Prosa 1 - Academia Brasileira de Letras
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voltaram, pararam novamente em Santo Domingo <strong>de</strong> la Calzada e tiveram<br />
uma grata surpresa. // O rapaz continuava <strong>de</strong>pendurado – mas estava<br />
vivo.” Perante o juiz, que se dispunha a almoçar um galo e uma galinha, e<br />
que se recusava a acreditar que o moço continuava vivo, ao trinchar as aves,<br />
estas “ressuscitaram e recuperaram as penas. O galo cantou forte e a galinha<br />
cacarejou”. O juiz <strong>de</strong>terminou a soltura do moço. 15 Machado, por<br />
certo, não conheceria esta e outras lendas medievais, mas é provável que estivesse<br />
familiarizado com as históricas folclóricas em torno do galo e da<br />
missa que lhe carrega o nome. 16<br />
A semelhança com a lenda é casual, porém simbólica: o milagre da salvação<br />
do moço con<strong>de</strong>nado à forca exala odor <strong>de</strong> santida<strong>de</strong>, não assim a inconsciência<br />
com que Nogueira experimenta o assédio <strong>de</strong> Conceição. Despreparado para<br />
respon<strong>de</strong>r à altura, faz pensar numa razão mais chã para o seu procedimento:<br />
resistira à sedução por ainda não haver alcançado a ida<strong>de</strong> do galo. A sua “missa<br />
do galo”, isto é, o ritual <strong>de</strong> passagem à ida<strong>de</strong> adulta, dando nascimento ao homem<br />
(galo) que nele latejava, viveu-a, ou tê-la-ia vivido, em companhia <strong>de</strong><br />
Conceição, já na plena posse da sua feminilida<strong>de</strong>. A tradicional “missa do<br />
galo”, instaurada nos primórdios da história católica e reprisada todos os anos,<br />
no dia 24 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, à meia-noite, po<strong>de</strong>ria tê-lo atraído pela novida<strong>de</strong>, mas<br />
sem provocar o efeito da outra, passada em companhia da sua hospe<strong>de</strong>ira, –<br />
uma noite inesquecível, com o seu perfume <strong>de</strong> lenda ou <strong>de</strong> sonho. A argúcia<br />
machadiana patenteia-se ainda uma vez na eleição consciente do título, sondando-o<br />
por todos os lados, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os figurantes em cena até a polissemia dos<br />
ingredientes narrativos, uns e outros sob o manto da simetria ou das “coincidências<br />
significativas”.<br />
Tudo converge, como se vê, para o ato da concepção, que a mulher do<br />
Meneses sonha praticar com o jovem <strong>de</strong> Mangaratiba. Quanto ao escrivão,<br />
78<br />
Massaud Moisés<br />
15<br />
Informações colhidas em J. A. Dias Lopes, “A missa <strong>de</strong> Natal e os usos do galo”, O Estado <strong>de</strong> S.<br />
Paulo, 20.12.2002, p. D7.<br />
16 a<br />
Ver Alberto Faria, op. cit.; Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do folclore brasileiro. 3 ed., 2 vols.,<br />
Brasília: INL, 1972.