Publicação da Associação Mineira - AMP
Publicação da Associação Mineira - AMP
Publicação da Associação Mineira - AMP
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Existe uma pia<strong>da</strong> antiga, corrente nas déca<strong>da</strong>s<br />
de 60-70 e que se baseava no sucesso<br />
dos ansiolíticos entre todos os especialistas<br />
médicos, para-médicos, militares, boticários<br />
e papagaios-de-vizinhas: quando não<br />
se sabe o que ou que fazer, encaminha-se<br />
o queixoso para o psiquiatra. O psiquiatra<br />
sempre arranja um diagnóstico e estipula<br />
um tratamento, seja orgânico, medicamentoso<br />
ou ain<strong>da</strong> uma análise interminável que<br />
deixava pacientes, familiares, pe<strong>da</strong>gogos<br />
e profissionais felicíssimos. O importante<br />
não era deixar de fazer pipi na cama, mas<br />
sim se saber por quê o lençol amanhece<br />
molhado e, na falta do mordomo, a mãe<br />
é sempre culpa<strong>da</strong>... É a época de uma<br />
proliferação diagnóstica altamente criativa:<br />
pitís, distúrbios neuro-vegetativos,<br />
distonia vago-simpática, coração irritável e<br />
colón idem, agressivi<strong>da</strong>de infanto-juvenil,<br />
síndromes de desa<strong>da</strong>ptação, ansie<strong>da</strong>de<br />
diurna, ansie<strong>da</strong>de produtiva, ansie<strong>da</strong>de<br />
neurótica, atenção flutuante e tantas outras<br />
coisas como gastura, úlcera de estresse,<br />
espinhela caí<strong>da</strong>, encostos e possessões.<br />
Dizem as más línguas, destas que se<br />
o dono morder inadverti<strong>da</strong>mente morre<br />
envenenado, que no rastro de sucesso do<br />
meprobamato e dos benzodiazepínicos,<br />
diversos compostos foram sintetizados e<br />
outros de síntese anterior passaram a ser<br />
re-avaliados: causavam uma sensação vaga<br />
de bem-estar e na<strong>da</strong> mais. A indústria farmacêutica<br />
teria chegado à conclusão que<br />
se indicação não existisse, não fazia mal,<br />
A PSIQUIATRIA INVENTARIA UMA DOENÇA<br />
onde o novo milagre pudesse ser utilizado.<br />
A racional subjacente era que a psiquiatria<br />
de na<strong>da</strong> sabia, os pacientes eram todos<br />
sugestionáveis e um remédio, principalmente<br />
se é amargo, dá “dor no fígado”<br />
ou causa náusea é sempre eficaz e ain<strong>da</strong><br />
aju<strong>da</strong> a aumentar a ven<strong>da</strong> de “hépatoprotetores”.<br />
A situação era tão cômica que<br />
substâncias capazes de causar dependência<br />
eram vendi<strong>da</strong>s livremente sob o rótulo de<br />
antidistônicos: o Brasil inteiro sofria de<br />
“distonia vago-simpatica”, misturava-se<br />
ao ansiolítico ou ataráxico um bloqueador<br />
muscarínico, derivado de atropina e um<br />
estimulante alfa-adrenérgico e tudo estava<br />
resolvido. Houve mesmo um colunista<br />
social que chegou a propor se colocasse<br />
benzodiazepínico na água trata<strong>da</strong> que<br />
chegava às residências que recebiam o<br />
precioso líquido...<br />
Exageros perdoados, fica o fato: quanto<br />
maior a confusão diagnóstica, menor a<br />
quali<strong>da</strong>de do tratamento e as possibili<strong>da</strong>-<br />
des de recuperação: curar-se de uma só<br />
doença já é tão difícil, o que se dirá para<br />
se safar de três...<br />
Parece que estamos revivendo esta<br />
situação pirandelliana: para ca<strong>da</strong> novo<br />
medicamento, procura-se uma patologia<br />
estalando de nova; se o efeito antidepressor<br />
é fraco por quê não empregar a<br />
substância nas distonias, digo distimias...<br />
Se se emprega o recurso <strong>da</strong>s comorbi<strong>da</strong>des,<br />
coincidentemente multiplicam-se as<br />
possibili<strong>da</strong>des de indicações terapêuticas.<br />
Resta saber-se a quem serve esta pulverização<br />
diagnóstica. Ao especialista, com<br />
certeza não representa auxílio; antes o<br />
contrário; ao paciente também não – uma<br />
doença já é calvário suficiente, talvez sirva<br />
para contentar hipocondríacos de plantão.<br />
Ao lado disto, cria-se uma dificul<strong>da</strong>de<br />
de comunicação com outros especialistas,<br />
médicos ou não: hoje em dia o que mais<br />
se vê é a banalização dos diagnósticos<br />
de depressão, pânico ou fobias; todos os<br />
colunáveis, os pretendentes a um passeio<br />
na ilha de Caras ou de Coroas, têm uma<br />
ou mais destas condições.<br />
A “babelização” taxonômica prejudica<br />
o ensino <strong>da</strong> psiquiatria: ao invés de se<br />
estu<strong>da</strong>r psicopatologia, semiologia psiquiátrica<br />
ou combinações terapêuticas, o<br />
pobre residente se vê lendo as instruções<br />
de emprego, o modo de usar do DSM-IV-R<br />
ou <strong>da</strong> CID-10 e, a partir deste mergulho<br />
na sapiência, passa a juntar coincidências<br />
com mor bi<strong>da</strong>des, “psicopatologiza”<br />
o cotidiano e nos transforma a todos em<br />
transtornados.<br />
Resta a pergunta pertinente e que não<br />
quer se calar: a quem serve esta complicação?<br />
Aos psico-planejadores que nunca viram<br />
um paciente e vivem nos ditando regras<br />
sobre como diagnosticá-lo e a melhor maneira<br />
de tratá-lo?<br />
Aos senhores-professores-doutores que<br />
só assim conseguem fazer diagnósticos<br />
geniais?<br />
Aos especialistas de ponta, que estão<br />
na linha de frente e mal e porcamente têm<br />
tempo para colher <strong>da</strong>dos anamnésticos e<br />
se sentem seguros rabiscando uma sigla<br />
alfa-numérica?<br />
Aos sintetizadores de medicamentos<br />
que necessitam prová-los no uso diário?<br />
Aos fazedores de estatísticas oficiais<br />
que precisam mostrar serviço aos órgãos<br />
competentes?<br />
A este respeito e “a nível de” especulação<br />
só me sobra perplexa ignorância.<br />
Psiquiatra<br />
PÁGINA 23