Prosa 1 - Academia Brasileira de Letras
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Massaud Moisés<br />
da não havia ido? E à resposta negativa <strong>de</strong> Nogueira, observa ela, exclamativamente:<br />
“– Que paciência!”, como que a iniciar o processo que a levou, instintiva<br />
ou calculadamente, ao encontro do leitor <strong>de</strong> Dumas. Este, por seu turno, interrompe<br />
a reconstituição do diálogo para nos informar acerca do modo como<br />
se apresentava a visita noturna: “Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas<br />
da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo<br />
magra, tinha um ar <strong>de</strong> visão romântica, não disparatada com o meu livro <strong>de</strong><br />
aventuras.” O pormenor já nos diz muito do caráter e do temperamento, e<br />
também das intenções, <strong>de</strong> Conceição. Se a brancura da vestimenta casa bem<br />
com a sua aparência <strong>de</strong> visão romântica, o <strong>de</strong>salinho na cintura é um indício<br />
muito claro, embora um tanto paradoxal, dos intuitos da personagem, e as<br />
“chinelinhas da alcova” completam a figura. Que vinha ela fazer ali, vestida<br />
daquele jeito, estando toda a família recolhida “à hora do costume”?<br />
Entre o modo como a figura da mulher se apresenta até a ação que, combinando<br />
com os trajes, aos poucos <strong>de</strong>ixa à mostra os anseios secretos <strong>de</strong> Conceição,–éumpasso,<br />
que a memória do narrador restabelece com niti<strong>de</strong>z, como<br />
se estivesse revivendo o episódio distante no tempo. Eram onze horas da noite,<br />
recorda Nogueira: “ela foi sentar-se na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>fronte <strong>de</strong> mim, perto do canapé”.<br />
E como lhe perguntasse se a havia acordado com algum barulho que fizera,<br />
Conceição “respon<strong>de</strong>u com presteza: – Não! qual! Acor<strong>de</strong>i por acordar.”<br />
Mais uma interrupção nas reminiscências, e Nogueira relembra que duvidara<br />
da afirmativa: “Os olhos não eram <strong>de</strong> pessoa que acabasse <strong>de</strong> dormir; pareciam<br />
não ter ainda pegado no sono.” E a explicação do narrador para haver <strong>de</strong>sprezado<br />
o alvitre ou para mostrar o seu fingimento não se <strong>de</strong>spe da inocência que<br />
presi<strong>de</strong> a conversa com a hospe<strong>de</strong>ira: “talvez não dormisse justamente por minha<br />
causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa,<br />
muito boa.”<br />
Armava-se, <strong>de</strong>sse modo, o cenário para o prosseguimento <strong>de</strong> um diálogo repleto<br />
<strong>de</strong> subentendidos, em que os interlocutores esgrimem as suas apetências<br />
com uma pureza ao mesmo tempo aci<strong>de</strong>ntal e essencial: o que vemos é <strong>de</strong>stituído,<br />
à superfície, e no conteúdo, <strong>de</strong> propósitos escusos. Tal ambivalência é pró-<br />
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