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Publicação da Associação Mineira - AMP

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A partir <strong>da</strong> crise <strong>da</strong> cosmologia<br />

medieval destroem-se os<br />

substratos pagãos que persistem<br />

por trás do novo ideário cristão<br />

e deses-truturam-se as formas<br />

antigas de expressão <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de<br />

imaginária. Acentua-se na<br />

cena religiosa a distância entre o<br />

bem e o mal e rejeitam-se agora<br />

os dois mecanismos simbólicos<br />

centrais na experiência antiga<br />

do homem com o imaginário: o<br />

sacrifício e o êxtase. As emoções<br />

desviantes do homem não podem<br />

mais encontrar, no abrigo religioso,<br />

a legitimi<strong>da</strong>de necessária para<br />

serem nomea<strong>da</strong>s.<br />

A questão <strong>da</strong> saúde mental<br />

é maior que os interesses de<br />

qualquer campo especializado do<br />

conhecimento ou mesmo campo<br />

profissional.<br />

A loucura diz respeito à própria<br />

cultura humana. É dela constitutiva<br />

e dela cui<strong>da</strong>r é a grande<br />

loucura <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de moderna.<br />

Nós psiquiatras amamos muito<br />

nossos pacientes, pois amar é prometer<br />

o que nunca será cumprido.<br />

Todos nós, profissionais <strong>da</strong> saúde<br />

mental, cui<strong>da</strong>dores, familiares e<br />

os próprios pacientes, amamos<br />

além do nosso bom senso.<br />

Ao fazermos o texto <strong>da</strong> Lei <strong>da</strong><br />

Saúde Mental (Paulo Delgado),<br />

no Brasil, tínhamos certeza que<br />

estávamos legislando em causa<br />

própria. Afinal, um louco (doente<br />

mental), de certa forma, é algo de<br />

nós pego em flagrante.<br />

Se pegarmos um giz e fizermos<br />

um círculo nele poderíamos<br />

ficar presos. E se o acariciarmos<br />

poderíamos torná-lo vicioso. Dessa<br />

forma, algo que construímos<br />

nos aprisiona e nos afeiçoa. Para<br />

O Semblante <strong>da</strong> Loucura<br />

sair do círculo de giz e do círculo<br />

vicioso é necessário romper o<br />

círculo de crenças e valores que<br />

tanto desenhamos e afagamos.<br />

Fazer uma descolonização de nós<br />

mesmos. Compreender a loucura<br />

como produtora de valores, tanto<br />

de serviços, como de bens materiais<br />

e simbólicos.<br />

Do que nos envergonhamos;<br />

muito de nossas loucuras, vem<br />

de sermos brasileiros. As nossas<br />

máscaras constituem-se na insistência<br />

de nossa incompetência coletiva,<br />

nas oportuni<strong>da</strong>des perdi<strong>da</strong>s<br />

que remontam às nossas origens<br />

históricas, de povo mestiço e de<br />

legitimi<strong>da</strong>de duvidosa.<br />

A identi<strong>da</strong>de brasileira é configura<strong>da</strong><br />

pela adoção <strong>da</strong> imagem de<br />

Macunaíma, de Mário de Andrade,<br />

como legítimo representante do<br />

modo de ser brasileiro, o herói sem<br />

nenhum caráter, no qual a tipici<strong>da</strong>de<br />

é a ausência de tipi-ci<strong>da</strong>de.<br />

As marchas e contra-marchas <strong>da</strong>s<br />

personali<strong>da</strong>des públicas justificam<br />

essa imagem.<br />

Para entender o Brasil, é preciso<br />

colocá-lo em seu contexto, a<br />

América Latina, com a qual não<br />

se identifica integralmente, mas<br />

participa <strong>da</strong>quela mesma comuni<strong>da</strong>de<br />

de origem ibérica, com<br />

traços religiosos comuns, além de<br />

estilos políticos e de insucessos<br />

equivalentes no árduo caminho<br />

<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de política, ética e<br />

econômica.<br />

Assumir a condição mestiça é<br />

nosso imperativo de autentici<strong>da</strong>de<br />

e a condição para a discussão de<br />

nossos problemas coletivos.<br />

Em tempos passados, viajantes<br />

aportavam ao Brasil e, passado<br />

um tempo, escreviam relatos<br />

João Ferreira <strong>da</strong> Silva Filho<br />

que muito alimentaram o imaginário<br />

dos europeus com o nosso<br />

exotismo. Muitas mentiras, com<br />

sabor de aventuras, tornaramse<br />

ver<strong>da</strong>deiras, como autênticas<br />

premonições sobre a reali<strong>da</strong>de<br />

futura (agora presente).<br />

O conhecido Hans Staden,<br />

que não se passava por doutor, e<br />

assim era apenas um aventureiro<br />

sem saber a demonstrar, foi feito<br />

prisioneiro pelos tupinambás, o<br />

que lhe rendeu um livro chamado<br />

de História Verídica. Foi um<br />

best-seller de seu tempo e até<br />

inspirou muitos dos autores do<br />

movimento <strong>da</strong> antropofagia. O<br />

tuxaua Cunhambebe o atiçava e<br />

os bugres diziam: aí vai nossa<br />

comi<strong>da</strong> pulando!<br />

Já o doutor Blumenau, ao começar<br />

sua colonização no sul do país,<br />

ficou surpreso com a “honesti<strong>da</strong>de”<br />

peculiar <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des. Ohne<br />

Geld zu spenden, hier is garnichts<br />

zu erlangen, und man muss die<br />

Leute von oben bis unten kaufen.<br />

Como não me agra<strong>da</strong> a bajulação<br />

pelos que falam javanês, aí vai uma<br />

possível tradução: sem dinheiro<br />

para <strong>da</strong>r, na<strong>da</strong> se consegue aqui,<br />

e a gente é obriga<strong>da</strong> a comprar<br />

todo mundo, de cima abaixo. Uma<br />

corrupção ativa, inclusive do austero<br />

doutor.<br />

Esse fenômeno, no campo <strong>da</strong><br />

saúde mental brasileiro, faz com<br />

que muitas vezes percamos o<br />

senso crítico e nos esqueçamos<br />

de rir de nós mesmos, como se a<br />

própria psiquiatria não nos tivesse<br />

ensinado a rir de muitas ver<strong>da</strong>des,<br />

ou já não tivesse produzido muitas<br />

ridículas ver<strong>da</strong>des.<br />

Há, nos dias que passam, uma<br />

rebiologização de temas e discus-<br />

sões anteriormente ligados à luta<br />

política. Talvez tenha se esgotado<br />

a concepção do humano anuncia<strong>da</strong><br />

no século XVI: Comigo me desavim,/<br />

No estremo som do perigo;/<br />

Não posso aturar comigo/ Nem<br />

posso fugir de mim. (Francisco<br />

de Sá de Miran<strong>da</strong>. Cantiga VII).<br />

É como o amarelo do Brasil:<br />

brasileiro tem vergonha <strong>da</strong> glória.<br />

Chora pelo dever cumprido,<br />

nosso bronze “vale ouro”; prata”<br />

vale ouro”; chegar lá “vale ouro”.<br />

Só briga com quem não conhece,<br />

porque se conhecer, vira amigo.<br />

Ganhar, para brasileiro, é difícil,<br />

porque os outros, muitas vezes,<br />

são mesmo melhores, mas, também,<br />

porque os outros, muitas<br />

vezes, são o que queremos ser.<br />

Assim, derrotá-los é derrotar o<br />

nosso desejo, é derrotar aquilo<br />

que nos permite nos diferenciar,<br />

na fala, do nosso outro, o povo<br />

comum e nos coloca, desse modo,<br />

no poder. Afinal uma terra tão lin<strong>da</strong>,<br />

só teria a estragá-la aqueles<br />

que a habitam. Vencer, muitas<br />

vezes, os europeus, ou seus replicantes<br />

australianos, canadenses,<br />

americanos é colocar no podium<br />

o Brasil dos brasileiros. Por isso<br />

os nossos iatistas vencem pelos<br />

seus sobrenomes (Scheidt, Grael<br />

etc). Os outros amarelam, pelos<br />

seus nomes. Têm o ouro como<br />

objeto deslocado de desejo e não<br />

como meio de afirmação de uma<br />

pretensa superiori<strong>da</strong>de nacional.<br />

Nós, brasileiros, envergonha<strong>da</strong>mente,<br />

já somos internacionais<br />

e até parecemos loucos.<br />

Decano do Centro de Ciências <strong>da</strong> Saúde – CCS/<br />

UFRJ<br />

PÁGINA 21

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