong>br</strong>ilhante.<<strong>br</strong> />

- Onde está Timmie?<<strong>br</strong> />

Jerry gemia. Uma enfermeira estava limpan<strong>do</strong> o seu <strong>br</strong>aço <strong>com</strong> um desinfetante e<<strong>br</strong> />

outra preparava-lhe uma vacina anti-tétano Havia sangue nas roupas de Jerry.<<strong>br</strong> />

- Ele me bateu, Srta. Fellowes - gritou Jerry, <strong>com</strong> raiva. - Ele me bateu.<<strong>br</strong> />

Mas a Srta. Fellowes sequer chegou a olhá-o.<<strong>br</strong> />

Ela correu para a casa de bonecas. Atrapalhou-se <strong>com</strong> a porta <strong>do</strong> banheiro. Levou<<strong>br</strong> />

uma eternidade para conseguir a<strong>br</strong>i-a e achar o menino assusta<strong>do</strong>, num canto.<<strong>br</strong> />

- Não me chicoteie, senhorita Fellowes - sussurrou. Seus olhos estavam vermelhos.<<strong>br</strong> />

Os lábios tremiam. - Não tive a intenção de fazer isso.<<strong>br</strong> />

- Oh, Timmie, que história é essa de chicotear?!... - Ela puxou-o contra si e o a<strong>br</strong>açou<<strong>br</strong> />

desajeitadamente.


- Ela disse, <strong>com</strong> um longo chicote. Ela disse que você ia me bater e me bater.<<strong>br</strong> />

- Você não vai apanhar. Ela disse isso porque é má. Mas o que aconteceu? O que<<strong>br</strong> />

aconteceu?<<strong>br</strong> />

- Ele me chamou de menino-macaco. Ele disse que eu não era um garoto de verdade.<<strong>br</strong> />

Ele disse que eu era um animal. - Timmie desmanchou-se em lágrimas. - Ele<<strong>br</strong> />

disse que nunca mais ia <strong>br</strong>incar <strong>com</strong> um macaco. Eu disse que não sou um macaco,<<strong>br</strong> />

que não sou um macaco. Ele disse que eu era to<strong>do</strong> esquisito. Ele disse que eu era<<strong>br</strong> />

podre de feio. Ele não parou de dizer isso e mordi ele.<<strong>br</strong> />

Agora os <strong>do</strong>is estavam choran<strong>do</strong>. A Srta. Fellowes soluçou:<<strong>br</strong> />

- Mas isso não é verdade. Você sabe disso, Timmie. Sabe disso muito bem. Você é<<strong>br</strong> />

um garoto de verdade. Você é um garoto muito bonzinho, é o melhor garoto <strong>do</strong><<strong>br</strong> />

mun<strong>do</strong>. E ninguém, ninguém jamais vai me separar de você.<<strong>br</strong> />

Era fácil tomar uma decisão agora. Era fácil saber o que fazer. Apenas tinha que<<strong>br</strong> />

agir rapidamente. Hoskins não esperaria muito, <strong>com</strong> seu próprio filho machuca<strong>do</strong>...<<strong>br</strong> />

Não, isso teria que ser feito esta noite, esta noite, enquanto a maioria <strong>do</strong> pessoal<<strong>br</strong> />

<strong>do</strong>rmia e o restante estava ine<strong>br</strong>ia<strong>do</strong> pelo sucesso <strong>do</strong> Projeto Idade Média.<<strong>br</strong> />

Seria uma hora estranha para que ela retornasse, mas não seria a primeira vez<<strong>br</strong> />

que entraria tão tarde. O guarda a conhecia bem e não sonharia em interrogá-a. Não<<strong>br</strong> />

achariam nada demais que estivesse carregan<strong>do</strong> uma mala. Ela ensaiou a frase inexpressiva<<strong>br</strong> />

("Jogos para o garoto") e o calmo sorriso.<<strong>br</strong> />

Por que ele não acreditaria nisso?<<strong>br</strong> />

Ele acreditou. Quan<strong>do</strong> ela entrou na casa de boneca novamente, Timmie ainda estava<<strong>br</strong> />

acorda<strong>do</strong>. Ela tentou desesperadamente se manter normal para evitar assustáo.<<strong>br</strong> />

Falou so<strong>br</strong>e seus sonhos <strong>com</strong> ele e ouviu-o perguntar melancolicamente por Jerry.<<strong>br</strong> />

Poucas pessoas poderiam vê-a em seguida, ninguém perguntaria so<strong>br</strong>e o pacote<<strong>br</strong> />

que estaria carregan<strong>do</strong>. Timmie estaria bem quieto e, então, seria um fait ac<strong>com</strong>pli.<<strong>br</strong> />

Seria feito, não adiantaria tentar impedi-a. Eles tinham que deixá-a existir. Eles tinham<<strong>br</strong> />

que deixá-os existir.<<strong>br</strong> />

Ela a<strong>br</strong>iu a mala, tirou o so<strong>br</strong>etu<strong>do</strong>, a capa de lã, <strong>com</strong> protetor de ouvi<strong>do</strong> e o resto.<<strong>br</strong> />

Timmie se sentou, <strong>com</strong>eçan<strong>do</strong> a ficar alarma<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Por que você está colocan<strong>do</strong> essas roupas todas em mim, senhorita Fellowes?<<strong>br</strong> />

- Estou in<strong>do</strong> levá-o para o la<strong>do</strong> de fora - disse ela. - Para onde seus sonhos estão.<<strong>br</strong> />

- Meus sonhos? - Seu rosto contorceu-se de desejo, embora ainda estivesse <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

me<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Você não terá me<strong>do</strong>. Você estará <strong>com</strong>igo. Você não terá me<strong>do</strong> se estiver <strong>com</strong>igo,<<strong>br</strong> />

não é, Timmie?<<strong>br</strong> />

- Não, senhorita Fellowes. - Ele enterrou a cabeça deformada ao la<strong>do</strong> dela, sob os<<strong>br</strong> />

seus <strong>br</strong>aços. Ela podia sentir o pequeno coração acelera<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

Era meia-noite e ela o trouxe para os seus <strong>br</strong>aços. Desconectou o alarme e a<strong>br</strong>iu a<<strong>br</strong> />

porta silenciosamente.<<strong>br</strong> />

E gritou, pois, encaran<strong>do</strong>-a <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da porta, estava Hoskins.<<strong>br</strong> />

Havia <strong>do</strong>is homens ao seu la<strong>do</strong> e ele a observava, tão surpreso quanto ela.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes se recuperou primeiro e fez uma rápida tentativa de empurrá-o;<<strong>br</strong> />

mas, mesmo <strong>com</strong> a pequena desvantagem, ele ainda teve tempo de agir. Pegou-a<<strong>br</strong> />

rispidamente e jogou-a contra uma cômoda. Acenou para que os homens entrassem<<strong>br</strong> />

e ficou à sua frente, bloquean<strong>do</strong> a porta.<<strong>br</strong> />

- Não esperava por isso. Você está louca?


Ela virou os om<strong>br</strong>os de mo<strong>do</strong> que eles, e não Timmie, batessem na cômoda. Disse,<<strong>br</strong> />

num tom de súplica:<<strong>br</strong> />

- Que mal pode haver se eu levá-o? Não pode colocar uma vida humana acima de<<strong>br</strong> />

uma mera perda de energia?<<strong>br</strong> />

Com firmeza, ele arrancou Timmie <strong>do</strong>s <strong>br</strong>aços dela.<<strong>br</strong> />

- Uma perda de energia desse grau significaria milhões de dólares <strong>do</strong>s patrocina<strong>do</strong>res<<strong>br</strong> />

joga<strong>do</strong>s fora. Seria um terrível retrocesso para Stasis. Isso seria uma péssima<<strong>br</strong> />

publicidade para nós. Imaginem, uma enfermeira destruin<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> por causa de um<<strong>br</strong> />

menino-macaco.<<strong>br</strong> />

- Menino-macaco? - disse a Srta. Fellowes, numa fúria incontida.<<strong>br</strong> />

- É assim que os repórteres o tratariam - disse Hoskins. Um <strong>do</strong>s homens apareceu<<strong>br</strong> />

nesse momento <strong>com</strong> uma corda de náilon, e <strong>com</strong>eçou a encaixá-a em argolas situadas<<strong>br</strong> />

ao longo da parte superior da parede.<<strong>br</strong> />

A Srta. Fellowes se lem<strong>br</strong>ou da corda que havia <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da sala em que estava<<strong>br</strong> />

a pedra <strong>do</strong> professor Ademewski, que, depois que foi puxada por Hoskins, voltou<<strong>br</strong> />

para o passa<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Não - gritou ela.<<strong>br</strong> />

Mas Hoskins colocou Timmie no chão e tirou o seu so<strong>br</strong>etu<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>samente.<<strong>br</strong> />

- Você fica aqui, Timmie. Você irá lá para fora num momento. Tu<strong>do</strong> bem?<<strong>br</strong> />

Timmie, páli<strong>do</strong> e mu<strong>do</strong>, concor<strong>do</strong>u <strong>com</strong> um movimento de cabeça.<<strong>br</strong> />

Ele a conduziu para o la<strong>do</strong> de fora da casa de bonecas, empurran<strong>do</strong>-a pelas costas.<<strong>br</strong> />

Naquele momento, não conseguiu opor nenhuma resistência. Entorpecida, ela<<strong>br</strong> />

percebeu o puxa<strong>do</strong>r sen<strong>do</strong> ajusta<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da casa de bonecas.<<strong>br</strong> />

- Sinto muito, Srta. Fellowes - disse Hoskins. - Eu queria poupá-a desse sofrimento.<<strong>br</strong> />

Planejei agir durante a noite, para que você só soubesse quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> estivesse<<strong>br</strong> />

acaba<strong>do</strong>. Ela sussurrou, exausta:<<strong>br</strong> />

- Só porque seu filho se machucou. Só porque Timmie reagiu às provocações dele.<<strong>br</strong> />

- Não foi por isso, pode acreditar. Sei que a culpa da <strong>br</strong>iga de hoje foi de Jerry. Mas<<strong>br</strong> />

a história vazou. E não era para menos, <strong>com</strong> toda a imprensa nos rodean<strong>do</strong> no dia<<strong>br</strong> />

mais importante da história <strong>do</strong> laboratório. Não posso correr o risco de ver uma história<<strong>br</strong> />

distorcida nos jornais, desvian<strong>do</strong> a atenção <strong>do</strong> Projeto Idade Média, <strong>com</strong> casos<<strong>br</strong> />

de negligência e <strong>com</strong>o dizem por aí, selvagens de Neanderthal. De qualquer maneira,<<strong>br</strong> />

Timmie teria que partir mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde.<<strong>br</strong> />

- Não é <strong>com</strong>o mandar uma pedra de volta. Você vai matar um ser humano.<<strong>br</strong> />

- Não é bem isso. Ele não sofrerá nada. Ele simplesmente será um menino Neanderthal<<strong>br</strong> />

num mun<strong>do</strong> Neanderthal. Não será mais um prisioneiro alienígena. Será a<<strong>br</strong> />

sua oportunidade para viver livremente.<<strong>br</strong> />

- Que oportunidade? Ele só tem sete anos e está acostuma<strong>do</strong> a ser protegi<strong>do</strong>, alimenta<strong>do</strong>,<<strong>br</strong> />

vesti<strong>do</strong> e a<strong>br</strong>iga<strong>do</strong>. Lá estará sozinho. Sua tribo pode não estar mais no lugar<<strong>br</strong> />

em que foi captura<strong>do</strong>, agora que se passaram quatro anos. E mesmo que estivesse,<<strong>br</strong> />

ele não seria reconheci<strong>do</strong>. Terá que cuidar de si mesmo. Como ele vai se virar?<<strong>br</strong> />

Hoskins balançou a cabeça, desanima<strong>do</strong>.<<strong>br</strong> />

- Por Deus, você acha que não pensamos nisso? Você acha que teríamos trazi<strong>do</strong> a<<strong>br</strong> />

criança se não tivéssemos certeza de que poderíamos mandá-a de volta para seu<<strong>br</strong> />

tempo?<<strong>br</strong> />

Só mantivemos Timmie esse tempo to<strong>do</strong> por causa de nossa relutância em mandáo<<strong>br</strong> />

de volta para o passa<strong>do</strong>. Não podemos esperar mais. Timmie está atrapalhan<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

nosso progresso. Timmie pode <strong>com</strong>prometer nossa reputação, num momento em<<strong>br</strong> />

que estamos no limiar de novas conquistas. Sinto muito, Srta. Fellowes, mas não po-


demos deixar que ele seja um obstáculo para nós. Não podemos. Não podemos. Sinto<<strong>br</strong> />

muito, Srta. Fellowes.<<strong>br</strong> />

- Está bem - disse ela, tristemente. - Deixe-me despedir dele. Dê-me cinco minutos<<strong>br</strong> />

para me despedir dele. Respeite ao menos esse direito.<<strong>br</strong> />

- Vá em frente - disse Hoskins, hesitante.<<strong>br</strong> />

Timmie correu para ela. Era a última vez que corria para ela, que, pela última vez,<<strong>br</strong> />

apertou-o em seus <strong>br</strong>aços.<<strong>br</strong> />

Por um momento, a<strong>br</strong>açou-o cegamente. Puxou uma cadeira <strong>com</strong> o dedão <strong>do</strong> pé,<<strong>br</strong> />

arrastou-a até a parede e se sentou.<<strong>br</strong> />

- Não tenha me<strong>do</strong>, Timmie.<<strong>br</strong> />

- Com você aqui, eu não tenho me<strong>do</strong>, Srta. Fellowes. O homem lá fora está zanga<strong>do</strong><<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>igo?<<strong>br</strong> />

- Não, ele não está. Ele apenas não nos entende. Timmie, você sabe o que é uma<<strong>br</strong> />

mãe?<<strong>br</strong> />

- Como a mãe <strong>do</strong> Jerry?<<strong>br</strong> />

- Ele falou a respeito de sua mãe?<<strong>br</strong> />

- Algumas vezes. Acho que uma mãe deve ser uma dama, que cuida muito de nós,<<strong>br</strong> />

é legal e só faz coisas boas.<<strong>br</strong> />

- É isso mesmo. Você quer uma mãe, Timmie?<<strong>br</strong> />

Timmie afastou a cabeça dela para poder olhar seu rosto. Carinhosamente, colocou<<strong>br</strong> />

as mãos nas faces e nos cabelos da Srta. Fellowes e afagou-os <strong>com</strong>o há muito,<<strong>br</strong> />

muito tempo, ela o acariciava.<<strong>br</strong> />

- Você não é minha mãe? - disse ele.<<strong>br</strong> />

- Oh, Timmie.<<strong>br</strong> />

- Você está zangada porque perguntei?<<strong>br</strong> />

- Não, claro que não.<<strong>br</strong> />

- Porque eu sei que o seu nome é Srta. Fellowes, mas... às vezes penso em você<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o minha mãe. Tem problema?<<strong>br</strong> />

- Não, não tem. Não vou me separar de você e não deixarei que nada lhe aconteça.<<strong>br</strong> />

Vou cuidar de você para sempre. Me chame de "mamãe", para que possa ouvi-o.<<strong>br</strong> />

- Mamãe - disse Timmie, <strong>com</strong> alegria, encostan<strong>do</strong> seu rosto no dela. Ela levantou<<strong>br</strong> />

e, ainda seguran<strong>do</strong>-o, subiu na cadeira. O grito súbito que <strong>com</strong>eçou a ecoar lá fora<<strong>br</strong> />

passou despercebi<strong>do</strong> e, <strong>com</strong> a mão livre, jogou to<strong>do</strong> o seu peso so<strong>br</strong>e a corda suspensa<<strong>br</strong> />

pelas duas argolas.<<strong>br</strong> />

E Stasis foi perfura<strong>do</strong>, deixan<strong>do</strong> a sala vazia.


Vale a pena ler, vejam! («I Just Make Them Up, See!»). Copyright © 1957 by Fantasy House,<<strong>br</strong> />

Inc. Originalmente publica<strong>do</strong> en Fantasy and Science Fiction, fevereiro de 1958.<<strong>br</strong> />

Profissão («Profession»). Copyright © 1957 by Street and Smith Publications, Inc.<<strong>br</strong> />

Originalmente publica<strong>do</strong> em Astounding Science Fiction, julho de 1957.<<strong>br</strong> />

A Sensação de Poder («The Feeling of Power»). Copyright © 1957 by Quinn Publishing Co.,<<strong>br</strong> />

Inc. Originalmente publica<strong>do</strong> em //: Worlds of Science Fiction, fevereiro de 1958.<<strong>br</strong> />

A noite Moribunda («The Dying Night»). Copyright © 1956 by Fantasy House, Inc.<<strong>br</strong> />

Originalmente publica<strong>do</strong> em Fantasy and Science Fiction, julho de 1956.<<strong>br</strong> />

Estou em Porto Marte sem Hilda («I’m in Marsport without Hilda»). Copyright © 1957 by<<strong>br</strong> />

Fantasy House, Inc. Originalmente publica<strong>do</strong> em Venture Science Fiction, <strong>nove</strong>m<strong>br</strong>o de 1957.<<strong>br</strong> />

Os Abutres Bon<strong>do</strong>sos («The Gentle Vultures»). Copyright © 1957 by Headline Publications,<<strong>br</strong> />

Inc. Originalmente publica<strong>do</strong> em Super-Science Fiction, dezem<strong>br</strong>o de 1957.<<strong>br</strong> />

To<strong>do</strong>s os Problemas <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> («All the Troubles of the World»). Copyright © 1958 by<<strong>br</strong> />

Headline Publications, Inc. Originalmente publica<strong>do</strong> em Super-Science Fiction, a<strong>br</strong>il de 1958.<<strong>br</strong> />

Meu Nome se escreve <strong>com</strong> «S» («Spell My Name with an S»). Copyright © 1958 by<<strong>br</strong> />

Ballantine Magazine, Inc. Originalmente publica<strong>do</strong> em Star Science Fiction, janeiro de 1958,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> o título: S, as in Zebatinsky.<<strong>br</strong> />

A Última Pergunta («The Last Question»). Copyright © 1956 by Columbia Publications, Inc.<<strong>br</strong> />

Originalmente publica<strong>do</strong> em Science Fiction Quarterly, <strong>nove</strong>m<strong>br</strong>o de 1956.<<strong>br</strong> />

O Garotinho Feio («The Ugly Little Boy»). Copyright © 1958 by Galaxy Publishing<<strong>br</strong> />

Corporation. Originalmente publica<strong>do</strong> em Galaxy Magazine, setem<strong>br</strong>o de 1958, <strong>com</strong> o título:<<strong>br</strong> />

Lastborn.

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