Edição completa - Revista de Ciências Sociais
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entregou-se inteiramente àquela pesquisa, residindo<br />
em Almofala, por dois anos e meio. Nas suas palavras,<br />
“lá alugamos uma casa, colocamos os móveis<br />
necessários, contratamos uma cozinheira e tentamos<br />
adaptar-nos o mais possível à vida local. Fizemos<br />
amiza<strong>de</strong> bastante estreita com muitos informantes,<br />
ganhando-lhes em breve a confi ança a tal ponto <strong>de</strong><br />
nos confessarem confi dências as mais íntimas (...).<br />
Partipávamos <strong>de</strong> todos os acontecimentos freqüentes<br />
ou mais raros da comunida<strong>de</strong>...” (p. 8).<br />
A leitura <strong>de</strong>sse trabalho po<strong>de</strong> nos conduzir a<br />
vários caminhos. Ou seja, além daquilo que se constitui<br />
objeto <strong>de</strong> análise – a tecnologia e as relações <strong>de</strong><br />
produção nos universos da pesca e da agricultura<br />
em Almofala –, encontramos ali janelas abertas<br />
através das quais po<strong>de</strong>mos correr o olhar por outras<br />
paisagens. Refi ro-me, por exemplo, a uma espécie <strong>de</strong><br />
retrospectiva, no tempo, da trajetória <strong>de</strong> abordagens<br />
antropológicas, tanto no que concerne ao uso <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />
conceitos quanto em termos <strong>de</strong> técnicas e<br />
recursos metodológicos adotados. Refi ro-me também<br />
ao registro cuidadoso da experiência <strong>de</strong> campo vivida<br />
pelo autor, explicitando as suas incertezas e limitações,<br />
no alvorecer da sua carreira <strong>de</strong> pesquisador. O meu<br />
testemunho é <strong>de</strong> que a postura <strong>de</strong> interlocutor-aprendiz<br />
foi uma constante na sua vida <strong>de</strong> magistério.<br />
A dissertação refl ete, ainda, um pouco daquilo<br />
que se esboçava como uma espécie <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo ou o sonho<br />
<strong>de</strong> ensino e pesquisa, i<strong>de</strong>alizado pelos pioneiros,<br />
entre os quais se inclui Luís <strong>de</strong> Gonzaga, responsáveis<br />
pela implantação do curso <strong>de</strong> <strong>Ciências</strong> <strong>Sociais</strong> na<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Ceará.<br />
Falando mais diretamente do conteúdo <strong>de</strong>sse<br />
trabalho, a sua leitura nos possibilita refl etir, a partir<br />
<strong>de</strong> uma experiência localizada, sobre: o contexto<br />
histórico e a caracterização <strong>de</strong> uma economia camponesa<br />
fundada na agricultura <strong>de</strong> subsistência e na<br />
pesca artesanal; e processos <strong>de</strong> diferenciação interna<br />
que engendram o movimento articulado no qual<br />
têm realce situações <strong>de</strong> classe e estratos sociais numa<br />
perspectiva relacional. Trata-se <strong>de</strong> uma contribuição<br />
para aqueles que buscam compreen<strong>de</strong>r, em particular,<br />
transformações nas relações <strong>de</strong> produção no<br />
campo, no Ceará. A<strong>de</strong>mais, o autor nos ajuda a ver<br />
com clareza aspectos da dinâmica da socieda<strong>de</strong> e da<br />
cultura, por exemplo, na medida em que examina<br />
114 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS v. 39 n. 1 2008<br />
jogos <strong>de</strong> interesses entre categorias sociais integrantes<br />
<strong>de</strong> tais estruturas e nos fala da produção / reprodução<br />
<strong>de</strong> representações e valores culturais que permeiam<br />
relações, horizontais e verticais, entre trabalhadores e<br />
entre proprietários e trabalhadores. Concretamente,<br />
me refi ro à análise, feita por Men<strong>de</strong>s Chaves, das<br />
relações entre pescadores (“vaqueiros”, “ajudantes”,<br />
“canoeiros”, etc.) e relações entre estes e os donos do<br />
“chão do mar”, das canoas e <strong>de</strong> outros equipamentos<br />
<strong>de</strong> pesca; e, ainda, entre camponeses e entre estes e<br />
os donos da terra.<br />
Abordando a pesca <strong>de</strong> curral que, conforme ele<br />
próprio ressalta, à época uma técnica já em <strong>de</strong>clínio,<br />
Luís <strong>de</strong> Gonzaga nos <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> presente precioso<br />
registro, em termos <strong>de</strong> memória e <strong>de</strong> uma reconstituição<br />
histórico-antropológica da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Almofala.<br />
Na <strong>de</strong>scrição da pesca <strong>de</strong> curral, o autor nos<br />
proporciona um belo passeio pelo litoral do Ceará,<br />
obviamente com permanência mais longa na praia <strong>de</strong><br />
Almofala. Aqui, a <strong>de</strong>scrição como que carrega o leitor<br />
mar a<strong>de</strong>ntro, para acompanhar todo o processo <strong>de</strong><br />
construção e montagem do curral, ocasião em que o<br />
mesmo po<strong>de</strong>rá testemunhar a divisão <strong>de</strong> tarefas entre<br />
os trabalhadores, a hierarquização ali instituída; compreen<strong>de</strong>r<br />
as diferentes formas <strong>de</strong> inserção e os diversos<br />
mecanismos <strong>de</strong> interação, expressos como confl ito,<br />
como cooperação e também como relações <strong>de</strong> mando<br />
e subordinação. Sempre atento nesta incursão o leitor<br />
perceberá, por exemplo, que, naquele contexto, a praia<br />
tem barra, a lua governa, tem força e maré, e a água<br />
do mar se mostra em carreiras. Apreen<strong>de</strong>ndo essas<br />
múltiplas linguagens, o leitor po<strong>de</strong>rá até integrar um<br />
mutirão que reúne diferentes categorias sociais para o<br />
“levante do curral” e, naquele instante da “rodada <strong>de</strong><br />
cachaça”, compreen<strong>de</strong>rá também a conotação festiva<br />
daquilo que, aos menos avisados, pareceria, pura e<br />
simplesmente, um extenuante trabalho.<br />
Prosseguindo neste passeio, para acompanhar<br />
a pesca <strong>de</strong> linha, o leitor po<strong>de</strong>rá permanecer relativamente<br />
próximo à praia, no “mar <strong>de</strong> terra”, ou se<br />
<strong>de</strong>slocar para o alto mar ou “mar <strong>de</strong> fora”, que se inicia<br />
na linha on<strong>de</strong> se per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista a terra. De qualquer<br />
modo, conduzido pelo autor, na observação da pesca<br />
<strong>de</strong> linha, obterá informações <strong>de</strong>talhadas acerca do<br />
complexo ‘embarcação’ e sobre todo um conjunto <strong>de</strong><br />
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ANOS<br />
Curso <strong>de</strong> <strong>Ciências</strong> <strong>Sociais</strong> - UFC<br />
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