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Prosa 1 - Academia Brasileira de Letras

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A retórica da sedução em “Missa do galo”<br />

memorável. Tanto assim que diz ter pensado – ”Talvez esteja aborrecida” –,<br />

para dar maior verossimilhança à lembrança e ao sentido <strong>de</strong>la na ocasião, mas<br />

<strong>de</strong>ixando ao leitor a suspeita <strong>de</strong> que agora, no instante <strong>de</strong> narrar, outro seria o<br />

conteúdo, para ele, dos gestos lembrados.<br />

Na verda<strong>de</strong>, Nogueira dá a impressão <strong>de</strong> não haver percebido nada, ou se<br />

percebeu, interpretou às avessas: o olhar e a língua nos beiços teriam sido, a seu<br />

ver, fruto do cansaço. Por outro lado, tais movimentos da face passaram por<br />

inocentes no momento da sedução, visto que a cena ocorreu em 1861 ou<br />

1862, muitos anos antes da narrativa feita pelo jovem <strong>de</strong> Mangaratiba, e, portanto,<br />

há muito mais <strong>de</strong> um século, para o leitor <strong>de</strong> hoje. Afinal, num tempo<br />

em que estava em moda a literatura <strong>de</strong> Dumas e Macedo, e a heroína assomava,<br />

com um ar <strong>de</strong> visão romântica, na sala em que está o narrador, o envolvimento<br />

sinuoso, mas cerrado, <strong>de</strong> Conceição não parece anunciar a vanguarda feminista<br />

que eclodirá na segunda meta<strong>de</strong> do século XX?<br />

O xeque-mate não tardaria, como resultante das premissas <strong>de</strong> um silogismo<br />

cuidadosamente preparado para golpear <strong>de</strong> morte o oponente com o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>vastador da sua lógica irrefutável. Nem é preciso saber <strong>de</strong> artes retóricas,<br />

nem possuir instrução escolar: basta <strong>de</strong>ixar que fale mais alto o instinto<br />

<strong>de</strong> posse, a milenar sabedoria do corpo, a disposição da mente para o ataque<br />

em favor da sobrevivência do indivíduo e da espécie. Convicto, na sua simplicida<strong>de</strong><br />

interiorana, <strong>de</strong> que a fadiga explicava e justificava tudo quanto dizia<br />

e fazia a dona da casa, Nogueira <strong>de</strong>duz que já iam “sendo horas”, – horas<br />

<strong>de</strong> quê, senão <strong>de</strong> escapar do cerco tenaz? Ao que retruca apressada e enfaticamente<br />

Conceição: “– Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são<br />

onze e meia. Tem tempo.” Note-se a tônica posta na duplicação da negativa,<br />

que é menos um pedido que expressão <strong>de</strong> mando, embuçada num apelo secreto<br />

ou numa certeza que o <strong>de</strong>talhe do relógio atenua para melhor se impor.<br />

No entanto, como teria ela visto no relógio que horas seriam? Relógio do<br />

instinto, da malha retórica que vai tecendo ao redor <strong>de</strong> Nogueira? Como teria<br />

notado o relógio se não <strong>de</strong>sviara do moço “os gran<strong>de</strong>s olhos espertos”?<br />

Mentia, por conseguinte?<br />

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