Edição completa - Revista de Ciências Sociais
Edição completa - Revista de Ciências Sociais
Edição completa - Revista de Ciências Sociais
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
• a criação <strong>de</strong> um espaço público informal,<br />
<strong>de</strong>scontínuo, plural, no qual se elaborou e se<br />
difundiu uma “consciência do direito a ter<br />
direito”. Segundo Paoli e Telles, esse espaço<br />
público conforma os termos <strong>de</strong> uma experiência<br />
inédita na história brasileira, em que a<br />
cidadania é buscada como luta e conquista, e<br />
a reivindicação <strong>de</strong> direitos interpela a socieda<strong>de</strong>,<br />
como exigências <strong>de</strong> uma negociação<br />
possível, aberta ao reconhecimento dos interesses<br />
e das razões que dão plausibilida<strong>de</strong> às<br />
aspirações por um trabalho digno, por uma<br />
vida <strong>de</strong>cente, por uma socieda<strong>de</strong> justa;<br />
• a constituição <strong>de</strong> políticas culturais,<br />
postas<br />
em prática – com mais ou menos clareza e<br />
em maior ou menor extensão – pelos movimentos<br />
sociais, ressignificando noções,<br />
padrões e valores e instituindo o confl ito,<br />
como via <strong>de</strong>mocrática por excelência. Essas<br />
políticas culturais <strong>de</strong>mocratizantes subvertem<br />
“hierarquias simbólicas”, instituídas na<br />
cultura política dominante, constituindo<br />
um lugar <strong>de</strong> cidadão para atores coletivos da<br />
cena política <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização – moradores<br />
pobres, famílias sem teto, trabalhadores sem<br />
terra, mulheres, negros, índios, minorias discriminadas<br />
– que estavam fi xados em lugares<br />
subalternizados, entre uma trama <strong>de</strong>nsa <strong>de</strong><br />
discriminações e exclusões (PAOLI e TELLES,<br />
2000: 103-148).<br />
De fato, tais políticas viabilizam a constituição<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s das chamadas minorias culturais e<br />
étnicas, garantindo o alcance do po<strong>de</strong>r da fala e da<br />
expressão pública para estas “minorias silenciadas e<br />
tornadas invisíveis” pela cultura política dominante.<br />
Na cena pública brasileira, os movimentos sociais,<br />
em sua diversida<strong>de</strong>, criam e difun<strong>de</strong>m teias <strong>de</strong><br />
sentidos e signifi cados, impondo questões negadas e<br />
reprimidas ao longo da história; constituem, no cotidiano,<br />
a gramática <strong>de</strong>mocrática, quando intervêm<br />
em <strong>de</strong>bates políticos; tentam dar novos signifi cados<br />
às interpretações culturais dominantes ou <strong>de</strong>safi am<br />
práticas políticas estabelecidas. É inegável que as<br />
políticas culturais emancipatórias, dos movimentos<br />
sociais, se cruzam com práticas políticas autoritárias,<br />
24 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS v. 39 n. 1 2008<br />
exclu<strong>de</strong>ntes, hierarquizadas, arraigadas no imaginário<br />
social brasileiro, constituindo, assim, os termos <strong>de</strong><br />
uma disputa simbólica <strong>de</strong> valores e padrões. A rigor,<br />
as políticas culturais <strong>de</strong>mocratizantes <strong>de</strong>sestabilizam<br />
a cultura política dominante, efetivando um <strong>de</strong>salojamento<br />
<strong>de</strong>sta, fazendo-a enfrentar outras culturas e<br />
outras políticas (PAOLI e TELLES, 2000).<br />
Examinando-se, assim, a dinâmica da socieda<strong>de</strong>,<br />
visualiza-se um “patrimônio <strong>de</strong>mocrático” que consubstancia<br />
uma forma emancipatória a se confrontar<br />
com forças neoconservadoras <strong>de</strong> mercantilização da<br />
vida social e <strong>de</strong> seus valores neoliberais, numa “revolução<br />
cotidiana”. A isto acrescentamos um outro<br />
aspecto <strong>de</strong> peso, que vem possibilitando o confronto<br />
com a lógica <strong>de</strong> fi nanceirização do Estado ajustador:<br />
são as conquistas legais que viabilizam, no plano<br />
jurídico-institucional, um avanço na construção da<br />
cidadania nos (incertos) caminhos do Brasil atual.<br />
Neste campo, a referência maior, já aqui <strong>de</strong>stacada,<br />
é a Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, que incorpora<br />
uma agenda universalista <strong>de</strong> direitos e proteção social,<br />
traduzindo uma exigência <strong>de</strong> participação na gestão<br />
da “coisa pública”, acenando com as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
construção partilhada e negociada <strong>de</strong> uma legalida<strong>de</strong><br />
capaz <strong>de</strong> conciliar <strong>de</strong>mocracia e cidadania. E, a partir<br />
da “constituição cidadã”, têm-se, como conquista da<br />
luta <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados movimentos sociais, leis específi<br />
cas que apontam para um novo padrão <strong>de</strong> proteção<br />
social e <strong>de</strong> caráter mais universalista e igualitário:<br />
SUS / ECA / LOAS / Estatuto da cida<strong>de</strong> / Estatuto do<br />
idoso / legislação <strong>de</strong> proteção dos direitos das mulheres,<br />
com reformas no Código Penal e no Código<br />
Civil. Ressalte-se, ainda, que, por força das lutas do<br />
Movimento Negro, encontra-se no Congresso, para<br />
votação, o Estatuto da igualda<strong>de</strong> racial, consubstanciando<br />
uma subversão <strong>de</strong> hierarquias simbólicas, na<br />
tradicional cultura política brasileira.<br />
Este legado <strong>de</strong>mocrático – criação <strong>de</strong> espaço<br />
público; <strong>de</strong>sestabilização da cultura política dominante;<br />
aparato legal <strong>de</strong> proteção social – possibilita<br />
condições objetivas e condições subjetivas para que<br />
atores coletivos da socieda<strong>de</strong> civil, encarnados em<br />
movimentos sociais plurais, com diversida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rável<br />
<strong>de</strong> formatos, exerçam a política pela via do<br />
confl ito, lutando pela materialização <strong>de</strong> direitos em<br />
políticas públicas.<br />
<strong>Revista</strong> CIENCIAS SOCIAIS 39-1 ufc 2008.indd 24 16/10/2008 12:45:56