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Confissões do pastor - Caio Fábio

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Apresentação<br />

Era uma vez um jovem rebelde, arruaceiro e dissoluto que amava “alucinadamente” as<br />

mulheres e fumava maconha e cheirava cocaína no mesmo ritmo que dirigia sua moto — mais <strong>do</strong><br />

que uma alma perdida, era a promessa de um legítimo cafajeste.<br />

Um dia, esse moço acor<strong>do</strong>u aos gritos achan<strong>do</strong> que estava com uma cobra sucuri enrolada no<br />

corpo, morden<strong>do</strong>-lhe o braço e inoculan<strong>do</strong>-lhe veneno. Era uma visão, claro, não uma cena real,<br />

mas foi como se fosse. <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> tinha então 19 anos, já estivera perto da morte por acidente ou<br />

suicídio, e aquela foi a última vez que, simbolicamente, se sentiu possuí<strong>do</strong> pelo demônio.<br />

No dia seguinte, decidiu, iria nascer de novo: “Vou viver com Jesus e ser um homem de Deus<br />

para o resto da minha vida.” Converti<strong>do</strong>, o jovem acabou se tornan<strong>do</strong> <strong>pastor</strong> protestante, assim<br />

como seu pai, um agnóstico que certo dia, len<strong>do</strong> a Bíblia, também se convertera e aban<strong>do</strong>nara<br />

tu<strong>do</strong>, inclusive um próspero escritório de advocacia <strong>do</strong> qual era sócio o sena<strong>do</strong>r Bernar<strong>do</strong> Cabral,<br />

ex-ministro e presidente da CPI <strong>do</strong>s precatórios.<br />

As memórias que <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> lança agora encerram mais <strong>do</strong> que a conversão de uma alma<br />

desgarrada que escolheu como referência não um presbiteriano como ele, mas um santo, Santo<br />

Agostinho, cujas <strong>Confissões</strong> pontuam como epígrafes os capítulos <strong>do</strong> livro, crian<strong>do</strong> um curioso<br />

contraponto católico a essa saga protestante.<br />

Encerram mais <strong>do</strong> que isso. As <strong>Confissões</strong> são também a emocionante aventura de uma<br />

vocação <strong>pastor</strong>al sem temor e sem preconceitos, que sobe os morros, entra nos presídios,<br />

freqüenta palácios, catequiza traficantes, batiza governa<strong>do</strong>r, é perseguida politicamente, e nada<br />

abala a sua crença de que o Evangelho é imbatível, de que tem o poder de “mudar bichos,<br />

monstros e perverti<strong>do</strong>s”.<br />

No livro, como na vida, pode-se encontrar esse <strong>pastor</strong> tão pouco orto<strong>do</strong>xo em Bangu I<br />

converten<strong>do</strong> Gregório, o Gor<strong>do</strong>, o maior ladrão de carros da história <strong>do</strong> Brasil e estrategista <strong>do</strong><br />

Coman<strong>do</strong> Vermelho. Ou batizan<strong>do</strong> o perigoso traficante Isaías <strong>do</strong> Borel, contamina<strong>do</strong> pelo vírus<br />

<strong>do</strong> HIV: “Isaías, eu te batizo em nome <strong>do</strong> Pai, <strong>do</strong> Filho e <strong>do</strong> Espírito Santo.” E pode estar<br />

também, algumas páginas depois, na casa da maior autoridade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>: “Em maio de 1994,<br />

batizei o governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, Nilo Batista, e sua esposa, Vera Malagute Batista.”<br />

Que outro líder espiritual seria capaz de uma ação <strong>pastor</strong>al tão arriscada, eclética e<br />

ecumênica?<br />

As incursões de <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, ou melhor, sua imersão permanente no mun<strong>do</strong> profano, na vida


eal, lá onde mora o peca<strong>do</strong>, custaram-lhe incompreensões e inimizades, não só de adversários de<br />

crença e de ética como de autoridades políticas e administrativas. O governa<strong>do</strong>r Marcello<br />

Alencar, por exemplo, abriu contra ele e sua principal obra social, a Fábrica de Esperança, uma<br />

guerra que incluiu pesadas denúncias, uma ocupação branca, auditorias e ameaça de interdição<br />

<strong>do</strong> espaço sob a alegação de que ali havia tráfico de drogas.<br />

Também com César Maia houve mal-entendi<strong>do</strong>s e bate-bocas públicos. O então prefeito<br />

chegou a apelidar <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> de “Pastor <strong>do</strong> pó” — pelo menos até visitar a Fábrica e se convencer<br />

da importância social <strong>do</strong> projeto, que passou então a respeitar e apoiar.<br />

Como se vê, o livro não é apenas a aventura de um peca<strong>do</strong>r e sua conversão. É também um<br />

pouco da história <strong>do</strong> Rio de Janeiro <strong>do</strong>s anos 90 — com os episódios que se inscreveram em nossa<br />

memória recente: a violência urbana, a criminalidade, a delinqüência, o escândalo <strong>do</strong><br />

jogo-<strong>do</strong>-bicho, a ocupação das favelas pelo Exército, a criação da Casa da Paz de Vigário Geral, as<br />

trapaças <strong>do</strong> bispo Mace<strong>do</strong>, o Viva Rio, a campanha <strong>do</strong> Desarme-se, e muito mais.<br />

Há na primeira parte <strong>do</strong> livro uma intenção edificante que incomoda pelo menos os que não<br />

têm muita fé. Será que a ênfase posta na perdição, naquela fase de juvenil entrega ao peca<strong>do</strong> não é<br />

um processo retórico para valorizar e engrandecer a conversão? A credulidade com que esse<br />

missionário investe nos peca<strong>do</strong>res barra-pesada também pode parecer meio ingênua? Valerá a<br />

pena converter bandi<strong>do</strong>s? Não será uma opção preferencial pelo algoz mais <strong>do</strong> que pela vítima?<br />

Essas dúvidas, que costumam ser levantadas por sua ação <strong>pastor</strong>al, não abalam as convicções<br />

<strong>do</strong> <strong>pastor</strong>. Ele acredita na conversão — na sua e, por conseqüência, na <strong>do</strong>s outros. Muitas vezes<br />

recorre a Jesus para explicar algumas de suas posições: “Jesus morreu entre ladrões, mas não os<br />

livrou da execução.”<br />

A sua ingenuidade pode se transformar em frio realismo. “A vida de vocês é burra”, é<br />

capaz de dizer para um traficante. “Tenho visto vocês morrerem to<strong>do</strong>s os dias. Quem não morre<br />

vai para Bangu I, o que é morte também. Vocês são instrumentos úteis nas mãos de um pessoal<br />

que nunca é apanha<strong>do</strong> e que mantém essa porcaria funcionan<strong>do</strong>.”<br />

Lições como essas — muito antes de ficar evidente que a conexão internacional <strong>do</strong> tráfico,<br />

essa, sim, milionária, passa longe desses pés-de-chinelo cuja alma <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> tenta salvar, já<br />

que não pode fazer o mesmo com a vida — demonstram que esse <strong>pastor</strong> sabe onde pisa. Conversa<br />

com Deus, não aban<strong>do</strong>na o Evangelho, vive distribuin<strong>do</strong> bênçãos mas, por via das dúvidas,<br />

conhece tu<strong>do</strong> o que se passa na vida terrena. O espiritual sem o social é um círculo vicioso que<br />

não ajuda a virtude. É mais fácil ser peca<strong>do</strong>r com a barriga vazia.<br />

ZUENIR VENTURA<br />

escritor, jornalista e<br />

editor especial <strong>do</strong> Jornal <strong>do</strong> Brasil


Aos muitos seres que me habitam a alma, os que conheci na Terra e aqueles<br />

que apenas encontrei em sonhos e pesadelos, e que são a matéria-prima de minha<br />

existência humana, dedico este livro de confissões.


Introdução<br />

Por que escrevi estas confissões? Talvez apenas porque nunca as tivesse escrito antes. Pode ser,<br />

entretanto, que as tenha escrito a fim de poder usufruir <strong>do</strong> direito de andar o mais perto possível<br />

de um deseja<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de nudez pelo qual meu ser sempre almejou. E quem dera pudesse eu me<br />

despir por completo. Mas isto só seria possível se eu fosse um ser numa ilha deserta e, então, não<br />

haveria razão nenhuma para desejar tão intensamente tirar a roupa, pois a nudez só é percebida<br />

na presença de outros. Além disto, jamais poderei me desnudar por completo neste mun<strong>do</strong>, pois<br />

esse exercício sempre expõe outras almas, visto que não existo em concubinato com meu eu<br />

apenas, mas com a multiplicidade de outros amores e vínculos humanos, to<strong>do</strong>s ten<strong>do</strong> o direito de<br />

não desejar se despir, apenas porque hoje eu assim o quero. Esta é a razão pela qual várias pessoas<br />

que andaram ao meu la<strong>do</strong> nesta jornada, to<strong>do</strong>s personagens reais, tiveram seus nomes altera<strong>do</strong>s.<br />

E aquelas histórias que mesmo “cobrin<strong>do</strong> os nomes verdadeiros”, ainda assim delatavam os seus<br />

personagens de mo<strong>do</strong> inconveniente, deixei de la<strong>do</strong>. Somente usei os nomes <strong>do</strong>s seres históricos<br />

que a mim se aliaram ou em mim encontraram desprazer, se tais ocorrências e fatos a eles<br />

relaciona<strong>do</strong>s foram inegavelmente públicos.<br />

Há um tempo para to<strong>do</strong> propósito e para a realização de cada coisa neste mun<strong>do</strong>. Esta é a<br />

minha estação de fazer confissões de morte e vida, de dúvida e fé, de desespero e esperança. E<br />

qual foi o start deste processo em minha alma? Sem dúvida ele vem de eras psicológicas tão<br />

longínquas, que certamente me precedem no tempo. Talvez eu esteja apenas trazen<strong>do</strong> à luz um<br />

desejo <strong>do</strong> meu coletivo familiar, e até de gente que já se foi há muito, mas que partiu sem ter feito<br />

o ato de confissão que aqui faço. No que me diz respeito, estas confissões nasceram como<br />

necessidade em mim desde a primeira vez que registrei a consciência <strong>do</strong> encoberto, quer tenha<br />

si<strong>do</strong> apenas um pensamento maligno, quer um sentimento sublime ou um ato vela<strong>do</strong> e<br />

sutilmente imoral, mesmo que pratica<strong>do</strong> na minha mais tenra infância. E len<strong>do</strong> este livro, você<br />

encontrará razões sobejas para que ele exista na forma em que aqui está.<br />

Historicamente falan<strong>do</strong>, no entanto, faço estas confissões fundamenta<strong>do</strong> em três percepções<br />

da realidade. A primeira tem a ver com minha total consciência <strong>do</strong> poder terapêutico que este<br />

livro de strip-tease psicológico teve para mim e terá para você. Puxei um fiapo na minha alma e<br />

achei uma grossíssima corda de amarrar navio atada bem no cerne de meu ser. Desfazer esse nó<br />

foi exercício terapêutico e tarefa de cura para o meu interior, e poderá ser para você também. A<br />

segunda percepção tem a ver com meu desejo compulsivo de queimar algumas pontes. Após ler<br />

este livro, você certamente perceberá como estou encurralan<strong>do</strong> minha vida numa única opção:<br />

ser apenas o que tenho si<strong>do</strong> até aqui, em Deus, pois quem conta as histórias que aqui narro, não<br />

pode ser candidato a mais nada na vida, a não ser a viver unicamente da graça e da bondade de<br />

Deus. Se um dia quis ser político, mesmo sem jamais me ter da<strong>do</strong> conta disto, aqui desisto. Se já


me passou pela cabeça tornar-me um grande figurão da política religiosa, aqui também me<br />

aposento antes da hora. E se, porventura, algum dia desejei ser um homem de reputação entre<br />

meus iguais, aqui também puxo a descarga desse dejeto e o expulso de meu ser, pois mediante<br />

estas confissões digo quem sou, ou quase isso. Mas saiba: andei bem perto de me entregar por<br />

completo.<br />

A última percepção que dá base a este livro de confissões é a de que hoje creio, muito mais <strong>do</strong><br />

que ontem, que o poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza humana. Assim, mesmo perden<strong>do</strong><br />

força diante <strong>do</strong>s homens, espero sinceramente estar ganhan<strong>do</strong> poder diante de meu Cria<strong>do</strong>r.<br />

Dessa forma, quanto mais vulnerável eu estiver diante de você, mais forte estarei aos olhos de<br />

Deus e mais ajuda<strong>do</strong> serei por Seus anjos solidários e amigos.<br />

Espero que a leitura destas minhas <strong>Confissões</strong> leve você a fazer a confissão que mudará sua<br />

vida por completo, ou seja, que com seus próprios lábios você passe a chamar o Filho de Deus de<br />

Advoga<strong>do</strong> na Terra e no Céu.<br />

<strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> D’Araújo Filho<br />

Inverno, Boca Raton, Flórida, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América — 1996


PARTE I<br />

<strong>Confissões</strong> de Morte e Vida


Capítulo 1<br />

“Ao dizer que atos viciosos contrários aos costumes humanos devem ser evita<strong>do</strong>s,<br />

nós levamos em conta a variação <strong>do</strong>s hábitos de comportamento, ou seja: a<br />

convenção mutuamente concordada de uma cidade ou nação, confirmada pelo<br />

costume ou pela lei. Nesse caso, qualquer pessoa que caia fora desse padrão<br />

torna-se completamente inaceitável para a sociedade.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Meu pai olhou-me deita<strong>do</strong> no pequeno berço e não resistiu. Colocou-me em seus braços,<br />

levou- me até o canto daquele amplo cômo<strong>do</strong> da casa da vovó Zezé e ficou sem saber o que fazer.<br />

Ele fora católico até os 26 anos, quan<strong>do</strong> tomara uma decisão: seria agnóstico até que alguma coisa<br />

profundamente espiritual lhe trouxesse a certeza de que Deus era Deus, e não uma mera<br />

abstração. Por isso mesmo, ele não podia entender o que lhe estava acontecen<strong>do</strong>.<br />

Sua alma fora totalmente impregnada pela idéia <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>. Era como se o próprio Deus<br />

tivesse invadi<strong>do</strong> os aposentos daquela casa e feito uma convocação irresistível a papai. Lá estava<br />

ele, um tanto desequilibra<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> manter-me no colo nos meus <strong>do</strong>is dias de vida neste<br />

planeta. A muleta sobre a qual se apoiava não lhe permitia ter certeza de que me carregaria sem<br />

me machucar. Mas a força que vinha de dentro de sua alma era mais forte. Era como uma ordem.<br />

Ele não tinha outra opção a não ser obedecê-la.<br />

Tomou-me nos braços, ergueu-me ao céu e disse: “Deus, se Tu existes e estás aqui neste<br />

quarto, ouve a minha voz. Eu Te dedico o meu filho, meu primogênito, e peço que faças dele um<br />

homem de Deus, um sacer<strong>do</strong>te, alguém que carregue a Tua marca em sua vida. Mas peço que Tu<br />

não o prives <strong>do</strong> privilégio de ter família, de criar filhos e de conhecer o amor por uma mulher. Por<br />

isso, mesmo sem saber por que Te peço, por favor, Deus, faze dele um <strong>pastor</strong>. Assim, ele poderá<br />

conhecer a alegria que eu estou sentin<strong>do</strong> neste momento, de levantar meu filho nos braços, e será<br />

também capaz de conhecer este estranho sentimento de proximidade da divindade, que, como<br />

nunca antes, me invade agora to<strong>do</strong> o ser.”<br />

Ninguém jamais ficou saben<strong>do</strong> o que ele havia feito comigo naquele dia. Também nem ele e<br />

nem ninguém poderia imaginar que aquele gesto estava marca<strong>do</strong> com a força divina das<br />

profecias. Eu sei que minha existência encontrou seu senti<strong>do</strong> e sua explicação histórica naquela<br />

oferenda agnóstica de meu pai, dedican<strong>do</strong>-me a um Deus que ele não tinha certeza se existia.<br />

Somente 21 anos depois daquela oração ao pôr-<strong>do</strong>-sol é que eu viria a saber que minha vida nada<br />

mais era <strong>do</strong> que a materialização de um desejo sagra<strong>do</strong>, de uma duvi<strong>do</strong>sa, porém apaixonada,<br />

oração paterna, e de uma vontade transcendente... de uma profecia <strong>do</strong> amor.


Meu pai é o ser humano que mais me influenciou neste mun<strong>do</strong> até o dia de hoje. Filho de<br />

uma estranha mistura de histórias e experiências humanas, tem vivi<strong>do</strong> sob a marca <strong>do</strong><br />

surpreendente, <strong>do</strong> radical, <strong>do</strong> intenso e <strong>do</strong> inusita<strong>do</strong>. Entretanto, sua vida e a minha própria vida,<br />

por extensão, explicam-se, obviamente, em contextos mais antigos <strong>do</strong> que nossa própria<br />

experiência histórica. Somos apenas os subprodutos de histórias de ancestrais fascinantes e<br />

quase mágicos em suas performances neste mun<strong>do</strong>. E na intenção de destrinçar as teias que<br />

tecem estes lega<strong>do</strong>s familiares tem-se de viajar ao século anterior ao nosso. É para essa viagem<br />

que eu convi<strong>do</strong> você.<br />

Minha herança humana viaja em células e sonhos desde há muito. Mas no nível de minha<br />

consciência histórica, tu<strong>do</strong> começou com meu bisavô, um cearense de saúde férrea e de humor<br />

fino e provocativo, que tinha uma fraqueza especial por saias. Luís Antônio de Araújo saiu <strong>do</strong><br />

nordeste para o Amazonas no século passa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> ainda era bem jovem. Nasci<strong>do</strong> no ano de<br />

1821, em Camuci, Ceará, teve na longevidade e na força física suas mais marcantes<br />

características. Viveu 104 anos e, aos oitenta, era famoso por ainda ser capaz de carregar far<strong>do</strong>s de<br />

pirarucu pesan<strong>do</strong> até 120 quilos.<br />

Meu pai não conheceu o seu Araujinho, como chamavam meu bisavô no interior <strong>do</strong><br />

Amazonas.<br />

Com fama de namora<strong>do</strong>r e de grande conta<strong>do</strong>r de histórias, o velho cearense casou-se com<br />

Maria Santana de Araújo já avança<strong>do</strong> em idade, aos 66 anos, ainda assim depois de um vastíssimo<br />

processo de seleção.<br />

Ele e Santaninha tiveram <strong>do</strong>is filhos: João <strong>Fábio</strong> e Joana, ambos nasci<strong>do</strong>s em Nova Vista de<br />

Canutama, no alto Purus, coração <strong>do</strong> Amazonas. Meu avô, João <strong>Fábio</strong>, nasceu quan<strong>do</strong> seu pai já<br />

tinha 68 anos e precisou lidar com a tragédia desde ce<strong>do</strong>. Em 1893, portanto apenas cinco anos<br />

após haver se casa<strong>do</strong>, Santaninha veio a falecer, vítima de uma das muitas <strong>do</strong>enças que matavam<br />

bestamente as pessoas nas beiras <strong>do</strong>s rios <strong>do</strong> Amazonas: a febre negra.<br />

Naqueles dias, o tempo passava com a mesma preguiça com que as águas deslizavam, lentas e<br />

caudalosas, pelo rio Purus, na região <strong>do</strong> seringal Nova Vista, onde o velho Araujinho conseguira<br />

um emprego como extrativista de balata de borracha. Sua intenção era trabalhar duro a fim de<br />

fazer algum dinheiro com borracha, produto por excelência para quem quer que tivesse uma<br />

visão clara de como a vida se desenharia nos anos por vir. O Amazonas vivia um tempo em que a<br />

borracha era o chip de todas as possibilidades presentes e futuras.<br />

Apesar da pobreza <strong>do</strong> interior, havia algumas inigualáveis compensações. Os cheiros naturais<br />

da região eram um pagamento divino aos que insistiam em viver no lugar. Os aromas da floresta<br />

eram extraordinários, aromas que, em geral, ainda podemos perceber nas vilas e pequenas aldeias<br />

<strong>do</strong> interior <strong>do</strong> Amazonas. Era fragrância de mata viva, misturada com o o<strong>do</strong>r de uma flora<br />

incomparavelmente diversificada, onde se podia perceber o cheiro de flores jamais transformadas<br />

em perfume em lugar nenhum <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Os imensos volumes de água também contribuíam para acrescentar ao ar o estranho o<strong>do</strong>r da<br />

vida subaquática, combina<strong>do</strong> ao das plantas que crescem à margem <strong>do</strong>s rios. Além disso, havia<br />

uma cheirosa sensação de frescor que vinha de toda parte. A areia amarelada à beira <strong>do</strong>s igarapés<br />

tinha em si o cheiro forte de algo que parecia uma mistura de enxofre com pó de café. Era um<br />

aroma quase primal, como se a terra ainda exalasse os cheiros de seu mais recente parto: o<br />

Amazonas.<br />

Na pequena vila <strong>do</strong> seringal Nova Vista podia-se também discernir o forte aroma que vinha<br />

das grandes chapas de ferro ou das imensas bases de barro queima<strong>do</strong>, onde mulheres de cabelos<br />

compri<strong>do</strong>s, presos por prende<strong>do</strong>res feitos de caroço de tucumã, agitavam suas colheres de pau,<br />

fazen<strong>do</strong> a farinha de mandioca dançar incessantemente, enquanto não cansavam de contar casos


infindáveis, que não incluíam mais <strong>do</strong> que as aproximadamente 550 pessoas que viviam no lugar.<br />

Políticos, militares e intelectuais que ocupavam espaço nas conversas da maioria das pessoas,<br />

em qualquer cidade maior que uma vila no sudeste <strong>do</strong> Brasil eram completamente ignora<strong>do</strong>s<br />

pelos mora<strong>do</strong>res daquela região, onde as notícias já chegavam com tamanho atraso, que os que as<br />

recebiam acabavam pensan<strong>do</strong>: “Se eu vivi <strong>do</strong>is anos sem saber que isto havia aconteci<strong>do</strong> e nada<br />

mu<strong>do</strong>u na minha vida, então é porque tanto faz como tanto fez; isso só importa num outro<br />

mun<strong>do</strong>, muito longe daqui. Pra gente aqui, saber ou não saber quem foi eleito, quem morreu ou<br />

quem foi preso e acusa<strong>do</strong> de traição, não altera a vida em nada.”<br />

E assim eles seguiam, fazen<strong>do</strong> seus rituais simples na liturgia <strong>do</strong> cotidiano.<br />

Aqui e ali se fazia passar um pouco de café num coa<strong>do</strong>r de pano, o que promovia rápidas<br />

interrupções na fabricação de farinha. Em geral, essas breves paradas para o café também se<br />

faziam acompanhar de pedaços de beiju, alimento que naqueles dias ocupava o lugar <strong>do</strong> pão no<br />

interior <strong>do</strong> Amazonas. Foi naquele cantão <strong>do</strong> Brasil, que hoje o mun<strong>do</strong> conhece como The<br />

Amazon Rain Forest, que meu bisavô ficou famoso e quase mítico, tornan<strong>do</strong>-se uma espécie de<br />

lenda cabocla das beiradas <strong>do</strong> Purus.<br />

As histórias sobre ele são muitas, mas as que mais me fascinam têm a ver com sua força.<br />

Havia por aquelas bandas um certo Sebastião Preto, conheci<strong>do</strong> por ter braços fortes e<br />

musculosos e por ser o louco da aldeia. No entanto, quan<strong>do</strong> estava alivia<strong>do</strong> de seu esta<strong>do</strong> de<br />

loucura, Sabá era um homem calmo, especialmente carinhoso com o menino João <strong>Fábio</strong>. Mas,<br />

quan<strong>do</strong> a perturbação mental lhe revirava a razão, era capaz de qualquer coisa, inclusive de<br />

machucar aqueles de quem gostava.<br />

Um dia, o louco amanheceu ataca<strong>do</strong> e partiu para um ato bestial. Ao perceber a presença de<br />

João <strong>Fábio</strong> na pequena praça <strong>do</strong> vilarejo, correu alucina<strong>do</strong> para cima da criança, demonstran<strong>do</strong> a<br />

clara intenção de estrangulá-la.<br />

Quan<strong>do</strong> o velho Araujinho percebeu Sabá corren<strong>do</strong> na direção de seu filho, lançou-se de um<br />

salto entre o louco e o menino, atracou-se a Sabá como se fosse uma cobra jibóia, empurrou-o<br />

contra o muro de uma casa e tirou-lhe os pés <strong>do</strong> chão, manten<strong>do</strong>-o no ar, imobiliza<strong>do</strong> entre a<br />

parede e o seu próprio corpo.<br />

— Tragam as cordas — gritou o velho Araujinho entre estrebuchos e grunhi<strong>do</strong>s. — Tragam<br />

as cordas. Não demorem — pediu mais uma vez.<br />

Depois que levaram o pobre louco amarra<strong>do</strong>, meu bisavô confessou que se tivessem<br />

demora<strong>do</strong> mais um minuto, ele não teria agüenta<strong>do</strong>.<br />

Uns dizem que ele ficou ali, imóvel, seguran<strong>do</strong> Sabá no ar por mais de cinco minutos. Outros<br />

falam que não durou tanto tempo assim. Mas ele não largou o negro até que trouxeram as cordas<br />

e amarraram Sebastião, vítima de uma insanidade para a qual os tempos não tinham ainda<br />

qualquer esperança de cura à vista.<br />

Quan<strong>do</strong> as jovens de Nova Vista se referiam ao velho Araujinho como sen<strong>do</strong> alguém de idade<br />

avançada, ele sempre falava: “É, minha senhora, sou velhete, mas sou espertete. A senhora quer<br />

uma demonstração?” E, assim, cessavam as inconveniências, afinal, a mulherada sabia que<br />

aquele velhote marca<strong>do</strong> pelo tempo, mas de saúde invicta, era realmente espertete com o sexo<br />

feminino, <strong>do</strong>no de longa e diversificada experiência naquela área. E as mulheres tinham certeza<br />

de que não se tratava apenas de memória de um remoto passa<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s sabiam, ou pelo menos<br />

ouviam falar, das façanhas contemporâneas daquele velho incorrigivelmente galantea<strong>do</strong>r, às vezes<br />

discretamente assanha<strong>do</strong>, e que parecia estar sempre fisicamente bem-disposto.<br />

Araujinho viveu casa<strong>do</strong> apenas cinco anos. Com a morte da esposa, resolveu pedir ajuda a um<br />

amigo para completar a educação <strong>do</strong>s filhos. Perceben<strong>do</strong>-se sem jeito para as atividades de<br />

natureza <strong>do</strong>méstica e avalian<strong>do</strong> a dificuldade que seria manter em casa o filho em idade escolar


tão crítica, enquanto se embrenhava dias na mata recolhen<strong>do</strong> o soro da borracha que escorria das<br />

veias rasgadas das seringueiras, preferiu fazer sacrifícios de natureza emocional a submeter João<br />

à privação <strong>do</strong> saber acadêmico, que ele próprio não possuía, mas cuja importância reconhecia.<br />

Por isto, entregou o filho a um tutor.<br />

O menino João <strong>Fábio</strong> foi envia<strong>do</strong> para Fortaleza no ano de 1901, aos 12 anos de idade, onde<br />

permaneceu três anos, para então retornar ao Purus, aos 15 anos, a fim de pegar a latinha de<br />

coleta de balata e tentar reunir seiva de borracha para vender e fazer dinheiro para ir estudar fora<br />

<strong>do</strong> Amazonas.<br />

Assim, durante três anos trabalhou incessantemente, juntan<strong>do</strong> dinheiro para viajar para a<br />

Bahia, onde sonhava estudar farmácia.<br />

Para seu Araujinho, a volta <strong>do</strong> filho fez muito bem. Mesmo sen<strong>do</strong> um homem aparentemente<br />

independente, era sempre imensamente carinhoso com João <strong>Fábio</strong> e orgulhava-se de ver nele<br />

alguém forte o suficiente para trabalhar pesa<strong>do</strong>, mas inteligente o bastante para perceber que o<br />

futuro não estaria definitivamente ali. A companhia <strong>do</strong> filho era-lhe especialmente estimulante<br />

porque a vida de um homem viúvo, com quase noventa anos, no interior <strong>do</strong> Amazonas, podia ser<br />

extremamente solitária.<br />

Naquelas bandas, um homem de paixão e fogo aceso pelas mulheres tinha muita dificuldade<br />

para dar “saidelas rápidas”. E quan<strong>do</strong> se tratava de dar uma variada na companhia feminina, era<br />

muito mais difícil ainda, pois todas as localidades tinham população pequena. Assim, era difícil<br />

que alguém se escondesse da curiosidade mal<strong>do</strong>sa <strong>do</strong>s filhos <strong>do</strong> vilarejo, sempre atentos a sinais<br />

de olhares apaixona<strong>do</strong>s ou lascivos, que eventualmente se expressavam aqui e ali, naqueles longos<br />

e solitários dias, povoa<strong>do</strong>s por gente que, na maioria das vezes, nem percebia que estava <strong>do</strong>ida<br />

para achar alguma coisa excitante para fazer.<br />

Nesse caso, a solução para quebrar o tédio, disfarça<strong>do</strong> em resignação existencial, era namorar<br />

escondi<strong>do</strong> ou descobrir quem namorava, ou pulava a cerca, com a filha ou a mulher <strong>do</strong> vizinho.<br />

O álibi de gente fogosa, como seu Araujinho, era sempre o boto tucuxi.<br />

No Amazonas, quan<strong>do</strong> uma menina aparecia grávida ou os pais percebiam que ela já não era<br />

“moça”, o boto preto era evoca<strong>do</strong> como saída moral e honrada para a deflorada <strong>do</strong>nzela, uma vez<br />

que se dizia que os botos tinham o poder de se transformar em belos e irresistíveis rapazes, que<br />

saíam <strong>do</strong>s rios para inebriar, seduzir e possuir as mais belas meninas das cidades ribeirinhas.<br />

Assim, a geração de bisavô Araujinho tinha no boto um importante alia<strong>do</strong>, funcionan<strong>do</strong><br />

sempre como cúmplice e álibi para escorregadelas noturnas e crian<strong>do</strong> o necessário espaço para<br />

que a diversidade da experiência sexual fosse acobertada pelo mito <strong>do</strong> boto sedutor.<br />

O velho morreu pobre. Entretanto, ficou famoso dentro de seu pequeno mun<strong>do</strong>, planta<strong>do</strong> à<br />

beira <strong>do</strong> rio Purus. Partiu no ano de 1925, aos 104 anos de idade, com to<strong>do</strong>s os dentes intactos,<br />

sem que chegasse a conhecer uma <strong>do</strong>r de cabeça ou qualquer forma de <strong>do</strong>ença, e sem que jamais<br />

tivesse ti<strong>do</strong> o privilégio de experimentar o significa<strong>do</strong> da palavra “preguiça”.<br />

Aquele homem centenário parecia marca<strong>do</strong> pelo signo da longevidade, e muitos pensavam<br />

que ele ficaria ali, para bem ou para mal, até quan<strong>do</strong> quisesse estar. Ele enterrou a muitos e viu<br />

suas façanhas serem contadas e recontadas em inúmeras tardes, quan<strong>do</strong> possivelmente se sentia<br />

como os atores de Hollywood ao verem seus próprios filmes em matinês ou em vídeos.<br />

E ele ainda ajudava a aumentar a lenda em torno de si mesmo quan<strong>do</strong>, num gesto de<br />

modéstia, dizia: “Parem com isso, seus rapazinhos canela-de-sebo. Vocês ficam aí mentin<strong>do</strong> a<br />

meu respeito. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sabe que isso tu<strong>do</strong> foi inventa<strong>do</strong> pelo exagero <strong>do</strong>s fracotes <strong>do</strong>s avós de<br />

vocês — que Deus os tenha em Sua presença. Eu nunca fui tão forte assim.”<br />

Depois de assim falar, descia até a beira <strong>do</strong> rio e pegava um cesto de farinha de sessenta<br />

quilos, que colocava naquelas costas de mais de cem anos de idade e carregava até o alto <strong>do</strong>


arranco. Assim, sua provocação, disfarçada de modéstia, apenas reforçava o mito de sua força<br />

junto às novas gerações.<br />

Dizem que Luís Antônio de Araújo morreu porque quis. Teria pratica<strong>do</strong> uma espécie de<br />

eutanásia existencial.<br />

Ten<strong>do</strong> existi<strong>do</strong> por mais de um século, cansara-se existencialmente de viver e, por isso, havia<br />

decidi<strong>do</strong> que era tempo de botar a viola no saco e recolher-se à eternidade.<br />

Quan<strong>do</strong> o velho estava com 104 anos, houve uma grande friagem no interior <strong>do</strong> Amazonas,<br />

com a temperatura cain<strong>do</strong> ao nível <strong>do</strong>s 13 graus centígra<strong>do</strong>s. Ele saiu <strong>do</strong> quarto, deitou-se numa<br />

rede na varanda e disse que não se levantaria mais dali até morrer. Decidiu não se alimentar mais<br />

e nem se erguer novamente. Os pedi<strong>do</strong>s eram insistentes no senti<strong>do</strong> de que ele se alimentasse.<br />

— O senhor está <strong>do</strong>ente? Está sentin<strong>do</strong> alguma <strong>do</strong>r? — to<strong>do</strong>s perguntavam.<br />

— Não, seus rapazinhos canela-de-sebo — dizia ele —, eu não estou sentin<strong>do</strong> nada. Apenas<br />

acho que já vivi demais e que tá na hora de deixar esse mun<strong>do</strong> para vocês. Portanto, me deixem<br />

em paz. Um homem de 104 anos tem que ter o direito de morrer quan<strong>do</strong> quer.<br />

Foram aproximadamente trinta dias de friagem. A cerração cobria a floresta e tornava os dias<br />

longos e lúgubres. Os parentes e amigos faziam vigília na varanda, sempre tentan<strong>do</strong><br />

empurrar-lhe goela abaixo um pouquinho <strong>do</strong> famoso cal<strong>do</strong> de caridade, uma sopa de farinha de<br />

mandioca cozida, temperada com alho e cebola, tida como milagrosa e revitalizante.<br />

Mas ele se recusava a comer. Sua decisão estava tomada e ele não a negociaria com ninguém.<br />

Nem mesmo com seu filho, João <strong>Fábio</strong>, que, planta<strong>do</strong> ali, pedia reverente que o velho pai comesse<br />

alguma coisa.<br />

Não houve jeito. No ano de 1925, seu Araujinho deixou esse mun<strong>do</strong> da mesma forma que nele<br />

vivera: de mo<strong>do</strong> obstina<strong>do</strong> e convicto. Nunca saiu <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> Amazonas, mas virou lenda no<br />

coração de muitos, especialmente na casa de seu filho, João <strong>Fábio</strong>, onde sua memória era<br />

reverenciada como a <strong>do</strong> velho Matusalém, que viveu 965 anos, conforme o relato bíblico <strong>do</strong> livro<br />

<strong>do</strong> Gênesis.<br />

A importância histórica e espiritual de bisavô Araujinho na minha família é justamente a de<br />

cumprir o papel de uma figura lendária, que vem de onde não se pode muito bem traçar as<br />

origens, que vive sem trocar cartas com o passa<strong>do</strong>, e que parece absolutamente contente com o<br />

hoje, com o aqui e o agora, imerso nas oportunidades que a vida abria de mo<strong>do</strong> natural diante<br />

dele.<br />

Ele nunca escreveu nada e nem tentou deixar nenhum lega<strong>do</strong>. Mas suas histórias — nem<br />

sempre revela<strong>do</strong>ras de princípios morais ou religiosos que pudessem ser usa<strong>do</strong>s para inspirar as<br />

gerações seguintes —, apesar de ambíguas, eram plenas de uma estranha e essencial virtude:<br />

uma imensa liberdade para existir intensamente debaixo <strong>do</strong> sol.<br />

Foi seu Araujinho quem introduziu a força das lendas pessoais em nossa família.<br />

Pobre da família que não tem lendas, sejam boas ou más. Uma família sem lendas é uma<br />

família sem alma.<br />

Seu Araujinho também foi aquele que nos ensinou que a vida é séria, mas que se não se fizer<br />

acompanhar por pitadas de irreverência e de controlada irresponsabilidade, torna-se mais tediosa<br />

<strong>do</strong> que a mesmice <strong>do</strong> rolar das inalteráveis águas barrentas <strong>do</strong> rio Purus.<br />

Foi dele, ainda, que os homens e mulheres da minha família aprenderam o gosto <strong>do</strong> namoro,<br />

da paixão e da delícia <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s que se deixam estimular por cheiros e toques, fazen<strong>do</strong> a vida<br />

parar e dan<strong>do</strong> a você o direito de saborear a existência como quem se atola nas <strong>do</strong>ces carnes de<br />

uma manga-rosa.<br />

Não se fala muito da fé de seu Araujinho. Consta que era católico, mas não parece que para<br />

ele isso fosse coisa muito importante. Prova disso está o catolicismo de seu filho João <strong>Fábio</strong>, que,


conquanto tenha existi<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> bastante perceptível, era, entretanto, muito mais um<br />

humanismo generoso <strong>do</strong> que o fruto de beatices religiosas e com cheiro de vela.<br />

Talvez a maior de todas as demonstrações de que seu Araujinho viveu para além da tutela<br />

espiritual <strong>do</strong> organismo religioso esteja na estranha maneira como ele morreu: aparentemente<br />

sem sacer<strong>do</strong>te, sem rito, sem hóstia, sem extrema-unção e sem me<strong>do</strong>.<br />

Morreu quan<strong>do</strong> achou bom morrer, porque viveu como achou bom viver.


Capítulo 2<br />

“Honra, poder de dar ordens e estar em coman<strong>do</strong> têm sua própria forma de<br />

dignidade, embora daí também se origine a ânsia da auto-afirmação. Ainda assim,<br />

na aquisição de todas estas fontes de status social não devemos nos afastar de ti,<br />

Senhor, nem nos desviar da Tua vontade.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Foi a morte da mãe o que certamente propiciou a João <strong>Fábio</strong> a bênção <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> como<br />

caminho alternativo para fora da vida no seringal Nova Vista. Além disso, o fato de seu Araujinho<br />

tê-lo manda<strong>do</strong> para Fortaleza aos cuida<strong>do</strong>s de um tutor abriu-lhe os horizontes e inoculou nele<br />

aquele estranho gostinho por novos espaços e relacionamentos.<br />

A orfandade, quan<strong>do</strong> se faz acompanhar de uma boa atitude frente à vida, pode capacitar o<br />

órfão a se sentir livre para construir mun<strong>do</strong>s para além <strong>do</strong>s condicionantes da consangüinidade<br />

imediata. Muitas vezes os órfãos têm movi<strong>do</strong> este mun<strong>do</strong>.<br />

Os anos de trabalho no seringal não permitiram que João <strong>Fábio</strong> juntasse uma grande soma,<br />

mas renderam-lhe o suficiente para que, em mea<strong>do</strong>s de 1908, zarpasse para Salva<strong>do</strong>r, a fim de<br />

ingressar no curso técnico de farmácia, profissão que para ele, que tinha fortes laços com a<br />

população pobre <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> e que dizia querer ser útil à comunidade, parecia a mais<br />

prática.<br />

Durante aquele perío<strong>do</strong> de estu<strong>do</strong>s na Bahia, João <strong>Fábio</strong> conheceu uma menina de cabelos<br />

loiros e profun<strong>do</strong>s olhos azuis, filha de uma família de ancestrais franceses que se radicara no<br />

Brasil poucas décadas antes.<br />

Eram os Nascimento Lavigne, gente de atitude nobre e que prezava imensamente o valor da<br />

educação e da cultura.<br />

A paixão foi instantânea e profunda, mas o curso de João <strong>Fábio</strong> estava terminan<strong>do</strong> e ele<br />

precisava ir ganhar a vida no Amazonas antes que pudesse se casar com Josefina Nascimento e<br />

levá-la para Manaus.<br />

Embora não tenha si<strong>do</strong> fácil, João <strong>Fábio</strong> teve de propor que ela o esperasse enquanto ele ia<br />

“fazer a vida”, prometen<strong>do</strong> voltar para buscá-la. Zezé, como a apelidara, aceitou de pronto.<br />

Durante seis anos eles trocaram cartas de amor e amizade, reafirman<strong>do</strong> a intenção de passarem o<br />

resto da vida juntos.<br />

As amigas de Zezé tentavam dissuadi-la to<strong>do</strong>s os dias com relação à fidelidade daquela<br />

espera. Com tanto rapaz bonito e de boa família “dan<strong>do</strong> sopa” em Salva<strong>do</strong>r, o que Zezé estava<br />

fazen<strong>do</strong> investin<strong>do</strong> sua juventude num rapaz pobre, <strong>do</strong> Amazonas, que se formara em farmácia,


fora embora e nunca mais voltara? Mas lá no fun<strong>do</strong> Zezé sabia que havia encontra<strong>do</strong> o homem<br />

mais honra<strong>do</strong> que jamais conhecera, e que ele não a enganaria.<br />

Esperou seis anos, alimentan<strong>do</strong> seu amor apenas com memórias e cartas, até que no fim <strong>do</strong><br />

ano de 1917, pon<strong>do</strong> termo a um perío<strong>do</strong> de pura e insólita esperança, Zezé viu o navio aportar em<br />

Salva<strong>do</strong>r e dele desembarcar um João <strong>Fábio</strong> seis anos mais velho, porém absolutamente intacto<br />

em seus motivos, sentimentos e compromissos.<br />

Casaram-se no fim daquele ano, foram juntos para Manaus e, de lá, acabaram dirigin<strong>do</strong>-se a<br />

Canutama, para o seringal Nova Vista, cuja propriedade vieram a adquirir no ano seguinte.<br />

A vida no seringal foi cheia de <strong>do</strong>r e dramaticamente marcada pela solidariedade aos<br />

habitantes <strong>do</strong> lugar. Lá lhes nasceram dez filhos, mas três deles morreram ainda na infância. José<br />

e Edgar partiram ainda em idades bem tenras, mas a <strong>do</strong>r da morte de Luís Ricar<strong>do</strong> foi profundíssima.<br />

Todas as histórias sobre Luís contam de um rapaz bonito, forte e extremamente sensível,<br />

que nascera de um parto gêmeo com Elvira. Eles eram os mais velhos <strong>do</strong>s dez filhos. Mas em<br />

1931, quan<strong>do</strong> estavam com 12 anos, Elvira e Luís acompanharam o pai numa viagem a Manaus,<br />

durante a qual o garoto foi atingi<strong>do</strong> por uma horrível febre e morreu ao chegar à casa de uns<br />

amigos, deixan<strong>do</strong> um imenso rombo emocional no coração de seus pais e irmãos.<br />

De volta ao interior, o magoa<strong>do</strong> e abati<strong>do</strong> João <strong>Fábio</strong> não esmoreceu ante a perda <strong>do</strong> filho.<br />

Mesmo com muita <strong>do</strong>r na alma, entregou-se à atividade que ele iniciara quan<strong>do</strong> chegara da Bahia,<br />

em 1912, forma<strong>do</strong> em farmácia. Muito mais <strong>do</strong> que gerir o seringal, João <strong>Fábio</strong> dava-se inteira e<br />

gratuitamente ao cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pobres e miseráveis que viviam naquela região.<br />

Sua fama como homem solidário e generoso vive até hoje.<br />

Milhares foram aqueles que o procuraram vin<strong>do</strong> de lugares remotos, viajan<strong>do</strong> dias sobre uma<br />

estreita canoa, a fim de buscar ajuda médica e alívio para suas <strong>do</strong>res, febres, feridas, angústias e<br />

me<strong>do</strong>s.<br />

A força de sua vida foi tão significativa, que seu professor na faculdade de direito, na qual ele<br />

viria a se matricular em 1933 e a concluir em 1937, Ramayana de Chevalier, chegou a descrever<br />

com palavras míticas o seu curriculum social, texto transcrito no álbum de nossa família.<br />

Era o dia 4 de dezembro de 1926 quan<strong>do</strong> nasceu meu pai, <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> D’Araújo, na cidade de<br />

Canutama, no interior <strong>do</strong> Amazonas.<br />

Vovô <strong>Fábio</strong> foi registrá-lo com o nome da família Araújo. Orgulhoso, falou o nome <strong>do</strong> menino,<br />

certo de ter evoca<strong>do</strong> um grande significa<strong>do</strong> latino para acompanhar aquele ser humano para o<br />

resto da vida: <strong>Caio</strong>, em latim, significa bordão, caja<strong>do</strong> ou alegria. Ele se apegou ao último<br />

significa<strong>do</strong> e desejou, de to<strong>do</strong> o coração, que seu oitavo filho fosse um ser humano que trouxesse<br />

felicidade a este mun<strong>do</strong>.<br />

Enquanto ele se perdia em delírios de felicidade paterna, o escrivão cometia um engano<br />

ortográfico que acabaria crian<strong>do</strong> uma cômica, porém interessante mudança na grafia <strong>do</strong> nome de<br />

minha família: trocou o “de Araújo” por um inexplicável “D’Araújo”.<br />

Apesar de ser um erro, vovô <strong>Fábio</strong> decidiu conservá-lo, como que profeticamente perceben<strong>do</strong><br />

que aquele seu filho viera ao mun<strong>do</strong> marca<strong>do</strong> por estranhas intenções divinas que o fariam<br />

escolher caminhos de trajetórias intensas e radicais para percorrer.<br />

Cainho, como logo passaram a chamá-lo carinhosamente em família, viveu de mo<strong>do</strong> mais que<br />

normal o primeiro ano de sua vida. João <strong>Fábio</strong>, sempre sério, porém muito meigo com os filhos,<br />

não hesitava em manifestar uma especial atração pelo menino. Filhos e filhas não lhe faltavam e<br />

ele devotava algum tipo de expressão diferenciada por to<strong>do</strong>s, deixan<strong>do</strong>, entretanto, que essas<br />

diferenças existissem como segre<strong>do</strong> entre ele e cada criança. Talvez seja por essa razão que,<br />

mesmo hoje, os filhos que ainda estão vivos falem <strong>do</strong> pai como se fossem filhos únicos. Do


pequeno Cainho, ele dizia que seria um menino forte como fora seu pai, o velho Araujinho.<br />

No entanto, logo após completar seu primeiro ano de vida, a saúde <strong>do</strong> menino foi subitamente<br />

abalada por uma estranha e inexplicável febre.<br />

Como João <strong>Fábio</strong> estava viajan<strong>do</strong>, Zezé pediu ajuda a um farmacêutico local, a fim de<br />

enfrentar a febre com uma injeção. Seu Ernesto foi chama<strong>do</strong> às pressas e prontamente acorreu.<br />

Tiran<strong>do</strong> <strong>do</strong> estojo sua seringa e agulhas, perfurou a borracha que vedava o vidro com o remédio,<br />

passou álcool nas nádegas da criança, dividiu mentalmente o bumbum em quatro partes,<br />

escolheu uma dele e sapecou a agulha.<br />

Tu<strong>do</strong> certo, exceto pelo fato de que a febre não cedeu e o menino continuou a definhar no seu<br />

bercinho.<br />

Quan<strong>do</strong> João <strong>Fábio</strong> voltou, viu, choca<strong>do</strong>, que algo estava muito erra<strong>do</strong> com seu pequeno <strong>Caio</strong>.<br />

Sua perninha direita não se movia. Os movimentos eram normais na outra perna, que podia ser<br />

erguida na hora <strong>do</strong> choro ou <strong>do</strong>s movimentos espontâneos, mas a perna direita não se<br />

movimentava, permanecen<strong>do</strong> sempre paralisada.<br />

— Zezé, o que fizeram com esse menino? Alguém esteve aqui cuidan<strong>do</strong> dele? — perguntou<br />

o já experiente farmacêutico.<br />

— <strong>Fábio</strong>, você não estava aqui. A criança estava com uma febre que não cedia. Então eu<br />

chamei o seu Ernesto. Ele deu uma injeção no menino — respondeu vovó.<br />

João <strong>Fábio</strong> examinou cuida<strong>do</strong>samente o bumbum <strong>do</strong> filho, constatou a marca da entrada da<br />

agulha e olhou sofri<strong>do</strong> e grave para esposa, mas sem nenhuma expressão de raiva na face.<br />

— Aleijaram nosso filho — disse com voz solene e cheia de pesar.<br />

Saiu dali andan<strong>do</strong> pesadamente, foi até a varanda e olhou longa e perdidamente para o<br />

deslizar suave <strong>do</strong> rio Purus, que incansavelmente ondulava suas águas em frente à cidade de<br />

Canutama, naquela quente tarde de março de 1927.<br />

Embora nunca tenha toma<strong>do</strong> nenhuma providência legal contra seu Ernesto, pois conhecia<br />

bem o homem e sabia que se tratava de pessoa de bem, o Dr. João <strong>Fábio</strong> estava certo. <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong><br />

jamais andaria sem muleta, para o resto de sua vida. <strong>Caio</strong>, em latim, é também bordão, caja<strong>do</strong>.<br />

Apesar de pesaroso e frustra<strong>do</strong> com o que acontecera ao menino, vovô cui<strong>do</strong>u de iniciar um<br />

processo de ajuda a seu filho, sem saber que estava plantan<strong>do</strong> as sementes que fariam dele um<br />

ser humano raro, tanto no seu caráter quanto nas suas percepções da vida.<br />

Não era a primeira vez que vovô experimentava o gosto amargo da <strong>do</strong>r que o atingia a partir de<br />

uma fatalidade ligada aos filhos, porém o caso de meu pai tornou-se muito forte para ele. Talvez<br />

isto se explique pelo fato de que as mortes de Luís Ricar<strong>do</strong>, Edgar e José tenham-no deixa<strong>do</strong> com<br />

a violenta angústia da perda, mas sem o peso da responsabilidade de criar um filho deficiente.<br />

Os três meninos morreram, e ele chorou e sofreu suas mortes. Mas com Cainho era<br />

diferente. Ele estava ali, debilita<strong>do</strong> e irremediavelmente aleija<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> diante de si um mun<strong>do</strong><br />

que meu avô percebia que seria cada vez mais competitivo e que não ofereceria ajuda a quem não<br />

pudesse se virar sozinho.<br />

Aquela foi a gota d’água final na decisão de mudar de Canutama para Manaus. Ele precisava<br />

oferecer aos filhos uma boa chance de se prepararem para os avanços deste século, que estava<br />

apenas começan<strong>do</strong>.<br />

Em 1931 a mudança finalmente foi efetivada.<br />

Na capital, a família foi morar num sobra<strong>do</strong> na rua Sete de Setembro, bem no centro da<br />

cidade. No andar inferior da casa, o Dr. <strong>Fábio</strong> tinha a sua farmácia, aberta a quem pudesse e a<br />

quem não pudesse pagar o remédio de que necessitava.<br />

Pelo fato de estar sempre preocupa<strong>do</strong> com o bem-estar <strong>do</strong>s muitos que dele se acercavam,<br />

vovô resolveu tentar ampliar seus horizontes. Assim, entrou para a faculdade de direito e


formou-se já bem maduro, decidin<strong>do</strong>, em seguida, enveredar pela carreira política.<br />

Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> eleito deputa<strong>do</strong> estadual mais de uma vez e também presidente da Assembléia<br />

Legislativa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, além de prefeito de Manaus, acabou algumas vezes na posição de<br />

governa<strong>do</strong>r em exercício, situação que muito orgulhava a família, especialmente Zezé, que casara<br />

com um menino pobre e que agora o via alça<strong>do</strong> a posições dantes inimagináveis para os membros<br />

de sua “francesa família baiana”.<br />

Por ser homem inegavelmente honesto, o Dr. João <strong>Fábio</strong> passou pela política sem nenhuma<br />

alteração no mo<strong>do</strong> como mantinha sua família e saiu da política viven<strong>do</strong> com os mesmos<br />

limita<strong>do</strong>s recursos com os quais gerira sua vida até então.<br />

A riqueza que ele escolheu não sofre inflação e nem pode ser roubada, pois é aquela que mais<br />

e mais cresce quanto mais e mais é compartilhada.


Capítulo 3<br />

“A leitura mu<strong>do</strong>u meus sentimentos. Alterou minhas preces, ó Senhor, para que<br />

fossem dirigidas a Ti mesmo. Os livros me deram valores e prioridades diferentes.<br />

De repente, toda a esperança vã se tornou vazia para mim e eu ansiava pela<br />

imortalidade da sabe<strong>do</strong>ria com um ar<strong>do</strong>r incrível em meu coração.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

A vida na rua Sete de Setembro era divertida, porém muito apertada em seus espaços. A<br />

diversão <strong>do</strong>s meninos Renato, Carlos, <strong>Caio</strong> e Augusto, bem como <strong>do</strong>s filhos de criação que vovô<br />

sempre mantinha de quebra, era jogar bolinha de gude com esferas de aço arrancadas de<br />

rodinhas de rolimã, ou simplesmente acompanhar o movimento da rua, tentan<strong>do</strong> tirar proveito de<br />

tu<strong>do</strong> o que de engraça<strong>do</strong> pudesse acontecer na calçada: um rosto excessivamente feio, um par de<br />

pernas femininas desmesuradamente bonitas, um corpo lin<strong>do</strong> de alguma garota que, quan<strong>do</strong><br />

vista de frente, assustava pelo rosto desencontra<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> o antiqüíssimo gênero Raimunda, ou<br />

o escorregão de algum rapaz que, ao tentar passar na frente <strong>do</strong> bonde, tropeçava no trilho e<br />

espalhava-se sobre o paralelepípe<strong>do</strong>. Outras vezes, ainda, eles também davam gostosas<br />

gargalhadas diante de certos velhos assanha<strong>do</strong>s, que não sossegavam ante a contemplação da<br />

juventude sedutora de alguma menina recém-entrada na idade adulta. Enfim, a televisão era a<br />

vida e suas múltiplas possibilidades de graça e desgraça.<br />

Mas esta interatividade entre o balcão <strong>do</strong> sobra<strong>do</strong> — onde os meninos ficavam fazen<strong>do</strong> suas<br />

gozações — e a calçada podia ser perigosa, pois vovô <strong>Fábio</strong> era rigorosíssimo quanto ao<br />

tratamento que esperava que seus filhos dispensassem aos que passavam em frente à sua casa.<br />

Ele não podia admitir gracinhas, gozações, galanteios, gargalhadas e outras expressões juvenis da<br />

garotada quan<strong>do</strong> percebia que isso podia constranger os transeuntes.<br />

Não que ele mesmo não risse, tempos depois, das coisas que ali aconteciam. Mas no<br />

momento em que de fato ocorriam, ele sempre pensava que as brincadeiras de seus filhos<br />

poderiam causar incômo<strong>do</strong>s irreparáveis para seus clientes ou gerar constrangimentos às<br />

pessoas, o que, para ele, era algo imper<strong>do</strong>ável. Por isto, não foram raras as vezes em que a<br />

meninada entrou no cinturão quan<strong>do</strong> flagrada em algum desses atos de humorismo de calçada,<br />

em meio a risos ou simples expressões de um prazer que delatavam alguma armação recente.<br />

Foi duro criar to<strong>do</strong>s aqueles filhos, cheios de energia, presos naquele sobra<strong>do</strong>. Além disso,<br />

havia as visitas constantes <strong>do</strong>s que vinham de Nova Vista, ainda procuran<strong>do</strong> o filho de seu<br />

Araujinho, que nunca se furtava a hospedar quem quer que necessitasse e jamais se negava a<br />

tratar de graça a to<strong>do</strong> aquele que, com <strong>do</strong>r ou desconforto físico, o buscava solicitan<strong>do</strong> alguma


ajuda. Por isto mesmo, Zezé convenceu o mari<strong>do</strong> a procurar um lugar mais distante, ainda que<br />

dentro da área metropolitana da cidade de Manaus, onde eles pudessem arranjar uma casa com<br />

quintal e espaço suficiente para que os filhos pudessem se distrair sem criar embaraços para o<br />

pai.<br />

Foi assim que encontraram um lugar que havia si<strong>do</strong> um hospital no fim <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> e<br />

que agora estava à venda. Era uma imensa propriedade no Alto de Nazaré. O bonde chegava lá e<br />

os primeiros ônibus em circulação também faziam ali a sua volta de retorno ao centro da cidade.<br />

O casarão ia de um quarteirão ao outro. Tinha frente para a rua Japurá e ia até a rua Apurinã.<br />

Era um prédio bonito, que crescia em estilo quase piramidal, inician<strong>do</strong> com um térreo construí<strong>do</strong><br />

sobre grandes arcos, amarra<strong>do</strong>s por longos e belos trilhos de ferro, forman<strong>do</strong> um ambiente<br />

fascinante para quem quer que tivesse imaginação.<br />

Sobre aquele andar térreo, a casa se espalhava num segun<strong>do</strong> nível, forma<strong>do</strong> por salas<br />

enormes e quartos <strong>do</strong> tamanho de enfermarias de hospital, com janelas longas das quais saíam<br />

varandas de ferro. A cozinha também ficava no segun<strong>do</strong> piso. Era imensa e ao final dela, subia<br />

mais uma torre, que também funcionava como chaminé.<br />

Havia <strong>do</strong>is acessos para os andares superiores, que se tornavam cada vez menores, à medida<br />

que a pirâmide ia afinan<strong>do</strong> para o mirante, no quinto e minúsculo aposento, projeta<strong>do</strong> para fora<br />

<strong>do</strong> telha<strong>do</strong> e com janelas para os quatro cantos da casa. A vista <strong>do</strong> mirante era soberba para a<br />

época, visto que Manaus é uma cidade plana e, naquele tempo, a altura daquela antiga<br />

casa-hospital era algo para ser leva<strong>do</strong> em consideração.<br />

Nos fun<strong>do</strong>s, havia uma escada de ferro que, estreita e espiralada, ia derraman<strong>do</strong> acessos a<br />

to<strong>do</strong>s os andares. Mas no meio <strong>do</strong> prédio, começan<strong>do</strong> no porão térreo e arquea<strong>do</strong>, esgueirava-se,<br />

de mo<strong>do</strong> artisticamente sinuoso, uma das mais encanta<strong>do</strong>ras e bem torneadas escadas de<br />

madeira que alguém poderia desejar ter dentro de casa.<br />

No casarão da Japurá a moçada <strong>do</strong>s Araújos espalhou-se na vida. Ali, eles fizeram<br />

camaradagem com inúmeros meninos e meninas, que acabaram se tornan<strong>do</strong> seus amigos na vida<br />

e na morte. Os garotos subiam nas árvores <strong>do</strong> quintal e comiam mangas, jenipapos, graviolas,<br />

pitombas, pitangas, abiu, ata, biribá e ainda derrubavam coco e bebiam sua água quan<strong>do</strong> estavam<br />

com sede. Era o paraíso.<br />

Foi ali também que eles organizaram peladas de futebol em que colocavam Cainho no gol,<br />

defenden<strong>do</strong> a pequena área com sua muleta pesada. A disputa era saber quem o teria de seu la<strong>do</strong>,<br />

pois a vantagem de quem ficasse com seu passe era incomparável.<br />

O garoto da muleta ficava planta<strong>do</strong> na frente <strong>do</strong> gol, abanan<strong>do</strong> sua perna de pau no ar e<br />

convidan<strong>do</strong> os adversários para virem fazer gol dentro de sua área.<br />

— Venham, seus medrosos. Invadam minha área. Tentem meter a bola por debaixo de<br />

minhas pernas. Será que vocês não se garantem? — ele gritava com euforia.<br />

Sempre que alguém se irritava com suas impertinentes provocações e resolvia invadir a área<br />

driblan<strong>do</strong> para fazer um gol em vez de chutar de longe, geralmente se afastava reclaman<strong>do</strong> das<br />

muletadas que recebia nas canelas ou até mesmo na cabeça.<br />

— Deixem o <strong>Caio</strong> brincar. Não percam a paciência com ele e nem o deixem fora de qualquer<br />

competição — dizia vovô <strong>Fábio</strong>.<br />

Por esta razão, os irmãos mais velhos, especialmente Carlos <strong>Fábio</strong>, a quem Cainho era mais<br />

chega<strong>do</strong>, sempre o incluíam em to<strong>do</strong>s os programas, até mesmo em algumas brigas de rua.<br />

Certa vez eles se estranharam com uns garotos que moravam na baixada da rua Apurinã, uma<br />

cavidade impressionante, na qual moravam várias famílias, pois como havia água em abundância<br />

ali, era muito fácil cavar uma cacimba e abastecer a casa com água fresca e gratuita.<br />

A “turma <strong>do</strong> buraco” se encrespou com os Araújos e eles saíram no tapa. No meio da briga,


papai, na época com dez anos de idade, estava tranqüilamente senta<strong>do</strong> na varanda de nossa casa<br />

quan<strong>do</strong> viu chegan<strong>do</strong> seu irmão Carlos <strong>Fábio</strong> com um menino na gravata, gritan<strong>do</strong>: “Cainho, toca<br />

tua muleta na cabeça desse desgraça<strong>do</strong> antes que ele escape da minha gravata.” Papai pegou a<br />

muleta e sapecou-a com tanta força na cabeça <strong>do</strong> menino, que a briga acabou na hora.<br />

A infância para meu pai não foi exatamente fácil, mas não chegou a ser difícil. Ele fora<br />

abençoa<strong>do</strong> não só com um pai humano e sensível, mas com uma mãe meiga e, ao mesmo tempo,<br />

enérgica. Dona Maria Josefina de Araújo não dava descanso aos filhos. O compromisso que ela e o<br />

mari<strong>do</strong> tinham era o de dar a cada filho, incluin<strong>do</strong> as meninas, a possibilidade de concluírem um<br />

curso superior. Dinheiro eles não deixariam, mas cultura era um bem imprescindível, na visão<br />

deles. Por isto, aquela mulher franzina, de cabelos loiros e olhos azuis, não cansava de<br />

interromper os melhores momentos de diversão <strong>do</strong>s filhos para botar to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para estudar.<br />

Talvez a marca mais expressiva da vida no casarão-hospital da rua Japurá tenha si<strong>do</strong> o espírito<br />

social e comunitário da vida em família. Tal como havia si<strong>do</strong> no interior, João <strong>Fábio</strong> não cessava<br />

de se solidarizar com as pessoas que agora o procuravam na cidade. Não apenas remédios, que ele<br />

tirava de seu negócio, enfraquecen<strong>do</strong>-o cada vez mais, mas também comida e moradia eram<br />

oferendas permanentes que fazia aos necessita<strong>do</strong>s que o procuravam.<br />

A vida na casa era uma experiência absolutamente fascinante e, às vezes, constrange<strong>do</strong>ra. A<br />

fascinação ficava por conta da multiformidade de relacionamentos e amizades que aquele<br />

rebuliço social propiciava a to<strong>do</strong>s. Os constrangimentos tinham a ver com a escassez de tu<strong>do</strong>,<br />

especialmente de comida, pois quan<strong>do</strong> a casa estava vazia, moravam ali cerca de quarenta<br />

pessoas. Nos momentos de pique, chegaram a residir com os Araújos cerca de cento e cinqüenta<br />

almas, todas mais pobres <strong>do</strong> que eles, vidas, aliás, para as quais sua existência era sombra, água,<br />

luz, pão, saúde e esperança.<br />

Não foram raras as vezes em que Zezé teve de cortar as bananas em dezenas de rodelas e<br />

oferecê-las com farinha. Cada um podia tirar apenas uma rodelinha. O trauma dessa experiência<br />

foi tão grande, que meu pai disse que quan<strong>do</strong> ganhou seu primeiro salário, a coisa mais urgente<br />

que fez foi comprar uma penca de bananas e tentar comê-la sozinho.<br />

Entre as muitas histórias daquele perío<strong>do</strong> há uma que bem define a dificuldade <strong>do</strong>s membros<br />

da família em se sentirem totalmente à vontade em casa. Dizem que, numa certa tarde, o Dr.<br />

<strong>Fábio</strong> estava fazen<strong>do</strong> curativos nas feridas de um caboclo que estava em sua casa buscan<strong>do</strong> alívio,<br />

quan<strong>do</strong>, no meio <strong>do</strong> atendimento, sentiu uma irresistível vontade de soltar gases. Controlou-se o<br />

quanto pôde, mas perceben<strong>do</strong> que não dava mais para segurar, pediu licença e procurou a sala ao<br />

la<strong>do</strong>, não sem antes avisar ao paciente que não saísse da cama. O Dr. <strong>Fábio</strong> an<strong>do</strong>u devagar, abriu<br />

as pernas e soltou um enorme pum. Subitamente, ouviu uma voz atrás de si, cheia de<br />

perplexidade, quase como se os anjos tivessem si<strong>do</strong> flagra<strong>do</strong>s no toalete.<br />

— E <strong>do</strong>tô também peida? — indagou o irrequieto caboclo.<br />

Vovô virou-se para ele, toma<strong>do</strong> de estranho prazer ante a infantil pergunta <strong>do</strong> paciente.<br />

— Se peida? Ora, os <strong>do</strong>utores são os que mais peidam neste mun<strong>do</strong> — respondeu.<br />

Mas embora a vida <strong>do</strong>s Araújos fosse marcada sobretu<strong>do</strong> pelo estu<strong>do</strong>, <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, meu pai,<br />

não pôde ir à escola como to<strong>do</strong>s os outros. Até os oitos anos, arrastou-se pelo chão da casa.<br />

Naquele tempo, a muleta ainda não lhe estava disponível, pois era feita de madeira extremamente<br />

pesada e ele não tinha força nos braços para usá-la a contento e com segurança. Por isto, vovó<br />

Zezé tentava ajudá-lo o melhor que podia, fazen<strong>do</strong>-se de janela entre meu pai e o mun<strong>do</strong>, uma<br />

janela tão ampla que permitisse que as <strong>do</strong>res e alegrias que existiam fora <strong>do</strong>s portões <strong>do</strong> casarão<br />

da Japurá pudessem ser percebidas, avaliadas e sentidas. Aos 11 anos, finalmente a muleta deixou<br />

de ser pesada demais para ele, assim, o caminho para o Colégio Barão <strong>do</strong> Rio Branco foi aberto<br />

para o menino. Depois de um tempo, ele foi transferi<strong>do</strong> para o Colégio Dom Bosco, o que o


forçava a fazer um percurso de seis quilômetros de ida e volta.<br />

Como papai chegou à escola um pouco fora da idade, sua maior dificuldade foi ter de lidar<br />

com a estupidez de certos mestres, que perdiam a paciência quan<strong>do</strong> viam meninos mais novos<br />

saben<strong>do</strong> mais que ele e, em vez de procurarem saber o que havia aconteci<strong>do</strong>, simplesmente<br />

diziam: “Menino, é impressionante como você é burro. Será que não tem vergonha de saber<br />

menos <strong>do</strong> que esses outros colegas que são menores que você?”<br />

Ora, aquelas perversas observações poderiam ter ti<strong>do</strong> um poder terrivelmente devasta<strong>do</strong>r<br />

para ele. Entretanto, o efeito foi o oposto. <strong>Caio</strong> decidiu que nunca mais na vida ouviria nada igual.<br />

Como ele não poderia ser o melhor nas aptidões físicas, seria o mais destaca<strong>do</strong> na área<br />

intelectual. Assim que adquiriu um pouco mais de desenvoltura na leitura e nos básicos da<br />

aritmética, nunca mais deixou de ser o primeiro de qualquer turma, para o resto de sua vida.<br />

As marcas mais preponderantes da personalidade de papai foram perseverança e<br />

autoconfiança. Vovô sempre dizia a ele: “Meu filho, não há nada neste mun<strong>do</strong> que você não possa<br />

fazer. Nunca deixe que nenhum limite tire de você a ambição da auto-superação.”<br />

Foi por isto que papai se destacou em tu<strong>do</strong> o que pôde competir de igual para igual e se<br />

superou em tu<strong>do</strong> aquilo que os outros consideravam ser para ele uma impossibilidade.<br />

Aprendeu a nadar, a cavalgar, a subir em árvores, a lutar lutas de chão — especialmente se<br />

utilizan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s rudimentos <strong>do</strong> jiu-jítsu, recém-trazi<strong>do</strong> para o Amazonas por alguns curiosos — e,<br />

sobretu<strong>do</strong>, aprendeu a dirigir qualquer coisa, mesmo sem a adaptação <strong>do</strong> veículo à sua condição<br />

de aleija<strong>do</strong>, o que era uma verdadeira façanha para um rapaz sem qualquer movimento na perna<br />

direita.<br />

Para ele, o desafio mais difícil talvez estivesse na área <strong>do</strong> relacionamento com o sexo oposto. A<br />

preocupação de seu pai era como <strong>Caio</strong> se relacionaria com as meninas. Desejoso que não se<br />

frustrasse, vovô <strong>Fábio</strong> dizia-lhe que quan<strong>do</strong> o verdadeiro amor chega, as deficiências se<br />

transformam todas em virtudes. Mas o jovem <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> não parecia precisar desse<br />

condicionamento psicológico para se afirmar em relação às beldades de seus dias.<br />

Às vezes, quan<strong>do</strong> ia da escola para casa, andan<strong>do</strong> sob o sol causticante <strong>do</strong> eterno verão <strong>do</strong><br />

Amazonas, arrastan<strong>do</strong>-se ao embalo de sua pesada muleta, ele via as meninas se juntarem sobre o<br />

estreito espaço das janelas <strong>do</strong>s velhos casarões ergui<strong>do</strong>s rente à rua, a fim de verem-no passar.<br />

Não foram poucas as ocasiões em que ele lembra de ter chega<strong>do</strong> perto da janela, e ouvir as<br />

meninas impie<strong>do</strong>samente falarem alto, umas para as outras, alguma coisa como: “Puxa, que<br />

pena! Um garoto tão bonitinho, mas aleija<strong>do</strong> que nem um caranguejo.” Quan<strong>do</strong> ele me contou<br />

isso pela primeira vez, eu perguntei:<br />

— E como é que você se sentia?<br />

Nunca esqueci sua resposta, que muitas vezes me volta à memória, especialmente nos<br />

momentos em que tenho precisa<strong>do</strong> enfrentar a indiscrição ou mesmo a postura preconceituosa<br />

de muitos que passam pelo meu caminho.<br />

— É, menina, você só está dizen<strong>do</strong> isso porque você não sabe como caranguejo é gostoso.<br />

E foi assim que, de um mo<strong>do</strong> ou outro, ele seguiu dan<strong>do</strong> suas respostas às freqüentes<br />

tentativas que a vida lhe fazia de nele semear as sementes da inferioridade e, assim, roubar-lhe a<br />

chance de escrever sua própria história.<br />

<strong>Caio</strong> nunca se sentiu em desvantagem diante da vida. Ao contrário, no fun<strong>do</strong>, no fun<strong>do</strong>,<br />

achava que Deus dera a ele uma bênção extraordinária, fazen<strong>do</strong>-o nascer numa família feita de<br />

gente tão humana e intelectualmente perspicaz, como seu pai e sua mãe. Além disso, achava que<br />

sua perna morta era apenas um detalhe em alguém tão inteligente e forte como ele.<br />

Uma boa auto-imagem é a melhor auto-ajuda!


Capítulo 4<br />

“Eu não sabia que o mal não tem existência própria, exceto como privação <strong>do</strong><br />

bem, e isto no nível em que o ser não assume o seu papel.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

A década de 1930 havia começa<strong>do</strong> e logo cresceram os rumores de que as coisas estavam<br />

feias na Europa. Naquele tempo, a maioria das famílias de Manaus que tinha algum recurso<br />

financeiro enviava seus filhos para estudar na França, na Inglaterra ou em Portugal. Uma vez que<br />

Manaus ficava mesmo muito longe <strong>do</strong> Rio de Janeiro, os que podiam achavam que, já que de<br />

qualquer mo<strong>do</strong> teriam grandes despesas com a educação <strong>do</strong>s filhos, era melhor dar a eles a<br />

charmosa chance de aprender outra língua e ainda carregar na bagagem o peso de um curso<br />

superior na Europa.<br />

Por muitos anos, a mentalidade <strong>do</strong>s manauenses foi profundamente marcada pela nostalgia<br />

da passada era áurea da borracha. Segun<strong>do</strong> a lenda, no tempo em que a exportação de borracha<br />

trouxera riqueza à região, alguns magnatas locais acendiam seus charutos cubanos com notas de<br />

alguns réis. A narrativas como esta somavam-se outras acerca de como o teatro Amazonas fora<br />

construí<strong>do</strong> com material trazi<strong>do</strong> de navio da Europa e de como prédios inteiros da cidade, como a<br />

Alfândega de Manaus, haviam si<strong>do</strong> pré-fabrica<strong>do</strong>s na Inglaterra e transporta<strong>do</strong>s de navio para<br />

aquela orgulhosa cidade cultural, erguida no centro da mais fascinante floresta <strong>do</strong> planeta.<br />

Os rumores da guerra eram, obviamente, mais que fofoca internacional. A Segunda Guerra<br />

Mundial explodiu, e o mun<strong>do</strong> inteiro, em maior ou menor escala, foi dramaticamente afeta<strong>do</strong> por<br />

ela, inclusive a vida em Manaus.<br />

Uma das primeiras conseqüências foi que os pais que tinham filhos estudan<strong>do</strong> na Europa<br />

mandaram ordens irrevogáveis no senti<strong>do</strong> de que a rapaziada — havia ainda poucas moças<br />

estudan<strong>do</strong> fora <strong>do</strong> país — voltasse para casa. O efeito dessa ação foi que a maioria, em vez de fazer<br />

o caminho de volta à terrinha, preferiu parar no Rio ou, em segunda instância, em São Paulo,<br />

Salva<strong>do</strong>r ou mesmo em Recife, pois as opções de estu<strong>do</strong> universitário no Amazonas ainda não<br />

eram muitas. Quem quisesse ficar em Manaus precisava se contentar em estudar o<strong>do</strong>ntologia,<br />

farmácia, ou direito, sen<strong>do</strong> a última opção considerada a melhor, uma vez que a Faculdade de<br />

Direito <strong>do</strong> Amazonas orgulhava-se de já ter forma<strong>do</strong> profissionais que haviam se destaca<strong>do</strong> fora<br />

<strong>do</strong> esta<strong>do</strong>.<br />

Ora, foi justamente nesta época de guerra e de poucos recursos que vovô <strong>Fábio</strong> teve de enviar<br />

Renato <strong>Fábio</strong> e Carlos <strong>Fábio</strong> para faculdades fora <strong>do</strong> Amazonas. Renato foi direto para o Rio<br />

estudar química industrial, recém-inaugurada como curso superior no Brasil. Carlos <strong>Fábio</strong> foi


para Salva<strong>do</strong>r, cidade onde sua mãe, <strong>do</strong>na Zezé, tinha parentes que poderiam ajudá-lo a enfrentar<br />

as dificuldades inerentes a um curso de medicina, sua mais forte paixão até encontrar Gildélia,<br />

baianinha mimosa, de corpinho mignon, por quem ele caiu de amores e com que veio a casar-se.<br />

As moças da família tinham fica<strong>do</strong> em Manaus e seus horizontes tinham de caber dentro das<br />

limitadas ofertas da cidade. Assim era a vida para as mulheres naqueles dias.<br />

A grande questão de <strong>Fábio</strong> e Zezé era decidir que oportunidades dariam aos filhos, já que<br />

com o perigo das viagens de navio naquele tempo de guerra e com as dificuldades financeiras da<br />

família, agravadas pela necessidade de sustentar os rapazes que estudavam fora, ficava difícil<br />

imaginar o envio de mais um <strong>do</strong>s filhos para longe de casa.<br />

O jovem <strong>Caio</strong> desejava estudar engenharia civil, curso que ainda não existia em Manaus.<br />

Dona Zezé e o mari<strong>do</strong> ponderaram longamente sobre o que fariam com o filho. Apesar da<br />

deficiência física, <strong>Caio</strong> parecia ser ávi<strong>do</strong> intelectualmente e com grandes chances de vir a realizar<br />

tu<strong>do</strong> aquilo que desejasse na vida. Mas como? Não havia dinheiro e eles não queriam sofrer as<br />

angústias de não saber se o filho estaria bem ou não viven<strong>do</strong> longe <strong>do</strong> Amazonas. Além disso, um<br />

fato novo surgiu. Tão logo Renato e Carlos saíram de Manaus para estudar fora, a saúde de João<br />

<strong>Fábio</strong> começou a mostrar alguma deficiência.<br />

Havia claros sinais de que seu coração não fora fabrica<strong>do</strong> na mesma fôrma na qual o coração<br />

centenário <strong>do</strong> velho Araujinho tinha si<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong>. João <strong>Fábio</strong> estava mal. Cansava-se à toa e não<br />

conseguia mais trabalhar com a mesma intensidade. Como conhecia muito bem os sintomas<br />

físicos de sua <strong>do</strong>ença, não tinha a menor dúvida de que não duraria muito. Portanto, a coisa mais<br />

sensata a fazer era arrumar a casa e preparar-se para a morte. Assim sen<strong>do</strong>, chamou <strong>Caio</strong>.<br />

— Meu filho, você é forte, apesar de ser aquele entre nós que mais faz força para conseguir<br />

as coisas. Eu não estou bem de saúde e sei que não tenho muito tempo. Você está apenas com 18<br />

anos, mas é com você que eu conto agora para ajudar sua mãe e aqueles que ainda estão sob nossa<br />

dependência. Restam-me apenas os proventos de minhas funções públicas. Fora isso, hoje, nosso<br />

único patrimônio é o seringal <strong>do</strong> Santo Antônio <strong>do</strong> Cainaã. Eu preciso que você assuma a<br />

administração de tu<strong>do</strong>. Mas, para isto, você terá que se sacrificar. Em vez de ir estudar<br />

engenharia civil fora de Manaus, você vai ficar e estudar direito. Você é muito inteligente e pode<br />

ser bom no que quiser. Fique aqui e tome conta <strong>do</strong>s nossos negócios — disse-lhe.<br />

Papai ainda não podia medir as implicações daquela decisão, mas não tinha a menor dúvida<br />

que alteraria completamente o seu futuro. Mas não havia escolha, e ele sabia disso. Não adiantava<br />

muito trazer o assunto para o plano da meditação ou sugerir a necessidade de mais tempo para<br />

pensar. A resposta tinha de ser imediata e ele sabia que era apenas uma questão de consentir com<br />

o prudente e <strong>do</strong>lori<strong>do</strong> veredicto paterno. Quanto ao mais, era torcer para que a existência<br />

conspirasse a seu favor, de algum mo<strong>do</strong>.<br />

— É claro que sim, paizinho. O senhor sabe que pode contar comigo para o que o senhor ou<br />

mamãe vierem a precisar — meu pai respondeu.<br />

O cansa<strong>do</strong>, mais cansa<strong>do</strong> <strong>do</strong> que velho, João <strong>Fábio</strong>, foi logo passan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> para ele: como<br />

funcionava o esquema; quem era de confiança e quem não era; quem pagava e quem jamais<br />

pagava; quem ele sempre atendia e quem eram aqueles para os quais o tratamento tinha de ser<br />

meramente comercial. Ao final daquele rápi<strong>do</strong> curso de gerenciamento de seringal, o rapaz foi<br />

envia<strong>do</strong> na primeira embarcação disponível que saiu para o alto Purus.<br />

Começaram ali os mais fascinantes e profun<strong>do</strong>s anos de sua juventude. Entregue à solidão<br />

<strong>do</strong>s rios e imerso em longas e intermináveis leituras e meditações, às vezes ele viajava dez dias<br />

para chegar ao porto, onde ainda precisava apanhar uma canoa para remar mais um dia inteiro até<br />

alcançar o lugar que tinha de visitar e ver como estavam os negócios. Foi ali, naquela paisagem<br />

bucólica, repleta de nostalgia e silêncio, que ele aprendeu o valor de se fazer acompanhar de si


mesmo e de pensamentos que interajam com a vida e com a natureza, sem jamais imaginar que a<br />

ausência de humanos possa significar a ausência de humanidade.<br />

Ele me dizia: “A solidão pode ser excelente companhia quan<strong>do</strong> você gosta de si próprio.”<br />

Durante aqueles meses meu pai teve a chance de perceber como a vida no interior <strong>do</strong> esta<strong>do</strong><br />

era miserável. Havia gente morren<strong>do</strong> por banalidades, por <strong>do</strong>enças para as quais já havia cura<br />

disponível na cidade. Além disso, ele ficava choca<strong>do</strong> com a resignação e passividade das pessoas<br />

daquela região. Era como se houvesse um carma amazônico, bastante pareci<strong>do</strong> com o hindu, que<br />

silenciosamente afirmava para as pessoas que a morte era uma fatalidade contra a qual toda luta<br />

era bobagem, mesmo na juventude.<br />

Ali ele ouvia as mulheres contarem que haviam engravida<strong>do</strong> vinte vezes e perdi<strong>do</strong> 13 filhos,<br />

como se estivessem apenas contabilizan<strong>do</strong> as vezes em que o time de futebol de sua preferência<br />

tinha perdi<strong>do</strong> a final <strong>do</strong> campeonato.<br />

E ali ele aprendeu como as grandes questões da existência são reduzidas ao nível da<br />

banalidade quan<strong>do</strong> a vida é feita apenas de farinha de mandioca e água <strong>do</strong> rio Purus.<br />

Ao retornar à cidade, meu pai percebeu-se extremamente maduro diante das futilidades e<br />

expectativas vazias que norteavam as vidas de muitos de seus companheiros, preocupa<strong>do</strong>s apenas<br />

com as pernas de algumas meninas que se davam ao luxo de expor os joelhos ou as coxas roliças e<br />

belas sob as saias ainda não tão curtas, ou ainda com as histórias de alguns candidatos a garanhão<br />

que se jactavam de alguma façanha libidinosa.<br />

Ele, entretanto, não conseguia tirar da cabeça os rostos, as vozes e as histórias radicais, ainda<br />

que estranhamente desapaixonadas, que ouvira no Santo Antônio <strong>do</strong> Cainaã. O seringal teria<br />

salva<strong>do</strong> sua vida ou destruí<strong>do</strong> o seu futuro? Mas se alguma coisa estivesse reservada para ele no<br />

amanhã, certamente isso teria relação com a nova maneira de ver a vida que ele aprendera ali,<br />

quase na fronteira <strong>do</strong> nada.<br />

Era o ano de 1946 e <strong>Caio</strong> viajava para o seringal nos perío<strong>do</strong>s de férias, ou seja, de dezembro a<br />

março e em julho. Numa dessas viagens ao interior, observou um homem estranho, to<strong>do</strong><br />

descasca<strong>do</strong>, de pele avermelhada, que tentava encobrir o rosto quan<strong>do</strong> percebia a aproximação<br />

das pessoas. Achan<strong>do</strong> que o homem estava fugin<strong>do</strong> da vida, resolveu procurá-lo e indagar o que<br />

estava acontecen<strong>do</strong>. Para seu espanto, <strong>Caio</strong> descobriu que o homem estava com lepra, o que<br />

fizera com que a mulher e os filhos o expulsassem de casa. Mas o pobre <strong>do</strong>ente soubera que o<br />

filho <strong>do</strong> Dr. <strong>Fábio</strong> estava no seringal e havia vin<strong>do</strong> perguntar se o jovem poderia levá-lo para o<br />

leprosário de Manaus.<br />

Conversaram longamente e viram que não havia a menor chance de que ele chegasse à capital<br />

pelas vias convencionais, pois nenhum transporte coletivo fluvial ousaria deixar que ele entrasse<br />

para fazer a viagem. Assim, chegaram à triste conclusão que o homem teria de remar sozinho até<br />

Manaus. <strong>Caio</strong> não tinha a menor idéia se o leproso resistiria à viagem, mas era a única chance.<br />

<strong>Caio</strong> prometeu que se o homem chegasse vivo, a remoção dele para uma instituição estaria<br />

garantida. Assim, comprou farinha em abundância e levou o pobre leproso até a beira <strong>do</strong> rio<br />

Purus, onde disse ao homem que com aquela farinha ele poderia fazer chibé e garantir sua<br />

sobrevivência até o porto de Manaus.<br />

Alguns dias depois <strong>Caio</strong> apanhou um barco para Manaus e em duas semanas estava em casa.<br />

Durante to<strong>do</strong>s aqueles dias e noites havia uma angústia latejan<strong>do</strong> dentro dele. A imagem daquele<br />

homem o perseguia como o fazem os fantasmas, que às vezes povoam nossa consciência em plena<br />

luz <strong>do</strong> dia.<br />

Dois meses depois, ele estava senta<strong>do</strong> na varanda da frente <strong>do</strong> casarão da rua Japurá quan<strong>do</strong><br />

viu aparecer aquela figura toda coberta de trapos. Como não conseguia discernir a identidade da<br />

pessoa, resolveu descer para ver quem era. Ao atravessar o campinho que separava a larga fachada


arqueada da casa <strong>do</strong> portão de frente, foi identifican<strong>do</strong> a presença descarnada e semimorta <strong>do</strong><br />

leproso de Santo Antônio <strong>do</strong> Cainaã.<br />

Lágrimas vieram-lhe aos olhos aos borbotões. Seu sentimento de impotência frente ao drama<br />

daquele homem plantara nele as primeiras sementes da descrença religiosa. Se havia um Deus,<br />

como é que Ele consentia que os homens tivessem trajetórias tão desiguais? E que propósito<br />

poderia haver numa existência que acontecia marcada por tão pesa<strong>do</strong>s e incuráveis estigmas?<br />

<strong>Caio</strong> tomou o homem e o levou para os fun<strong>do</strong>s da casa. Deu de comer a ele e providenciou sua<br />

remoção para o leprosário <strong>do</strong> Aleixo, às margens <strong>do</strong> rio Solimões, próximo ao ponto onde as águas<br />

<strong>do</strong>s rios Amazonas e Negro fazem seu majestoso encontro e casamento.<br />

A imagem daquele ser humano nunca mais lhe aban<strong>do</strong>nou a memória. Quan<strong>do</strong> o carro se<br />

afastou, levan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>ente para uma lenta e repugnante morte, o jovem <strong>Caio</strong> ficou pensan<strong>do</strong> que<br />

certamente nunca mais o veria nesta existência, mas que, ao mesmo tempo, nunca mais o<br />

esqueceria nesta vida.<br />

Daquele dia em diante, para ele, a <strong>do</strong>r humana neste planeta seria essa: não poder se<br />

apropriar de seus amores para sempre e nem conseguir esquecer suas <strong>do</strong>res, para sempre.<br />

O leproso mu<strong>do</strong>u sua visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.


Capítulo 5<br />

“Meus estu<strong>do</strong>s, os quais eram considera<strong>do</strong>s respeitáveis, tinham o objetivo de me<br />

levar à distinção como advoga<strong>do</strong> nas cortes de justiça, onde a reputação de um<br />

homem é tão alta quanto seu sucesso na arte de enganar pessoas.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Em 1948, aos 21 anos, meu pai entrou para a Faculdade de Direito <strong>do</strong> Amazonas, que<br />

funcionava em um prédio construí<strong>do</strong> em estilo europeu. De lá se podia ver perfeitamente o<br />

movimento <strong>do</strong>s barcos que atracavam no porto. Aquele era um <strong>do</strong>s lugares mais movimenta<strong>do</strong>s<br />

da cidade de Manaus. Eram pessoas entran<strong>do</strong> aos montes nos “motores de linha”, nome da<strong>do</strong> aos<br />

barcos de madeira que carregavam um número de pessoas em geral bem superior ao que se<br />

esperaria que uma embarcação daquele tamanho pudesse suportar.<br />

O fato é que os motores saíam apinha<strong>do</strong>s de gente porque a “rede de <strong>do</strong>rmir” era o<br />

instrumento de descanso mais usa<strong>do</strong> pela população. Assim, usan<strong>do</strong> a rede, era possível<br />

“montar” até cinco “andares” de pessoas <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> umas sobre as outras nos barcos, o que<br />

aumentava não apenas a capacidade de transporte das embarcações, mas principalmente o perigo<br />

da viagem. E não era raro que tragédias acontecessem, com a perda de um extraordinário número<br />

de vidas humanas.<br />

Ali de cima <strong>do</strong> prédio da faculdade de direito, o universitário <strong>Caio</strong> podia aprender leis e<br />

filosofia sem jamais esquecer suas obrigações familiares com a gerência <strong>do</strong> seringal <strong>do</strong>s Araújos.<br />

O ritual de estudar o ano to<strong>do</strong> e passar as férias no interior, cuidan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s negócios, permaneceu<br />

até mesmo depois de termina<strong>do</strong> o curso.<br />

E logo no início de sua experiência na faculdade, <strong>Caio</strong> viu-se diante de um acontecimento<br />

desastroso, que poderia ter servi<strong>do</strong> de forte desestímulo à conquista de seu espaço no mun<strong>do</strong><br />

universitário. Certo dia, ao deixar a classe e dirigir-se à saída principal <strong>do</strong> prédio, que dava para<br />

uma larga e íngreme escadaria, construída num modesto, porém claramente defini<strong>do</strong>, estilo<br />

romano de fóruns, <strong>Caio</strong> percebeu que muita gente subia e descia simultaneamente as escadas.<br />

Ele parou, pensou se deveria esperar aliviar o fluxo e, por fim, decidiu correr o risco de descer<br />

sem apoio, vez que não havia qualquer adaptação <strong>do</strong> ambiente ao deficiente físico.<br />

Começou a descer e percebeu que não haveria nenhum problema. Quan<strong>do</strong> já estava no meio<br />

das escadarias, alguém passou corren<strong>do</strong> e, sem qualquer cuida<strong>do</strong> com a fragilidade de seu<br />

equilíbrio, deu-lhe um forte esbarrão. <strong>Caio</strong> sentiu seu corpo precipitan<strong>do</strong>-se para a frente e<br />

percebeu que não havia meios de impedir a queda. Restava-lhe, apenas, cair da melhor maneira<br />

possível.


— Se cair se tornar inevitável, então que se caia bem — ele viria a me dizer muitos anos<br />

depois, tiran<strong>do</strong> <strong>do</strong> episódio uma lição prática para a vida.<br />

Largou da muleta e tratou de proteger a cabeça e as partes mais delicadas de seu corpo. Ele<br />

estava acostuma<strong>do</strong> a cair. Caíra a vida toda. Mas não lhe era comum cair em situações que lhe<br />

trouxessem constrangimentos sociais. Nesses contextos, ele se arriscava o mínimo possível. De<br />

repente ele se achou estira<strong>do</strong> no final da escada, no patamar de pedra que conduzia à calçada da<br />

rua.<br />

O lugar estava cheio de rapazes e moças. E como nessas horas há sempre de tu<strong>do</strong> um pouco,<br />

uns logo correram para ajudar, outros assumiram aquela posição de assistentes de filme, ven<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong>, mas sem ação no mun<strong>do</strong> real, enquanto outros, ainda, deram-se ao luxo de um pequeno riso<br />

de sarcasmo e frieza, denotan<strong>do</strong> uma estranha forma de inveja.<br />

Ali no chão, ele pôde perceber bem as fisionomias de seus colegas. Não ficou ressenti<strong>do</strong>.<br />

Aceitou a ajuda que lhe deram e foi andan<strong>do</strong> devagar, sentin<strong>do</strong> <strong>do</strong>res em diferentes partes <strong>do</strong><br />

corpo, mas constatan<strong>do</strong> que não lhe havia aconteci<strong>do</strong> nada mais grave, além da vergonha de ter se<br />

esparrama<strong>do</strong> em público, rebolan<strong>do</strong> de alto a baixo das escadarias da faculdade.<br />

No entanto, aquele episódio surtiu um efeito muito positivo sobre ele. Ao invés de se encolher<br />

dentro de um mun<strong>do</strong> de complexos e inseguranças, sua atitude foi o oposto: decidiu que não<br />

falaria com tom de voz inferior, que jamais deixaria de descer as escadarias, mesmo quan<strong>do</strong><br />

estivessem eventualmente cheias de gente, e mostraria a to<strong>do</strong>s que um homem pode correr na<br />

vida, apesar de suas próprias pernas.<br />

O tombo trouxe forte motivação ao seu coração e empurrou-o adiante: como sua afirmação<br />

pessoal não podia depender de sua desenvoltura física, ele haveria de se transformar no campeão<br />

de uma outra forma de competência. Nunca teve nota abaixo de nove e terminou o curso com a<br />

melhor média geral da faculdade até aquele ano de sua história.<br />

Aprova<strong>do</strong> em concurso para procura<strong>do</strong>r de justiça, optou por ir trabalhar em Canutama, onde<br />

nascera. Para ele voltar para o interior era como voltar para casa. Afinal, desde os 18 anos ia pelo<br />

menos duas vezes por ano àquela região para cuidar <strong>do</strong>s interesses da família no seringal.<br />

Numa daquelas viagens ao interior, no ano de 1951, precisou estender seu caminho até<br />

Borba, a fim de comparecer ao casamento de um amigo, José Reis, que estava se casan<strong>do</strong> com<br />

Raquel, moça de rosto marcadamente amazônico e sorriso aberto. Para o casamento também<br />

havia si<strong>do</strong> convidada Lacy Campos da Silva, professora recém-formada da escola pública de<br />

Coari.<br />

O casório aconteceu como de costume, com a bênção <strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te católico e um arrasta-pé<br />

após a cerimônia. Os Reis eram festeiros e não per<strong>do</strong>avam qualquer chance de acender o<br />

candeeiro e deixar a sanfona tocar até o nascer <strong>do</strong> dia. Como <strong>Caio</strong> não se sentia à vontade<br />

dançan<strong>do</strong>, pois dificilmente conseguiria manter uma mulher junto à sua pesada muleta sem<br />

correr o risco de machucá-la, resolveu ficar quieto, num <strong>do</strong>s cantos, trocan<strong>do</strong> um prosa aqui<br />

outra ali, enquanto ria de uma ou outra façanha <strong>do</strong>s amigos pés-de-valsa, soltos no salão.<br />

Foi daquele ponto de observação que percebeu que havia uma outra pessoa igualmente<br />

afastada <strong>do</strong>s movimentos da festa. Ela era morena, tinha aproximadamente 24 anos, cabelos<br />

longos e ondula<strong>do</strong>s, e dentes amplos, perceptíveis quan<strong>do</strong> ela sorria — o que, aliás, fazia com<br />

muita graça. Depois de se observarem por um tempo, foram apresenta<strong>do</strong>s um ao outro pela noiva,<br />

amiga de ambos, e que sempre nutrira o desejo de vê-los aproxima<strong>do</strong>s.<br />

Não deu outra. A química da afinidade foi instantânea. Eles conversaram a noite toda e nunca<br />

mais puderam deixar de se ver. O namoro veio como coisa natural. Não muito tempo depois, Lacy<br />

foi apresentada ao Dr. <strong>Fábio</strong>, já bem <strong>do</strong>ente, e a <strong>do</strong>na Zezé, que a acolheram com especial<br />

carinho. O velho farmacêutico, com inamovível vocação para a paternidade, pôde, então, chamar o


filho e dizer-lhe: “Minha última preocupação com você acabou hoje. Eu sempre tive receio de<br />

que você se tornasse tími<strong>do</strong> no amor em razão de seu defeito físico. Mas agora, ven<strong>do</strong> você<br />

aman<strong>do</strong> um moça tão boa como essa, sinto-me à vontade para morrer. Deus ouviu minhas<br />

preces.”<br />

Do la<strong>do</strong> de Lacy, a alegria não era menor. Maria Campos da Silva, mãe da moça, não poderia<br />

estar mais contente, exceto por uma razão: o Dr. <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> era de família católica, e Lacy, a mãe<br />

e o irmão, Lucilo, eram protestantes. Presbiterianos, mais precisamente.<br />

Naquele tempo ainda havia muito preconceito, de ambos os grupos, um em relação ao outro.<br />

Os católicos chamavam os crentes de bodes e de hereges fanáticos, enquanto os protestantes, por<br />

seu turno, atacavam como podiam: não cessavam jamais de pregar e de fazer fortíssimas<br />

denúncias ao culto às imagens pratica<strong>do</strong> pelos católicos e a muitas outras formas de desvios<br />

bíblicos, conforme a interpretação reformada da fé.<br />

Mas o amor era mais forte <strong>do</strong> que os <strong>do</strong>gmas da religião. Por isto, <strong>Caio</strong> e Lacy fizeram um<br />

pacto de respeito mútuo naquela área e prometeram que não tentariam converter um ao outro.<br />

A história de Lacy era totalmente diferente da de <strong>Caio</strong>. Ela nascera em uma família muito<br />

mais simples e não pudera ter acesso ao estu<strong>do</strong> de nível superior, chegan<strong>do</strong> a concluir apenas o<br />

curso clássico, que formava professoras primárias. Sua mãe, Maria Campos da Silva, havia<br />

nasci<strong>do</strong> no interior <strong>do</strong> Amazonas, em 1898. Do avô, Mariano, e da avó, Mariana, sabia-se muito<br />

pouco, além <strong>do</strong> fato de que Mariana falecera ce<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a filha tinha apenas quatro anos, sen<strong>do</strong><br />

seguida pelo mari<strong>do</strong> para a eternidade <strong>do</strong>is anos depois, o que transformou Maria em uma<br />

criança inteiramente órfã. Não fosse a bondade de uma tia que a criou, a menina certamente teria<br />

ti<strong>do</strong> futuro muito melancólico.<br />

De Firmino, pai de Lacy, nasci<strong>do</strong> em 1881, em Quixadá, Ceará, sabia-se ainda menos. Era<br />

filho de uma mulher que se casara aos 11 anos, chamada Isabel, com um homem bem mais velho,<br />

o seu Deodato. Naquele tempo, esse tipo de casamento de crianças com homens adultos, às vezes<br />

até avança<strong>do</strong>s em idade, era muito freqüente. Como nem sempre era fácil arranjar uma esposa no<br />

interior, era comum que homens respeitáveis <strong>do</strong> lugar encomendassem o casamento com o pai<br />

de uma menina, às vezes ainda bebê. É possível que esse tenha si<strong>do</strong> o caso.<br />

Maria era uma mulher muito interessante. Não ten<strong>do</strong> nenhum antecedente protestante na<br />

família, sozinha e até contra a opinião de amigos e vizinhos, decidiu, aos 35 anos, converter-se à fé<br />

calvinista, tornan<strong>do</strong>-se presbiteriana. Mesmo não ten<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong> além <strong>do</strong> terceiro ano primário,<br />

desenvolveu uma certa capacidade autodidata, especialmente depois que seu amor pela leitura da<br />

Bíblia se manifestou.<br />

Mas suas maiores sensibilidades eram-lhe absolutamente inerentes. As mais<br />

impressionantes eram o seu amor pela natureza e a sua fantástica capacidade olfativa. Para<br />

ilustrar seu fascínio pelas belezas da criação, basta dizer que ela acordava ce<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os dias, por<br />

volta das quatro horas da manhã, lia a Bíblia, fazia orações e, depois, punha-se à janela da casa,<br />

quieta, meditativa, esperan<strong>do</strong> o sol nascer. Para ela, aquele era o momento mais bonito <strong>do</strong> dia e<br />

quem quer que o perdesse havia despreza<strong>do</strong> a primavera da luz natural, o que lhe parecia<br />

incompreensível.<br />

Entretanto, o que mais impressionava em Maria era sua capacidade de discernir cheiros,<br />

aromas, fragrâncias e o<strong>do</strong>res. Quan<strong>do</strong> entrava num lugar, ela não apenas sentia o cheiro<br />

característico daquele ambiente, mas também sabia que o<strong>do</strong>res, reuni<strong>do</strong>s, resultavam naquele<br />

sentir olfativo específico. Não era raro ela dizer: “Hum! Essa moça que acabou de passar<br />

misturou talco com pomada Minâncora e, ainda por cima, colocou Leite de Rosas com um outro<br />

perfume no corpo. Tá cheiran<strong>do</strong> a sovaco de rico.” Ela também podia entrar num quintal,<br />

inspirar os o<strong>do</strong>res na entrada e, mesmo sem ver o que lá havia, simplesmente observar: “Que


maravilha! As mangas-rosa e os jenipapos estão maduros. Que delícia!”<br />

Maria tinha uma maneira quase litúrgica de se relacionar com os cheiros. Uma das coisas<br />

mais rotineiras que ela fazia era varrer as folhas secas <strong>do</strong> quintal e jogá-las num buraco que ela<br />

mantinha sempre aberto. Uma vez feito isso, tocava fogo nas folhas e sentava-se de longe para<br />

inspirar o cheiro que exalava da fogueira, dizen<strong>do</strong>: “Que coisa gostosa, cheiro de folha queimada.<br />

Tem cheiro <strong>do</strong> quintal de minha tia.” Para ela, aquele ato tinha dimensões espirituais. A fumaça<br />

era como um incenso de aroma suave, que subia às narinas divinas e dava a Deus um imenso<br />

prazer pela gratidão da memória de Maria, ao pôr-<strong>do</strong>-sol de mais um dia em sua vida.<br />

Essa mulher de hábitos fortes casou-se com Firmino em 1924. Mas naquela época, no<br />

interior <strong>do</strong> Amazonas, paixão e amor ainda eram coisas secundárias quan<strong>do</strong> se tratava de decidir<br />

um vínculo conjugal. E a união de Maria e Firmino resultou em um relacionamento muito difícil.<br />

Firmino crescera órfão e vivera como homem livre de padrões morais defini<strong>do</strong>s. Sen<strong>do</strong><br />

foguista de embarcações a vapor, não parava em casa. Às vezes ficava cinco ou seis meses sem<br />

aparecer. E nos portos onde parava, sempre se agarrava a alguma saia.<br />

Dizem que ele tinha um apetite sexual me<strong>do</strong>nho. As mulheres que se lhe mostravam<br />

disponíveis eram imediatamente usadas, e aquelas que não estavam assim tão “à mão” eram<br />

muitas vezes seduzidas por sua lábia cearense. O fato é que ele teve de arcar com as<br />

conseqüências de ações tão libertinas. Ten<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> tantas caboclas diferentes e se atola<strong>do</strong><br />

em tantos seios, cabelos e corpos, cheio de tamanha avidez, acabou por encontrar ali não apenas o<br />

prazer, mas, sobretu<strong>do</strong>, a <strong>do</strong>r e a morte. Naquele tempo, a gonorréia matava, ou debilitava tanto,<br />

que levava lentamente à morte.<br />

Depois de muito se expor às <strong>do</strong>enças venéreas, acabou em casa e <strong>do</strong>ente, ten<strong>do</strong> de conviver,<br />

dia a dia, com o poder <strong>do</strong>s prazeres amaldiçoa<strong>do</strong>s, que o tomaram pela mão até o silêncio da<br />

última e eterna viagem.<br />

Ainda hoje eu me lembro dela contan<strong>do</strong> como havia cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> até o fim, embora<br />

tivesse avisa<strong>do</strong> que ele jamais voltaria a tocá-la com aquelas “mãos sujas de pegar em tanta<br />

mulher”.<br />

Foi com esse pano de fun<strong>do</strong> que Lacy entrou na vida de <strong>Caio</strong>, e por mais que ela lutasse<br />

contra a idéia, sofria de um certo complexo de inferioridade em relação à família dele. Some-se,<br />

ainda, a isso tu<strong>do</strong>, a própria mentalidade protestante da época, tomada por profun<strong>do</strong> complexo de<br />

perseguição. Para Lacy, era difícil construir uma ponte para fora de seu pequeno mun<strong>do</strong>, uma<br />

ponte que a transportasse para um espaço, bem maior em suas ramificações, vínculos e<br />

oportunidades.<br />

Por fim, em 2 de maio de 1953, <strong>Caio</strong> e Lacy casaram-se em regime de comunhão de bens,<br />

mas sem a bênção religiosa, pois nenhum <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is conseguiu convencer suas famílias a consentir<br />

com o casamento na igreja <strong>do</strong> outro. Após o casamento, arrumaram suas trouxas e partiram para<br />

Canutama, onde <strong>Caio</strong> exercia a função de promotor de justiça <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, e onde Lacy passou a<br />

lecionar no grupo escolar.<br />

Em agosto daquele mesmo ano os <strong>do</strong>is começaram a se preparar para notícias de desalento.<br />

Em Manaus, os membros da família já começavam a reunir-se em torno <strong>do</strong> leito de Dr. João<br />

<strong>Fábio</strong>, que, irreversivelmente, começava a morrer.


Capítulo 6<br />

“Hoje tenho mais pena de uma pessoa que se regozija no mau <strong>do</strong> que daquele que<br />

tem o sentimento de ter sofri<strong>do</strong> ao ser impedi<strong>do</strong> de participar em prazer pernicioso<br />

ou como ten<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> uma fonte de felicidade miserável.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

João <strong>Fábio</strong> de Araújo morreu em profunda agonia. Não conseguin<strong>do</strong> mais respirar, ataca<strong>do</strong><br />

que estava há muitos anos por deficiências respiratórias gravíssimas resultantes de um mal<br />

cardíaco à época incurável, veio a falecer em grande ansiedade. Seu sofrimento foi bárbaro. O ar<br />

não lhe chegava ao peito, e ele pedia a Deus que o aliviasse das infernais sufocações que o<br />

desesperavam. Entre os filhos e amigos presentes o clima era de <strong>do</strong>r e perplexidade. Como Deus<br />

podia deixar sofrer tanto um ser humano que na vida não fizera nada além de dedicar-se, inteira e<br />

apaixonadamente, à causa <strong>do</strong>s pobres e órfãos? Que propósito teria Deus em tu<strong>do</strong> aquilo? Ou<br />

ainda — como era o caso das questões de <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> — que Deus era esse (se é que havia<br />

algum), que consentia com <strong>do</strong>r tão estúpida e sem senti<strong>do</strong>?<br />

Às nove horas da manhã, <strong>do</strong> dia 11 de setembro de 1953, João <strong>Fábio</strong> partiu para o eterno. O<br />

espírito daquele dia de luto foi expresso por Arthur Virgílio em seu artigo João <strong>Fábio</strong> de Araújo,<br />

bon<strong>do</strong>sa figura de lida<strong>do</strong>r, escrito em 18 de setembro e publica<strong>do</strong> em 27 <strong>do</strong> mesmo mês no maior<br />

periódico da época em Manaus, O Jornal <strong>do</strong> Comércio.<br />

O povo acompanhou a pé o enterro de vovô e levou-o até o cemitério, onde o sepultou na<br />

mesma cova em que, no ano de 1931, ele próprio enterrara seu filho Luís Ricar<strong>do</strong>.<br />

Ainda hoje João <strong>Fábio</strong> vive em to<strong>do</strong>s nós, que dele descendemos, pois mesmo não chegan<strong>do</strong> a<br />

conhecê-lo no chão deste planeta, nunca consegui me livrar da ética que ele praticou. De meus<br />

anos de criança, não me ficou a impressão de que meus tios e parentes fossem pessoas que<br />

dessem muita ênfase ao certo ou erra<strong>do</strong>. O que minha memória registrou foram frases que se<br />

faziam constantes nos lábios de to<strong>do</strong>s eles, frases que apontavam numa direção para muito além<br />

da moral. “Ele é um homem humano”; ou ainda: “Isto não é humano”, era o que diziam com<br />

freqüência quan<strong>do</strong> emitiam seus “juízos de valores”.<br />

As histórias de vovô me ensinaram que “ser humano” é muito “mais certo” <strong>do</strong> que “ser<br />

correto” . Às vezes, ao contrário, para ser humano, é até preciso ser “incorreto” com relação aos<br />

chama<strong>do</strong>s “conteú<strong>do</strong>s <strong>do</strong> comportamento preestabeleci<strong>do</strong>”. Para ser humano, mais que<br />

freqüentemente é necessário viver onde o risco de não ser compreendi<strong>do</strong> sempre se faz presente.<br />

A “ética <strong>do</strong> humano” tem como referência padrões que não se escrevem em códigos de<br />

conduta estudáveis, vez que são valores que brotam de intuições <strong>do</strong> amor e da solidariedade e,


nesse nível da existência, o que menos importa é a média <strong>do</strong>s comportamentos aceitáveis. Neste<br />

caso, o que prevalece é a disposição <strong>do</strong> coração de enfrentar o mun<strong>do</strong> inteiro somente para não<br />

negar um sentimento ou uma intuição, seja em favor de alguém ou de uma simples idéia.<br />

<strong>Caio</strong> e Lacy continuaram em Canutama por mais <strong>do</strong>is anos. O tempo passava calmo, porém<br />

tedioso, até que em julho de 1954 Lacy ficou grávida de seu primeiro filho, razão pela qual, no<br />

início de 1955, resolveram voltar a Manaus.<br />

Eu nasci em 15 de março de 1955, na Santa Casa de Misericórdia de Manaus, às cinco horas<br />

da tarde de uma terça-feira.<br />

No mesmo dia jorrou petróleo em Nova Olinda, no rio Madeira, quase na sua confluência<br />

com o rio Amazonas, o que fez com que meu pai saísse <strong>do</strong> hospital gaban<strong>do</strong>-se de que na sua casa<br />

havia brota<strong>do</strong> algo igualmente precioso.<br />

Papai e mamãe já estavam decidi<strong>do</strong>s quanto ao nome que eu deveria ter. Tiveram dúvida, no<br />

início, se me chamariam Hugo ou <strong>Caio</strong>, mas como naquela época era comum dar o nome <strong>do</strong> pai<br />

ao primogênito, optaram por <strong>Caio</strong> mesmo. Além disso, eles gostavam <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> latino <strong>do</strong><br />

nome: bordão, caja<strong>do</strong> ou alegria. E, assim, me registraram com esse nome, que na infância me<br />

trouxe inúmeros problemas e que se tornou a razão de vários complexos que tive de vencer no<br />

início da a<strong>do</strong>lescência.<br />

Passa<strong>do</strong> o resguar<strong>do</strong> de mamãe, fomos juntos para Canutama. Lá, além de dedicar-se ao<br />

trabalho como servi<strong>do</strong>r da justiça, papai investiu tempo numa nova arte: a marcenaria. Começou<br />

a fazer com as próprias mãos o meu berço, bem como os demais móveis da casa. A mesmice e o<br />

tédio <strong>do</strong> lugar permitiam que meus pais se devotassem inteiramente a mim, o que eles<br />

precisariam fazer de qualquer forma, pois logo comecei a dar muito trabalho. Aos seis meses tive<br />

uma coqueluche tão forte, que eles pensaram que eu fosse morrer. Perdia o ar por longos<br />

minutos e ficava arroxea<strong>do</strong> a ponto de minha mãe, às vezes, pensar que eu não fosse voltar da<br />

crise. Por causa disso, e de uma nova posição que papai conquistara como subprocura<strong>do</strong>r geral <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong>, eles decidiram voltar para Manaus de vez.<br />

A coqueluche se foi, mas a mania de chorar ficou. To<strong>do</strong>s que me conheceram nos primeiros<br />

anos de vida dizem que fui um grande chorão. Além disso, sofria de uma fome insaciável e,<br />

enquanto não era atendi<strong>do</strong> nos meus clamores por comida, não deixava ninguém em paz. E a<br />

gritaria começava muito ce<strong>do</strong>, às quatro da matina, quan<strong>do</strong> desferia os primeiros berros,<br />

machucan<strong>do</strong> os ouvi<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s, até <strong>do</strong>s vizinhos, que às vezes vinham se oferecer para me<br />

segurar enquanto minha mãe fazia o mingau.<br />

— Gagau, gagau — eu gritava, desespera<strong>do</strong>, até me trazerem a papa das quatro da manhã.<br />

Em 1957, papai decidiu deixar o serviço público, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>, contra a opinião geral, a<br />

posição que conquistara no esta<strong>do</strong>, a fim de abrir seu próprio escritório de advocacia em Manaus.<br />

Sua pequena iniciativa vingou e três anos depois ele já começava a ser visto como um <strong>do</strong>s mais<br />

promissores nomes da profissão. Mas ele era ambicioso e não se contentou apenas com os ganhos<br />

que o exercício <strong>do</strong> advocacia lhe rendiam.<br />

Em 1958, criou a Colimpa S.A., uma sociedade de sete pessoas, mínimo permiti<strong>do</strong> pela lei<br />

para uma sociedade anônima naqueles dias. Ele e o político, que entraria para sempre para a<br />

história <strong>do</strong> Amazonas, Gilberto Mestrinho, eram os acionistas majoritários, ainda que,<br />

legalmente, o último fosse representa<strong>do</strong> por Antônio Lin<strong>do</strong>so, cujo irmão, José Lin<strong>do</strong>so, anos<br />

depois, durante a ditadura militar, viria a ser governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>.<br />

A companhia explorava ouro na região de Parauari e seu Adriano, um negro de Barba<strong>do</strong>s que<br />

descobrira a jazida, era quem entrava na mata para buscar a preciosidade.<br />

Dois anos depois, em companhia de alguns amigos, papai abriria a Compaina, que explorava<br />

borracha e castanha na região <strong>do</strong> rio Novo Aripuanã. No mesmo ano, o então governa<strong>do</strong>r Gilberto


Mestrinho nomeou-o diretor comercial da Papel Amazon, empresa de capital misto, estadual e<br />

federal.<br />

Enquanto isso, ele seguia usan<strong>do</strong> sua crescente influência política para aumentar seu capital<br />

relacional como advoga<strong>do</strong>, uma vez que, logo no início, percebeu que saber “quem é quem”<br />

constitui capital que poucos conseguem adquirir e menos ainda conseguem usar bem. E isso ele<br />

sabia fazer muito eficientemente e em proveito próprio, é claro.


Capítulo 7<br />

“Eu estava sem qualquer desejo por alimento incorruptível, não porque eu<br />

estivesse repleto dele. Ao contrário, quanto mais vazio dele eu estava, mais<br />

desagradável ao paladar tal alimento se me tornava.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Papai e mamãe compraram um terreno nos fun<strong>do</strong>s da casa de vovó Zezé e construíram ali a<br />

nossa primeira casa. Os <strong>do</strong>is quintais se encontravam e formavam um só. Para mim, as<br />

lembranças daquele tempo são repletas de imagens mágicas. O quintal era o mesmo <strong>do</strong> tempo da<br />

infância de meu pai e as mudanças no ambiente não tinham si<strong>do</strong> muitas.<br />

Naquele pedaço de chão havia tu<strong>do</strong> que as crianças pudessem desejar para mergulhar no<br />

mun<strong>do</strong> da imaginação. Além <strong>do</strong>s primos que viviam no casarão da vovó Zezé, havia ainda os filhos<br />

<strong>do</strong>s vizinhos, que pulavam o muro e se perdiam em aventuras que iam de Tarzan a Ivanhoé, <strong>do</strong><br />

Zorro ao Fantasma e de Robin Hood a Hércules.<br />

Naquele mesmo perío<strong>do</strong>, manifestou-se o início da veneração que eu teria por meu pai.<br />

— Bambio, papai, tum-tum, bobó — era como eu pedia to<strong>do</strong>s os fins de tarde para ele me<br />

fazer montar em sua costa (tum-tum) e me levar até a casa da vovó Zezé (bobó).<br />

A fascinação que ele exercia sobre mim tinha a ver com sua infindável paciência para brincar<br />

de luta comigo, sempre fazen<strong>do</strong> de conta que eu ganhava, ou com a repetição incansável de<br />

malabarismos, quan<strong>do</strong> eu subia nele e me sentia um trapezista fazen<strong>do</strong> peripécias nas alturas.<br />

— Onde você pensa que vai, menino? — perguntava mamãe de propósito, sempre que me via<br />

com um monte de processos legais de papai embaixo <strong>do</strong> braço.<br />

— Vô pu tibunal levá os pocessos po papai — era como eu pagava a paciência que ele me<br />

devotava, com admiração.<br />

Nós, os “filhos <strong>do</strong> quintal”, éramos um monte de meninos com nomes comuns, mas<br />

marca<strong>do</strong>s pelo segun<strong>do</strong> nome <strong>Fábio</strong>. Já as meninas tinham ti<strong>do</strong> a sorte de não ser Fábias. Os<br />

garotos eram João, José, Paulo, eu e meu irmão Luiz. To<strong>do</strong>s <strong>Fábio</strong>s. As garotas eram Sônia, Ana e<br />

minha irmã Suely.<br />

Tínhamos a sorte de viver naquela terra encantada. A presença de nossas avós também era<br />

forte em nossas vidas, e eu e meus irmãos éramos os únicos com duas de plantão e cheias de<br />

cafuné à nossa disposição. Quan<strong>do</strong> eu queria leite condensa<strong>do</strong> no meio da tarde, bastava ir ao<br />

casarão de <strong>do</strong>na Zezé. Ela sempre tinha umas latas guardadas para fazer os nossos gostos.<br />

Quan<strong>do</strong> chegava a hora <strong>do</strong> banho, eu voltava para minha casa, onde Mãe Velhinha, como eu acabei<br />

chaman<strong>do</strong> minha avó Maria, me aguardava para me lavar todinho. Depois <strong>do</strong> banho, no início da


noite, vinham as músicas e as histórias que ela nos contava.<br />

Mãe Velhinha nos marcou profundamente de mo<strong>do</strong> bom e mau. A parte boa inclui suas<br />

histórias, suas lendas amazônicas, sua capacidade de fazer a gente sentir cheiros, sua insistência<br />

em nos fazer gostar de animais, plantas e cores, especialmente as <strong>do</strong> amanhecer e as <strong>do</strong><br />

pôr-<strong>do</strong>-sol. A parte ruim tem a ver com sua insistência em nos tirar da cama no melhor <strong>do</strong> sono,<br />

às cinco da matina, para nos fazer ver o sol nascer.<br />

Além disso, havia também sua chatice de dividir o mun<strong>do</strong> entre católicos e protestantes,<br />

dizen<strong>do</strong> sempre que os primeiros estavam irremediavelmente perdi<strong>do</strong>s e os últimos<br />

inevitavelmente salvos. Cansava. Lembro-me de às vezes ouvi-la dizer coisas <strong>do</strong> tipo: “Que pena<br />

que <strong>do</strong>na Zezé é católica. Tão boa, mas tão perdida.” Ou ainda: “É, que pena. Teu pai não vai<br />

para o céu. Enquanto ele for católico, não vai mesmo.”<br />

A coisa que mais espanta meus pais é a minha memória infantil. De fato, tenho recordações<br />

de perío<strong>do</strong>s tão longínquos quanto os meus <strong>do</strong>is anos e meio de idade. Por exemplo, lembro-me,<br />

nitidamente, <strong>do</strong> primeiro castigo que recebi. Papai havia dito que eu não pegasse em algo, e eu o<br />

desobedeci sistematicamente. Ele, então, me colocou de castigo: eu não poderia sair da sala, <strong>do</strong><br />

quarto e da alcova, onde o chão era de cerâmica amarela. Para fora desses limites, o chão era de<br />

cerâmica vermelha. Por isto, a partir daquele momento, eu me sentia em liberdade nos chãos<br />

amarelos e não nos vermelhos.<br />

Recor<strong>do</strong>-me que, aos cinco anos, senti uma fortíssima vontade de pegar a filha de um vizinho<br />

e sentá-la em meu colo, sem nem saber direito por que razão aquela estranha sensação de<br />

excitamento percorren<strong>do</strong> meu corpo. Fiquei ali, na frente da casa deles, senta<strong>do</strong>, com a menina<br />

no meu colo, até que fomos flagra<strong>do</strong>s. De repente, a mãe dela chegou, nos pegou, gritou, e me<br />

chamou de tara<strong>do</strong>. Afinal, a garotinha tinha a minha idade, mas a iniciativa tinha si<strong>do</strong> minha.<br />

Daí em diante, a coisa correu solta. To<strong>do</strong>s os dias, depois que chegávamos da escola,<br />

enquanto o pessoal da vizinhança fazia a sesta, vivíamos aqueles inocentes momentos de<br />

promiscuidade infantil, atrás das árvores, embaixo <strong>do</strong>s galinheiros, escondi<strong>do</strong>s no porão da casa<br />

de vovó, ou em qualquer brecha em que coubessem duas crianças brincan<strong>do</strong> de papai e mamãe<br />

ou de médico.<br />

Aquelas “brincadeiras” tomaram proporções enormes em minha mente. Aos sete anos,<br />

passava grande parte <strong>do</strong> tempo pensan<strong>do</strong> no que poderia fazer para aproveitar novas<br />

oportunidades naquela área. Nossos pais, bem como toda a vizinhança, pareciam absolutamente<br />

inconscientes quanto ao que acontecia a alguns de nós. E mesmo a maioria <strong>do</strong>s “filhos <strong>do</strong><br />

quintal” parecia estar alheia aos jogos de sexo infantil que ali aconteciam.<br />

E como eu me sentia irremediavelmente masculino, não podia nem me imaginar em<br />

qualquer papel, naquelas diversões precoces, em que não estivesse na condição de extremamente<br />

ativo e possui<strong>do</strong>r.<br />

Mas o quintal e as memórais <strong>do</strong>s primeiros anos não eram feitos só disso. Para a maioria das<br />

crianças ali, aquele era de fato um mun<strong>do</strong> inocente e mágico. E não faltavam os ingredientes<br />

necessários ao estímulo da fantasia naquele pedaço de chão.<br />

Doutor Américo era a figura mais exótica que nós to<strong>do</strong>s conhecíamos naquele espaço mítico.<br />

Era alto, magro, costelas expostas a ponto de poderem ser contadas a distância, cabelos negros e<br />

longos, caí<strong>do</strong>s sobre os ombros. O rosto era compri<strong>do</strong> e os olhos faiscantemente enlouqueci<strong>do</strong>s.<br />

O homem era poeta. Declamava versos de sua própria autoria e não parava de andar nu, exibin<strong>do</strong><br />

naturalmente seu longo pênis, à semelhança <strong>do</strong>s grandes cavalos que pastavam no campinho em<br />

frente ao casarão de vovó Zezé, que também tinham seus membros sexuais pendura<strong>do</strong>s à vista de<br />

to<strong>do</strong>s.<br />

Doutor Américo era o humano mais selvagem que nós to<strong>do</strong>s conhecíamos. Ele era o ponto de


contato entre o animal e a alma. Andava nu, como um bicho, mas caminhava cheio de poesia,<br />

como poucos humanos o faziam. Não me chocava ver a nudez <strong>do</strong> poeta mais <strong>do</strong> que a <strong>do</strong>s cavalos.<br />

Ele também era um ser livre e vivia sua animalidade com melodia insana. A esposa <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor era<br />

uma mulher de traços notadamente indígenas. Ora, ele nos falava das virtudes femininas dela<br />

com grande poesia.<br />

— Alexandre, o Magno da Macedônia, Sidney Galtama e Iléia Amazônica são os nomes <strong>do</strong>s<br />

meus filhos. Mas os senhores podem chamar a menina de Mococa — dizia o nosso vizinho<br />

diferente, sempre fazen<strong>do</strong> alusões gratuitas aos seus três filhos, que viviam entre nós e eram<br />

nossos amigos de fantasia no quintal.<br />

O poeta louco marcou a mente infantil de to<strong>do</strong>s nós. Além <strong>do</strong> poeta, havia uma jibóia que era<br />

mantida no porão da vovó por um <strong>do</strong>s muitos “filhos de criação”. Era a cobra <strong>do</strong> Xico Sobe e<br />

Desce, como a gente chamava aquele menino que mancava de uma perna. Ela cresceu tanto, que<br />

um dia, enquanto Xico <strong>do</strong>rmia numa rede, a bicha enroscou-se nele. O acocho foi tão forte que o<br />

Sobe e Desce teve de sair pelo punho da rede. Xico quase morreu de susto. Então matamos a<br />

danada num ritual dramático, cortan<strong>do</strong>-lhe a cabeça e pon<strong>do</strong>-a num vidro com álcool.<br />

Lá em casa, no outro extremo <strong>do</strong> terreno, nós chegamos a ter cavalos, ovelhas, um jacaré e<br />

um macaco, além de araras, periquitos, galinhas e outros bichos, pois papai a<strong>do</strong>rava satisfazer<br />

nossas fantasias selváticas e Mãe Velhinha, mesmo que a contragosto, acabava cuidan<strong>do</strong> da<br />

bicharada.<br />

Nossas noites eram absolutamente extraordinárias. Naquele tempo, não havia televisão em<br />

Manaus. Entretanto, tio Carlos <strong>Fábio</strong>, o médico, que também residia no casarão, resolveu<br />

dedicar-se ao hobby das filmagens. Assim, comprou uma câmera de cinema ama<strong>do</strong>r, um projetor<br />

e montou um estúdio de revelação em preto-e-branco. Ele filmava brincan<strong>do</strong>, brigan<strong>do</strong>, corren<strong>do</strong><br />

ou mesmo representan<strong>do</strong> algum papel, e exibia os filmes em noites concorridíssimas, onde nós e<br />

a garotada da vizinhança nos amontoávamos para assistir nossas versões artísticas da vida. Era o<br />

máximo.<br />

Foi ali que fiz meus primeiros discursos.<br />

— Esses tal de Plínio Coelhos são uns, uns, uns,... (ra,ra,ra), uns cabra. Esses tal de Gilberto<br />

é que são bom — dizia eu, imitan<strong>do</strong> os discursos <strong>do</strong>s comícios que Mãe Velhinha me levava para<br />

ver na praça Quatorze.<br />

O processo de produção e revelação <strong>do</strong> filme também nos empolgava, especialmente porque<br />

o lugar onde tio Carlos revelava o material era o porão <strong>do</strong> casarão, onde tinha seu laboratório,<br />

sempre tranca<strong>do</strong> e sob muitas recomendações de que não deveria ser viola<strong>do</strong>.<br />

Lembro-me que na primeira vez que nos foi da<strong>do</strong> acesso à “sala escura”, entramos nas<br />

pontas <strong>do</strong>s pés, como se entra num santuário que, em vez de carregar em si o sabor <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>,<br />

escondia consigo o mistério <strong>do</strong> proibi<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s estávamos cala<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> tio Carlos resolveu<br />

contar o segre<strong>do</strong> da revelação <strong>do</strong>s filmes, guarda<strong>do</strong> num produto que ficava num vidro largo e<br />

barrigu<strong>do</strong>. Ele disse solenemente: “Aqui está o líqui<strong>do</strong> da mágica <strong>do</strong> filme.” E parou olhan<strong>do</strong> para<br />

to<strong>do</strong>s nós. Nossos olhos estavam arregala<strong>do</strong>s de prazer e encanto. E prosseguiu: “Agora se<br />

preparem. Eu vou abrir.” E aí então saiu de dentro daquele vidro o mais terrível cheiro que eu<br />

jamais sentira em to<strong>do</strong>s os meus sete anos de vida. Titio então gritou: “É o pei<strong>do</strong> alemão.”<br />

To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> correu. Alemão, para nós, era símbolo de algo que matava. Nunca me<br />

esquecerei <strong>do</strong> cheiro.<br />

Nossa fantasia infantil passava, sobretu<strong>do</strong>, por dentro <strong>do</strong> grande casarão. Ali, de acor<strong>do</strong> com<br />

Xico Sobe e Desce e outros mestres da fascinação, moravam visagens, fantasmas e almas<br />

penadas, que haviam morri<strong>do</strong> no antigo hospital e que voltavam à noite para passear pela casa.<br />

Assim é que nós ouvíamos histórias sem fim de como havia um cômo<strong>do</strong> no porão que não


deveríamos visitar jamais — coisas <strong>do</strong> Xico — e de como morava uma velha monstruosa e feia no<br />

mirante <strong>do</strong> último andar da casa.<br />

A escada de madeira que serpenteava de alto a baixo da casa era o ponto de contato preferi<strong>do</strong><br />

pelas visagens. Entre o terceiro e o quarto andares, Xico jurava, poderíamos sentir a mão fria de<br />

um fantasma e as correrias incontroláveis das assombrações que por ali se divertiam. E, nesse<br />

ponto, os ratos e o processo de dilatação noturno das madeiras da casa ajudavam a manter os<br />

mitos vivos e próximos de nossa imaginação, intensamente colorida por tons fantasmagóricos.<br />

Viver ali até os dez anos de minha vida foi a maior desgraça e a maior bênção de minha<br />

infância. A desgraça fica por conta da promiscuidade infantil; a bênção, da magia e da fantasia que<br />

semearam em mim o poder da imaginação.


Capítulo 8<br />

“Comida imaginada em sonhos é extremamente parecida com a comida recebida<br />

quan<strong>do</strong> se está acorda<strong>do</strong>; ainda assim, aqueles que <strong>do</strong>rmem, mesmo quan<strong>do</strong><br />

sonham com deliciosos manjares, não se alimentam, pois estão <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

A vida profissional de meu pai continuava progredin<strong>do</strong>. Ouvia-se sempre que ele era um<br />

<strong>do</strong>s homens mais ricos da cidade. Pelo menos essa era a fama. Talvez porque, sen<strong>do</strong> de família<br />

bastante conhecida no esta<strong>do</strong> por outras razões que não o dinheiro, ele aliava esse lega<strong>do</strong> aos<br />

primeiros sinais de influência e poder. Era jovem, estava em torno <strong>do</strong>s 34 anos, mas as evidências<br />

de prosperidade e sucesso o acompanhavam. Seus carros importa<strong>do</strong>s, luxuosos e únicos na<br />

cidade, faziam com que sua presença fosse notada onde quer que ele estivesse. Além disso, seu<br />

escritório de advocacia crescera e se tornara um <strong>do</strong>s mais lucrativos. Tu<strong>do</strong> isso, alia<strong>do</strong> aos<br />

empreendimentos nos quais ele já estava envolvi<strong>do</strong>, dava a ele essa aura de homem da hora.<br />

Apesar de sua ascensão social, meu pai ainda não parecia ter muda<strong>do</strong> muito, exceto numa<br />

coisa: na religiosidade. Viven<strong>do</strong> conflitos quanto a questões de natureza filosófica e já um tanto<br />

convenci<strong>do</strong> acerca de sua privilegiada inteligência, ele começou a se confessar agnóstico.<br />

Tornar-se ateu era demais para um filho <strong>do</strong> Dr. <strong>Fábio</strong>, mas o charme da aparente honestidade<br />

filosófica da confissão agnóstica o seduzia e dava-lhe a sensação de estar no compasso <strong>do</strong>s<br />

tempos. Quanto ao mais, não apresentava mudanças significativas. Continuava meigo com sua<br />

mãe, amigo da esposa, dedica<strong>do</strong> e carinhosíssimo com os três filhos, companheiro leal <strong>do</strong>s irmãos<br />

e crítico contumaz <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s de persuasão religiosa de Mãe Velhinha.<br />

Numa coisa, mais <strong>do</strong> que em qualquer outra, ele continuava absolutamente inalterável: no<br />

seu amor pelas florestas e pelo selvagismo <strong>do</strong> Amazonas. Eu me recor<strong>do</strong> claramente que, mesmo<br />

estan<strong>do</strong> cheio de incumbências na capital, papai sempre conseguia arranjar um pretexto para ir<br />

pessoalmente resolver alguns negócios no interior. Nessas ocasiões, ele me colocava a tiracolo,<br />

entrava num “motor” e passava até duas semanas longe da vida urbana.<br />

Para mim, aquelas saídas eram como ter a chance de visitar outro planeta. Talvez as<br />

principais marcas que eu traga na memória daqueles tempos de incursão nos intestinos <strong>do</strong><br />

Amazonas tenha a ver com coisas muito simples.<br />

O encontro da águas. Foi ali, na proa daqueles barcos, que eu vi, muitas vezes, as águas <strong>do</strong><br />

Negro e <strong>do</strong> Solimões assumirem seu concubinato natural: não se casam e nem se separam; não<br />

são um e nem conseguem viver sem o outro; não se misturam, mas também não se descolam. E lá<br />

ficava eu, quase sempre ouvin<strong>do</strong> meu pai declamar de um tamborete, encosta<strong>do</strong> contra a parede


frontal que protegia o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> barco, a poesia de Quintino Cunha (1875-1943):<br />

“Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este<br />

é o Rio Negro, aquele é o Solimões.<br />

Vê bem como este contra aquele investe<br />

como as saudades com as recordações.<br />

Vê como se separam as águas<br />

que se querem reunir, mas visualmente;<br />

é um coração de quem quer reunir as mágoas<br />

de um passa<strong>do</strong> às aventuras de um presente.<br />

É um simulacro só, que as águas <strong>do</strong>nas<br />

desta terra não seguem curso adverso;<br />

To<strong>do</strong>s convergem para o Amazonas,<br />

o real rei <strong>do</strong>s rios <strong>do</strong> universo.<br />

Para o velho Amazonas, soberano,<br />

que no solo basilio tem o Paço;<br />

Para o Amazonas, que nasceu humano,<br />

porque, afinal, é filho de um abraço!<br />

Olha esta água, que é negra como tinta;<br />

posta na mão, é alva que dá gosto.<br />

Dá por visto o nanquim com que se pinta<br />

nos olhos a paisagem de um desgosto.<br />

Aquela outra parece amarelada muito,<br />

no entanto, é também limpa, engana.<br />

É direito a virtude quan<strong>do</strong> passa<br />

pela flexível porta da Choupana.<br />

Que profundeza, extraordinária, imensa,<br />

que profundeza, mas que desconforme!<br />

Este navio é uma estrela suspensa<br />

neste céu d’água brutalmente enorme.<br />

Se estes <strong>do</strong>is rios fôssemos, Maria,<br />

Todas as vezes que nos encontrássemos,<br />

Que Amazonas de amor não sairia<br />

de mim, de ti, de nós que nos amamos?<br />

As viagens prosseguiam, aprofundan<strong>do</strong>-se para dentro <strong>do</strong>s rios e para dentro da alma. Eram<br />

cheiros e encantos que nos seduziam à noite, quan<strong>do</strong> encostávamos na beira <strong>do</strong> rio e ouvíamos<br />

milhares de grilos e outros insetos com seus ruí<strong>do</strong>s fantásticos e seus o<strong>do</strong>res incríveis, quase de<br />

outra ordem de existência. Os aromas da floresta eram trazi<strong>do</strong>s pelo ar úmi<strong>do</strong> e denso que às<br />

vezes soprava <strong>do</strong> rio para a mata e, outras vezes, num estranho e breve retorno de vento, da mata<br />

para o rio.<br />

Os cheiros me excitavam de um mo<strong>do</strong> to<strong>do</strong> especial. Eu não podia <strong>do</strong>rmir quan<strong>do</strong> os o<strong>do</strong>res<br />

variavam muito. Eu os sentia to<strong>do</strong>s. Não raro esse show de variedade de fragrâncias fazia-se<br />

acompanhar por longas e ricas histórias sobre as lendas da região. Eram cobras grandes e<br />

mamíferos cabelu<strong>do</strong>s — a piraíba era o nome mais forte — capazes de engolir um homem, e<br />

espíritos da mata e suas visagens; enfim, era o paraíso para a imaginação.


O que mais me impressionava naquelas viagens era a sensação de encontro com a morte que<br />

eu de vez em quan<strong>do</strong> experimentava, o que acontecia sempre que alguém tinha de se lançar, no<br />

meio da noite, nas águas densamente pretas <strong>do</strong> Negro ou nas agitadas, povoadíssimas e barrentas<br />

águas <strong>do</strong> Solimões.<br />

— Dun, dun, dun, dun, trannnnnn. Pun, pô — era como quase sempre a máquina começava a<br />

cantar sua desgraça, dan<strong>do</strong> sinas de que iria parar. Na maioria das vezes, era capim aquático,<br />

descen<strong>do</strong> o rio como uma ilha flutuante, que se enrolava à hélice. E nem adiantava jogar âncora.<br />

Quase sempre a profundidade <strong>do</strong> rio era tamanha, que a corda da âncora não chegava ao fun<strong>do</strong>. A<br />

solução era “voluntariar” alguém para pular e ver <strong>do</strong> que se tratava.<br />

O duro era que, em geral, essas coisas aconteciam à noite, sempre depois daquela longa<br />

sessão lendária de terror amazônico, quan<strong>do</strong> não faltavam histórias de gente que havia<br />

desapareci<strong>do</strong> no rio, tragada pelas águas e suas bestas, ou vítimas da conspiração <strong>do</strong>s espíritos da<br />

mata. Obviamente, o agnóstico <strong>do</strong> meu pai não acreditava na última parte, mas amava e<br />

reverenciava tu<strong>do</strong> aquilo como lega<strong>do</strong> cultural.<br />

O certo é que alguém tinha de pular nas águas. Não me esqueço de que, às vezes, enquanto o<br />

voluntário se preparava, alguém contava como aquela ação era perigosa, lembran<strong>do</strong> a memória de<br />

um “cumpade macho” que sempre fizera aquilo, até o dia em que, pulan<strong>do</strong>, nunca mais voltara<br />

das águas. Eu ficava pensan<strong>do</strong> por que se dizia aquilo justamente na hora em que o pobre<br />

desgraça<strong>do</strong> <strong>do</strong> voluntário ia pular na água, no meio <strong>do</strong> breu. Depois, só bem depois, foi que<br />

percebi que aquilo era parte de um ritual <strong>do</strong>s homens de coragem que se submetiam a tarefas<br />

como aquela. To<strong>do</strong>s os que vi pular voltaram, graças a Deus. Mas, para a minha mente de menino<br />

de sete anos, tu<strong>do</strong> aquilo parecia uma visita à alcova da morte, um flerte com ela, o sentir <strong>do</strong> seu<br />

cheiro.<br />

De volta a Manaus, eu me sentia como um rei que retornava de conquistas em terras tão<br />

distantes, que nem a melhor imaginação conseguiria descrever. Eu voltava altera<strong>do</strong>, de peito<br />

estufa<strong>do</strong>, checan<strong>do</strong> meus músculos a to<strong>do</strong> momento e com a sensação de que os outros meninos<br />

eram uns pobres seres, presos à rotina da rua e <strong>do</strong> grupo escolar. Meu pai, perceben<strong>do</strong> isto,<br />

insuflou em minha alma a semente da aventura. Começou a me provocar como podia. Dizia que<br />

eu podia ir aonde eu soubesse chegar e, por isso, com certeza, desse lugar eu saberia voltar. E<br />

dava aulas práticas. Estimulava-me a ir empinar pipa nas ruas e nos quarteirões distantes, aonde<br />

os demais garotos da rua jamais sonhavam em ir.<br />

— Se você souber aonde está in<strong>do</strong>, saberá sempre o caminho de volta para casa. Quem sabe<br />

aonde a sua casa fica, não tem me<strong>do</strong> de ir a lugar nenhum na vida — ele dizia. Eu nunca pensei<br />

que ele estivesse plantan<strong>do</strong> em mim uma semente que haveria de me dar uma indescritível<br />

sensação de independência no futuro.<br />

Ele também me dizia, freqüentemente, que eu precisava aprender a lutar contra aquilo que<br />

era maior <strong>do</strong> que eu. Por isto, nunca me deixava praticar os rudimentos <strong>do</strong> jiu-jítsu — que tio<br />

Carlos aprendera na Bahia e nos ensinara lá no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> quintal — com meninos da minha idade.<br />

— Ganhar de um menino da sua idade e <strong>do</strong> seu tamanho não é façanha. Quero ver você bater<br />

no Zé Maria, que é bem maior que você — ele sempre dizia.<br />

E ele nos punha para sair no braço, rolar pelo chão, levantar, mandar a mão na cara <strong>do</strong> outro,<br />

até que um golpe final liquidasse a parada.<br />

Em geral, eu apanhava <strong>do</strong> meu oponente maior por um mês ou <strong>do</strong>is, to<strong>do</strong>s os fins de semana,<br />

até que, de repente, e sem que eu sequer entendesse como, dava no cara, e daí em diante, nunca<br />

mais apanhava dele. Naquelas ocasiões, papai parecia estar toman<strong>do</strong> da pedagogia de sua<br />

deficiência física e aplican<strong>do</strong>-a num outro contexto, que, no entanto, apontava na mesma direção:<br />

a auto-superação.


Possivelmente, dentre as lições de pedagogia mais marcantes, a que teve maior influência<br />

sobre mim foi a da casinha de compensa<strong>do</strong>. Papai percebeu que Suely e eu estávamos tentan<strong>do</strong><br />

construir uma casa sob a carroceria de um velho caminhão que estava aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> num <strong>do</strong>s<br />

cantos <strong>do</strong> nosso imenso quintal. Então, aproveitan<strong>do</strong> uma folga na agenda, resolveu revitalizar<br />

suas virtudes de carpinteiro autodidata e construiu para nós uma casinha de sala e quarto, com<br />

uma porta e uma janela na fachada. Quan<strong>do</strong> a obra ficou pronta ele nos apresentou a ela com as<br />

seguintes palavras: “Podem entrar. A casa é de vocês.” Depois me disse: “Entre aí, ame uma<br />

mulher e ame seus filhos.” O eco de suas palavras reboam na minha alma até hoje, e, somente<br />

muitos anos depois, eu fui discernir o peso e o impacto que elas haviam deixa<strong>do</strong> sobre a minha<br />

existência.<br />

Papai comprou um sítio e decidiu que o transformaria no melhor balneário da cidade.<br />

Daquele tempo em diante, nossa opção de lazer era pegar o carro e fazer a longérrima viagem de<br />

15 quilômetros até ao lugar <strong>do</strong>s igarapés, <strong>do</strong>s pés de buriti que cresciam nos chavascais e<br />

alagadiços, onde os bichos, de tão inocentes, desfilavam faceiros diante de nós e onde caçar<br />

passou a ser um <strong>do</strong>s shows <strong>do</strong> fim de semana não só para os adultos, mas também para alguns<br />

meninos, especialmente para meu primo José <strong>Fábio</strong> e eu.<br />

Uma das primeiras coisas que papai fez lá foi uma piscina maravilhosa, cavada na areia branca<br />

e fina e forrada nas laterais de madeiras de lei, que nada mais era <strong>do</strong> que a passagem natural de<br />

uma nascente de água que ele resolvera dar o charme de fazer derramar-se artificialmente de<br />

uma cascata de pedras que ele construíra.<br />

Quan<strong>do</strong> o sába<strong>do</strong> chegava e nós nos arrumávamos para ir para o sítio, a adrenalina viajava a<br />

mil pelo meu corpo. A primeira coisa que fazíamos era mergulhar na piscina para pegar os sapos<br />

com a mão e jogá-los no igarapé ao la<strong>do</strong>. Depois, podíamos iniciar a festa. Uma vez ou outra, tio<br />

Carlos gritava lá de cima, da varanda da casa — que, aliás, fora construída sobre um aterro no<br />

estilo de uma pirâmide escalonada em cujo topo a casa ficava. “Ninguém na piscina. Tem cobra.”<br />

E, então, pegava seu rifle e demonstrava a exatidão de sua pontaria, não raras vezes matan<strong>do</strong> a<br />

cobra no primeiro tiro.<br />

Depois de tu<strong>do</strong> arruma<strong>do</strong>, saíamos para caçar. Tio Carlos colocava-me no ombro e<br />

entravámos na mata. No início, o meu temor da experiência era visível. Eles diziam que havia<br />

onça, cobra sucuri, porco-<strong>do</strong>-mato, capivara, anta, quati etc. Para mim, to<strong>do</strong>s eram tão ferozes<br />

como a onça. Portanto, eu experimentava o me<strong>do</strong> na sua forma mais pura e sedutora.<br />

Um dia, quan<strong>do</strong> eu estava nas costas de tio Carlos para poder atravessar uma zona alagada,<br />

ele ouviu um ruí<strong>do</strong> diferente e pensou que fosse um bicho. Deixan<strong>do</strong>-me sobre um tronco, disse:<br />

“<strong>Caio</strong>zinho, fica aqui e não se mexe. Não sai daqui. Num tem perigo nenhum. Fica aí.” E foi, na<br />

pontinha <strong>do</strong>s pés — xhuaá, xhuaá, xuhaá... — era o barulho de suas botas andan<strong>do</strong> bem<br />

devagar, mas cheias de água —, sumin<strong>do</strong> no alaga<strong>do</strong>. Xhaaaá, longe. E eu ali, sozinho.<br />

Comecei a olhar em volta e a me lembrar das histórias de que a onça era sabida: atraía o<br />

caça<strong>do</strong>r para longe, fazia a volta e atacava pelas costas. Nesse caso, seriam as minhas costas.<br />

Comecei a somatizar o ataque, o dilaceramento de meu braço, meu estômago. Por fim, minha<br />

cabeça sen<strong>do</strong> arrancada e a bicha me levan<strong>do</strong> para dentro da mata, meu corpo penden<strong>do</strong> de sua<br />

boca como um coelho que balançava nos dentes de uma fera. Não agüentei. Saí pela mata na<br />

maior carreira, na mesma direção que tio Carlos tinha entra<strong>do</strong>. Xhuá, xhuá, xhuá — era a<br />

barulheira de meus movimentos desespera<strong>do</strong>s, no meio <strong>do</strong> alaga<strong>do</strong>. Só ouvi quan<strong>do</strong> houve um<br />

ruí<strong>do</strong> de agitação animal em debandada. Os bichos <strong>do</strong> chão corriam no alagadiço e as aves voavam<br />

nervosas de seus abrigos. Tio Carlos veio com ódio e vontade de fazer comigo exatamente o que<br />

eu pensei que a onça faria, pois eu tinha espanta<strong>do</strong> um belo vea<strong>do</strong> que lhe estava quase na mira.<br />

Mas, com o passar <strong>do</strong> tempo, fui me tornan<strong>do</strong> mais frio. Já não me assustava com tanta


facilidade. No entanto, o receio estava sempre lá, escondi<strong>do</strong> em algum lugar. Uma vez fomos<br />

caçar em outra direção. Era um lugar em que um amigo da família havia dito ter visto mais tucano<br />

<strong>do</strong> que em qualquer outro em toda a sua vida. Fomos lá. Nunca tinha visto espetáculo mais<br />

fascinante: eram centenas de tucanos, com seus bicos longos e quase surrealistas. O ruí<strong>do</strong> era<br />

incrível. A cena indescritível.<br />

— Mas por que matar tucano? — era minha questão. — Quem comeria isso? — O lugar<br />

deles parecia ser ali, na decoração da mata.<br />

Mas Afonso, o amigo que descobrira o paraíso <strong>do</strong>s tucanos, pensava diferente:<br />

— Isso é bom de comer que vocês nem sabem! — dizia ele.<br />

Daí a começar o tiroteio foi simples. E foi uma chacina. Mais de trinta caíram no chão. Uns<br />

mortos, outros se debaten<strong>do</strong>, feri<strong>do</strong>s.<br />

Meu estômago embrulhou. Vi o sangue <strong>do</strong>s bichinhos e disse para mim mesmo: “Desse<br />

bicho eu não como nem morto.” Aos sete anos, o que eu estava sentin<strong>do</strong> era o que de mais<br />

próximo eu poderia ter experimenta<strong>do</strong> sobre a idéia de homicídio. Voltei para a casa <strong>do</strong> sítio<br />

carregan<strong>do</strong> uma nostalgia parecida com uma depressão. Aliás, não apenas eu. Na verdade, parecia<br />

que aquilo não fizera a felicidade de nenhum de nós, e não acrescentara aos caça<strong>do</strong>res a idéia da<br />

conquista, mas a certeza da estupidez e <strong>do</strong> despropósito.<br />

Mas, para mim, as idas ao sítio também tinham outra motivação. Um homem <strong>do</strong> lugar tinha<br />

umas filhas caboclas, e eu, com a malícia <strong>do</strong> quintal, ensinada pelo Zé Maria, não deixava passar<br />

nenhuma oportunidade que me propiciasse algum tipo de distração com as meninas, desde<br />

“brincadeiras rápidas” até algumas bem mais profundas, sempre vividas na minha matreirice de<br />

levá-las sozinhas para ver “algo maravilhoso” que elas ainda não conheciam.<br />

Criança também sabe fazer o que é mau e, a seu mo<strong>do</strong>, vive suas próprias ambigüidades. Eu<br />

tinha pena <strong>do</strong>s tucanos, mas não poupava as filhas <strong>do</strong> caboclo.<br />

As idas ao sítio começaram, entretanto, a ficar marcadas por outro sentimento: a distância de<br />

papai e o silêncio de mamãe.


Capítulo 9<br />

“Para mim era <strong>do</strong>ce amar e ser ama<strong>do</strong>, tanto mais se eu também podia desfrutar <strong>do</strong><br />

corpo da amada. Assim, eu poluí a água da primavera da amizade com a podridão<br />

da concupiscência. Em minha excessiva vaidade, eu continuei andan<strong>do</strong> da mesma<br />

forma elegante pela cidade. Corri para o amor, pois era por ele que eu desejava ser<br />

captura<strong>do</strong>.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Ninguém sabia que o sucesso profissional tinha altera<strong>do</strong> meu pai mais profundamente que<br />

se poderia imaginar. Já havia sinais de uma certa arrogância nas suas ações. Ele podia variar <strong>do</strong><br />

carinho e <strong>do</strong> afago à brutalidade na correção <strong>do</strong>s filhos. Mamãe, ele já não tratava <strong>do</strong> mesmo<br />

mo<strong>do</strong>. Percebia-se um tom sempre muito crítico da parte dele em relação a ela.<br />

Também era possível vê-lo com freqüência perder a paciência com Adriano, o sócio na<br />

exploração de ouro na mina de Parauari. Ele tratava o homem com brutalidade cada vez maior.<br />

— Seu preto burro, estúpi<strong>do</strong>, tacanho. Eu mato você, seu idiota. Como é que você fez uma<br />

cavalice dessas, seu velhaco? — ele dizia brandin<strong>do</strong> a muleta no ar, com vontade de descê-la na<br />

cabeça <strong>do</strong> assusta<strong>do</strong> barbadiano, que se defendia e tentava acalmá-lo com seu sotaque arrasta<strong>do</strong> e<br />

português malfala<strong>do</strong>, trocan<strong>do</strong> sempre o masculino pelo feminino e, por isso mesmo, quase<br />

assinan<strong>do</strong> sua própria sentença de morte sem perceber.<br />

— Caia, não fica zangada, não. Eu não tem culpa, não. Você, Caia, sabe disso. Tem paciência,<br />

Caia — falava Adriano, enquanto papai corria para cima dele, aos berros.<br />

— Seu desgraça<strong>do</strong>, você fica aí se fazen<strong>do</strong> de quem não sabe falar português só para ter o<br />

pretexto de me chamar de Caia, seu safa<strong>do</strong>. Não fale português comigo. Eu falo inglês e não<br />

cometo essas barbaridades que você comete, seu burro.<br />

Na hora, dava muito me<strong>do</strong>. Mas depois, quan<strong>do</strong> eu ficava sozinho, caía na risada. Era cômico.<br />

O que ninguém poderia imaginar era que o Dr. <strong>Caio</strong> estava apaixona<strong>do</strong>, e não era por minha<br />

mãe. Mesmo já ten<strong>do</strong> “pula<strong>do</strong> a cerca” antes, aquela era a primeira vez que ele resolvia construir<br />

uma casa <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>.<br />

Nos primeiros meses — e até durante o primeiro ano —, ninguém sabia, oficialmente. Mas<br />

numa cidade como aquela, e com ele dirigin<strong>do</strong> aqueles carros tão extravagantes, era impossível<br />

“dar pulinhos de la<strong>do</strong>”, como ele dizia, sem se auto-incriminar. Mas havia sempre muitos álibis,<br />

desculpas e cúmplices para disfarçar a situação.<br />

No entanto, daquela vez era diferente. A mulher era um pedaço de fêmea, completamente<br />

dentro <strong>do</strong>s padrões de beleza da época: loira, seios generosos à la Marilyn Monroe, vesti<strong>do</strong>s


apertadíssimos na cinturinha fina, boca larga e lábios carnu<strong>do</strong>s; enfim, bem dentro <strong>do</strong> modelo<br />

sedutor <strong>do</strong> fim da década de 50 e início <strong>do</strong>s anos 60. O nome dela era Simone.<br />

Eles se conheceram através de amigos comuns. A vivência amorosa dela já era profunda.<br />

Tinha duas filhas, de pais diferentes, Silvia, morena e mais calma, e Alma, loira e esfuziante como<br />

a mãe. Dizia-se que Simone já tivera vários outros namora<strong>do</strong>s, o que mamãe, depois que<br />

descobriu tu<strong>do</strong>, jurava ser verdade, dizen<strong>do</strong> que se baseava em fatos e em fofocas que vinham de<br />

muitas direções.<br />

O relacionamento deles logo passou <strong>do</strong> fortuito e descomprometi<strong>do</strong> para o aberto e<br />

apaixona<strong>do</strong>. Um homem como ele tinha uma dificuldade adicional para ser amante, o que, com<br />

certeza, não estava relaciona<strong>do</strong> à perna defeituosa ou à muleta, mas ao caráter. Isto porque, por<br />

mais que ele quisesse, não conseguia imaginar a si próprio in<strong>do</strong> à casa daquele pedaço de mulher<br />

somente para possuí-la. Ele se sentia muito mal fazen<strong>do</strong> assim.<br />

Meu pai achava que, já que aquilo estava acontecen<strong>do</strong>, embora fosse erra<strong>do</strong>, tinha que ser,<br />

então, o fruto <strong>do</strong> amor, não apenas da carne. E desesperar-se de amores por aquela mulher, com<br />

seus encantos, charmes, experiências e habilidades na arte da paixão, era tão natural quanto<br />

alguém dizer que comeu ambrosia e gostou.<br />

No princípio, tu<strong>do</strong> o que havia era desconfiança. Mamãe começou a querer saber por que ele<br />

estava se atrasan<strong>do</strong> sistematicamente para o jantar. Depois, passou a ficar intrigada com o ar de<br />

desconforto que ele demonstrava quan<strong>do</strong> ela ia ao seu escritório sem avisar. Por fim, concluiu<br />

que alguma coisa estava para lá de errada. Quan<strong>do</strong> o telefone tocava e ela atendia, ninguém falava<br />

<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> e desligava, para em seguida tocar de novo, papai atender, e então mudar o<br />

semblante para uma expressão inchada, especialmente nos lábios, onde ele jamais conseguira<br />

deixar de revelar alguma coisa que lhe era desconfortável, mediante a “criação” de um biquinho.<br />

— Sim, sim, hum-hum, tá. Vou sim. Espere. Não. É. Então tá. Certo. Até logo — era mais ou<br />

menos como a coisa se mostrava para quem estava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de cá, ouvin<strong>do</strong> aquelas conversas dele<br />

com “ninguém”.<br />

A confirmação veio apenas quan<strong>do</strong> ele não tinha mais como e nem por que deixar de admitir a<br />

verdade. Havia <strong>do</strong>r em seu olhar quan<strong>do</strong> reconheceu que já estava ten<strong>do</strong> uma “amante” — era<br />

assim que se dizia naqueles dias — há algum tempo.<br />

Mamãe queria saber o que toda mulher quer saber: “Por quê?” E mais: “É coisa <strong>do</strong> coração<br />

ou é só desejo carnal?” Ele respondeu com objetividade, como sempre. Era coisa da alma e da<br />

carne, era forte, e ele não tinha como parar. Entretanto, a razão de ter esta<strong>do</strong> aberto àquela<br />

situação, ele mesmo não sabia responder. Não sabia e achava que coisas assim não aconteciam,<br />

necessariamente, porque o relacionamento estivesse fracassa<strong>do</strong> com o cônjuge. Às vezes, eram<br />

apenas armadilhas <strong>do</strong> coração, sempre absolutamente ignorante de si mesmo e freqüentemente<br />

ansioso por amar de mo<strong>do</strong> enlouqueci<strong>do</strong>.<br />

Mas para minha mãe, aquilo era apenas conversa fiada e, mesmo que ela não conseguisse<br />

dizer dessa forma, achava que aquilo era pura sem-vergonhice.<br />

— Ainda bem que o Doutor <strong>Fábio</strong> já morreu para não ter que ver você desonrar o nome dele<br />

desse jeito! Mas a <strong>do</strong>na Zezé vai sofrer muito quan<strong>do</strong> souber — disse mamãe, acreditan<strong>do</strong>, no<br />

fun<strong>do</strong>, que a imagem quase onipresente <strong>do</strong> faleci<strong>do</strong> João <strong>Fábio</strong> ainda poderia funcionar como<br />

consciência familiar.<br />

Não adiantou, como jamais adiantaria. Papai estava disposto a tu<strong>do</strong> por aquele sentimento, ou<br />

melhor, quase tu<strong>do</strong>. Disse que dava a ela o direito de não querer mais ser sua mulher, mas que<br />

abrir mão <strong>do</strong>s filhos era algo que ele jamais negociaria. A saída <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “desquite” estava,<br />

nesse caso, completamente descartada.<br />

Mamãe pediu para pensar. Conversou muito com Mãe Velhinha e ouviu suas ponderações.


Afinal, para quem havia ti<strong>do</strong> um mari<strong>do</strong> como seu Firmino, as aventuras de <strong>Caio</strong> ainda eram o<br />

paraíso.<br />

— Olha, eu sei o que é isso. Vivi a vida toda com a certeza de que compartilhava meu mari<strong>do</strong><br />

com outras mulheres. Mas o que fazer? Os homens são to<strong>do</strong>s iguais: uns rabos-de-saia. Só não<br />

esperava que <strong>Caio</strong> fosse dar nisso. Parecia tão sério. Mas não entregue seu mari<strong>do</strong> a esse jaburu.<br />

Ele é seu e de seus filhos. Lute por ele — ela disse.<br />

Mamãe tentou explicar-lhe que a sua geração já não pensava daquele jeito. Compartilhar o<br />

mari<strong>do</strong> era algo que a maioria até desconfiava que fazia, mas preferia fingir que não sabia. No<br />

entanto, no seu caso não havia o escape honroso da ignorância. A cidade inteira falava. Sua<br />

vergonha era pública.<br />

O fato é que mamãe decidiu tocar para a frente. Mas a que custo!<br />

Como era de se esperar, ela jamais voltou a tratar papai com normalidade. A humilhação<br />

gerara nela um sentimento de raiva que se alternava, ora produzin<strong>do</strong> falações amarguradas, ora<br />

profun<strong>do</strong> silêncio. Acabou qualquer tipo de vida íntima ou amizade que pudesse haver entre eles.<br />

Os cinemas noturnos, antes comuns na vivência <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is, acabaram completamente. As idas ao<br />

sítio, antes animadas, cheias de expectativas, passaram a ser mera condução das crianças para um<br />

ambiente que elas amavam; apenas isso. As refeições, que eventualmente faziam juntos,<br />

passaram a ser torturas à mesa. Não se falavam.<br />

O clima era pesa<strong>do</strong>, carrega<strong>do</strong> de angústia, e ainda piora<strong>do</strong> pelos olhares de Mãe Velhinha,<br />

que, moran<strong>do</strong> conosco desde a nossa volta de Canutama, não conseguia se distanciar da situação.<br />

E ainda havia o pior: as nossas conversas infantis, tratan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is como se nada estivesse<br />

acontecen<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> encontrar neles o casal de amantes e amigos que um dia haviam si<strong>do</strong> e que<br />

a chegada de Simone transformara, no máximo, em sócios formais.<br />

Quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>na Zezé ficou saben<strong>do</strong>, chamou o filho para conversar. Lembrou os ensinamentos<br />

de João <strong>Fábio</strong> e sua conduta. Disse que a família era sagrada e recor<strong>do</strong>u que entre eles jamais<br />

houvera uma separação; desquite, então, era nome estranho, que ela não admitiria fosse incluí<strong>do</strong><br />

no vocabulário <strong>do</strong>s Araújos. Até mesmo Carlos <strong>Fábio</strong>, melhor amigo de papai, discreto e calmo,<br />

foi estimula<strong>do</strong> a conversar com ele. Em casa eu comecei a perceber o zum, zum, zum de que algo<br />

iria acontecer.<br />

— Dona Zezé falou com ele. Agora é o Carlos. Não é possível. Ele tem que ouvir — contava<br />

mamãe à minha avó, bem baixinho, entre dentes, sussurran<strong>do</strong> na cozinha.<br />

— O que é que o tio Calos vai falar com papai? — eu perguntava.<br />

— Nada, menino — era a resposta de sempre. Mas com o passar <strong>do</strong>s meses, o tom mu<strong>do</strong>u<br />

para: “Você ainda está muito pequeno para entender.” E ao final <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> ano de <strong>do</strong>r, depois<br />

que eu insistentemente perguntei a razão dela chorar tanto sozinha e de papai ficar com aquele<br />

biquinho chato pendura<strong>do</strong> no rosto o dia to<strong>do</strong>, mamãe me contou tu<strong>do</strong>.<br />

— Teu pai tem uma amante — foi como ela me disse.<br />

Ora, eu era menino precoce em muitas áreas. Mas aquele negócio de “amante” era algo que<br />

eu não sabia <strong>do</strong> que se tratava. A princípio, pareceu-me algo bom. Amante vinha de amor, e amor<br />

era bom. Mas como, então, aquilo mudara tão dramaticamente as nossas vidas para pior?<br />

— O que é ter uma amante, mamãe? — indaguei.<br />

— O <strong>Caio</strong> não gosta mais da Lacy e arranjou um jaburu — respondeu Mãe Velhinha, curta e<br />

grossa, que estava ao la<strong>do</strong> de mamãe.<br />

Eu conhecia bem os jaburus. No centro da cidade, na frente da igreja Matriz de Manaus,<br />

existia um pequeno zoológico, onde havia aquelas aves altas e de pernas finas, da família das<br />

garças, embora bem maiores, que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> dizia ser o jaburu. Nunca entendi por que vovó<br />

chamava Simone daquele jeito. Afinal, para mim, os jaburus eram feios, e quan<strong>do</strong> conheci a tal da


amante de papai, pensei tu<strong>do</strong>, menos que ela fosse feia.<br />

Papai, perceben<strong>do</strong> que eu já sabia de tu<strong>do</strong>, resolveu abrir o jogo comigo. Disse que nos<br />

amava, que jamais nos deixaria e que tinha respeito por mamãe.<br />

— Ela é uma mulher muito boa e uma excelente mãe — disse ele.<br />

— Por que então você não gosta só dela? — resposta que eu não pude entender aos oito anos<br />

de idade.<br />

— É por que eu amo mais a outra.<br />

Ele foi logo dizen<strong>do</strong> que Simone tinha duas filhas, mas que nós não nos preocupássemos,<br />

pois os herdeiros de tu<strong>do</strong> o que ele tinha éramos nós e que, independente <strong>do</strong> que acontecesse, ele<br />

jamais sairia de casa.<br />

Nunca mais me esquecerei daquela conversa. Foi no banheiro de nossa casa; e eu estava em<br />

pé e ele senta<strong>do</strong> sobre o tampo <strong>do</strong> vaso sanitário. Quan<strong>do</strong> a porta se abriu e nós saímos, eu me<br />

senti como se meus ombros pesassem muito mais <strong>do</strong> que eu podia carregar. Olhei para Suely e<br />

Luiz <strong>Fábio</strong> como se o pai deles fosse eu e percebi que, se mamãe não tinha mari<strong>do</strong>, eu precisava<br />

ser para ela mais <strong>do</strong> que filho.<br />

Dali em diante, vi a relação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is se deteriorar a cada dia. Mamãe não chorava mais, apenas<br />

odiava. Parou de falar com ele e ambos me institucionalizaram “pombo-correio”. Eu levava<br />

pedi<strong>do</strong>s de dinheiro e trazia cash. Perguntava se ele precisava de alguma coisa e voltava com a<br />

demanda. Informava a ela que ele não voltaria para o fim de semana ou que passaria a noite fora.<br />

Não satisfeita com a coisa, mamãe, em desespero de causa, mesmo sem falar mal dele para a<br />

gente, passou a me levar com ela para passear pela cidade, a fim de ver se encontrava os <strong>do</strong>is<br />

juntos.<br />

Era fácil. Bastava ir até Adrianópolis, perto da antiga caixa-d’água, que, no mínimo, ela veria o<br />

carro dele estaciona<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> carro e da casa que ele dera ao jaburu. Houve umas poucas<br />

vezes em que vimos até mesmo os <strong>do</strong>is abraça<strong>do</strong>s no portão, olhan<strong>do</strong> as meninas Silvia e Alma<br />

brincarem na calçada. Percebi, então, que eles também formavam uma família, o que me feriu até<br />

onde era possível machucar e me fez entender um pouco da <strong>do</strong>r de mamãe. Ela não conseguia<br />

compartilhá-lo com a amante, e nem eu. Em mim não havia recursos interiores para aceitar<br />

dividir meu pai com aquelas estranhas, que agora também o tratavam como pai. Eu já não sabia<br />

mais se o amava ou se simplesmente o desprezava.<br />

Tu<strong>do</strong> perdeu o encanto. O quintal da vovó ficou cinza, as brincadeiras tornaram-se tristes, as<br />

idas ao sítio encheram-se de melancolia e as caçadas acabaram. Viagens para o interior, nunca<br />

mais, exceto por duas rápidas, que fizemos num avião Catalina, anfíbio.<br />

O que ficou foi um desejo imenso de chorar e uma saudade enorme de alguém maior.<br />

Eu não sabia viver sem pai e, por mais que ele ainda andasse entre nós, seu caminho<br />

emocional tornara-se estelarmente distante da gente. E, para completar, comecei a sentir me<strong>do</strong><br />

que mamãe viesse a buscar algum outro homem. Então, passei a vigiá-la.<br />

Eu percebia que, mesmo sentin<strong>do</strong> muita <strong>do</strong>r, mamãe às vezes ria descontraída quan<strong>do</strong><br />

conversava com um rapaz que trabalhava para papai e que de vez em quan<strong>do</strong> aparecia lá por casa.<br />

Minha malícia me dizia que uma mulher no esta<strong>do</strong> dela era presa fácil para qualquer homem,<br />

mesmo que fosse um emprega<strong>do</strong> de apenas 21 anos.<br />

Fiquei obcecadamente de olho aberto. Assim que o rapaz chegava lá em casa, eu parava tu<strong>do</strong> e<br />

fica ao la<strong>do</strong>, ou de longe, espreitan<strong>do</strong>. Eu não a vigiava para papai, mas para mim mesmo. Jamais a<br />

dividiria com um outro homem. Para mim, como menino, era inconcebível que qualquer outro<br />

homem, que não fosse papai, pudesse ter acesso à intimidade de minha mãe. Ela nunca ficou<br />

saben<strong>do</strong> disso, até hoje, enquanto escrevo estas páginas.<br />

O que salvava minha mãe de um mergulho total na amargura e no ódio era a fé. Ela não era


profunda no seu compromisso existencial com Deus, mas se servia de alguns recursos espirituais<br />

para aliviar a sufocação <strong>do</strong> peito.<br />

Toda terça-feira à tarde ela ia à Igreja Presbiteriana para unir-se a outras mulheres que<br />

oravam. Meu pai era objeto constante das intercessões espirituais daquelas mulheres. Jardim de<br />

Oração era o nome da<strong>do</strong> ao encontro. Foi ali, naquele jardim de preces, que mamãe conseguiu<br />

diminuir a sensação de solidão que sobre ela se abatera.<br />

Eu, entretanto, não sabia recorrer a tais recursos. O que me possuiu foi uma saudade<br />

espiritual de alguém. Lembro-me que passei a me postar na varanda lateral de nossa casa e olhar<br />

o pôr-<strong>do</strong>-sol, que acontecia por trás de uma alta e fron<strong>do</strong>síssima mangueira, que virava Sarça<br />

Ardente quan<strong>do</strong> as luzes multimatizadas <strong>do</strong> ocaso pintavam-na de tons quase psicodélicos e<br />

davam-lhe o poder místico <strong>do</strong>s sacramentos.<br />

Para minha mente de oito anos, as maiores impressões ficavam por conta <strong>do</strong> fato de que as<br />

folhas se <strong>do</strong>iravam com o reflexo <strong>do</strong> sol e aquela silhueta imensa da árvore me enchia de uma<br />

estranha sensação: era como se aquela mangueira fosse o símbolo de algo espiritual para a minha<br />

alma, de alguma coisa na qual um dia minha existência encontraria seu senti<strong>do</strong>. Algo sau<strong>do</strong>so,<br />

porém vivo. Era como se a pessoa que mais me amasse estivesse escondida ali, atrás daquela<br />

árvore mágica, sagrada, reluzente e cheia de uma estranha sombra colorida.<br />

Eu ficava lá. Em pé. Sozinho. Pensan<strong>do</strong>. Olhan<strong>do</strong> a mangueira.<br />

Uma vez Mãe Velhinha chegou perto de mim e perguntou o que eu estava sentin<strong>do</strong>. “É como<br />

se eu ainda não conhecesse a pessoa que eu mais amo. É como sentir saudade de alguém que<br />

você não sabe quem é”, foi mais ou menos o que eu respondi. Ela apenas ouviu.<br />

As conseqüências <strong>do</strong> que estava acontecen<strong>do</strong> a papai e mamãe ganharam manifestações no<br />

soma, na carne da gente. Luiz <strong>Fábio</strong> começou a engordar sem parar. Suely foi fican<strong>do</strong> retraída e<br />

um tanto complexada. Eu, que dificilmente engordaria ou me voltaria completamente “para<br />

dentro”, fui toma<strong>do</strong> de uma gagueira horrível.<br />

Era uma gagueira diferente. Não era <strong>do</strong> tipo que fazia patinar nas palavras o tempo to<strong>do</strong>. Às<br />

vezes eu falava normal. Mas, de repente, ficava engata<strong>do</strong> numa sílaba e, a menos que eu parasse<br />

de falar, respirasse fun<strong>do</strong> e pronunciasse a palavra quase cantan<strong>do</strong>, não saía mais nada.<br />

Mãe Velhinha assumiu o papel de fonoaudióloga e resolveu que me curaria rapidinho. Como<br />

alguém havia dito a ela que bom para curar gagueira era paulada de colher de pau na cabeça, dada<br />

por trás, na hora em que a pessoa estivesse engatada na palavra, andava o tempo to<strong>do</strong> com uma<br />

colher pendurada à cintura. E sempre que me via encalha<strong>do</strong> em algo como Lu, lu, lu, lu-iz, você<br />

vai brin, brin, brin, brin-car na vovó, vinha por trás e sapecava a colher de pau na minha cabeça.<br />

Eu odiava aquilo. Humilhava, deixava um galo na cabeça e, obviamente, não curava nada.<br />

Na intenção de diminuir o peso <strong>do</strong> problema, mamãe foi algumas vezes a Belém, para a praia<br />

de Mosqueiros, aliviar a cabeça. De nossa parte, em Manaus, a opção era ficar mais perto da<br />

figura paterna de tio Carlos, que, apesar de tu<strong>do</strong> o que estava acontecen<strong>do</strong> com papai, não deixou<br />

jamais de nos levar ao sítio, aos sába<strong>do</strong>s, mesmo que papai já não fosse tão assíduo nas suas idas<br />

ao antigo paraíso.<br />

Foi também no desejo de desviar a cabeça <strong>do</strong> luto familiar que passei a tentar arranjar coisas<br />

fora e longe de casa para fazer. E foi então que minha paixão pelo Rio Negro Futebol Clube se<br />

desenvolveu. Onde havia jogo, lá estava eu, tentan<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> para me sentir parte daquele mun<strong>do</strong><br />

de muitas alegrias, nas vitórias, e de <strong>do</strong>res, bem mais leves que as de casa, quan<strong>do</strong> o Nacional às<br />

vezes nos mandava para casa de cabeça baixa.<br />

Mas a minha grande paixão daqueles dias foi uma menina <strong>do</strong>is ou três anos mais velha <strong>do</strong> que<br />

eu.<br />

Margarida tinha uns 11 anos e morava na casa vizinha à nossa. Sua família era pobre e to<strong>do</strong>s


nos olhavam como se fôssemos realezas. Margarida, entretanto, tinha outra atitude. Ela me<br />

encantava com aquele cabelão longo e com as corridas que dava fazen<strong>do</strong> questão de balançar a<br />

cabeça para me mostrar a ginga de seu corpo.<br />

Eu ficava deslumbra<strong>do</strong> e achan<strong>do</strong> que uma menina <strong>do</strong> tamanho dela não estaria tentan<strong>do</strong> se<br />

mostrar para um fedelho como eu. Mas enquanto eu me dedicava àquelas reflexões <strong>do</strong> amor<br />

precoce, esquecia o drama familiar.<br />

Foi assim até o dia em que Margarida deu uma bandeira tão grande, que eu decidi deixar as<br />

reflexões de la<strong>do</strong> e ir à luta. Mandei um bilhete para ela marcan<strong>do</strong> um encontro à uma hora da<br />

tarde, embaixo de um coqueiro que havia na frente de minha casa.<br />

Ela foi sozinha e nervosa. Olhei trêmulo para ela e me confessei apaixona<strong>do</strong>. Depois cantei<br />

Quem eu quero não me quer e pedi que ela me namorasse. Não deu outra: ela aceitou. Mas tinha<br />

de ser segre<strong>do</strong>. Daquele dia em diante, nos encontrávamos ali, sempre à mesma hora. Ficávamos<br />

nos olhan<strong>do</strong> e nos curtin<strong>do</strong>. Não havia muitas palavras. Entretanto, havia beijinhos e rápi<strong>do</strong>s<br />

abraços, especialmente na despedida.<br />

Fiquei tão perdidamente apaixona<strong>do</strong>, que cheguei a dizer para o Boi, meu amigo, que ela<br />

tinha uma boca com gosto de sapoti. Daí em diante, o Boi sempre me perguntava: “Como é que é,<br />

garanhão? E a tua menina com boca de sapoti, vai bem?” Durante meses Margarida foi minha<br />

musa e deu cor ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> quintal de vovó, onde ela morava. Até que os irmãos dela descobriram<br />

e forçaram a mãe da menina a nos separar.<br />

E eu fiquei choran<strong>do</strong> na varanda enquanto a mãe dela mandava-lhe o cinturão nas pernas.<br />

Dava para ouvir tu<strong>do</strong>. Chorei até babar de raiva. Depois, ela foi até a janela da casa e me deu<br />

adeus. Nunca mais a vi. Aquela ficou sen<strong>do</strong> a minha referência de desenlace afetivo e, naquele<br />

contexto, tu<strong>do</strong> de que eu não estava precisan<strong>do</strong> era de mais uma <strong>do</strong>r de separação.<br />

Por volta <strong>do</strong> quarto ano de desquite emocional entre meus pais, o clima tornara-se<br />

insustentável. Até mesmo papai já começava a admitir que talvez a separação fosse uma solução<br />

melhor <strong>do</strong> que a existência sob o mesmo teto, se energizada com tamanha carga de amargura,<br />

ressentimento e silêncio. E ele acabou por ir até mamãe e pedir que ela assinasse o termo de<br />

separação. Sen<strong>do</strong> homem da lei, achava que, se ia fazer aquilo, não podia ser jamais sem o amparo<br />

total <strong>do</strong> sistema.<br />

Mamãe disse que assinaria os <strong>do</strong>cumentos de separação e, para mim, foi como se o mun<strong>do</strong><br />

estivesse entran<strong>do</strong> numa era apocalíptica de lamúrias, pragas e destruições. Nosso mun<strong>do</strong> de<br />

fantasias tinha si<strong>do</strong> esmaga<strong>do</strong> pela mais ambígua de todas as realidades: o amor não<br />

correspondi<strong>do</strong>, de mamãe, e o amor direciona<strong>do</strong> para fora <strong>do</strong> permiti<strong>do</strong>, de papai.<br />

Parecia ser o fim. E era também a minha mais séria lição sobre as complicações <strong>do</strong> coração.


Capítulo 10<br />

“Tu me ajuntaste <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de desintegração no qual eu tinha si<strong>do</strong> esterilmente<br />

dividi<strong>do</strong>. Isto porque eu havia aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a unidade de ser que eu tinha em Ti e<br />

havia me da<strong>do</strong> a perder em profunda multiplicidade.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

O ano de 1964 começou como o ano da separação. Eu fiz nove anos no dia 15 de março, na<br />

mais mirrada de todas as celebrações de aniversário até ali. Mas, no fim daquele mês, aconteceria<br />

algo à nação brasileira que teria efeitos devasta<strong>do</strong>res: o golpe militar de 31 de março.<br />

Lá em casa, entretanto, o golpe não chegou com o poder de matar, mas de mudar. Isso<br />

porque papai foi profundamente atingi<strong>do</strong> pelos efeitos da revolução militar e as conseqüências<br />

disso haveriam de mexer com nossas vidas para sempre.<br />

Naquele tempo, além <strong>do</strong>s demais negócios, papai já tinha entra<strong>do</strong> no ramo das<br />

telecomunicações. Junto com um amigo, ele se candidatara à obtenção da primeira concessão de<br />

televisão <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Amazonas. Os equipamentos já estavam to<strong>do</strong>s compra<strong>do</strong>s, e o projeto de<br />

construção <strong>do</strong>s estúdios estava dentro <strong>do</strong> cronograma. Eles estavam se antecipan<strong>do</strong> à concessão<br />

porque os contatos políticos davam como certo que os papéis seriam apenas detalhes, não<br />

haven<strong>do</strong> nada a temer quanto ao resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> pleito junto ao governo federal. O que ninguém na<br />

capital da república previra era que haveria um golpe cujas implicações abalariam<br />

dramaticamente todas as forças <strong>do</strong> poder constituí<strong>do</strong>.<br />

O golpe atingiu meu pai de frente. Sua posição como presidente nomea<strong>do</strong> da Papel Amazon<br />

foi para o espaço. E nas outras empresas o choque foi ainda mais profun<strong>do</strong>: to<strong>do</strong>s os negócios das<br />

demais companhias dependiam de licença <strong>do</strong> governo federal, pois eram concessões para<br />

exploração de madeira e, sobretu<strong>do</strong>, ouro e minerais preciosos.<br />

Para complicar, muitos de seus mais importantes clientes no escritório de advocacia foram<br />

também alcança<strong>do</strong>s pelos longos e gela<strong>do</strong>s braços <strong>do</strong>s militares. Mas o pior ainda estava por vir.<br />

Alguns de seus sócios, pressentin<strong>do</strong> o clima fúnebre que a revolução criara, trataram de se<br />

arrumar com os “milicos” assim que puderam, e como papai era o mais visível de to<strong>do</strong>s eles nos<br />

negócios, trataram de lançá-lo às piranhas, sentan<strong>do</strong>-se junto aos líderes <strong>do</strong> golpe para assistir ao<br />

espetáculo público de seu sangramento.<br />

O mais terrível de to<strong>do</strong>s os resulta<strong>do</strong>s foi a acusação de que a mina de Parauari estava sen<strong>do</strong><br />

usada para que grandes quantidades de ouro fossem enviadas para fora <strong>do</strong> país. Papai negou<br />

veementemente que aquilo estivesse acontecen<strong>do</strong>, pelo menos sob seu conhecimento. Mas já era<br />

tarde. Àquela altura, seu nome já estava nos jornais, e por motivos que nem ele e nem nenhum


<strong>do</strong>s Araújos jamais haviam espera<strong>do</strong> que a família viesse a ser conhecida publicamente.<br />

A vergonha de ver seu nome sen<strong>do</strong> enxovalha<strong>do</strong> nas primeiras páginas <strong>do</strong>s jornais era demais<br />

para ele. Primeiro, ele foi toma<strong>do</strong> de perplexidade com a velocidade <strong>do</strong>s eventos e a loucura <strong>do</strong>s<br />

processos da revolução. Depois foi perceben<strong>do</strong> a grande armação que havia por trás daqueles<br />

atos. E, por último, encheu-se de ódio e começou a falar em morte. Achava que matar aqueles que<br />

o haviam traí<strong>do</strong> era a coisa mais honrada a fazer.<br />

Mas o mun<strong>do</strong> que estava desmoronan<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora acabou por fazer ruir tu<strong>do</strong> o que<br />

ainda havia resta<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro, na família. Suely, minha irmã, caiu de um muro e fraturou<br />

em muitos pedacinhos o cotovelo esquer<strong>do</strong>, fican<strong>do</strong> sob a ameaça de não <strong>do</strong>brar mais o braço.<br />

Luiz <strong>Fábio</strong> inchou de tanto comer de nervoso. E, para piorar, papai e mamãe, que não se tocavam<br />

há muito tempo, no meio da tempestade — ele culpa<strong>do</strong> diante dela, e ela com pena dele —,<br />

acabaram dan<strong>do</strong> um ao outro uma trégua, e mamãe engravi<strong>do</strong>u. Foi tu<strong>do</strong> junto.<br />

Perceben<strong>do</strong> que as coisas se tornariam insuportáveis em Manaus, papai propôs à mamãe que<br />

eles suspendessem a conversa sobre separação e dessem um ao outro, e aos filhos, mais uma<br />

chance. Uma mudança para o Rio de Janeiro poderia ser essa oportunidade buscada.<br />

Mamãe não queria ir. Eu abominei a idéia, disse que não iria de jeito nenhum, que eu não<br />

estava fugin<strong>do</strong> de nada nem de ninguém e que Manaus era meu lugar. Mas papai olhou para mim<br />

com um olhar fuzilante e disse: “Enquanto você comer <strong>do</strong> meu pirão, vai aonde eu for.” Fim de<br />

conversa.<br />

Mamãe levou o assunto para o Jardim de Oração numa daquelas terças-feiras à tarde. As<br />

amigas oraram com ela e estimularam-na a se dedicar a “ouvir a voz de Deus”. Ela não sabia bem<br />

o que era aquilo, mas imaginou que devia ser alguma coisa que tivesse relação com a leitura da<br />

Bíblia.<br />

Ajoelhada, ela abriu a Bíblia a esmo. O texto sobre o qual seus olhos pousaram dizia: “O que<br />

eu faço tu não sabes agora, compreendê-lo-ás depois”, que está no evangelho de João e conta<br />

sobre a resposta de Jesus a Pedro quan<strong>do</strong> este quis saber por que o Mestre estava lavan<strong>do</strong> os seus<br />

pés. O contexto não tinha nada a ver com a situação de mamãe, mas a passagem foi<br />

completamente iluminada diante <strong>do</strong>s seus olhos. Era como se o texto tivesse si<strong>do</strong> escrito para ela.<br />

Assim, minha mãe procurou papai e disse que iria, embora não por ele, mas porque Deus<br />

mandara que ela fizesse isso. Papai não entendeu nada e nem estava com cabeça para tentar<br />

discutir o assunto.<br />

O problema é que nós não iríamos sozinhos. Simone, Silvia e Alma também iriam.<br />

Papai, mamãe e Suely foram na frente, em regime de urgência. O braço de Suely precisava de<br />

intervenção cirúrgica imediata ou ficaria perdi<strong>do</strong>. Mamãe, grávida, estava começan<strong>do</strong> a sangrar,<br />

pois sofrera muito nos partos anteriores e já não tinha o útero sadio. Aliás, seu médico queria<br />

fazer um aborto, certo que estava que suas chances de morrer com o neném eram muito grandes.<br />

Eles foram juntos, feri<strong>do</strong>s por dentro e por fora; ainda eram família, mas se tratavam como<br />

estranhos.<br />

O vazio da saída deles foi horrível. Luiz, Mãe Velhinha e eu nos mudamos para um <strong>do</strong>s<br />

cômo<strong>do</strong>s da casa de vovó Zezé, que, pesarosa, estava sempre enxugan<strong>do</strong> as lágrimas que lhe<br />

rolavam <strong>do</strong>s claros e profun<strong>do</strong>s alhos azuis e escorriam por sua face tão encarquilhada quanto<br />

pele de um jenipapo. Foi ali que, pela primeira vez na vida, eu senti desejo de morrer. Tu<strong>do</strong><br />

parecia enorme e distante. Eu olhava as coisas à minha volta e me sentia esmaga<strong>do</strong> por elas.<br />

Às vezes, eu escapava até o fun<strong>do</strong> quintal de nossa casa, já completamente vazia, e tentava ver<br />

se Margarida ainda estava por lá ou se, quem sabe, por mero acidente, eu conseguia vê-la e<br />

alegrar meu coração. Mas ela jamais apareceu. Eu voltava andan<strong>do</strong> cabisbaixo pela extensão<br />

arborizada daquele terreno que antes era a própria fantasia feita metro quadra<strong>do</strong> e agora era o


lugar de nossa solidão e de nossa perdição.<br />

Depois de alguns meses, veio a ordem de papai para que fôssemos encontrá-los no Rio de<br />

Janeiro. A despedida <strong>do</strong>s amigos, <strong>do</strong>s primos, <strong>do</strong>s tios e <strong>do</strong>s espaços sagra<strong>do</strong>s e profanos de<br />

minha infância foi uma das experiências mais fortes em minha memória emocional infantil.<br />

Mãe Velhinha, Luiz e eu entramos num avião da Panair <strong>do</strong> Brasil em dezembro de 1964 e<br />

fomos para o Rio. O vôo não terminava mais. Eram oito horas de viagem. Quan<strong>do</strong> estávamos<br />

quase pousan<strong>do</strong> no aeroporto Santos Dumont, Luiz virou para mim, páli<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> dizer algo<br />

que não conseguiu. Só vi aquela quantidade enorme de vômito sen<strong>do</strong> despejada em cima de mim.<br />

Foi horrível. Eu estava deprimi<strong>do</strong> e to<strong>do</strong> vomita<strong>do</strong>. Descemos por último, leva<strong>do</strong>s por uma<br />

aeromoça que nos ajudara. Pelas janelas re<strong>do</strong>ndas de dentro <strong>do</strong> avião tentei ver papai lá fora, mas<br />

não foi possível.<br />

Quan<strong>do</strong> pisei no chão <strong>do</strong> Rio, fui toma<strong>do</strong> por uma avalanche de cheiros que eu não sabia que<br />

existiam. O aroma de maresia da baía de Guanabara, ainda não tão poluída, entrou-me pelas<br />

narinas, dizen<strong>do</strong>-me que aquele lugar era absolutamente estranho. Além disso, fiquei<br />

impressiona<strong>do</strong> com a altura <strong>do</strong>s cariocas, bem mais altos que a média <strong>do</strong>s amazonenses.<br />

Concentrei-me na busca de papai no saguão <strong>do</strong> aeroporto. Ficamos ali, olhan<strong>do</strong> para um la<strong>do</strong><br />

e outro, e nada dele. “Será que não viria? E se tivesse morri<strong>do</strong>?” — eram questões que me<br />

passavam pela cabeça. De súbito, olhei para o la<strong>do</strong> e vi um estranho que se aproximava de nós,<br />

gargalhan<strong>do</strong> alto.<br />

— Então, seu cabrinha dana<strong>do</strong>, você é o famoso <strong>Caio</strong>zinho, e você é o Luiz? — perguntou,<br />

enquanto nos beijava, abraçava e sacudia, num mo<strong>do</strong> agressivo de expressar carinho, embora<br />

fosse carinho de fato.<br />

Era o tio Ari, casa<strong>do</strong> com Isa, uma irmã de meu pai que eu jamais conhecera.<br />

— E meu pai? — indaguei <strong>do</strong> recém-apresenta<strong>do</strong> titio. Ele fez que não entendeu bem e disse<br />

que tínhamos de ir para a casa dele. Então eu fui mais enfático.<br />

— Eu quero ver meu pai e saber como vai a minha mãe. E Suely?<br />

Foi quan<strong>do</strong> ele disse que Suely estava na mesa de operação e que por isto papai não viera nos<br />

buscar.<br />

O que ele não disse foi que minha mãe estava muito mal e que havia o temor de que ela<br />

pudesse sangrar até morrer. Em vez de nos levar para algum lugar no Rio, ele nos conduziu à<br />

praça Quinze, onde pegamos uma barca para Niterói.<br />

Aquela primeira travessia de barca teve um efeito positivo sobre mim, acostuma<strong>do</strong> que estava<br />

a ver muita água e sempre extasia<strong>do</strong> com o poder das fragrâncias. Fomos para a parte superior da<br />

embarcação e ficamos ali, olhan<strong>do</strong> aquela topografia linda, com montanhas que saíam de dentro<br />

<strong>do</strong> mar, e aquelas águas de cor azul onde golfinhos brincavam, dançan<strong>do</strong> que nem botos e<br />

pulan<strong>do</strong> adiante <strong>do</strong>s barcos.<br />

Em Niterói, fomos muito bem-recebi<strong>do</strong>s por tia Isa e pelos novos primos, Maria <strong>do</strong> Perpétuo<br />

Socorro — que foi logo dizen<strong>do</strong> que era minha madrinha —, Antônio Fernan<strong>do</strong>, Terezinha e<br />

Arlin<strong>do</strong>. Como eles tinham se muda<strong>do</strong> havia apenas um ano para a cidade, vin<strong>do</strong>s de São Paulo,<br />

eram vistos na vizinhança da rua Justina Bulhões, no Ingá, não como amazonenses que eram, mas<br />

como paulistões.<br />

Ficamos uma semana com eles até que papai pôde vir nos buscar. O reencontro com papai foi<br />

feliz e <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>. A felicidade era pelo reencontro. A <strong>do</strong>r era <strong>do</strong> me<strong>do</strong> de que não sobrevivêssemos,<br />

como família, naquele lugar estranho e longe das florestas e rios de nossa terra.<br />

Fomos para Copacabana e entramos, perplexos, naquele bairro-cidade, de prédios imensos e<br />

o<strong>do</strong>res estranhos para mim. Na rua Anita Garibaldi, fomos apresenta<strong>do</strong>s a novos tios e primos. Já<br />

começava a virar ritual.


Renato e Bernadete, os tios; Cláudia e Renata, as primas. O sangue era o mesmo, mas éramos<br />

muito diferentes. As meninas faziam questão de nos deixar perceber que nosso sotaque era forte<br />

demais e estranho. Além disso, a família de tia Bernadete estava toda ali, em volta dela, e era um<br />

montão de gente que eu não conhecia e que falava de tu<strong>do</strong> de um mo<strong>do</strong> totalmente novo aos meus<br />

ouvi<strong>do</strong>s.<br />

Mas o que mais me incomodava era o cheiro <strong>do</strong> edifício. Eu nunca tinha entra<strong>do</strong> num lugar<br />

fecha<strong>do</strong> como Copacabana, onde os o<strong>do</strong>res ficam tranca<strong>do</strong>s dentro <strong>do</strong>s corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s edifícios e<br />

<strong>do</strong>s poços <strong>do</strong>s eleva<strong>do</strong>res. Era cheiro de tu<strong>do</strong>, mas principalmente de gás de cozinha e de comida<br />

de temperos diferentes, condensa<strong>do</strong>s como extrato de desejos gastronômicos, presos naquelas<br />

câmaras verticais, totalmente estranhas para mim.<br />

Hoje, eu talvez dissesse que eram os cheiros <strong>do</strong>s intestinos da urbanidade. Mas naquele<br />

tempo pude apenas constatar os o<strong>do</strong>res e impressionar-me com o fato <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> lugar<br />

não perceberem aqueles cheiros que um amazonense com nariz de Mãe Velhinha não poderia<br />

deixar passar despercebi<strong>do</strong>s.<br />

Na casa de tia Bernadete ficamos saben<strong>do</strong> mais sobre mamãe e Suely. Estavam sob cuida<strong>do</strong>s<br />

médicos, mas se sentin<strong>do</strong> melhor. Foi somente no dia seguinte que pudemos reencontrá-las,<br />

abraçá-las e chorar a alegria de vê-las.<br />

No mesmo dia, à tarde, papai nos levou à praia. E diante da visão da imensidão <strong>do</strong> mar,<br />

senti-me esmaga<strong>do</strong> de terror. Os estranhos aromas da areia e das águas supersalgadas<br />

remeteram-me a um sentimento de saudade de Manaus e <strong>do</strong>s cheiros da vida que eu deixara para<br />

trás. Andei sozinho pela areia até perto da arrebentação, e fiquei ali para<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> os tatuís<br />

correrem, ocasionalmente olhan<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> para o fim daquela visão aterra<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> oceano<br />

Atlântico. Depois me recompus e tentei correr pela areia. Voltei para a calçada, onde papai nos<br />

aguardava, e pedi que voltássemos para a casa da tia Bernadete.<br />

Acabamos encontran<strong>do</strong> um apartamento na rua Sá Ferreira, no posto seis, e lá, mais uma vez,<br />

nos reunimos como família. Mamãe e Suely continuavam <strong>do</strong>entes. Luiz <strong>Fábio</strong> gostou muito da<br />

mudança e começou a dar sinais de recuperação emocional. Eu estava sempre varian<strong>do</strong> entre<br />

alguns prazeres — como jogar bola na praia e ir ao Maracanã ver o Botafogo de Mané Garrincha<br />

— e um terrível sentimento de depressão.<br />

E tu<strong>do</strong> ficava ainda pior porque eu percebia que papai não estava nada bem. Ele se<br />

empanzinara de ódio daqueles que o haviam traí<strong>do</strong> e, ao saber que <strong>do</strong>is deles andavam pelo Rio,<br />

botou uma arma no bolso da calça e vivia pedin<strong>do</strong> ao destino que o fizesse cruzar com eles.<br />

O destino — ou talvez o próprio diabo — atendeu ao seu pedi<strong>do</strong>.<br />

Nós estudávamos no Colégio São Tomás de Aquino, no Leme, a seis quilômetros de nossa<br />

casa. Na minha classe havia um garoto, loirinho, gente boa, que era um <strong>do</strong>s únicos que não fazia<br />

gozação quan<strong>do</strong> a professora lia meu nome durante a chamada. To<strong>do</strong>s os outros aguardavam<br />

aquela hora para cair no chão, de mo<strong>do</strong> que, em seguida ao “<strong>Caio</strong>”, se ouvia um brum-brum-brum<br />

da meninada cain<strong>do</strong> no chão e dizen<strong>do</strong>: “Eu caio, fessora.”<br />

O garoto loirinho era também o único que não caía na minha pele quan<strong>do</strong> a professora<br />

perguntava coisas <strong>do</strong> tipo:<br />

— <strong>Caio</strong>, como se vende farinha?<br />

— Em litro, professora — eu respondia confiante.<br />

— Esse amazonense é idiota, quer aparecer — ouvia o pessoal dizer, embora fosse assim que<br />

se medisse farinha para venda na minha terra.<br />

Pois bem, um dia houve uma festa na escola e papai e mamãe foram obriga<strong>do</strong>s a ir. Mamãe se<br />

movia com muita lentidão por causa da gravidez. Papai chegou, viu que eu fui direto brincar com<br />

o alemãozinho, e ficou por ali, quieto. De repente, percebi que havia algo erra<strong>do</strong>. Olhei e vi


mamãe desesperada.<br />

— Pelo amor de Deus, não. Não faz isso. Pensa nas crianças — ela gritava.<br />

O que vi foi papai, que graças a Deus estava desarma<strong>do</strong> naquele dia, com a muleta no ar,<br />

brandin<strong>do</strong>-a sobre a cabeça de um homem loiro, que cobria o rosto com os braços, páli<strong>do</strong> e<br />

acovarda<strong>do</strong>.<br />

— E agora, seu safa<strong>do</strong>? Você num disse que não me dava uma surra porque eu era aleija<strong>do</strong> e<br />

porque você estava numa corte de lei? E agora, seu frouxo? Vem bater no aleija<strong>do</strong>? Vou te<br />

arrebentar na frente da tua mulher, seu otário! — Mas o homem, inerte, não esboçava qualquer<br />

reação.<br />

As demais pessoas presentes não deixaram que os <strong>do</strong>is se atracassem. Não entendi nada.<br />

Apenas percebi que papai odiava o pai de meu melhor amigo na escola. Mamãe nos reuniu<br />

nervosa, entramos no carro e fomos embora. Papai dirigia cheio de ódio. Queria matar o homem.<br />

Somente em casa é que fiquei saben<strong>do</strong> que o pai de meu amigo era o major <strong>do</strong> Exército que havia<br />

si<strong>do</strong> incumbi<strong>do</strong> de conduzir o inquérito que investigara o possível envolvimento de papai com o<br />

contraban<strong>do</strong> de ouro quase <strong>do</strong>is anos antes, em Manaus. Na hora final, em pleno tribunal, com a<br />

imprensa presente, o major teria dito que não havia como legalmente “pegá-lo”, mas que se papai<br />

não fosse deficiente físico, ele, o militar, iria esquecer a lei e dar-lhe uma boa surra fora da<br />

audiência.<br />

Pois bem, a hora havia chega<strong>do</strong>. Anos depois, questionan<strong>do</strong>-me sobre o que teria leva<strong>do</strong> um<br />

major, em pleno regime militar, a aceitar ser humilha<strong>do</strong> publicamente, diante da esposa e <strong>do</strong>s<br />

filhos, sem reagir, concluí que pouca coisa é mais forte, paralisante e autodestrutiva que uma<br />

consciência pesada, mesmo quan<strong>do</strong> se tem o poder nas mãos.<br />

Não demorou muito até descobrirmos que Simone e suas filhas estavam moran<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is<br />

quilômetros de nós e que papai passava longas tardes com elas. Mas àquela altura <strong>do</strong>s fatos, o<br />

“caso dele com o jaburu” passou a ter importância bem menor para mim.<br />

Nós, como família, tínhamos encontra<strong>do</strong> uma solidariedade mais profunda <strong>do</strong> que a <strong>do</strong>r da<br />

traição que papai provocara. Tínhamos de algum mo<strong>do</strong> descoberto que as verdadeiras ligações de<br />

uma família acabam sen<strong>do</strong> maiores <strong>do</strong> que os detalhes de natureza pessoal liga<strong>do</strong>s ao devaneio<br />

apaixona<strong>do</strong> de um de seus membros. Viver na fronteira da vergonha, da perda e da morte,<br />

permitiu que víssemos de forma mais clara que a fraqueza moral de papai era menos importante<br />

que sua sobrevivência como ser humano, e que a <strong>do</strong>r de mamãe era insignificantemente menor<br />

<strong>do</strong> que a consciência que ela adquirira acerca da importância de tu<strong>do</strong> aquilo que nos fazia ser<br />

uma família, apesar de tu<strong>do</strong>.<br />

Mas a presença de Simone não ajudava a aliviar a <strong>do</strong>r de meu pai. Ele saía e voltava sempre<br />

com a mesma cara de depressão. Seus olhos andavam profun<strong>do</strong>s, pois suas noites eram longas e<br />

insones.<br />

Um dia ele voltou diferente para casa. Chorou sozinho e ficou cala<strong>do</strong> por muito tempo. Havia<br />

nele uma enorme vontade de falar, de explodir numa confissão, num despir-se radical, total e<br />

verdadeiro. Mas ele não sabia como. No entanto, sua atitude em relação à mamãe começou a<br />

mostrar mudanças significativas. Devagar, ele conseguiu nos fazer perceber que tu<strong>do</strong> acabara<br />

entre ele e Simone. Foi apenas o que ficamos saben<strong>do</strong>, sem maiores detalhes. Somente algum<br />

tempo depois é que as notícias de Manaus nos deram conta de que ela já tinha outro no Rio. Foi<br />

então que soubemos que Simone o traíra, e que ele mergulhara em profunda desilusão.<br />

Sem o jaburu em nossas vidas, pudemos ter papai em tempo integral outra vez. Mas sua volta<br />

não nos trouxe tranqüilidade de alma. Alguma coisa ruim tinha entra<strong>do</strong> em nossas vidas. Suely<br />

encaramujou-se como pôde, a fim de fugir <strong>do</strong>s complexos relaciona<strong>do</strong>s ao fato de não conseguir<br />

esticar o braço. Mamãe falava no risco de morrer no parto, que estava às portas. Papai perdera o


ânimo pela profissão e pela existência, mas como tinha muito dinheiro guarda<strong>do</strong>, dizia que podia<br />

se dar o luxo de passar alguns anos meditan<strong>do</strong> sobre a vida. E foi o que fez.<br />

Eu, mesmo sem saber por que, fui invadi<strong>do</strong> por um horrível sentimento suicida. Às vezes ia<br />

para o tanque de água que havia no alto de nosso edifício e ficava imaginan<strong>do</strong> o que aconteceria<br />

comigo se pulasse de lá, <strong>do</strong> décimo andar. E para piorar a história, o pai de um amigo meu pulou<br />

da janela <strong>do</strong> apartamento, angustia<strong>do</strong> que estava por viver uma vida sem senti<strong>do</strong>.<br />

O único que parecia estar melhoran<strong>do</strong> lá em casa era o Luiz <strong>Fábio</strong>. Aliás, naqueles dias<br />

lúgubres, ele foi nossa salvação. Estava com sete anos, era branquinho, gordinho, de rosto<br />

re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, cara de pintinho e uma mente muito franca. Amava máquinas e música. Ainda em<br />

Manaus, seus <strong>do</strong>ns musicais haviam se manifesta<strong>do</strong>. Tocava piano de ouvi<strong>do</strong>, com muita<br />

desenvoltura e com eleva<strong>do</strong> nível de complexidade. No mesmo perío<strong>do</strong>, trouxera à luz outro<br />

talento. Tinha enorme capacidade de entender os mecanismos <strong>do</strong>s carros e deleitava-se em<br />

vê-los sen<strong>do</strong> conserta<strong>do</strong>s na oficina particular que meu pai mantinha com tio Carlos no fun<strong>do</strong> de<br />

nosso quintal.<br />

Luiz sabia tu<strong>do</strong> o que uma criança de sua idade podia saber sobre as máquinas. Reconhecia o<br />

ronco <strong>do</strong>s carros a distância e ousava até dizer o que estava erra<strong>do</strong>. Além disso, aos seis anos já<br />

sabia tirar da garagem os carros menores de papai.<br />

Luiz também se tornou muito engraça<strong>do</strong> durante o nosso primeiro ano em Copacabana. Ele<br />

ia comigo e Suely a pé <strong>do</strong> posto seis ao Leme, para o Colégio São Tomás de Aquino. No trajeto, ia<br />

e vinha falan<strong>do</strong> com to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A gente às vezes morria de rir, às vezes morria de vergonha.<br />

Dependia de como ele resolvia botar sua verve humorística para fora.<br />

Conquanto Luiz fizesse a festa, nós to<strong>do</strong>s precisávamos de muito mais <strong>do</strong> que ele podia nos<br />

oferecer. Minhas angústias estranhas não me largavam. Eu jogava bola com Caruso e Nino na<br />

calçada, via o Lá Vai Bola jogar na praia, mas não adiantava. A coisa ficou pior quan<strong>do</strong> papai<br />

levantou numa noite quente <strong>do</strong> verão de 1966 e me viu em pé na janela <strong>do</strong> décimo andar,<br />

<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, sonhan<strong>do</strong>, porém posta<strong>do</strong> em posição de salto e dizen<strong>do</strong>, já com o corpo projeta<strong>do</strong><br />

para o la<strong>do</strong> de fora: “Agora é minha vez. Vou pular.”<br />

Papai sabia que eu era um sonâmbulo <strong>do</strong> tipo executivo. Eu sonhava e fazia. Uma vez eu<br />

interrompi um jantar lá em casa porque, ten<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> e sonha<strong>do</strong> que estava dançan<strong>do</strong> nu, tirei<br />

a roupa e bailei pela<strong>do</strong> pela casa, para deleite da assembléia de amigos. Agora, entretanto, eu não<br />

me preparava para dançar, mas para pular <strong>do</strong> décimo andar de nosso prédio. Papai só teve tempo<br />

de me puxar para dentro <strong>do</strong> quarto. Os <strong>do</strong>is caímos na cama juntos. O coração dele palpitava<br />

como eu nunca sentira antes. Apenas mais <strong>do</strong>is segun<strong>do</strong>s e o desfecho poderia ter si<strong>do</strong> trágico.<br />

Para completar o clima de depressão, vieram as chuvas de 1966. Quem morava no Rio na<br />

época lembra da devastação total que provocaram. Nosso prédio, na Sá Ferreira, olhava direto<br />

para a favela <strong>do</strong> Pavão-Pavãozinho. E lá ficava eu na janela, ven<strong>do</strong> casas rolarem morro abaixo,<br />

com gente dentro gritan<strong>do</strong> e sumin<strong>do</strong> na lama. Foram centenas de mortes. Víamos apenas os<br />

cadáveres serem retira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> meio <strong>do</strong>s escombros. Papai tentava nos proibir de olhar, mas era<br />

impossível. A cena era brutal e o fascínio mórbi<strong>do</strong> que ela exercia sobre mim era algo que eu<br />

desconhecia. Odiava ver, mas não conseguia parar de ver. Repúdio e sedução mórbida moravam<br />

ali, naquele episódio marca<strong>do</strong> pela morte, fruto da negligência que se acumulava há anos. Eu não<br />

sabia o que era aquilo, mas sabia que não era justo. E mais ainda: sabia que <strong>do</strong> quintal de minha<br />

vó a gente jamais veria aquelas coisas. Então, chorava com saudades de Manaus.


Capítulo 11<br />

“Eu, portanto, decidi dar atenção às Escrituras e ver o que elas continham. Eis o<br />

que encontrei: algo nem aberto ao soberbo nem imperscrutável às crianças; um<br />

texto básico para o iniciante, mas, ao mesmo tempo, de dificuldades montanhosas<br />

e envolvi<strong>do</strong> em mistério para aquele que resolve estudá-lo.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Foi pensan<strong>do</strong> em nossa saúde emocional que papai e mamãe decidiram sair de Copacabana<br />

e ir para Niterói. Mamãe tinha da<strong>do</strong> à luz uma menina, chamada Ana Lúcia, e papai dizia que um<br />

apartamento não era lugar para se criar uma criança. Ele queria dar a ela, e também a nós, algum<br />

tipo de sentimento que nos remetesse a emoções próximas daquelas que tínhamos<br />

experimenta<strong>do</strong> no quintal da vovó.<br />

Como Ari e Isa moravam <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da baía de Guanabara e não se queixavam de nada —<br />

pelo contrário, elogiavam o lugar —, fomos direto para um apartamento que vagou no mesmo<br />

edifício em que eles moravam. Mesmo sen<strong>do</strong> um apartamento, papai considerou que o lugar era<br />

amplo, o prédio baixo, e que havia muito espaço para brincar na vizinhança, que incluía até um<br />

morro cheio de capim e ótimo para aventuras infantis.<br />

O clima <strong>do</strong> lugar era festivo e íntimo. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se conhecia e havia uma enorme<br />

interatividade social. Nossa rua, a Justina Bulhões, ainda tinha um monstro sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> futebol<br />

brasileiro de to<strong>do</strong>s os tempos residin<strong>do</strong> lá. O Canhotinha de Ouro <strong>do</strong> Botafogo, Gerson, morava a<br />

poucos metros de nosso edifício, e era um delírio diário vê-lo passar dirigin<strong>do</strong> seu Camaro preto,<br />

fazen<strong>do</strong> as curvas bem devagar, na ponta <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s. Justamente por causa de Gerson, nossa rua<br />

era obcecada pela idéia de formar craques de futebol. Os rachas de bola que aconteciam todas as<br />

tardes ali eram concorridíssimos. Como meus <strong>do</strong>ns futebolísticos haviam se manifesta<strong>do</strong> desde<br />

Manaus, aos 11 anos eu já jogava uma bola bem re<strong>do</strong>ndinha e, assim, me envolvi até o talo na vida<br />

esportiva daquela pequena comunidade.<br />

Um pouco antes de nossa saída de Copacabana, papai resolvera voltar à advocacia e abrira um<br />

escritório no centro <strong>do</strong> Rio com seu amigo e compadre Bernar<strong>do</strong> Cabral — que posteriormente<br />

viria a se tornar figura pública no cenário nacional — e outro em Niterói, no início sozinho. Como<br />

as travessias para o Rio eram muito problemáticas naquela época — especialmente para um<br />

homem que tinha de lutar para não cair quan<strong>do</strong> as multidões atrasadas precipitavam-se umas<br />

sobre as outras na corrida por um lugar nas barcas Rio—Niterói —, papai acabou fican<strong>do</strong> cada<br />

vez mais na terra de Araribóia, evitan<strong>do</strong> aquele desconforto.<br />

Sua capacidade para ganhar dinheiro rapidamente se manifestou. Não demorou muito e ele


estava com grandes clientes e fazen<strong>do</strong> excelentes negócios.<br />

Foi num daqueles dias que mamãe ouviu falar de um <strong>pastor</strong> a cuja pregação ela assistira em<br />

Manaus quan<strong>do</strong> era ainda bem jovem, e soube que ele estava abrin<strong>do</strong> uma pequena igreja no<br />

bairro de São Francisco, em Niterói. Decidiu ir até lá e tentar ouvir o reveren<strong>do</strong> Antônio Elias.<br />

Amou o lugar, o povo que ali se reunia e, sobretu<strong>do</strong>, ficou encantada com a esposa <strong>do</strong> <strong>pastor</strong>,<br />

Maria José, uma mineira recatada, mas de sorriso franco de amizade quan<strong>do</strong> se identificava com a<br />

pessoa.<br />

No <strong>do</strong>mingo seguinte, to<strong>do</strong>s nós fomos à igreja. Até eu gostei. No outro <strong>do</strong>mingo, já fui<br />

decidi<strong>do</strong> a passar a tarde com o filho mais novo <strong>do</strong> <strong>pastor</strong>, um garoto tími<strong>do</strong>, um ano mais novo<br />

que eu, chama<strong>do</strong> Teófanes, e que aos 11 anos acabara de ganhar um prêmio nacional de escultura<br />

em areia de praia e estava se preparan<strong>do</strong> para ir representar o Brasil na França.<br />

A tarde com Teófanes foi maravilhosa. Jogamos bola e nos atolamos num pé de jamelão<br />

carregadíssimo. Comi tanto, que tive uma alergia que me deixou quase <strong>do</strong>is dias incha<strong>do</strong>. O<br />

entusiasmo com a experiência comunitário-religiosa contagiou a to<strong>do</strong>s nós. Eu mesmo, até<br />

aquela data absolutamente desinteressa<strong>do</strong> pelas coisas da religião, passei a ficar empolga<strong>do</strong> com<br />

a chegada <strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo.<br />

O impacto da fé em mim era muito relativo. Eu gostava das pessoas <strong>do</strong> lugar, mas não havia<br />

nada que fosse muito além disso.<br />

Lá na rua Justina Bulhões, entretanto, a molecagem corria solta. Aquele morro cheio de<br />

capim era o lugar onde os meninos mais velhos aproveitavam-se sexualmente <strong>do</strong>s garotos mais<br />

novinhos e onde as meninas mais levadas passavam por longos exames ginecológicos. Eu era um<br />

<strong>do</strong>s ginecologistas mais ativos <strong>do</strong> pedaço, pois minha precocidade fez com que eu me tornasse<br />

um <strong>do</strong>s mais bem-posiciona<strong>do</strong>s naqueles jogos de promiscuidade infantil.<br />

Às vezes eu ouvia coisas na igreja que me colocavam contra a parede em relação àquelas<br />

“práticas sexuais” vividas no meio <strong>do</strong> capim. Mas logo percebi que, conquanto eu fosse muito<br />

mais envolvi<strong>do</strong> com tu<strong>do</strong> aquilo que a maioria <strong>do</strong>s garotos da igreja, eles também tinham suas<br />

experiências naquela área. No fun<strong>do</strong>, eu pensava que, com exceção de Téo — filho mais novo <strong>do</strong><br />

reveren<strong>do</strong> —, nós to<strong>do</strong>s éramos farinha <strong>do</strong> mesmo saco.<br />

Até aquele ponto, papai estava completamente aliena<strong>do</strong> <strong>do</strong>s processos espirituais que<br />

começavam a rondar nossa casa. Ele estava bem, mas estava só. A relação com mamãe melhorara<br />

muito, mas estava longe de estar curada.<br />

Num daqueles <strong>do</strong>mingos, no entanto, papai foi nos levar à igreja. À porta, eu insisti que ele<br />

entrasse.<br />

— Não, vou ficar aqui fora atualizan<strong>do</strong> meu vocabulário de inglês — disse ele, sem deixar<br />

qualquer espaço para uma eventual insistência.<br />

Entramos e sumimos por entre os corre<strong>do</strong>res e salas da pequena Igreja Presbiteriana<br />

Betânia. Quan<strong>do</strong> voltamos ao carro, ao meio-dia, ele simplesmente nos levou de volta para casa,<br />

sem nenhum comentário.<br />

Após o almoço, no entanto, ele se virou para minha mãe e disse:<br />

— Lacy, me abra a Bíblia em Hebreus, capítulo 11, verso 1.<br />

Quase caímos da cadeira. Ninguém ousou perguntar por que ou de onde ele tirara aquela<br />

referência bíblica. Afinal, desde a morte de vovô João <strong>Fábio</strong> ele fora assumin<strong>do</strong> cada vez mais suas<br />

posições agnósticas e, nos últimos anos, evoluíra para o nível de uma descrença quase atéia.<br />

Passara a discutir religião com alguns amigos católicos e dizia-lhes que a Bíblia nada mais era <strong>do</strong><br />

que um livro de lendas criadas pela mente imaginativa <strong>do</strong>s hebreus. Agora, entretanto,<br />

ironicamente, lá estava ele, pedin<strong>do</strong> para ler um livro que tinha justamente o nome <strong>do</strong> pessoal<br />

que ele acusava de supremo “excesso de criatividade religiosa”: os hebreus.


Mamãe abriu o texto que papai havia solicita<strong>do</strong>, e ele leu o capítulo to<strong>do</strong> como alguém que já<br />

conhecesse a passagem.<br />

— Que coisa linda. Foi escrito em estilo enfático. Tu<strong>do</strong> se calça na fé. Parece um texto<br />

poético. Eu não sabia que a Bíblia tinha passagens como esta — disse ao final.<br />

Mamãe, então, se atreveu a perguntar onde ele tivera sua curiosidade estimulada para a<br />

leitura da Bíblia, e sua resposta foi inesquecível.<br />

— Hoje, enquanto vocês estavam lá dentro da igreja, eu ouvi uma voz masculina belíssima<br />

cantan<strong>do</strong> um hino. Achei tão bonito, que saí <strong>do</strong> carro e fui ver quem estava cantan<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong><br />

cheguei lá dentro, o homem já estava acaban<strong>do</strong>. Fiquei só um pouquinho mais para ver o que<br />

estava acontecen<strong>do</strong> ali. Então, uma mulher começou a perguntar a um grupo de senhoras o que<br />

era a “fé”. Fiquei somente porque gosto de ouvir estupidez feminina. Mas que nada. As mulheres<br />

pensavam. Veio cada resposta sobre o tema da fé que me deixou admira<strong>do</strong>. Por fim, a tal da<br />

professora veio dizer que as respostas eram fracas. Achei que ela devia ser uma anta. Naquele<br />

momento, pensei que a burrice religiosa fosse finalmente se manifestar. Ela man<strong>do</strong>u ler Hebreus<br />

11:1. Quan<strong>do</strong> eu ouvi aquilo, fiquei mais impressiona<strong>do</strong> ainda. Era isso aqui: “A fé é a certeza de<br />

coisas que se esperam e a convicção de fatos que se não vêem.” Pode haver definição de fé mais<br />

concisa e objetiva <strong>do</strong> que esta? — ele perguntou a uma platéia de quatro perplexos assistentes,<br />

mamãe, eu, Suely e Luiz. Aninha ainda era pequena demais para saber que estava viva.<br />

Na seqüência, ele disse que iria ler a Bíblia toda e foi para o Gênesis. Mamãe, entretanto,<br />

razoavelmente acostumada à leitura bíblica, pensou que se papai fosse para o começo <strong>do</strong> livro, ele<br />

perderia a motivação logo de saída. Ela temia aquelas longas genealogias judaicas ou aqueles<br />

textos cheios de leis cerimoniais e de recomendações litúrgicas completamente desinteressantes<br />

para o leitor leigo.<br />

— Por que você não começa <strong>do</strong> Novo Testamento? Este livro é diferente. Para que se possa<br />

entender bem o começo, precisa-se compreender o fim — falou mamãe.<br />

Na verdade, o que ela queria era que ele lesse logo sobre a vida de Jesus e seus feitos<br />

maravilhosos, pois sabia que, se ele realmente tivesse uma introdução livre e sem preconceitos à<br />

leitura <strong>do</strong>s evangelhos, Jesus certamente exerceria sobre papai uma profunda fascinação. Tão<br />

logo seus olhos caíram sobre as páginas <strong>do</strong>s evangelhos, algo estranho começou a acontecer a ele.<br />

A história de Jesus, conforme Mateus, encantou-o, especialmente pelo fato de que ali Jesus<br />

aparece fortemente judaico e como a resposta de Deus às questões <strong>do</strong> povo de Israel. Papai não<br />

podia entender como a vida de Jesus cumprira propósitos proféticos tão minuciosamente<br />

detalha<strong>do</strong>s pelos profetas da Antiguidade. Era incrível, mas era verdade. Estava escrito ali. Leu<br />

Marcos, foi a Lucas e mergulhou de cabeça em João. Ele não conseguia parar. O fato é que<br />

quan<strong>do</strong> ele chegou a João, capítulo 19, na narrativa da Crucificação, já era madrugada, aí pelas<br />

duas da manhã.<br />

Ele estava só, senta<strong>do</strong> na cozinha. Seu coração ardia com um calor que ele jamais<br />

experimentara em toda a sua existência. Sua alma estava enternecida por um amor que ele não<br />

sabia que existia neste mun<strong>do</strong>. Subitamente, caiu sobre ele uma profundíssima convicção de<br />

culpa. Começou a chorar e ajoelhou-se diante daquele amor que o vencia. Ainda mais<br />

profundamente, veio-lhe à mente uma outra percepção: a morte de Jesus não fora uma ocorrência<br />

de amplitude somente histórica e sociológica, ou seja, não tinham si<strong>do</strong> apenas os judeus e os<br />

romanos que haviam mata<strong>do</strong> Jesus. De alguma forma que não podia explicar, veio-lhe a certeza<br />

de que ele, <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> D’Araújo, filho <strong>do</strong> Dr. João <strong>Fábio</strong> de Araújo e neto de seu Araujinho,<br />

também era responsável pela morte de Cristo. E não somente ele, mas cada pessoa neste mun<strong>do</strong>.<br />

Naquela hora, papai compreendeu que havia algo irremediavelmente erra<strong>do</strong> com a natureza<br />

humana, sen<strong>do</strong> essa a razão pela qual, mesmo desejan<strong>do</strong> o bem, freqüentemente nos metemos


naquilo que nos destrói a vida.<br />

— Jesus, per<strong>do</strong>a os meus peca<strong>do</strong>s — disse ele, certo de que aquele com quem falava estava<br />

ali, na cozinha <strong>do</strong> apartamento da rua Justina Bulhões, em Niterói.<br />

Depois de fazer aquele pedi<strong>do</strong> de perdão, ele se assustou com uma voz que estrondeou<br />

dentro em seu íntimo.<br />

— E tu, per<strong>do</strong>as os teus inimigos?<br />

E compreendeu que a resposta à sua oração não vinha de Deus, mas dele mesmo, como<br />

indivíduo, cheio de ódio que estava por vários inimigos. De alguma forma aquilo fazia senti<strong>do</strong><br />

com as orações que ele repetira tantas vezes lá no Colégio Dom Bosco: “Per<strong>do</strong>a as nossas dívidas,<br />

assim como nós per<strong>do</strong>amos aos nossos deve<strong>do</strong>res.”<br />

Ele se levantou da oração, an<strong>do</strong>u sozinho, choran<strong>do</strong> pela casa, até que viu cartões de Natal<br />

espalha<strong>do</strong>s sobre o bufê da sala de estar. O Natal seria dali a <strong>do</strong>is meses. Pegou oito cartões,<br />

sentou-se e escreveu uma mensagem: “Aquele que disse ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’,<br />

ordenou-me hoje a vir à Tua presença rogar que Tu me per<strong>do</strong>es por qualquer mal que eu possa<br />

ter feito a Ti. Feliz Natal para Ti e para a Tua família.”<br />

Ele sentiu uma paz celestial invadir seu coração e chorou de gozo no espírito até que o dia<br />

amanheceu.<br />

Discretamente, prosseguiu seu caminho no cotidiano. Não disse nada a ninguém. Apenas<br />

mostrava no rosto um sinal de transcendência. Havia uma luz nele. Seu olhar clareou e ele não<br />

conseguia esconder que seus valores estavam passan<strong>do</strong> por um processo rápi<strong>do</strong> e profun<strong>do</strong> de<br />

total transformação.<br />

A leitura da Bíblia encheu as noites de papai. Chegava em casa o mais ce<strong>do</strong> que podia e, em<br />

silêncio, mergulhava no livro. Era como se ali houvesse um túnel, aberto no tempo e na<br />

eternidade, pelo qual os mortais ávi<strong>do</strong>s por Deus recebiam um acesso especial para entrar. E ele<br />

entrava sem hesitação.<br />

Até ali a experiência era religiosa, mas não havia nada de religião, igreja, <strong>pastor</strong> ou grupo<br />

específico em questão. Papai queria Deus, mas tinha pavor de ser <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong> pela religião. Por<br />

isto mesmo, mamãe não lhe disse para ir procurar um <strong>pastor</strong> para conversar. Vendia o peixe<br />

evangélico dela, mas muito cautelosamente.<br />

O fato é que no Natal de 1967 papai aceitou ir à igreja. Sentou-se lá atrás e ouviu o reveren<strong>do</strong><br />

Antônio Elias pregar com paixão, unção e muita simpatia. Ao fim da mensagem, o <strong>pastor</strong><br />

perguntou se havia alguém ali que desejasse fazer uma decisão pública, confessan<strong>do</strong> Jesus como<br />

seu Senhor e Salva<strong>do</strong>r. Mamãe abaixou a cabeça e ficou ali, pedin<strong>do</strong> a Deus que papai fosse à<br />

frente, manifestan<strong>do</strong> assim sua “decisão” de se tornar um crente.<br />

Eu, Suely e Luiz ficamos com o rabo <strong>do</strong> olho posto nele, torcen<strong>do</strong> para ele ir. Mas que nada.<br />

Ele ficou imóvel em seu banco.<br />

No entanto, quan<strong>do</strong> o culto acabou, percebemos que havia lágrimas em seus olhos. Ele<br />

chorara muito, sozinho, de mo<strong>do</strong> discreto. Um homem com suas posturas dificilmente iria<br />

aceitar Cristo in<strong>do</strong> à frente de uma igreja — ainda que pudesse ter decidi<strong>do</strong> fazer assim —, pois<br />

aquele gesto, para ele, significava muito pouco. Sua grande decisão já havia si<strong>do</strong> tomada e ele<br />

sabia que Deus não era burocrático e nem legitimava as coisas apenas porque os homens as<br />

validavam.<br />

Com o pé na igreja, seu progresso espiritual foi rápi<strong>do</strong>. Logo ele estava à testa de vários<br />

trabalhos e toman<strong>do</strong> posições de liderança entre os cristãos de seu convívio. Além da Bíblia, ele<br />

envere<strong>do</strong>u por várias outras leituras espirituais. Era como se tivesse si<strong>do</strong> transporta<strong>do</strong> para um<br />

mun<strong>do</strong> onde a cada dia ele fosse introduzi<strong>do</strong> a dimensões da vida absolutamente novas. E não<br />

cabia em si de tanta alegria. Andava pelas ruas arrebata<strong>do</strong> de gozo. Mostrava um sentimento de


solidariedade para com a trajetória coletiva, e especialmente para com os desfavoreci<strong>do</strong>s, que era<br />

algo mais forte <strong>do</strong> que ele jamais experimentara nos melhores dias de sua generosa alma juvenil.<br />

A advocacia perdeu completamente o encanto para ele. Não conseguia mais mentir. Por isto,<br />

passou a dizer que não podia advogar. “Um bom advoga<strong>do</strong> é especialista na arte de mentir. Por<br />

isto, eu era tão bom. Agora, sou medíocre. Esqueci como é que se mente”, dizia ele sem<br />

amargura, mas preocupa<strong>do</strong> com o futuro.<br />

Seus companheiros de escritório assistiam aturdi<strong>do</strong>s às mudanças radicais que aconteciam à<br />

sua vida. Não conseguiam entender como a leitura de um livro poderia ter causa<strong>do</strong> tamanha<br />

revolução na vida <strong>do</strong> colega. Dizia-se que ele se tornara generoso, mas meio bobo.<br />

Para ele, passou a haver uma única preocupação: voltar a Manaus e comunicar à mãe e aos<br />

irmãos que se convertera à fé de Lacy. Temia que <strong>do</strong>na Zezé não compreendesse. Seria uma<br />

traição à família e aos anos de prática católica.<br />

Quan<strong>do</strong> ele foi a Manaus, o boato já andava por lá. Papai chegou e tentou mostrar que não<br />

mordia e nem andava como “bode”, o que fez com competência. Mas quan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mingo chegou e<br />

ele se aprontou, pegou a Bíblia e saiu para a Igreja Presbiteriana, sentiu nas costas o olhar gela<strong>do</strong>,<br />

mortal e amargura<strong>do</strong> de sua mãe.<br />

Não trocaram palavras, mas a força <strong>do</strong> olhar foi tão penetrante, que ele diz ter vivi<strong>do</strong> ali seu<br />

pior conflito em relação à sua conversão. Mas não tinha volta. Era uma questão de vida e encontro<br />

com a essência de si próprio. Desse no que desse, não negociaria os valores que o haviam<br />

transforma<strong>do</strong> num outro ser humano. E isso não tinha nada a ver com ele ser católico ou<br />

protestante, mas com o fato de ter encontra<strong>do</strong> Cristo.


Capítulo 12<br />

“Eu desejo me recordar de minha maldade passada e de toda a minha corrupção<br />

carnal não porque eu ame ou me orgulhe de tais memórias, mas exclusivamente<br />

para que eu possa amar mais a Ti, meu Deus. É, portanto, por amor a Ti que eu<br />

realizo este ato de lembrança.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No início foi muito bom, mas logo comecei a achar que a conversão de papai estava in<strong>do</strong><br />

longe demais. Ele estava fican<strong>do</strong> fanático. Não parava de ler a Bíblia e parecia ter esqueci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

problemas que tivera com o sexo oposto, pois mesmo nos anos de seu relacionamento com<br />

Simone, tentava se mostrar rigoroso comigo em questões como namoro e coisas <strong>do</strong> gênero.<br />

Fingia que não sabia o que eu andava fazen<strong>do</strong> com as meninas: beijan<strong>do</strong> uma aqui, amassan<strong>do</strong><br />

outra ali, namoran<strong>do</strong> rapidamente uma outra acolá, mas quan<strong>do</strong> ficava saben<strong>do</strong>, sempre dava uma<br />

de moralista, tipo: “Você só namorará com a minha autorização.” Obviamente, não funcionava.<br />

Entre os 12 e os 14 anos de idade eu brinquei ativa e precocemente de namoradinho com as<br />

garotinhas que apareciam disponíveis na rua, na escola e até na igreja.<br />

Ele também era muito rigoroso com outras questões, como cigarro e bebida. Mas eu pensava<br />

de mo<strong>do</strong> diferente. Achava cigarro algo lin<strong>do</strong>, profundamente decorativo e que dava à pessoa um<br />

tremen<strong>do</strong> ar de maturidade. Aos 12 anos, dei minha primeira tragada num Continental sem filtro<br />

e quase morri. Fiquei tonto, meu corpo começou a formigar e caí na calçada da casa de um amigo<br />

gritan<strong>do</strong> desespera<strong>do</strong> que eu estava morren<strong>do</strong>. Sobrevivi ao susto. Um mês depois, refeito das<br />

más lembranças da experiência e seduzi<strong>do</strong> pelo status que o cigarro dava entre as meninas,<br />

resolvi tentar <strong>do</strong>mar aquele bicho. Não foi difícil. Um mês depois eu já não me sentia mal<br />

fuman<strong>do</strong>. Mas papai dizia que, se soubesse de qualquer coisa, me daria uma surra de cinturão.<br />

Na igreja conheci uma menina <strong>do</strong>is anos mais nova que eu, chamada Fernandinha, e me<br />

apaixonei por ela. Era o retorno emocional da Margarida. A coisa veio com uma força enorme e<br />

quase me nocauteou. Mas aquele sentimento juvenil não era forte o suficiente para me afastar de<br />

outras aventuras. Eu dizia: “Não procuro outras, mas também não fujo da raia se aparecer dan<strong>do</strong><br />

sopa.” E foi assim que um dia papai chegou em casa com um compadre de Manaus e sua filha,<br />

uma morena de rosto extremamente delica<strong>do</strong> e cabelos de índia, eu botei os olhos na garota e me<br />

alucinei, especialmente porque seus lábios eram um irresistível convite ao beijo saboroso.<br />

Aquele foi meu primeiro conflito explícito sobre a força da traição que existe dentro <strong>do</strong>s seres<br />

humanos. Eu gostava da Fernandinha e não desejava fazer qualquer coisa que a magoasse. Mas<br />

olhan<strong>do</strong> aquela garota, sua faceirice, o mover sedutor de seu corpo de 16 anos de idade e aqueles


lábios, cheguei à conclusão que não a deixaria passar incólume pela minha casa. O que eu não<br />

sabia era que ela já chegara decidida a viver muito bem aquele fim de semana. Sen<strong>do</strong> quase três<br />

anos mais velha <strong>do</strong> que eu e conhecen<strong>do</strong>-me de fotografia, achou que não faria mal se ela desse<br />

uns abraços pedagógicos naquela criança antes de voltar a Manaus, onde o namora<strong>do</strong>, um rapaz<br />

de vinte anos de idade, a esperava.<br />

E ela me atacou com tal poder e <strong>do</strong>mínio, que não precisei fazer outra coisa, a não ser me<br />

entregar à avidez da garota.<br />

Ela foi embora e me deixou perplexo. No fun<strong>do</strong>, fiquei pensan<strong>do</strong> que o compadre de papai<br />

estava ten<strong>do</strong> um problemão com a filha e não sabia. Fiz tu<strong>do</strong> para não me apaixonar, apesar de<br />

não conseguir esquecer seu cheiro e o <strong>do</strong>ce gosto de seus lábios. Seis meses depois ficamos<br />

saben<strong>do</strong> que ela estava grávida <strong>do</strong> namora<strong>do</strong> de Manaus e que os <strong>do</strong>is se casariam. De qualquer<br />

forma, a <strong>do</strong>ce experiência com uma menina mais velha e tão bela, que já estava até casan<strong>do</strong>,<br />

levantou imensamente a minha autoconfiança.<br />

Papai, entretanto, mesmo não saben<strong>do</strong> das minhas aventuras com as meninas, fazia<br />

colocações pesadíssimas sobre aspectos de natureza moral relaciona<strong>do</strong>s ao namoro. Eu não<br />

estava gostan<strong>do</strong> nada daquilo. Achava que ele havia esqueci<strong>do</strong> rápi<strong>do</strong> demais as <strong>do</strong>res que a sua<br />

própria falta de moral havia causa<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s nós. Além disso, também não me agradava que,<br />

depois de crente, a única coisa que ele quisesse fazer fosse falar de Cristo, onde quer que parasse<br />

para conversar. Eu me constrangia com aquilo. E para completar, ele se afastou completamente<br />

<strong>do</strong> meu mun<strong>do</strong>. No início, ainda ia ao Maracanã comigo e dirigia o time Ingá Futebol Clube que<br />

eu e uns garotos <strong>do</strong> bairro havíamos funda<strong>do</strong>. Mas depois de <strong>do</strong>is anos de igreja, ele não tinha<br />

mais tempo para nada disso.<br />

E comecei a achar chato tê-lo por perto. Ven<strong>do</strong> televisão, ele sempre fazia comentários sobre<br />

como o mun<strong>do</strong> estava perdi<strong>do</strong> e como os homens eram cegos e sem Deus. Eu ficava quican<strong>do</strong> de<br />

raiva e pensava: “Pô, tu<strong>do</strong> bem que ele não goste. Mas não precisa ficar fazen<strong>do</strong> sermão sobre<br />

tu<strong>do</strong>. Ele tá é muito chato.”<br />

Para completar, ainda havia um pessoal esquisito em volta dele. Um ex-cangaceiro, sempre<br />

cheio de histórias de milagres <strong>do</strong> Nordeste; um ex-suicida, seu Edésio, sempre duro de grana e<br />

falan<strong>do</strong> de como a graça de Deus o salvara de pular de um prédio na avenida Amaral Peixoto, em<br />

Niterói, e um monte de gente pobre e simples que o procurava na esperança de que aquele<br />

“irmão próspero” tivesse uma pequena ajuda para lhes dar. Eu achava o fim da picada. Ali, de<br />

alguma forma, começou a crescer dentro de mim um profun<strong>do</strong> repúdio por papai, mamãe e<br />

aquela fé que eles haviam abraça<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> tão fanático.


Capítulo 13<br />

“Durante a celebração de Teus ritos solenes, dentro das paredes de Tua igreja, eu<br />

ousei cobiçar uma menina e iniciar um caso que me faria, mais adiante,<br />

experimentar os frutos da morte.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Enquanto meus pais se dedicavam cada vez mais à fé, eu experimentava uma vida cada vez<br />

mais ambígua. Na igreja, eu era visto como bom de bola, bom de papo, bom garoto e<br />

bem-entrosa<strong>do</strong>. Fora da igreja, entretanto, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sabia que, na verdade, eu era apenas um<br />

“dublê de crente”, pois as estripulias que eu fazia falavam de uma outra pessoa, que apenas uns<br />

poucos, e igualmente sonsos, da igreja conheciam. O problema era que meus heróis eram to<strong>do</strong>s<br />

malucos e nenhum deles era cristão. Atum, um cara magro, esquisito, bom de bola, maconheiro e<br />

cômico, era a figura que eu mais admirava por sua inteligência irreverente, seu anarquismo e sua<br />

tendência suicida. Depois, vinha o Zé Bumbum, meio desequilibra<strong>do</strong>, com uma vocação terrível<br />

para a criminalidade, amigo de prostitutas e vagabun<strong>do</strong>s, sempre de cabeça feita de maconha e<br />

sem me<strong>do</strong> de morrer. Ele também era meu herói. Havia ainda o Marcinho, pernas tortas<br />

conforme a moda, nariz bonitinho, rosto bem-forma<strong>do</strong>, cabelo longo, cara de malandro rico, bom<br />

de papo e bom de mulher. Ele era tu<strong>do</strong> o que eu queria ser. E, por último, havia os filhos <strong>do</strong><br />

governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio, Jeremias Fontes. Eu não os conhecia, mas estudávamos juntos no<br />

Colégio Batista de Niterói. O mais velho era muito louco e eu o achava o máximo. Admirava a<br />

“caminhada torta” de to<strong>do</strong>s os dias <strong>do</strong> rapaz, quan<strong>do</strong> andava uns quinhentos metros da escola até<br />

o portão <strong>do</strong> palácio, por onde passava completamente alucina<strong>do</strong> de tanta droga. Enfim, minhas<br />

admirações já indicavam a direção que eu queria tomar.<br />

O mun<strong>do</strong> fervia sob o impacto da revolução de valores promovida na Europa e nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s e explodia sob o som <strong>do</strong>s Beatles, Rolling Stones e Cia. No Brasil, havia uma angústia<br />

sufocada, que fora gerada pela falsa liberdade que o golpe militar institucionalizara. To<strong>do</strong>s os<br />

ventos sopravam na direção de algo novo. E num mun<strong>do</strong> cuja ordem era mantida pelo tacão <strong>do</strong><br />

autoritarismo, a loucura das drogas parecia ser o passaporte mais fácil para a fantasia. Possuí<strong>do</strong><br />

por ansiedades existenciais que latejavam em mim desde a infância, percebi que a via para<br />

encontrar aquele algo que a mangueira sagrada da casa da vovó instituíra como meu referencial<br />

espiritual na vida talvez fosse o caminho das drogas.<br />

Existencialmente, eu já vinha entorpeci<strong>do</strong>, mesmo sem jamais ter coloca<strong>do</strong> um basea<strong>do</strong> na<br />

boca. Minha mente já era de maluco. Havia deixa<strong>do</strong> de ser careta e vivia como louco fazia tempo.<br />

Passei quase um ano ven<strong>do</strong> a vida como um ser desarvora<strong>do</strong> antes de decidir tomar a primeira


droga. Foi só num entardecer de julho de 1969 que um amigo me serviu um basea<strong>do</strong>. Eu estava<br />

na praia de São Francisco e fiquei com me<strong>do</strong> de fumar ali. Por isso, convidei-o para ir comigo à<br />

casa de Fernandinha, ali mesmo no bairro. Eu sabia que não havia ninguém lá. Sentamos num<br />

tronco que havia no jardim e fumamos a maconha. Depois, andamos a esmo pelo bairro. Não deu<br />

onda nenhuma. Foi uma decepção. No dia seguinte, novo basea<strong>do</strong>. Que onda! Andei sem parar,<br />

sentin<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> passar sob meus pés como uma esteira rolante de aeroporto americano.<br />

Não consegui mais parar de fumar maconha. Não que aquilo viciasse, como diziam os<br />

caretas, mas é que eu já estava “psicologicamente vicia<strong>do</strong>” antes mesmo de usar aquilo. Vícios<br />

daquele tipo são, antes de tu<strong>do</strong>, necessidades existenciais de almas carentes e sedentas. Têm a<br />

ver com o desejo <strong>do</strong> eu de se projetar para outro mun<strong>do</strong>. Daí os droga<strong>do</strong>s serem quase sempre,<br />

também, pessoas com fortíssima tendência religiosa e artística. Em meu caso, a maconha e as<br />

drogas que a ela se seguiram eram apenas uma demonstração de como minha alma ansiava por<br />

transcendência.<br />

Logo estava fuman<strong>do</strong> quatro ou cinco basea<strong>do</strong>s por dia. Para me levantar da morgação que a<br />

maconha causava, os amigos começaram a aconselhar que eu tomasse umas anfetaminas<br />

argentinas. Aí era excitação o tempo to<strong>do</strong>. Junto com as drogas vieram também os coquetéis de<br />

álcool. Valia tu<strong>do</strong>. “O negócio é não perder a lucidez da loucura”, pensava. Na igreja, ninguém<br />

sabia que eu estava <strong>do</strong>i<strong>do</strong> daquele jeito. Dava uma bandeira aqui, outra ali, mas nada tão grave<br />

assim.<br />

Seis meses depois de estar usan<strong>do</strong> drogas direto, tive uma profunda crise de culpa e angústia.<br />

Achei que estava me destruin<strong>do</strong> e fiquei com me<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> um dia vi o Atum baban<strong>do</strong> de <strong>do</strong>i<strong>do</strong><br />

no banco da praça. Será que eu também ficaria daquele jeito?<br />

Nessa ocasião, o reveren<strong>do</strong> Antônio Elias chamou para pregar na igreja um jovem de Goiânia,<br />

de uns 23 anos, e que diziam já ter si<strong>do</strong> um grande “micróbio”, vicia<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> tipo de droga<br />

possível, mas que tivera um encontro de fé com Jesus e deixara de vez todas aquelas loucuras. A<br />

propaganda foi tão grande, que fomos to<strong>do</strong>s ouvir o Zé Berto. Ele falava com uma voz rouca, que<br />

dizia ser conseqüência <strong>do</strong> uso de drogas pesadas por muito tempo, e fazia descrições incríveis.<br />

“O cara era da pesada”, dizíamos uns aos outros no jardim da igreja após os cultos. Noite após<br />

noite ele contou a mesma história. Obviamente, deixava episódios diferentes para cada noite, a<br />

fim de manter a nossa atenção. No fim de tu<strong>do</strong>, fazia um “apelo à conversão e à salvação”,<br />

pedin<strong>do</strong> que largássemos aquele mun<strong>do</strong> mau e nojento no qual estávamos crescen<strong>do</strong>.<br />

Certa noite um garoto bom de bola, filho de um líder leigo da igreja, foi à frente no “apelo” e,<br />

ao fim <strong>do</strong> culto, confessou que estava usan<strong>do</strong> drogas e fazen<strong>do</strong> muitas outras coisas erradas. Foi<br />

um choque para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A notícia caiu sobre mim como uma bomba não por ele estar<br />

fazen<strong>do</strong> aquilo, mas por ter ti<strong>do</strong> a coragem de confessar. Em 1969 dizer aquilo era quase como ter<br />

coragem de admitir que você tinha contraí<strong>do</strong> o vírus da AIDS num convento. Era aquele bafafá.<br />

Achei que talvez fosse a minha chance de falar também, mas pensei melhor e preferi ficar<br />

cala<strong>do</strong>. “Vou pegar carona na confissão dele e largar a droga. Mas prefiro ficar na minha para ver o<br />

que acontece”, pensei. Passamos aproximadamente cinco meses de arrebatamento espiritual.<br />

Fazíamos vigílias de orações noturnas, pregávamos na praça das barcas em Niterói, cantávamos<br />

nos cultos da igreja, visitávamos outras comunidades, dávamos testemunho de nossa conversão e<br />

empolgávamos aonde íamos.<br />

Foi naquele mesmo perío<strong>do</strong> que descobri que minha gagueira, renitente desde os meus sete<br />

anos de idade, ia e vinha, alternan<strong>do</strong>-se conforme meu esta<strong>do</strong> emocional. Mas quan<strong>do</strong> eu falava<br />

em público, como naqueles cultos juvenis em que eu lia um texto bíblico e exortava a moçada a<br />

seguir o caminho de Deus, a gagueira desaparecia completamente. E mais: o pessoal vinha a mim<br />

e dizia que eu tinha “o <strong>do</strong>m da palavra”. Eu não sabia muito bem o que era aquilo, mas percebia


que quan<strong>do</strong> eu falava, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> parava para ouvir. E aquela era uma relação estranha,<br />

profundamente sedutora. Angustiava-me pela responsabilidade de estar falan<strong>do</strong> em nome de<br />

Deus, mas fascinava-me por perceber o embevecimento das pessoas frente ao discurso.<br />

O fogo daquela experiência não era profun<strong>do</strong> e muito menos dura<strong>do</strong>uro. Aliás, eu diria que<br />

era “avivamento espiritual de fogo de palha”. Como a atitude <strong>do</strong> grupo era muito pentecostal —<br />

concentrada na possibilidade de que <strong>do</strong>ns sobrenaturais, como o falar em outras línguas e as<br />

profecias, se manifestassem em nosso meio — e como nós to<strong>do</strong>s éramos muito imaturos, não<br />

demorou muito para que aparecessem uns espertalhões se fazen<strong>do</strong> de profetas, dan<strong>do</strong><br />

mensagens espirituais para as gatinhas e falan<strong>do</strong> em nome de Deus sobre quem deveria namorar<br />

quem. “Meus servos, hoje estou aqui para revelar para a minha serva que aquele que se declarou a<br />

ela é o jovem puro e crente que eu tenho reserva<strong>do</strong> para ela. Portanto, minha serva, assim diz o<br />

Senhor: Não tenha me<strong>do</strong>”, falava o cara em nome <strong>do</strong> Altíssimo.<br />

Declarações como essa começaram a acontecer com freqüência, e eu via que era pura<br />

armação. Ora, esse tipo de coisa era inconcebível mesmo para mim, que não era nenhum<br />

exemplo de pureza. Eu podia admitir qualquer molecagem ou safadeza fora daquele contexto.<br />

Mas esse negócio de dar cantada nas meninas em nome de Deus me enojava. Eu achava os caras<br />

frouxos, sem peito para ir à luta em nome deles mesmos, e que por isso evocavam um desígnio<br />

divino que obrigava as meninas a os aceitarem.<br />

Não dava. O Atum, Zé Bumbum, Marcinho e os outros eram muito mais honestos. Botavam a<br />

cara para fora e assumiam quem eram e o que faziam. Dei o fora dali.<br />

Como Jesus já havia predito, uma casa vazia e ornamentada é um atrativo mais que especial<br />

para seus antigos mora<strong>do</strong>res. Por isto, com meu aban<strong>do</strong>no interior da fé, cresceram dentro de<br />

mim diversos sentimentos estranhos. Eram desejos de toda sorte, que provocavam em mim<br />

paixões incontroláveis. Eu queria comer a vida por onde quer que ela pudesse ser experimentada,<br />

provada e saboreada. As drogas voltaram com força nova e minhas resistências em relação a tentar<br />

evitar o uso sistemático delas desapareceram completamente.<br />

Naqueles dias, o único amigo careta que eu tinha era o Téo, filho mais novo <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong>. “É<br />

careta, mas é gente boa”, eu justificava a minha amizade com ele para um grupo cada vez maior<br />

de amigos malucões. Além de ser gente boa, Téo e os irmãos — Cecé, Lucilia e Lúcio — tinham<br />

em casa uma tremenda coleção de discos importa<strong>do</strong>s. Nós ficávamos ali no quarto de Téo<br />

ouvin<strong>do</strong> Jimmi Hendrix, Janis Joplin, Joe Coker, The Beatles, The Rolling Stones, Crosby, Still,<br />

Nash & Young e muitos outros até que nossas almas ficassem carregadas com a loucura <strong>do</strong>s<br />

tempos. Depois eu saía dali, dava uma namoradinha, e me entregava à loucura até não haver mais<br />

ninguém para falar bobeira comigo na rua.<br />

Os dias passavam sem alterações maiores que as loucuras de cada esquina e o frenético papo<br />

com os amigos de viagem e fantasia. Entretanto, o que meus pais não podiam avaliar em<br />

profundidade é que eu já não era quem eles supunham que eu ainda fosse. O garoto <strong>do</strong> quintal da<br />

vovó tinha mergulha<strong>do</strong> em águas de profunda angústia. Somente alguns anos mais tarde eu<br />

aprenderia que aquelas experiências de a<strong>do</strong>lescente um dia haveriam de me colocar no vale da<br />

sombra da morte e semeariam em mim uma <strong>do</strong>r que não escolhe idade para machucar.


Capítulo 14<br />

“Para quem eu conto estas coisas? Não para Ti, meu Deus. Porém, perante Ti eu<br />

faço confissões à minha raça, à raça humana, de cujo grupo apenas uma minúscula<br />

parte poderá discernir a razão de minhas declarações. Nada está mais próximo de<br />

Ti <strong>do</strong> que um coração disposto à confissão e a uma vida fundada na fé.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Para mim, papai estava insuportável. Mas para muita gente, ele se tornara o ser mais incrível<br />

que haviam conheci<strong>do</strong>. Com sua testa larga e profunda, seus braços grossos, musculosos e fortes,<br />

seus cabelos castanho-avermelha<strong>do</strong>s, seu olhar profun<strong>do</strong> e seu rosto calmo, cheio de paz,<br />

moven<strong>do</strong>-se na estranha cadência e nos balanços característicos de uma incrível afinidade com<br />

sua muleta, ele marcava a imaginação das pessoas aonde quer que chegasse.<br />

Havia algo estranho pousa<strong>do</strong> sobre ele. Sua presença era marcante, por vezes desconcertante,<br />

e essa força carismática manifestava-se de diferentes formas e impactava as pessoas de mo<strong>do</strong><br />

indelével. A maior demonstração disso estava no fato de que quase to<strong>do</strong>s que passavam por seu<br />

caminho sempre se apaixonavam por Deus ou diziam ter senti<strong>do</strong> uma misteriosa presença<br />

espiritual sobre ele.<br />

Aquela luz que dele refulgia não era, entretanto, própria. Era o fruto de atividades, exercícios<br />

e buscas espirituais absolutamente novas, às quais ele se dedicara com amor e entrega. Após ler o<br />

livro Apóstolo <strong>do</strong>s pés sangrentos, ele decidira que gostaria de poder viver a beleza e a<br />

espiritualidade daquele místico indiano, presbiteriano, que praticara jejuns, orações, êxtases e<br />

meditações com profundidade raramente encontrada entre cristãos neste século. Assim foi que<br />

ele passou a jejuar três vezes por semana e a dedicar algumas horas de seus dias ao silêncio, à<br />

leitura e à oração. De alguma forma, aqueles exercícios espirituais deram a papai novas<br />

dimensões sobre o sagra<strong>do</strong> e sobre ele mesmo em relação à vida.<br />

Não demorou muito e aquela graça que sobre ele pousara começou a dar evidências de que<br />

chegara para ficar. No seu escritório de advocacia, os episódios mais esquisitos não paravam de<br />

acontecer. Eram casais que chegavam para discutir as bases <strong>do</strong> desquite e que, após ouvirem<br />

papai falar sobre como seu lar fora salvo pelo amor de Deus, desistiam de seu intento e acabavam<br />

ten<strong>do</strong> nele não um profissional das negociações de separação, mas um amigo, um <strong>pastor</strong>, uma<br />

ponte para a reconciliação. Além disso, ninguém que chegasse no escritório em desespero saíra<br />

sem uma palavra de conforto ou uma oração. O lugar transformou-se num centro de irradiação de<br />

amor e perdão.<br />

Dentre as muitas histórias está a de uma senhora que o procurou para se separar de um


mari<strong>do</strong> machão, violento e iracun<strong>do</strong>. Após ouvir a história de agressões e brutalidades da parte <strong>do</strong><br />

mari<strong>do</strong>, papai sugeriu a ela que deixasse que ele conversasse com o homem antes de iniciar o<br />

processo de separação. Man<strong>do</strong>u-lhe um convite por escrito e aguar<strong>do</strong>u o bicho.<br />

Um dia, na hora <strong>do</strong> almoço, depois que to<strong>do</strong>s tinham saí<strong>do</strong>, ele estava sozinho no escritório<br />

len<strong>do</strong> a Bíblia e jejuan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong>, de repente, percebeu o movimento agita<strong>do</strong> de alguém <strong>do</strong> outro<br />

la<strong>do</strong> da parede de vidro fosco que dividia seu gabinete da sala da secretária.<br />

— Pode entrar que eu estou aqui dentro — ele disse sem saber quem era. Entrou um<br />

homem sua<strong>do</strong>, ofegante e fuzilan<strong>do</strong> de ódio. Papai pediu que ele se sentasse e disse: — O senhor<br />

parece aflito. O que eu posso fazer para ajudá-lo?<br />

O homem respondeu apenas que era o mari<strong>do</strong> de Selma e que queria saber que ousadia era<br />

aquela dele de tentar interferir em decisões que já estavam tomadas e que macho nenhum no<br />

mun<strong>do</strong> poderia mudar.<br />

Papai explicou que não estava tentan<strong>do</strong> mudar nada, mas apenas pedin<strong>do</strong> que eles<br />

considerassem se aquela era a melhor decisão. Disse, ainda, que ele mesmo sabia o que era<br />

aquilo, pois já estivera na mesma situação. Depois de conversar com calma e respeito para com as<br />

angústias <strong>do</strong> homem, papai viu a fera tirar da barriga um revólver carrega<strong>do</strong> e colocá-lo sobre a<br />

mesa.<br />

— O senhor sabe, eu não vim aqui conversar. Eu vim aqui matar o senhor. Eu sou um<br />

homem que não admite ninguém dizen<strong>do</strong> o que eu devo fazer de minha vida. Vim para encher<br />

seu peito de chumbo. Eu sabia que a essa hora o senhor estaria sozinho. Já havia estuda<strong>do</strong> os seus<br />

costumes. O problema é que eu cheguei aqui e vi o senhor len<strong>do</strong> a Bíblia, com essa cara de santo.<br />

Quem é que pode matar um homem que está cheio de uma coisa como essa que está sain<strong>do</strong> pelos<br />

seus olhos? — disse ele e, em seguida, caiu de joelhos, choran<strong>do</strong> e pedin<strong>do</strong> que papai orasse por<br />

sua vida. Depois da oração, o homem foi embora e no <strong>do</strong>mingo seguinte estava com a esposa na<br />

igreja que papai freqüentava.<br />

Mas naquela época papai também conheceu a presença <strong>do</strong>s demônios e a força <strong>do</strong> nome de<br />

Jesus quanto a expulsá-los de suas vítimas. Num certo sába<strong>do</strong> à tarde, ele estava oran<strong>do</strong> na igreja<br />

quan<strong>do</strong> foi chama<strong>do</strong> para uma sala onde o reveren<strong>do</strong> Daniel Bonfim lutava, há horas, tentan<strong>do</strong><br />

expulsar um espírito maligno. O tal espírito possuíra uma moça, que fora levada ao <strong>pastor</strong> já<br />

atacada por aquela entidade. Lá em cima, na sala, o <strong>pastor</strong> ouvia o demônio dizer que ali no lugar<br />

só havia uma pessoa respeitada no mun<strong>do</strong> espiritual.<br />

— Quem é essa pessoa? — perguntou o reveren<strong>do</strong>.<br />

— É aquele homem que está oran<strong>do</strong> sozinho, lá dentro <strong>do</strong> templo — responderam os<br />

espíritos. Era papai. Imediatamente foram chamá-lo, e ele subiu até o lugar <strong>do</strong> exorcismo,<br />

embora nunca tivesse esta<strong>do</strong> numa situação como aquela.<br />

— Ele ora. Ele conhece a Deus. Não gostamos de sua presença — papai ouviu uma voz<br />

masculina gritar em desespero quan<strong>do</strong> entrou.<br />

— Espíritos maus, saiam dela em nome de Jesus — disse ele simplesmente, estenden<strong>do</strong> a<br />

mão.<br />

Os espíritos imediatamente saíram da jovem e entraram em seu noivo, que estava na mesma<br />

sala. Ao perceber que tinha havi<strong>do</strong> uma transferência, papai insistiu na ordem. O rapaz foi agita<strong>do</strong><br />

ao chão e estrebuchou em convulsões incontroláveis. Em seguida, gritou e respirou alivia<strong>do</strong>.<br />

Papai o ergueu e, juntamente com o reveren<strong>do</strong> Daniel, aconselhou o casal a seguir a Cristo e a se<br />

afastar <strong>do</strong>s rituais de culto escuso onde eles haviam contraí<strong>do</strong> aquela espiritualidade tirana.<br />

E assim as coisas prosseguiam. Entre os anos de 1967 e 1969 ele foi tu<strong>do</strong>, menos advoga<strong>do</strong>, e<br />

seu escritório nada mais era <strong>do</strong> que um centro de irradiação de graças e preces.<br />

Dentre os que se beneficiaram de seu ministério espiritual houve um homem chama<strong>do</strong>


Barros.<br />

Seu Barros era cliente de papai e lhe devia alguns honorários por um trabalho já executa<strong>do</strong>.<br />

Como àquela altura papai já tinha mais quatro colegas advogan<strong>do</strong> com ele, ficava difícil<br />

simplesmente per<strong>do</strong>ar as dívidas <strong>do</strong>s clientes negligentes no pagamento. Quan<strong>do</strong> dependia só<br />

dele, em geral dispensava os que não pagavam. Mas quan<strong>do</strong> envolvia os outros companheiros, ele<br />

tinha de insistir no pagamento. Seu Barros era um desses cujo dinheiro seria reparti<strong>do</strong> entre os<br />

advoga<strong>do</strong>s. Mas o homem não pagava, não atendia aos telefonemas e não dava notícias.<br />

Um dia, depois de muito esperar, papai resolveu ir à loja <strong>do</strong> homem, no bairro de Santa Rosa,<br />

em Niterói. Ao chegar lá, assistiu a uma cena chocante. Seu Barros, traspassa<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r e agonia,<br />

chorava desconsola<strong>do</strong> em sua sala de trabalho.<br />

— O que está acontecen<strong>do</strong>, meu amigo? — perguntou meu pai quan<strong>do</strong> entrou. O homem<br />

apenas exclamava que era uma tragédia.<br />

— Mas que tragédia? Conte-me — pediu ao homem descontrola<strong>do</strong>.<br />

— É meu filho, <strong>do</strong>utor, meu único filho — foi só o que pôde dizer antes de mergulhar no<br />

pranto outra vez.<br />

Após alguns minutos, seu Barros conseguiu contar que seu filho tinha acaba<strong>do</strong> de ter um <strong>do</strong>s<br />

olhos perfura<strong>do</strong>s por uma bala de ar comprimi<strong>do</strong> e que em duas horas o seu globo ocular seria<br />

removi<strong>do</strong>. E caiu no choro outra vez.<br />

Papai ficou ali, cala<strong>do</strong>, ouvin<strong>do</strong> o homem derramar a sua <strong>do</strong>r e frustração. Foi só depois de<br />

algum silêncio que ousou falar.<br />

— Seu Barros, eu creio em Deus. Eu O conheço e sei que Ele me conhece. Eu não sei o que<br />

Deus tem a dizer sobre a sua situação. Mas uma coisa eu sei: Ele é solidário. Também não sei se<br />

Ele vai curar o seu filho. Mas uma coisa eu sei: Ele pode curar o seu filho. O senhor me permitiria<br />

falar com Deus agora mesmo sobre essa situação? — perguntou. Seu Barros apenas sacudiu a<br />

cabeça em aprovação, não esboçan<strong>do</strong> nada além de um resigna<strong>do</strong> consentimento.<br />

“Jesus, sei que Tu podes tu<strong>do</strong>. Tu fizeste os olhos, por isso Tu podes curá-los. Por isso, se<br />

Tu queres alguém com fé para que Tu operes um milagre, então conta com a minha fé. Eu não<br />

duvi<strong>do</strong> que Tu podes fazer isto — disse meu pai ajoelha<strong>do</strong>. Em seguida, levantou-se e saiu.<br />

Alguns dias depois, papai voltou à loja <strong>do</strong> cliente. Ao chegar, encontrou um clima de<br />

celebração. Seu Barros não parava de rir.<br />

— Não contaram ao senhor o que aconteceu? — foi logo perguntan<strong>do</strong>. Como papai não<br />

soubesse de nada, ele prosseguiu dizen<strong>do</strong> que naquele dia saíra dali e fora para o hospital, onde<br />

viu o filho passan<strong>do</strong> para a sala de operações. O médico, na intenção de consolá-lo, disse que<br />

existiam próteses muito boas, quase perfeitas, e que o olho <strong>do</strong> garoto seria esteticamente<br />

recomposto. Seu Barros ficou choran<strong>do</strong> no corre<strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong>, subitamente, viu o médico sair<br />

páli<strong>do</strong> da sala de operações, gritan<strong>do</strong>: “Eu não sei quem é o seu Deus meu senhor, mas o nome<br />

dele deve ser ‘O To<strong>do</strong>-poderoso’. O olho de seu filho está normal. Eu tirei o tampão e não havia<br />

nada. Não pode ser. Eu mesmo tinha examina<strong>do</strong> o rapaz. Tem de ser milagre.” E o médico<br />

sacudia seu Barros, assustan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong> hospital. — Foi isso, <strong>do</strong>utor <strong>Caio</strong>. Seu<br />

Deus é vivo e faz milagres. Que maravilha!<br />

Naqueles dias, entretanto, um sentimento de desconforto começou a tomar conta de meu<br />

pai. Havia uma voz sussurran<strong>do</strong> em sua alma uma ordem que ele não sabia qual era. Chamou<br />

mamãe e pediu para ser deixa<strong>do</strong> sozinho em casa durante um fim de semana. Precisava orar e<br />

jejuar a fim de discernir “o que a voz tentava lhe dizer”.<br />

Trancou-se em casa e dedicou-se à leitura bíblica e às preces. À noite teve uma visão. O céu<br />

se abria e ele via o horizonte toma<strong>do</strong> pela Glória de Deus. Eram cores, matizes e formas<br />

inimagináveis. Miríades de seres espalhavam-se entre o céu e a terra. Jesus parecia ser a pessoa


no centro de tu<strong>do</strong>. Enquanto isso, papai tremia de gozo e alegria. Era um sentimento de outra<br />

dimensão. Ele jamais provara nada igual. De súbito, ouviu uma voz estrondean<strong>do</strong> sobre ele:<br />

“<strong>Caio</strong>, <strong>Caio</strong>. Eis que te <strong>do</strong>u <strong>do</strong>is ministérios neste mun<strong>do</strong>: tu curarás enfermos e expelirás<br />

demônios.” Papai ficou ali, imóvel, na cama, possuí<strong>do</strong> pelas percepções de camadas da existência<br />

que transcendiam a tu<strong>do</strong> o que ele jamais pudera sentir, pensar, desejar ou imaginar.<br />

No dia seguinte, levantou-se ce<strong>do</strong> e ficou andan<strong>do</strong> pela casa, sozinho. O gozo dera lugar a um<br />

enorme peso. Um senso de dever o esmagava. Mas ele não sabia onde, como e nem para quem se<br />

dirigir. Começou a dizer: “Jesus, se Tu estás me chaman<strong>do</strong> para trabalhar para Ti, diz-me como<br />

e onde. Eu já não sou mais jovem e tenho família para criar. Mas se Tu me chamas, eu largo tu<strong>do</strong>.<br />

O que eu quero é provar sempre essa alegria de conhecer a Ti.”<br />

Enquanto ele andava pela sala, seu olhar pousou sobre um quadro amazônico que mamãe<br />

pendurara numa das paredes da casa. Mas seus olhos, entretanto, não viram o quadro, mas um<br />

indiozinho que, nostalgicamente, remava uma canoa feita de um tronco de árvore, que deslizava<br />

suave por entre as árvores de um igapó.<br />

Igapós são alagações <strong>do</strong> rio na floresta, na estação das chuvas, no Amazonas.<br />

O cenário era o mesmo ao qual ele se acostumara quan<strong>do</strong> viajava para o seringal <strong>do</strong> Santo<br />

Antônio <strong>do</strong> Cainaã. Tu<strong>do</strong> estava de volta. As vozes e os clamores da floresta estavam ainda<br />

presentes e faziam apelos de força irresistível à sua alma.<br />

Quan<strong>do</strong> a família voltou para casa, ele comunicou à mamãe que Deus tinha fala<strong>do</strong> com ele e<br />

que o estava compelin<strong>do</strong> a voltar à sua terra natal, a fim de evangelizar seus conterrâneos<br />

desesperança<strong>do</strong>s.<br />

Mamãe ouviu com um misto de alegria e preocupação. Como é que isso aconteceria sem<br />

profun<strong>do</strong>s traumas para as crianças, especialmente para mim? Tinha si<strong>do</strong> horrível sair de lá. Mas<br />

agora, quem queria voltar? Aos 45 anos, como ele iria sustentar a família, sempre acostumada ao<br />

conforto? E como ele viabilizaria esse seu chama<strong>do</strong> junto à igreja? Iria para o seminário? Mas<br />

como? Já não era tarde para largar tu<strong>do</strong> e ir para uma escola de teologia por quatro anos?<br />

Contar isso para nós é que seria o problema. Suely e Luiz, entretanto, eram pessoas bem<br />

mais cordatas <strong>do</strong> que eu e aceitaram — não sem alguns choramingos — que a volta para Manaus<br />

poderia ser boa. Eu fui o último a saber e, quan<strong>do</strong> soube, fiquei com vontade de matar papai.<br />

“Que desgraça<strong>do</strong>! Ferra a gente para sair de lá e agora, em nome de Deus, ferra a gente pra voltar.<br />

Eu não. Num vou nem morto”, foi o que pensei e falei para a mamãe, a infeliz porta<strong>do</strong>ra da<br />

mensagem.


Capítulo 15<br />

“Que podridão! Que vida monstruosa e que morte abissal! Será possível ter prazer<br />

no ato ilícito por nenhuma outra razão a não ser por ser ele proibi<strong>do</strong>?”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Papai procurou o reveren<strong>do</strong> Antônio Elias e comunicou sua intenção de voltar ao Amazonas<br />

como missionário. No início o amigo e <strong>pastor</strong> ainda tentou demovê-lo da idéia por duas razões:<br />

achava que o Dr. <strong>Caio</strong> tinha potencial demais para ser enterra<strong>do</strong> no meio da floresta e, confessou,<br />

preocupava-se com a família dele, especialmente com o filho mais velho, que já dava claras<br />

indicações de incontrolável rebeldia.<br />

Além disso, Antônio Elias não sabia se a burocracia denominacional não acabaria<br />

“burramente” forçan<strong>do</strong> papai a ir ao seminário, desperdiçan<strong>do</strong>, assim, mais quatro anos de sua<br />

vida, os quais precisavam ser bem usa<strong>do</strong>s no trabalho de Deus.<br />

Papai, entretanto, foi logo dizen<strong>do</strong> que, se aquela fosse a condição para que pudesse ser<br />

envia<strong>do</strong> como missionário da Igreja Presbiteriana, ele já havia decidi<strong>do</strong> ir por conta própria.<br />

“Afinal”, dizia ele, “não foi a Igreja quem me salvou, foi Jesus. E foi len<strong>do</strong> a Bíblia sozinho que a<br />

luz me iluminou. Não preciso ser um teólogo para anunciar às pessoas o mesmo amor livre e<br />

simples de Deus que me alcançou.” Esse era o seu veredicto. Afinal, ele não chegara até aquele<br />

ponto da vida tutela<strong>do</strong> por ninguém, e não seria agora, quan<strong>do</strong> sua alma estava mais livre <strong>do</strong> que<br />

nunca, que ele aceitaria o cabresto de uma instituição religiosa.<br />

De algum mo<strong>do</strong> os <strong>pastor</strong>es da cidade sabiam disso e decidiram enquadrá-lo num artigo da<br />

constituição da Igreja Presbiteriana que autorizava o presbitério — a instância local da hierarquia<br />

da igreja — a ordenar ministros de vocação tardia, mesmo que esses não tivessem o curso formal<br />

<strong>do</strong> seminário. Além <strong>do</strong> mais, pouquíssimos ministros evangélicos no Brasil dispunham da<br />

formação acadêmica e da bagagem cultural de papai. Por isso, ofereceram-lhe um curso breve,<br />

designaram-lhe o reveren<strong>do</strong> Antônio Elias como supervisor teológico e pediram que ele<br />

escrevesse uma tese teológica até o fim de 1970, quan<strong>do</strong> então eles o ordenariam <strong>pastor</strong>. E foi o<br />

que aconteceu.<br />

Quan<strong>do</strong> eu percebi que não havia nada que demovesse papai da idéia de retornar ao<br />

Amazonas, enlouqueci com todas as minhas forças. Um ódio estranho, cheio de desprezo,<br />

começou a crescer em mim em relação a to<strong>do</strong>s eles: papai, mamãe e a gente da igreja —<br />

orgulhosos que estavam de terem apanha<strong>do</strong> um peixe grande, que agora se candidatava a São<br />

Francisco, queren<strong>do</strong> viver de mo<strong>do</strong> monástico no meio da floresta. “Ele podia fazer o que<br />

quisesse”, eu pensava, “mas que fosse sozinho. Podia viver como pobre, mas que nos deixasse


numa boa.”<br />

O sentimento de hostilidade cresceu tanto em mim, que eu não podia nem ouvir a voz de meu<br />

pai. Mas ele e minha mãe não pareciam perceber a profundidade de meus sentimentos e nem a<br />

enorme amargura que em mim crescia. Tratavam-me como se nada estivesse acontecen<strong>do</strong> e não<br />

admitiam conversar sobre a possibilidade de que eu não fosse com eles. Sen<strong>do</strong> homem<br />

extremamente gregário na sua idéia de família, papai não podia nem sequer imaginar a<br />

possibilidade de deixar um garoto de 15 anos sozinho no Rio de Janeiro, especialmente porque, lá<br />

no fun<strong>do</strong>, ele intuía que eu estava envolvi<strong>do</strong> com alguma coisa ruim ou, pelo menos,<br />

desenvolven<strong>do</strong> uma terrível propensão em direção a algo mau.<br />

Imaginei todas as possibilidades que poderiam me tirar daquele laço. Mas não havia saída.<br />

Talvez se eu simplesmente fugisse, desaparecesse, eles fossem sem mim. Mas faltava peito para<br />

fazer aquilo. Ambiguamente, eu não queria machucá-los ou tornar a vida deles miserável de<br />

angústia e tormento, o que certamente aconteceria com o meu desaparecimento.<br />

Foi quan<strong>do</strong> me surgiu uma perversa idéia, enquanto eu conversava com um amigo, a quem<br />

chamávamos de Pingüim.<br />

— Ei, cara, o que você acha que poderia forçar teu pai a deixar você aqui? Se você quiser<br />

ficar, tem que ser porque ele fez você ficar — disse Pingüim.<br />

Fiquei ali, pensan<strong>do</strong> na declaração dele, com a cabeça rodan<strong>do</strong> de maconha, até que tive um<br />

estalo.<br />

— Já sei. Vou engravidar a filha de um grande amigo dele. Assim, ele vai me forçar a ficar.<br />

Aquele papo dele de responsabilidade vai ser minha saída. Se a Fernandinha ficar grávida, ele vai<br />

até me pagar para ficar, mesmo que eu queira ir — gritei.<br />

O problema era que, conquanto eu tivesse uma vida bem desregrada em muitas áreas e nunca<br />

perdesse a chance de faturar as garotinhas que passassem pelo meu caminho dan<strong>do</strong> sopa, com<br />

Fernandinha não era assim. Ela era apaixonada por mim e eu por ela, mas seus princípios<br />

familiares, morais e religiosos nunca haviam permiti<strong>do</strong> que ela fosse longe demais no namoro.<br />

Achei, entretanto, que conversar com ela e propor aquela solução não seria mal. Como ela<br />

também não queria que eu fosse e estava sofren<strong>do</strong> com a decisão de meus pais, talvez a coisa<br />

pudesse dar certo. Encontrei com ela muito louco, fiz uma grande introdução, chorei, sofri, falei<br />

de como aquela separação poderia nos afastar para sempre e outras coisas. Ela chorou, me<br />

abraçou com carinho e me olhou com imensa ternura. Os sinais exteriores eram anima<strong>do</strong>res.<br />

Expus meu plano to<strong>do</strong>.<br />

Fernandinha era ainda uma criança. Tinha acaba<strong>do</strong> de completar 14 anos. Apesar de já ter<br />

corpo de mulher, muito bonito e deseja<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os meus amigos e inimigos, por dentro ela<br />

ainda era uma menininha. Tanto que meus amigos me acusavam de ter vira<strong>do</strong> um “papa-anjo”<br />

por causa de meu namoro com aquela garotinha. Mas eu não estava nem aí. Gostava dela e sabia<br />

que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a achava linda. Era só uma questão de tempo e eles veriam o meu anjinho se<br />

mostrar com a força incontrolável de uma amazona. Eu pagava para ver e, enquanto esperava,<br />

curtia.<br />

Ela me ouviu com mais seriedade <strong>do</strong> que eu havia imagina<strong>do</strong>. Ficou agitada com minha<br />

proposta, mas não a rejeitou de saída. Pediu tempo para pensar, e eu fiquei dan<strong>do</strong> a decisão dela<br />

de participar <strong>do</strong> plano como certa. Por isso, mergulhei num mun<strong>do</strong> de fantasias e imaginei a<br />

seqüência <strong>do</strong>s fatos. Ela ficaria grávida, a barriguinha iria crescer, seus pais ficariam saben<strong>do</strong>,<br />

meus pais — muito amigos deles — seriam comunica<strong>do</strong>s e decidiriam casar-nos em nome da<br />

honra. Assim é que nos casaríamos e iríamos morar na casa <strong>do</strong>s pais dela. O resto, eu imaginava,<br />

seria o paraíso: comen<strong>do</strong> na casa dela, in<strong>do</strong> à praia com a gatinha e o neném, fuman<strong>do</strong> maconha<br />

sem maiores riscos e continuan<strong>do</strong> os estu<strong>do</strong>s no Colégio Batista, onde eu sabia que passar de ano


era fácil.<br />

O que eu não poderia imaginar era que ela iria se aconselhar com uma de suas irmãs mais<br />

velhas. E, como era óbvio, a moça explodiu com ela:<br />

— Você está louca? Vai acabar com sua vida. Nem pense nisso<br />

O assunto acabou chegan<strong>do</strong> ao conhecimento da mãe dela, de repente, vi-me senta<strong>do</strong> na sala<br />

da casa dela, levan<strong>do</strong> um sermão muito meigo e amoroso, mas que desfazia completamente os<br />

meus planos.<br />

— Meu filho, o que você está planejan<strong>do</strong> vai destruir a sua vida e a de minha filha. Ninguém<br />

resolve um problema como o seu trazen<strong>do</strong> um filho ao mun<strong>do</strong>. Eu sei que você tem um<br />

sentimento forte pela minha filha, mas vocês ainda são duas crianças. Por que você não entrega a<br />

Deus esse problema? Se Ele tem vocês um para o outro, então nem a distância vai afastar vocês.<br />

Mas se não é assim, logo, logo, vocês vão esquecer tu<strong>do</strong> isso e continuar a vida de vocês.<br />

Ela foi gentil, mas firme, e eu fui para casa chutan<strong>do</strong> pedra. Com raiva de Deus e da vida.<br />

Parecia que não me sobraria outra alternativa, a não ser ir com meus pais para Manaus.<br />

Os meses que se seguiram àquele episódio foram marca<strong>do</strong>s por milagres na vida de meus<br />

pais, e por muita raiva e loucura na minha ansiosa e perdida existência de a<strong>do</strong>lescente.<br />

No que dizia respeito a eles, os sinais to<strong>do</strong>s pareciam confirmar a intenção divina de levá-los<br />

para o campo missionário. As passagens apareceram, papai recebeu uma grande <strong>do</strong>ação em<br />

dinheiro — feita por um cliente grato pela competência profissional com a qual fora trata<strong>do</strong> —<br />

que o capacitaria a iniciar a vida na sua cidade natal, e os estu<strong>do</strong>s teológicos transcorreram sem<br />

qualquer problema. Sua tese foi aceita e ele foi ordena<strong>do</strong> no dia 10 de janeiro de 1971.<br />

Logo após a ordenação, mamãe, Suely, Luiz e Aninha foram para Manaus. Ele ficou comigo<br />

até março, dan<strong>do</strong>-me a chance de chorar meu luto por Niterói, pelos amigos e por Fernandinha.<br />

Mas minha <strong>do</strong>r ficou ainda maior quan<strong>do</strong> percebi que, de um mo<strong>do</strong> muito sutil, Fernandinha<br />

estava sen<strong>do</strong> tirada de mim antes da hora. Os pais dela resolveram ir para Torres, no Rio Grande<br />

<strong>do</strong> Sul, passar as férias. E, assim, os meus últimos trinta dias no Rio já foram extremamente<br />

sofri<strong>do</strong>s pela ausência dela. Justamente por isso, caí na gandaia, nas drogas e na angústia. Quan<strong>do</strong><br />

chegou o dia de partir, despedi-me de to<strong>do</strong>s, menos dela. No entanto, de repente fiquei saben<strong>do</strong><br />

que ela acabara de voltar das férias e tive de me despedir dela às pressas, na presença de toda a<br />

família, o que fez com que eu levasse no coração uma mágoa profunda de Fernandinha e de to<strong>do</strong>s<br />

aqueles que tinham me trata<strong>do</strong> daquele jeito, tiran<strong>do</strong>-a de mim antes da hora.<br />

Entramos no avião e voamos em silêncio. Papai tentou conversar algumas vezes, mas eu fui<br />

apenas monossilábico em minhas respostas. Chegamos a Manaus às quatro e meia da tarde de<br />

uma terça-feira, em março de 1971. O mero entrar no ambiente de minha infância despertou em<br />

mim sentimentos e percepções que eu já nem sabia que ainda existiam em minha alma. Respirei<br />

fun<strong>do</strong> e senti cheiro de mata, de ar tão úmi<strong>do</strong> que era quase vapor e de árvores selváticas, e vi o<br />

colori<strong>do</strong> completamente diferente <strong>do</strong> pôr-de-sol, tintura<strong>do</strong> com os reflexos surrealistas que as<br />

águas barrentas <strong>do</strong> Solimões e pretas <strong>do</strong> Negro fazem misturar nos céus.<br />

Minha alma ficou confusa. Uma enorme nostalgia <strong>do</strong>s amigos e vínculos que eu deixara em<br />

Niterói me atormentava o íntimo. Mas uma sensação de pertencimento, de inclusão e de<br />

continuidade tomou conta de mim. Era como se eu tivesse vivi<strong>do</strong> os últimos anos num outro<br />

mun<strong>do</strong>, mas ainda alimenta<strong>do</strong> pelas energias que se originavam da floresta. Uma estranha<br />

euforia me <strong>do</strong>minou. Abracei os primos e amigos que estavam no aeroporto, a maioria <strong>do</strong>s quais<br />

eu não via desde 1964.<br />

To<strong>do</strong>s tinham cresci<strong>do</strong>, mas ainda eram os mesmos. E eu não sabia que gostaria tanto de<br />

reencontrá-los. No aeroporto mesmo, pulei na garupa da motocicleta que José <strong>Fábio</strong> pedira<br />

emprestada a um amigo seu, o Gato, e corremos livres pelas estradas que circundavam Manaus.


Começava ali uma fase completamente nova de minha vida!


Capítulo 16<br />

“A alma pratica fornicação quan<strong>do</strong> ela se vira para longe de Ti e procura fora de Ti<br />

as boas e limpas intenções que não se encontram exceto na reconciliação dela<br />

Contigo. Assim é que no mun<strong>do</strong>, de certo mo<strong>do</strong> às vezes até perverti<strong>do</strong>, toda a<br />

humanidade busca a Ti.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Em 1971, Manaus era uma cidade de aproximadamente quinhentos mil habitantes. A Zona<br />

Franca fora estabelecida na região com o objetivo de desenvolver uma área que o governo federal<br />

julgava ter importância estratégica. Por isso, andava-se pelas ruas ven<strong>do</strong> carros importa<strong>do</strong>s,<br />

aparelhos de som sofistica<strong>do</strong>s, motocicletas com roncos poderosos, roupas de grifes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

inteiro, to<strong>do</strong>s expostos ali como bens tão banais, que os meus amigos <strong>do</strong> Rio jamais sonhariam<br />

ser possível.<br />

Entretanto, uma das marcas mais características da cidade era o seu provincianismo.<br />

Modernidade e tecnologia não tinham ti<strong>do</strong> o poder de alterar o sentir interiorano <strong>do</strong>s<br />

manauenses. Para a gente <strong>do</strong> lugar — de forma diferente <strong>do</strong> que acontecia nos dias da infância de<br />

meu pai, quan<strong>do</strong> a Europa era a referência <strong>do</strong>s amazonenses — o Rio de Janeiro era o máximo.<br />

Era o lugar onde tu<strong>do</strong> de novo e revolucionário acontecia. Por isso, quem quer que chegasse de lá<br />

já trazia consigo a vantagem de estar vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro no qual todas as modas, novidades e<br />

loucuras invejáveis se materializavam.<br />

Para mim, foi facílimo faturar em cima daquilo. Meu primo João <strong>Fábio</strong> era entrosadíssimo<br />

nos ambientes sociais e colunáveis, e não hesitou em plantar notícias que faziam de mim uma<br />

figura muito especial, chegan<strong>do</strong> de volta à terra, depois de muito curtir no Rio. No primeiro fim<br />

de semana fui leva<strong>do</strong> ao baile <strong>do</strong> Ideal Clube, que ficava na parte mais badalada da cidade. O<br />

ambiente era pequeno-burguês, com aquele monte de garotinhas entre 13 e vinte anos dançan<strong>do</strong><br />

de rosto cola<strong>do</strong>, sob os olhares sau<strong>do</strong>sos e cobiçosos de suas mães, para quem aquelas<br />

experiências eram apenas lembranças.<br />

Quan<strong>do</strong> eu entrei ali pela primeira vez, já era famoso entre os colunáveis da cidade. Algumas<br />

colunas sociais tinham noticia<strong>do</strong> minha chegada e eu achei delicioso sentir-me objeto da<br />

curiosidade social da burguesia. O bom de tu<strong>do</strong> aquilo era saber que eu estava sen<strong>do</strong> deseja<strong>do</strong><br />

por gente que eu nem conhecia. Portanto, eu saía caçan<strong>do</strong> gatinhas no salão sem ter me<strong>do</strong> de ser<br />

rejeita<strong>do</strong>. Para elas, naquelas circunstâncias, era uma honra dançar com aquele “menino <strong>do</strong> Rio”,<br />

como elas se referiam a mim.<br />

Ainda havia a minha aparência extravagantemente diferente. O cabelo estava compri<strong>do</strong>,


aloira<strong>do</strong> de praia e to<strong>do</strong> encaracola<strong>do</strong>. O corpo magro, já a milímetros de um metro e oitenta, me<br />

destacava da maioria <strong>do</strong>s amazonenses, em geral bem mais baixos. As calças eram coloridas, tipo<br />

“carne-seca”, de teci<strong>do</strong> franzi<strong>do</strong> e sem zíper, deixan<strong>do</strong> os pêlos púbicos expostos. Os sapatos<br />

eram <strong>do</strong> “Souza”, no Rio, e o jeito de andar era provocativo, com a cabeça erguida, como se<br />

tentasse sentir um cheiro que passava acima de mim. Os braços alternavam-se de mo<strong>do</strong><br />

cadencia<strong>do</strong>, mas sacudi<strong>do</strong>s de mo<strong>do</strong> reto, in<strong>do</strong> da altura da perna até quase o nível da cabeça, e as<br />

pernas davam passos largos, como que desejan<strong>do</strong> engolir o chão.<br />

Mais <strong>do</strong> que roupas extravagantes, eu tinha uma vontade íntima de chocar as pessoas e suas<br />

formas conserva<strong>do</strong>ras de interpretar a vida. Assim era que eu saía de casa, na rua Sete de<br />

Dezembro, e andava de cueca Zazá, completamente cavada dentro das nádegas, apenas com<br />

aquela fitinha preta aparecen<strong>do</strong> nas laterais e cobrin<strong>do</strong> os órgãos genitais. Nada mais.<br />

Eu desfilava três quilômetros pela cidade cheia de gente, perceben<strong>do</strong> os arrepios que as<br />

senhoras sentiam nas janelas, os olhares irrita<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s, os sorrisos mal<strong>do</strong>sos das garotas e<br />

as piadas odiosas <strong>do</strong>s garotos que não tinham coragem de fazer o que eu estava fazen<strong>do</strong>. Mais de<br />

uma vez policiais me pararam e me deram voz de prisão por atenta<strong>do</strong> ao pu<strong>do</strong>r. Eu pedia que me<br />

prendessem, mas sempre aparecia alguém para dizer: “Eu conheço esse rapaz, é filho <strong>do</strong> Dr.<br />

<strong>Caio</strong>. Não faz nada com ele não.” E eu continuava meu caminho de escândalo e provocação.<br />

À porta <strong>do</strong>s bancos, eu parava e plantava bananeira, mostran<strong>do</strong> meu traseiro para os gerentes<br />

e dizen<strong>do</strong> que eles não sabiam o que era viver com aquela liberdade. Enfim, minha presença em<br />

Manaus passou a ser desconcertante, provocativa e impossível de não ser percebida. E aqui e ali<br />

eu ouvia os mais velhos dizerem: “Coita<strong>do</strong> <strong>do</strong> Dr. <strong>Fábio</strong>. Como é que um homem tão bom como<br />

ele foi ter um neto tão desavergonha<strong>do</strong> como esse? Se estivesse vivo, morreria de vergonha.”<br />

Quan<strong>do</strong> cheguei ao Ideal Clube naquele primeiro dia, já entrei disposto a marcar minha<br />

presença entre os meus conterrâneos como um caça<strong>do</strong>r de meninas bonitas. Meu primo José<br />

<strong>Fábio</strong> havia me informa<strong>do</strong>, logo na entrada, que a menina mais cobiçada <strong>do</strong> lugar naqueles dias<br />

era uma tal de Regininha, e mesmo sob a “luz negra” foi possível identificá-la no salão. Depois de<br />

dançar com garotas diferentes, mirei minha presa e parti pra cima. Tirei-a para dançar, rocei<br />

meu corpo no dela como pude, inebriei-me com o perfume importa<strong>do</strong> que ela usava e senti o<br />

cheiro <strong>do</strong>ce <strong>do</strong> seu hálito. No dia seguinte, eu estava à porta de sua casa, em frente à praça da<br />

Saudade, e já saí dali na condição de namora<strong>do</strong> da garota mais desejada no círculo das vaidades.<br />

O namoro com Regina foi insosso e cansativo. Mas como ela era mais velha <strong>do</strong> que eu e<br />

cortejada por rapazes também mais velhos, nós <strong>do</strong>is percebemos que éramos úteis um ao outro.<br />

Eu aproveitava o status que o namoro com ela me dava junto aos rapazes — que morriam de inveja<br />

de minha súbita e ousada conquista —, e ela se servia <strong>do</strong> fato de que namorar um cara novo no<br />

pedaço não a comprometia com a política local de conquistas, ao mesmo tempo em que elevava<br />

seu padrão. Em outras palavras, o que ela estava dizen<strong>do</strong> era: “Meu negócio é gente diferente,<br />

capaz de romper com os padrões da terrinha.” Nosso namoro terminou em <strong>do</strong>is meses, no<br />

máximo, mas os trunfos da conquista tiveram repercussões extraordinárias.<br />

Nos meses seguintes eu não fiz outra coisa a não ser namorar pelo menos uma nova garota a<br />

cada semana, fora os amassos que aconteciam de mo<strong>do</strong> fortuito em cada festa a que eu ia. Às<br />

vezes eu me via namoran<strong>do</strong> duas ou três meninas ao mesmo tempo, e achava o máximo a<br />

ginástica de ter de enganar e satisfazer a todas elas.<br />

Tu<strong>do</strong> aquilo acontecia em razão <strong>do</strong> charme e da propaganda. De outra forma, nada se<br />

materializaria. Afinal, eu era o garoto mais “duro” em circulação, pois a situação em casa estava<br />

péssima. Dinheiro já era lembrança de um tempo que eu sabia que não voltaria nunca mais. Além<br />

disso, papai e mamãe estavam preocupadíssimos com o caminho que minha vida estava toman<strong>do</strong><br />

e, portanto, mesmo quan<strong>do</strong> tinham algum troca<strong>do</strong>, não me davam, temen<strong>do</strong> que eu usasse o


dinheiro para fazer besteira.<br />

Os primeiros três meses em Manaus foram completamente caretas de maconha e drogas<br />

afins. O que rolava era cachaça, cerveja e whisky. Também os rapazes com os quais eu saía não<br />

eram <strong>do</strong> tipo hippie. O negócio deles era namorar até às dez horas da noite, apertar a menina<br />

como podiam e tentar botar a mão em to<strong>do</strong>s os lugares proibi<strong>do</strong>s da geografia moral de seus<br />

corpos. Depois, encontravam-se na praça <strong>do</strong> Congresso e saíam dali em ban<strong>do</strong>s, dirigin<strong>do</strong><br />

alucinadamente seus carros, direto para um prostíbulo limpo, a fim de escolher a prostituta de<br />

estimação e descontar nela os desejos reprimi<strong>do</strong>s e acumula<strong>do</strong>s nas três horas de namoro. Eu<br />

entrei nessa como pude.<br />

Até aquele ponto, eu jamais tinha esta<strong>do</strong> com uma mulher bem mais velha <strong>do</strong> que eu na<br />

cama. Mesmo as prostitutas com as quais eu saía eram sempre novinhas. Uma quarta-feira à<br />

noite, entretanto, meu amigo Viriato me convi<strong>do</strong>u para “conhecer uma mulher maravilhosa”. Era<br />

um lugar escuro, pobre, em frente a uma igreja católica no bairro da Cachoeirinha. Perguntei se<br />

ele tinha certeza de que valeria a pena, e ele respondeu que era “uma coroa divina”. Chegamos lá<br />

e ele foi logo me apresentan<strong>do</strong> a uma mulher de aproximadamente quarenta anos, loira, ombros<br />

largos, quase da minha altura e que me olhou com uma expressão maternal. Viriato pegou uma<br />

menina mais jovem e foi para o quarto com ela. Eu fiquei ali, angustia<strong>do</strong>, com me<strong>do</strong> que ela me<br />

convidasse para entrar no quarto. Meu corpo prontamente respondeu cheio de desejo a ela, mas<br />

minha alma sentia algo estranho: era como ir para a cama com minha mãe ou com uma das<br />

minhas tias. E o problema não era a idade dela. Ao contrário, a idade me excitava. Era o seu olhar,<br />

meigo, carinhoso e maternal, o que me incomodava.<br />

Entramos no quarto, ela se despiu e veio sobre mim. Então, eu senti a coisa mais estranha<br />

que já havia senti<strong>do</strong> na vida, naquela área de experiência: era um fortíssimo desejo proibi<strong>do</strong>. Era<br />

desejo forte o suficiente para me excitar por dentro, mas proibi<strong>do</strong> demais para me permitir ter<br />

qualquer performance sexual.<br />

Ela ficou ali, fazen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que podia para me estimular, mas não conseguiu. Depois,<br />

frustrada, disse-me que não custaria nada, que ela faria por amor, porque gostara de mim.<br />

Mas eu respondi que não conseguiria. Ela ficou chocada.<br />

— Você acha que eu sou feia? — indagou ela.<br />

— Não, você é uma mulher bonita e eu quero você, mas hoje não dá — respondi.<br />

— Por quê? — era uma questão óbvia. Menti, dizen<strong>do</strong> que naquele dia eu já havia esta<strong>do</strong><br />

com duas mulheres diferentes e que elas haviam tira<strong>do</strong> todas as minhas energias. — Seu<br />

safadinho! Tão jovem e tão ativo. Vem aqui descansa<strong>do</strong> que você vai ver o que vou fazer com você<br />

— foi o que ela declarou, viran<strong>do</strong>-se na cama ao meu la<strong>do</strong> e inician<strong>do</strong> uma longa conversa comigo.<br />

Eu voltei à casa dela em muitas outras ocasiões depois daquele dia. Obviamente, das outras<br />

vezes não a vi como uma parenta chegada e tive com ela relações de outra natureza, que não<br />

apenas de diálogo. Mas de alguma forma ela se transformou numa amiga. Dava-me conselhos e<br />

pedia para eu não fazer tantas loucuras quanto eu fazia. Seu instinto maternal estava lá, embuti<strong>do</strong><br />

na profissão de prostituta. E como fiquei seu amigo, ela nunca me cobrou pelas conversas e pelos<br />

outros serviços que me prestava. “Juízo, hem, menino”, era o que ela dizia sempre que eu<br />

atravessava a prancha de madeira que ligava a casa dela à escada íngreme que conduzia para cima,<br />

ao nível da rua.<br />

Seis meses depois de ter chega<strong>do</strong> a Manaus, conheci <strong>do</strong>is garotos que mudariam a minha<br />

vida. Alipinho era moreno, espadaú<strong>do</strong>, bom de caratê, campeão de natação e sempre muito bem<br />

vesti<strong>do</strong>. Dono de um rosto perfeito, sabia usar de mo<strong>do</strong> extraordinário o charme e a beleza de que<br />

era <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>. As meninas eram loucas por ele, e ele era louco pelas meninas. Celsinho era<br />

diferente. Obceca<strong>do</strong> por questões de aparência, cuidava de seus cabelos longos, finos e loiros,


com cuida<strong>do</strong>s que eu nem imaginava que alguém pudesse dispensar ao trato <strong>do</strong>s pêlos, e todas as<br />

suas roupas eram importadas. Celsinho amava o inglês, língua que falava com desenvoltura, e<br />

cantava to<strong>do</strong>s os grandes sucessos americanos, traduzin<strong>do</strong> para a gente as letras de todas as<br />

músicas. Além disso, ninguém na cidade dançava melhor <strong>do</strong> que ele. Soltava seu corpo ao ritmo<br />

das músicas com uma beleza, harmonia e leveza que faziam dele o mais cobiça<strong>do</strong> dançarino da<br />

cidade, corteja<strong>do</strong> pelas meninas e deseja<strong>do</strong> pelos homossexuais da alta sociedade.<br />

Minha alma casou-se com as daqueles <strong>do</strong>is rapazes. Eles me completavam como ninguém<br />

jamais conseguira no nível fraternal. Nós “colamos” e não fazíamos mais nada separa<strong>do</strong>s.<br />

Alipinho era o mais experiente e Celsinho o mais inocente. Eu estava no meio. Compartilhava as<br />

experiências sexuais de Pinho — como as vezes nós o chamávamos —, e as ansiedades filosóficas<br />

e psicológicas de Celsinho, sempre angustia<strong>do</strong>, sempre deprimi<strong>do</strong> e sempre em busca de algo<br />

que ele não sabia o que era.<br />

Alipinho conhecia tu<strong>do</strong> em relação ao sexo oposto. Já tinha ti<strong>do</strong> affairs com mulheres casadas,<br />

já desvirginara algumas garotinhas e, na ocasião, tinha um caso com uma aeromoça <strong>do</strong> Rio, dez<br />

anos mais velha que ele, que o visitava a cada 15 dias em Manaus. Ele se gabava de que o bom<br />

daquela relação era que Vera não se ressentia de que ele namorasse outras garotas, e as<br />

namoradas se sentiam orgulhosas de dividi-lo com uma mulher tão madura e bonita.<br />

Nos <strong>do</strong>is anos seguintes, eu vivi com aqueles amigos o perío<strong>do</strong> que eu considerava o mais<br />

belo de minha vida até ali. Pensava que nada poderia ser melhor. Com eles eu esquecia a pobreza<br />

e a caretice de papai e mamãe, e me sentia ama<strong>do</strong>, aceito e estimula<strong>do</strong>. Nós só andávamos juntos,<br />

e juntos fazíamos coisas que provocavam inveja nos demais rapazes de nossa geração. Eram<br />

passeios de lancha, corridas de carro, banhos de cachoeira e muita música. Além disso, apesar de<br />

Celsinho não ser nem um pouco chega<strong>do</strong> à maconha, eu e Pinho apertávamos basea<strong>do</strong>s quase<br />

to<strong>do</strong>s os dias e corríamos de moto <strong>do</strong>idões pelas estradas de Manaus, gritan<strong>do</strong> sozinhos e<br />

sentin<strong>do</strong> o vento frio da noite gelar nossos rostos pelas madrugadas.<br />

Em casa, os vínculos inexistiam. Meus pais estavam cada vez mais apavora<strong>do</strong>s com as notícias<br />

que circulavam a meu respeito. Os meses corriam e a angústia deles em relação a mim<br />

aumentava. Um dia papai tentou me conter. Disse que não podia mais agüentar tanta loucura e<br />

que iria me punir com uma surra de cinturão. Puxou o bicho da cintura e veio para cima de mim.<br />

Eu olhei para ele, fuzilan<strong>do</strong> de ódio, e disse: “Pode vir, mas venha prepara<strong>do</strong> para apanhar. O<br />

senhor acha que eu vou deixar o senhor levantar a mão pra me bater? Se quiser vir, venha, mas vai<br />

entrar no cacete.”<br />

Vi papai sentar na cadeira mais próxima, tonto com a minha declaração e com o olhar cheio de<br />

tanta <strong>do</strong>r. Saí corren<strong>do</strong> e prometi nunca mais voltar. Somente 15 dias depois meu primo João<br />

<strong>Fábio</strong> me encontrou na rua e me implorou para voltar. “Seu louco. Tu tá pira<strong>do</strong>? <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, isso<br />

é safadeza. Ninguém faz o que cê tá fazen<strong>do</strong> com seus pais e fica sem punição. Teu pai morreu<br />

muitos anos nesses 15 dias. Ele é louco por você e tá morren<strong>do</strong> to<strong>do</strong> dia com as suas loucuras.<br />

Qué fazê loucura? Tu<strong>do</strong> bem. Mas faz numa boa”, ele disse, zanga<strong>do</strong> e preocupa<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> entrei em casa, mamãe correu para me abraçar, junto com Aninha, Suely e Luiz.<br />

Papai ficou onde estava, senta<strong>do</strong> na cabeceira da mesa da pequenina sala. Lá fora chovia. Eram<br />

seis da tarde e já estava escuro. Ele apenas levantou os olhos cheios de lágrimas e olhou-me com<br />

ternura e misericórdia. Mas havia <strong>do</strong>r, muita <strong>do</strong>r no semblante dele. Não dissemos nada. Subi,<br />

peguei roupas limpas, tomei banho e saí. Foi a última vez que ele tentou barrar o meu caminho<br />

pela força. Daí em diante, ele e mamãe apenas se dedicariam à oração e ao jejum a meu favor.<br />

Andan<strong>do</strong> por toda parte, um dia eu vi umas garotas diferentes. Elas ficavam baten<strong>do</strong> papo na<br />

esquina da rua Visconde com a Duque de Caxias, perto da Escola Técnica. Uma era mais madura<br />

e mais calma. A outra, completamente agitada. A mais calminha, com cara de mais velha, era


morena, tinha uma cintura bem-feita e longos e lisos cabelos negros. Não havia nela nada<br />

particularmente especial, mas o to<strong>do</strong> era muito agradável. Já a outra era um vulcão. Com cabelos<br />

loiros, pernas longas e grossas, seios grandes, amplos, projeta<strong>do</strong>s e provocativos, ela ainda dava a<br />

si mesma o direito de usar uns shortinhos cavadinhos e de colocar tu<strong>do</strong> aquilo a serviço de um<br />

fantástico par de olhos verdes e de uma boca que parecia estar em permanente esta<strong>do</strong> de<br />

sedução, enquanto lambia os próprios lábios, como quem se deliciava nas carnes de um apetitoso<br />

e irresistível sapoti, minha fruta predileta.<br />

Elas me chamaram para conversar, e eu, é claro, fui. Sentamos na calçada e jogamos conversa<br />

fora uns trinta minutos, enquanto preparava o meu melhor bote sobre a loira gulosa.<br />

— Você sabia que nós quase fomos maninhos? — ela perguntou.<br />

— Num tô entenden<strong>do</strong>! Como, maninhos? — perguntei de brincadeira. — Uma gata como<br />

você não ficava junto de mim impune nem se fosse minha maninha — acrescentei com veneno.<br />

— Você num é filho <strong>do</strong> <strong>Caio</strong>? — ela provocou, como quem sabia de mim muito mais <strong>do</strong> que<br />

eu poderia imaginar.<br />

— Sou. E daí? Você conhece meu pai? — joguei de volta.<br />

— Teu pai me amava como amava a você. Quan<strong>do</strong> ele foi embora, eu chorei muito. Ele foi o<br />

melhor pai que eu já tive. O que mamãe fez com ele não se faz com ninguém. Ele amava a ela, e<br />

ela fez safadeza com ele. É por isso que eu tenho raiva dela — disse com lágrimas nos olhos,<br />

mudan<strong>do</strong> completamente <strong>do</strong> clima de sedução para o da confissão.<br />

— Quem é tua mãe? Você é filha da Simone? — perguntei, embora já soubesse a resposta.<br />

— Eu sou Alma. Você brincou comigo uma vez. Você não sabia quem eu era, mas eu sabia<br />

quem você era — completou, como quem realmente sabia o que estava falan<strong>do</strong>.<br />

Daquele dia em diante, começamos a sair juntos. Tivemos to<strong>do</strong>s os amassos físicos que<br />

pudemos e nos beijamos de mo<strong>do</strong> semi-incestuoso da forma mais intensa possível. De súbito,<br />

quan<strong>do</strong> nossa relação caminhava célere para a consumação <strong>do</strong> ato sexual, eu me vi totalmente<br />

nausea<strong>do</strong> dela. Ela me beijava com sede, e eu sentia vontade de vomitar. “Mas por quê?”, eu me<br />

indagava.<br />

Ela era atraente e profundamente sensual. Então, de onde vinha minha incapacidade de tê-la<br />

e de saboreá-la como mulher? Foi aí, em meio a tais sentimentos, que minha mente voltou no<br />

tempo para o momento de uma jura: “Mãe Velhinha, eu juro que um dia eu ainda vou me vingar<br />

da Simone, dessa jaburu”, eu declarara com ódio aos sete anos de idade. “Será que eu não<br />

consigo mais tocá-la por causa daquela jura? Será que agora é minha chance de me vingar?” eu<br />

me perguntava. “Mas vingar de quê e por quê? Ela não me fez nada e eu não sou nada dela”,<br />

tentava me convencer, na esperança de ‘des-incestuá-la’, a fim de possuí-la.<br />

Mas o fato é que eu precisava fazer alguma coisa rapidamente. Não podia dar um vacilo<br />

daqueles. Já havia duas opções: traçar a menina ou deixá-la em paz. Naquele chove e não molha é<br />

que eu não podia ficar. Achava que já estava prejudican<strong>do</strong> a minha reputação.<br />

E como eu já não podia nem ver Alma, resolvi fugir dela. No entanto, com esta atitude infligi<br />

sobre ela a minha mais terrível vingança. Se eu tivesse tenta<strong>do</strong> machucá-la de propósito, talvez<br />

jamais tivesse consegui<strong>do</strong> tamanho efeito. Ela chorava pelos cantos das boates, separava-me das<br />

meninas com quem eu dançava, implorava para que eu a beijasse e até suplicou para que eu a<br />

possuísse como mulher.<br />

— Por favor, deixe eu ser mulher com você. Não faça eu me entregar a um homem que eu<br />

não queira. Me toma, por favor — ela implorava. Mas eu não conseguia e não sabia explicar aos<br />

meus amigos o motivo daquilo.<br />

— Cara, você castiga meninas que não são a metade dessa e deixa essa loira <strong>do</strong>ida de desejo<br />

passar sem ser devidamente machucada? — perguntava Paulo Gato.


O desarvoramento de Alma cresceu tanto, que ela embarcou numa onda pesadíssima de<br />

drogas. Depois, começou a sair com to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Aí, então, disse ter se apaixona<strong>do</strong> por um<br />

maluco chama<strong>do</strong> César. Mas muitas vezes, em plena boate, quan<strong>do</strong> ele ia ao banheiro, ela ficava<br />

choran<strong>do</strong> e olhan<strong>do</strong> para mim fixamente. E não raras vezes ela passou por mim <strong>do</strong>ida de maconha<br />

e whisky e disse: “Ele tá provan<strong>do</strong> a comida que é tua.” Mas eu fingia que não entendia.<br />

A vida de Alma nunca mais se equilibrou. Nos anos seguintes, ela haveria de mergulhar em<br />

profunda insanidade. Somente muito tempo depois eu a encontraria em circunstâncias<br />

completamente diferentes. Mas sem dúvida, naquela época, ela foi o símbolo de meu mais forte<br />

desejo e de meu mais intenso repúdio. Viven<strong>do</strong> aquilo, comecei a me aproximar <strong>do</strong>s mistérios de<br />

minha própria interioridade e <strong>do</strong>s complexos caminhos de meu próprio coração.


Capítulo 17<br />

“O único desejo que <strong>do</strong>minava a minha busca por deleite era simplesmente amar e<br />

ser ama<strong>do</strong>. Porém, nenhuma restrição foi imposta pela troca de mente com mente,<br />

que marca a caminhada brilhantemente iluminada da amizade. Nuvens de<br />

enlameada concupiscência carnal encharcavam o ar. Os impulsos borbulhantes da<br />

puberdade desceram numa névoa sobre os meus olhos e obscureceram os meus<br />

senti<strong>do</strong>s, de tal forma que eu perdi a capacidade de distinguir entre a serenidade <strong>do</strong><br />

amor e a escuridão da luxúria.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Alipinho, Celsinho e eu estávamos em permanente busca e transformação. Pinho começou<br />

a se interessar por meditação transcendental e nos convenceu a fazer com ele alguns exercícios<br />

de respiração e tentativa de sair <strong>do</strong> corpo. Celsinho era mais acadêmico na busca de valores<br />

espirituais. Gostava de psicologia e amava os livros de Hermann Hesse.<br />

Eu, de minha parte, era um filósofo da esquina, das sensações, das emoções e das<br />

experiências. Eu queria tu<strong>do</strong> aquilo que pudesse ser prova<strong>do</strong> pelos meus senti<strong>do</strong>s. Por isso,<br />

gostava muito das conversas filosóficas às quais nos permitíamos nos fins de noite, mas o que me<br />

empolgava mesmo era viajar por alguma via mental diferente, em geral produzida pelas drogas e<br />

vivida em situações de excitamento, fosse o perigo ou o sexo.<br />

Foi nessa época que um cara muito louco, alguns anos mais velho <strong>do</strong> que nós três, entrou em<br />

nossas vidas. Nós o chamávamos de Carioca porque ele era <strong>do</strong> Rio e fazia questão de falar<br />

carregan<strong>do</strong> no sotaque preguiçoso e arrasta<strong>do</strong> da moçada da zona sul da Cidade Maravilhosa.<br />

Carioca era um arquiteto que deixara tu<strong>do</strong> para viver como hippie. Fazia permanentemente a<br />

rota Rio—Venezuela—Panamá—Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e, na volta, sempre passava por Manaus. Ele era<br />

a pessoa mais maluca que já havíamos encontra<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> o conhecemos, ele estava passan<strong>do</strong><br />

uma temporada maior em nossa cidade, dizia estar procuran<strong>do</strong> novas formas de viagens<br />

psicodélicas e falou-nos sobre as maravilhas <strong>do</strong> ayahuasca, suco de raízes indígenas de poder<br />

alucinógeno.<br />

Carioca tinha belos olhos azuis, mas de bonito era só o que tinha. No mais, era feio, torto,<br />

tinha uma voz estranha e ria com ar de ratinho. Ele era uma figura. Com aquela cara, ele não<br />

poderia entrar em lugar nenhum da alta sociedade. Mas como tínhamos cacife, impúnhamos a<br />

presença dele onde quer que fôssemos.<br />

Naqueles dias, nós três havíamos si<strong>do</strong> convida<strong>do</strong>s a desfilar como modelos de algumas lojas<br />

da Zona Franca. O pagamento era feito em roupas. Para nós, estava ótimo. Afinal, além das


oupas serem maravilhosas, nós ainda ficávamos ali na plataforma, expostos, dançan<strong>do</strong> para<br />

meninas delirantes e suas mamães ainda bonitas e atraentes. Aqueles desfiles sempre rendiam<br />

conquistas e aventuras proibidas, às vezes durante a semana, às vezes ali mesmo, atrás de<br />

biombos e tapumes que separavam o palco <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res.<br />

Carioca sempre era leva<strong>do</strong> para tu<strong>do</strong>. Não “pegava” ninguém, mas ria de nossas façanhas. Aos<br />

poucos, ele começou a se transformar no nosso guru. Sempre filosofan<strong>do</strong>, ele não cansava de nos<br />

<strong>do</strong>utrinar sobre o absur<strong>do</strong> da vida e a náusea da existência. Nos seus 26 anos, Carioca era um ser<br />

angustia<strong>do</strong>, perdi<strong>do</strong>, revolta<strong>do</strong> e profundamente suicida. Foi ele quem nos incitou a usar drogas<br />

mais pesadas e a provar o ayahuasca.<br />

No primeiro dia que ele tomou o cal<strong>do</strong> de raízes, eu fiquei incumbi<strong>do</strong> de tomar conta dele.<br />

Ele dizia que o negócio era tão forte, que se alguém não ficasse de plantão, vigian<strong>do</strong>, o maluco<br />

corria o risco de fazer algo suicida. Fiquei lá com ele. Não deu outra. Ele babou, correu, falou com<br />

o diabo, descreveu o inferno, disse que ia morrer e ficou como morto vários minutos. Depois,<br />

ressuscitou alucina<strong>do</strong>, tirou a roupa, correu nu pela praça, duelou com bandi<strong>do</strong>s imaginários,<br />

parou carros na rua e fez amor com a Lua. E eu lá, seguran<strong>do</strong> o cara como podia, com me<strong>do</strong> que<br />

ele fizesse uma loucura suicida qualquer.<br />

Vinte e quatro horas depois ele ainda estava amaluca<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> a rebor<strong>do</strong>sa dele passasse,<br />

seria a minha vez. Como eu vi que ele tinha toma<strong>do</strong> muito e como eu jamais me submeteria a um<br />

tormento daquele de graça, tomei muito menos <strong>do</strong> que ele. Foi o suficiente apenas para ver coisas<br />

multicoloridas e para liberar as produções de meu inconsciente. Gostei das sensações, mas<br />

decidi que ayahuasca não era a minha onda. Carioca sumiu <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que apareceu, sem<br />

dar notícias e sem deixar paradeiro. Nunca mais o vimos.<br />

Carioca foi embora, mas a fome de espiritualidade que ele tinha ficou em mim. Não só a<br />

ansiedade espiritual ficou presente, mas também um canal de sensibilidade espiritual<br />

desenvolveu-se em mim. Inicialmente, eram angústias terríveis que me acometiam ao pôr-<strong>do</strong>-sol.<br />

A mesma saudade de alguém, que me possuíra na infância, quan<strong>do</strong> eu contemplava a mangueira<br />

sagrada da casa da vovó, estava de volta, só que muitas vezes pior. Eu respirava ofegante. Fumava<br />

um cigarro atrás <strong>do</strong> outro, fumava maconha e tentava tirar a cabeça <strong>do</strong> pôr-<strong>do</strong>-sol. Mas não<br />

conseguia. Doía muito, no nervo da alma, e eu não sabia por quê.<br />

Outra manifestação de sensibilidade espiritual passou a acontecer à noite, quan<strong>do</strong> eu voltava<br />

para a pequenina casa de madeira às margens <strong>do</strong> igarapé de Manaus, na rua Sete de Dezembro.<br />

To<strong>do</strong>s as noites, quan<strong>do</strong> virava a esquina, eu ouvia nas minhas costas um zumbi<strong>do</strong>, como se<br />

alguém tivesse pega<strong>do</strong> um grande cinturão de couro e o estivesse baten<strong>do</strong> contra o poste de luz.<br />

Era um zumbi<strong>do</strong> pavoroso. Eu corria de volta na direção da esquina na tentativa de ver quem fazia<br />

aquilo, mas nunca havia ninguém lá. Eu me afastava e a coisa acontecia de novo. Eu voltava<br />

corren<strong>do</strong>, e ninguém. Todas as noites aquilo acontecia. Eu entrava em casa e a coisa continuava<br />

lá, espancan<strong>do</strong> o poste, fazen<strong>do</strong> um ruí<strong>do</strong> terrível. Às vezes, as batidas se faziam acompanhar de<br />

gemi<strong>do</strong>s, como se alguém estivesse apanhan<strong>do</strong>. Fosse o que fosse, aquilo era estranho, bizarro e<br />

maligno. Era tão forte e ao mesmo tempo tão pessoal, que eu não tinha coragem de falar com<br />

ninguém sobre o assunto.<br />

Nenhuma daquelas coisas de natureza espiritual interrompia, entretanto, o ritmo frenético<br />

de minha vida.<br />

Eu não tinha carro, mas Bete Raposo, filha de um arma<strong>do</strong>r muito rico, tinha sempre um<br />

novinho. Às vezes eu pegava o carro dela para correr pela cidade. Uma noite, a aventura quase<br />

terminou mal. Peguei o carro de Bete e fui na direção <strong>do</strong> aeroporto de Ponta Pelada, no caminho<br />

para fora da cidade.<br />

Quan<strong>do</strong> vi uma batida da polícia e uma tábua cheia de pregos estendida de ponta a ponta da


estrada, pensei: “É, vai sujar. Eu não tenho carteira.”<br />

Manobrei e voltei. Mas eles me viram e saíram no meu encalço. Eu estava dirigin<strong>do</strong> um TC<br />

novinho em folha e o carro da polícia era um camburão bom de corrida. Saí alucina<strong>do</strong>. Foram dez<br />

minutos de “pega” infernal. A impressão que eu tinha era de que a cada curva o carro iria capotar.<br />

Os “homens”, no entanto, não se perdiam nunca. Estavam lá, no meu pé. “Tô perdi<strong>do</strong>. Se esses<br />

caras me pegarem, vão me matar”, pensei.<br />

Consegui alcançar a rua Sete de Dezembro, onde morava. Cheguei cerca de trinta segun<strong>do</strong>s<br />

antes deles, tempo suficiente para parar o carro e entrar corren<strong>do</strong> em minha cama.<br />

Ouvi os gritos lá fora.<br />

— É aqui. O carro está quente ainda. O filha da... deve ter entra<strong>do</strong> aqui. Vai devagar. Cerca a<br />

casa. Cuida<strong>do</strong>. Ele pode estar arma<strong>do</strong> — eram as vozes que vinham da rua.<br />

Papai e mamãe, coita<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>rmiam sem saber que a casa estava cercada. Eu imagino que os<br />

policiais ouviram o ressonar forte de mamãe e perceberam que ali havia uma família <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.<br />

Bateram palmas. Mamãe acor<strong>do</strong>u. Os policiais perguntaram se aquele carro era da casa.<br />

— Não senhor. Nosso carro é aquela Hondinha ali na frente — respondeu mamãe com a<br />

inocência de uma santa.<br />

— Então de quem é esse TC para<strong>do</strong> aqui na frente de sua casa? — indagou um policial.<br />

— Não sei. Daqui de casa é que não é — respondeu mamãe.<br />

— A senhora tem um filho cabeludão? — um deles perguntou.<br />

— Sim. Mas acho que ainda não chegou — disse ela.<br />

— A senhora podia ir dar uma olhada pra nós? Ver se ele ainda não chegou? — insistiram.<br />

Quan<strong>do</strong> eu ouvi a história, decidi aparecer e poupar mamãe de passar por aquela vergonha.<br />

— Tá ali o cabelu<strong>do</strong> — falou um solda<strong>do</strong> mais exalta<strong>do</strong> assim que me viu.<br />

— <strong>Caio</strong>zinho! É você? — indagou o comandante da operação.<br />

— João da Mangueira? — perguntei fazen<strong>do</strong> força para vê-lo na escuridão, mas<br />

reconhecen<strong>do</strong>-lhe a voz.<br />

— Sim, sou eu, <strong>Caio</strong>zinho.<br />

— Seu cara! Que loucura é essa? A gente podia ter mata<strong>do</strong> você. Se você não tivesse para<strong>do</strong><br />

aqui, nós já íamos abrir fogo. A gente primeiro ia matar, depois ver quem era. A situação tá<br />

perigosa. Você escapou por pouco — disse João da Mangueira, vários anos mais velho <strong>do</strong> que eu,<br />

mas meu amigo de pelada na rua Apurinã, aos sába<strong>do</strong>s.<br />

Por pura coincidência o nome dele tinha uma mangueira no meio. As mangueiras sempre me<br />

perseguiram para o bem.<br />

— Olha, pessoal. Esse aqui eu conheço. É gente boa. E não vai nunca mais fazer isso, num é,<br />

<strong>Caio</strong>zinho? — perguntou.<br />

— Claro, João. Nunca mais. Eu prometo — falei alivia<strong>do</strong>.<br />

Mamãe ficou ali parada, sem entender nada. No dia seguinte, vi que o carro de Bete Raposo<br />

estava to<strong>do</strong> estoura<strong>do</strong>, com empenos estruturais terríveis, mas fiz de conta que não vi nada e<br />

devolvi o carro a ela. Bete quis dirigir para casa, mas o pobre TC tremia e sambava para to<strong>do</strong>s os<br />

la<strong>do</strong>s.<br />

— Que foi isso, <strong>Caio</strong>? — perguntou Bete.<br />

— Num sei não. Hoje de manhã não tinha nada. Você tem que dirigir com mais cuida<strong>do</strong>. Cê<br />

corre muito, Bete — falei com cinismo, enquanto me preparava para deixar a vida seguir seu<br />

curso e Bete consertar o carro.<br />

Num daqueles dias, no entanto, eu vim a conhecer uma pessoa que seria muito importante na<br />

aceleração de meu processo de degradação social e no aprofundamento de minha desgraça<br />

interior. Eu sempre via pelas ruas da cidade um cara de uns 25 anos, que pilotava uma Honda 450


cilindradas. Nós só nos cumprimentávamos: “Como é que é, bicho?”, era o que ele dizia quan<strong>do</strong><br />

passava por mim.<br />

Amigos mais comporta<strong>do</strong>s sempre diziam que Alipinho, Celsinho e eu devíamos ficar longe<br />

de Zé Curió, que tinha fama de ser bandi<strong>do</strong>, traficante de muambas, de remédio para impotência,<br />

de filmes pornográficos, de maconha e, segun<strong>do</strong> diziam, até de cocaína, quan<strong>do</strong> dava. Com uma<br />

apresentação daquela, o cara ficou irresistível. Eu decidi que queria ficar amigo dele.<br />

Um dia nos encontramos na porta de uma boate e conversamos longa e gostosamente. O<br />

sujeito era bem-humora<strong>do</strong>, gozadíssimo, inteligente, autodidata, cheio de prosopopéias e bon<br />

vivant. Gostava de tu<strong>do</strong> o que era bom. Tinha gosto sofistica<strong>do</strong> para lanchas, carros e mulheres.<br />

E, além de ser considera<strong>do</strong> o melhor motociclista da cidade, ainda tinha um jipinho Citroën igual<br />

ao que Jean-Paul Belmon<strong>do</strong> usara num de seus filmes. Era um sucesso.<br />

Zé Curió era de origem humilde, mas aparentemente não tinha nenhum complexo de<br />

inferioridade. Era considera<strong>do</strong> de confiança por homens ricos da cidade, para quem conseguia<br />

filmes pornográficos e meninas novinhas, que ele primeiro experimentava e depois servia aos<br />

amigos ricos, fazen<strong>do</strong> assim um jogo político e diplomático que sempre lhe auferia resulta<strong>do</strong>s<br />

extraordinários nos negócios. Quan<strong>do</strong> comecei a andar com ele, muita gente na cidade afastou-se<br />

de mim. Digo de mim porque, ainda que Pinho e Celsinho também andassem junto, era eu que,<br />

pela total liberdade de que dispunha, passava muito mais tempo com Curió.<br />

Alipinho e Celsinho, por mais que tivessem uma vida fora <strong>do</strong>s padrões da orto<strong>do</strong>xia social,<br />

eram ainda pessoas normais: iam à escola, faziam cursos à tarde, comiam com os pais e estavam<br />

se preparan<strong>do</strong> para o vestibular. Eu, entretanto, havia para<strong>do</strong> de estudar em 1971 e dizia que<br />

jamais voltaria a uma classe de escola. Por isso, minha vagabundagem encontrou em Zé Curió o<br />

exemplo mais prático da maturidade e da realização. Eu queria viver como ele vivia. Sem hora<br />

para nada. Capaz de <strong>do</strong>rmir até às duas da tarde e depois ir viven<strong>do</strong> conforme as oportunidades<br />

fossem aparecen<strong>do</strong>.<br />

Com Curió, minha vida enlouqueceu de vez. Todas as tardes saíamos com meninas de<br />

programa e passávamos horas fazen<strong>do</strong> sexo e toman<strong>do</strong> drogas. Ao pôr-<strong>do</strong>-sol, enquanto eu fugia<br />

da “árvore de minhas angústias”, ele ganhava algum dinheiro, fazia algumas entregas e depois me<br />

levava para comer uma caldeirada de tucunaré. Usávamos mais drogas e, então, vinha a hora de<br />

dançar.<br />

No fim da noite, quase sempre dávamos carona para algumas meninas na boate e acabávamos<br />

em algum motel de beira de estrada ou no apartamento dele, no centro da cidade. Provavelmente,<br />

nenhum outro garoto de 17 anos da cidade tinha aquela vida de orgias e desarvoramento. Por isso,<br />

passei, gradativamente, a fazer amizade com gente cada vez mais velha <strong>do</strong> que eu.<br />

As mulheres de Zé Curió eram de to<strong>do</strong> tipo. Algumas eram prostitutas de trinta a 35 anos.<br />

Outras eram meninas que tinham perdi<strong>do</strong> a virgindade recentemente, e que o procuravam como<br />

alguém generoso e engraça<strong>do</strong>, sempre disposto a tratar o sexo feminino com o melhor que<br />

estivesse ao seu alcance. Além disso, ele gostava da boa vida, e as meninas sabiam disso. As<br />

vantagens que minha companhia trazia para Zé era que, comigo, o nível das conquistas femininas<br />

subia de piso, quase sempre varian<strong>do</strong> entre a classe média e a alta. E àquele “outro mun<strong>do</strong>” ele<br />

servia, mas em geral não usava. Por isso, quan<strong>do</strong> via meninas que ele desejava e não conseguia, às<br />

vezes me dizia: “Pega aquela ali, usa, e depois passa para mim.”<br />

Mas, foi na condição de usuário das meninas <strong>do</strong> Curió que eu acabei pegan<strong>do</strong> três horríveis<br />

gonorréias, que foram devidamente tratadas com muito Benzetacil pelo Dr. Joede Cavalcanti de<br />

Oliveira. Joede era evangélico e amigo de minha família. Mas o que mais me chamava a atenção<br />

era que ele tinha prazer em me encostar contra a parede de sua casa, aplicar aquela seringa cheia<br />

daquele líqui<strong>do</strong> torturantemente <strong>do</strong>loroso e espesso como óleo em mim, para então dizer com ar


profético: “É! Deus tá te deixan<strong>do</strong> pegar essas desgraçadas pra ver se você acorda, <strong>Caio</strong>. Não<br />

esqueça que os prazeres não valem essa <strong>do</strong>r, valem?” Eu dizia que não, mas não parava de transar<br />

nem <strong>do</strong>ente. Usava preservativos, mas não dava descanso às meninas.<br />

Minhas experiências também foram fican<strong>do</strong> cada vez mais marginais. Às vezes, Zé Curió<br />

tinha de entregar uns embrulhos proibi<strong>do</strong>s para pessoas importantes da cidade e me levava junto.<br />

Outras vezes, precisávamos pegar encomendas ilegais. Dentre as ocasiões em que fomos buscar<br />

algo ilícito houve uma noite escura, chuvosa e deprimente que nunca mais esquecerei na vida.<br />

Eu e Curió tínhamos passa<strong>do</strong> a noite anterior acorda<strong>do</strong>s. Vimos filmes pornográficos até o dia<br />

nascer e depois <strong>do</strong>rmimos até o entardecer. Acordamos e nos drogamos. Depois comemos e<br />

fomos para o Rodeo — o porto flutuante de Manaus. Quan<strong>do</strong> chegamos lá, ele me disse que<br />

iríamos nos esconder da vigilância até podermos descer para baixo <strong>do</strong> cais, onde haveria alguém<br />

nos esperan<strong>do</strong> com uma canoa.<br />

Tu<strong>do</strong> aconteceu conforme o plano. Burlamos a segurança e encontramos um caboclo numa<br />

canoa nos esperan<strong>do</strong> na escuridão das águas <strong>do</strong> rio Negro, sob o porto. O movimento das águas<br />

produzia um gemi<strong>do</strong> apavorante para quem estava <strong>do</strong>i<strong>do</strong> de drogas, ali no meio das trevas. Fomos<br />

reman<strong>do</strong> devagar até que chegamos ao navio. Era um navio sueco, enorme e de casco preto.<br />

Parecia um monstro visto ali debaixo, de dentro da minúscula canoa. Zé Curió deu um assobio<br />

especial e alguém desceu uma caixa amarrada a uma corda. Pegamos a muamba e subimos pelos<br />

troncos grossos de madeira, presos à estrutura flutuante <strong>do</strong> Rodeo.<br />

Quan<strong>do</strong> pusemos a cabeça no nível <strong>do</strong> piso de cimento, vimos um guarda arma<strong>do</strong> andan<strong>do</strong> na<br />

nossa direção. Ficamos ali, pendura<strong>do</strong>s, seguran<strong>do</strong> o pacote e pedin<strong>do</strong> a Deus que o vigilante se<br />

afastasse. Aqueles dez minutos pareceram durar para sempre. Quan<strong>do</strong> o guarda virou de costas,<br />

nós corremos para trás de uma cabine. Continuamos ali e vimos o canoeiro desaparecer, reman<strong>do</strong><br />

na escuridão das águas misteriosas <strong>do</strong> Negro. Não demorou e começou a chover. Caiu um pé<br />

d’água tão forte, que pudemos sair corren<strong>do</strong> pelo canto <strong>do</strong> porto, já que a visão ficou dificultada<br />

para quem quer que ali estivesse com a intenção de vigiar ou de passar chumbo na gente.<br />

No dia seguinte, o impacto daquela noite tinha si<strong>do</strong> tão forte em mim, que eu não sabia se<br />

tinha realmente aconteci<strong>do</strong> ou se tinha si<strong>do</strong> um pesadelo rega<strong>do</strong> a drogas. Mas não! Tinha si<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong> verdade.<br />

Assim, as loucuras se sucederam, to<strong>do</strong>s os dias e sem outro objetivo a não ser a loucura pela<br />

loucura. O processo de deterioração moral, emocional e espiritual era tal, que meus amigos<br />

começaram dizer que eu devia sair daquela enquanto podia. Mas eu estava disposto a tu<strong>do</strong>, até<br />

mesmo a morrer. Só não queria era viver de mo<strong>do</strong> que não pusesse a mim mesmo, to<strong>do</strong>s os dias,<br />

em situações que me fizessem beber adrenalina até me embriagar. Era isso que eu chamava de<br />

vida.


Capítulo 18<br />

“No décimo sexto ano de minha vida, o ócio reinou sobre mim devi<strong>do</strong> à falta de<br />

recursos financeiros de minha família. Assim, eu fiquei de férias de to<strong>do</strong> e<br />

qualquer estu<strong>do</strong>. Viven<strong>do</strong> assim, vazio, os caminhos da luxúria me <strong>do</strong>minaram e<br />

se elevaram acima de minha cabeça.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Quan<strong>do</strong> iniciou o ano de 1972, eu havia vivi<strong>do</strong> dez anos em um. A sensação que eu tinha era<br />

de que eu fora joga<strong>do</strong> numa câmara de compressão de tempo na qual, no espaço de apenas 12<br />

meses, eu havia experimenta<strong>do</strong> emoções, desejos, angústias, prazeres e atitudes que a maioria<br />

<strong>do</strong>s adultos que eu conhecia não tinha jamais sonha<strong>do</strong> provar em toda a vida.<br />

Agora, iniciava-se uma nova fase de minha existência. Eu queria apenas experimentar coisas<br />

que somente quem não amava a vida poderia ter coragem de provar. Comecei a dizer a mim<br />

mesmo que morreria logo e que, portanto, precisava curtir a vida com toda a intensidade possível.<br />

Nessa época, resolvi que minha existência seria cada vez mais uma demonstração de escândalo.<br />

Queria chocar o mun<strong>do</strong> e não tinha a menor razão para o não fazer. Por isso, decidi que não<br />

namoraria mais, apenas me dedicaria às mais esfuziantes experiências de natureza sexual, de<br />

preferência com “mulheres feitas”.<br />

Embora meu convívio com Pinho e Celsinho estivesse diminuin<strong>do</strong>, nós ainda fazíamos<br />

programas juntos. Um dia, num <strong>do</strong>s intervalos raríssimos de loucura com Curió, meus <strong>do</strong>is<br />

amigos me convenceram a ir com eles assistir ao grupo Teatro Oficina, que estava em Manaus,<br />

apresentan<strong>do</strong> O rei da vela. Entrei no teatro Amazonas, luxuoso e apinha<strong>do</strong> de mulheres de<br />

longos e de homens alinha<strong>do</strong>s, vestin<strong>do</strong> uma camisa de quatro bandas de cores, calça de cetim<br />

roxa e um tamanco alto, com um corte no meio da sola, que fazia placo, placo, placo quan<strong>do</strong> eu<br />

andava.<br />

Sentamos na última fileira <strong>do</strong> último andar <strong>do</strong> teatro. O espetáculo era contesta<strong>do</strong>r e os atores<br />

eram os profetas daquela geração. To<strong>do</strong>s estavam atentos, concentra<strong>do</strong>s nos diálogos e<br />

absolutamente liga<strong>do</strong>s no roteiro da peça. De repente me veio um irresistível impulso de acabar<br />

com tu<strong>do</strong> aquilo. Não dava para controlar. Era um desejo compulsivo. Aí, então, gritei, com a voz<br />

mais alta e lancinante que eu podia, a primeira coisa que me veio à cabeça: “Ai, meu Deus! Um<br />

morcego enorme está chupan<strong>do</strong> meu sangue. Ai, ai, ai. Socorro!”<br />

Foi o grito mais idiota que eu pude desferir no ar silencioso <strong>do</strong> ambiente cultural mais<br />

sofistica<strong>do</strong> <strong>do</strong> norte <strong>do</strong> país. To<strong>do</strong>s caíram numa interminável gargalhada. Os atores esperaram<br />

para ver se a casa voltaria à ordem. Mas que nada. A algazarra continuou indefinidamente. Como


já não houvesse clima, um <strong>do</strong>s atores passou um sabão no auditório, disse que éramos to<strong>do</strong>s uns<br />

aliena<strong>do</strong>s e encerrou o show pelo dia.<br />

Mas meu ambiente não era o <strong>do</strong>s teatros, e sim o das boates. A que eu mais gostava era a<br />

boate <strong>do</strong>s Ingleses. Situada na parte mais antiga da cidade, próxima ao Rodeo, era o lugar que eu<br />

freqüentava todas as noites para dançar e caçar mulheres. A “espera” ali era frutuosíssima.<br />

Numa das noites em que eu estava lá, vi uma mulher maravilhosa, de uns 23 anos, dançan<strong>do</strong><br />

de mo<strong>do</strong> mágico no salão. Ela era branca, de cabelos negros, magra e de rosto fino. O corpo era<br />

perfeito e seus movimentos pareciam encanta<strong>do</strong>s. Como eu conhecia to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ali, fiquei<br />

intriga<strong>do</strong> sobre quem seria aquela musa e de onde ela viera. Foi aí que meu amigo Kuriak,<br />

comissário de bor<strong>do</strong> da Cruzeiro <strong>do</strong> Sul, malucão há muitos anos, me disse que ela era a Narinha,<br />

comissária da mesma companhia.<br />

— Mas como é que eu não conheci ela antes? — quis saber.<br />

— Ela está começan<strong>do</strong> a voar para Manaus agora. Esta é a segunda viagem dela —<br />

respondeu.<br />

Como Narinha estava dançan<strong>do</strong> sozinha, corri para a pista antes que algum gavião se<br />

adiantasse, e fui logo mostran<strong>do</strong> minhas habilidades na arte da dança solta. Afinal, meu convívio<br />

com Celsinho tinha me transforma<strong>do</strong> em um excelente dançarino de música agitada. Ela ficou<br />

admirada com a minha performance e começou a sorrir para mim.<br />

Saímos dali direto para o bar, onde Zé Curió já tinha deixa<strong>do</strong> ordens que eu poderia “beber o<br />

que quisesse com a gatinha”. No fim da noite, fumamos maconha e fomos para um motel. Ali,<br />

com aquela mulher, eu vivi as mais alucinantes sensações sexuais que eu jamais havia prova<strong>do</strong><br />

nesta vida. Foi uma experiência quase religiosa, de tão irreal e arrebata<strong>do</strong>ra. Nossa busca de<br />

prazer foi até o meio-dia, quan<strong>do</strong> a deixei no hotel Amazonas, onde ela estava hospedada. Na<br />

semana seguinte, ela estava de volta e nossa perdição no corpo um <strong>do</strong> outro continuou sem<br />

fronteiras e sem leis. Foram oito meses de êxtases todas as vezes que ela chegava.<br />

Enquanto isso, os homens mais ricos e poderosos da cidade voavam em cima dela como<br />

gaviões. Mas minha selvaticidade e avidez sexual davam a ela a certeza de que era melhor andar<br />

com um rapaz sempre duro de grana, mas insaciável como eu, <strong>do</strong> que comer e beber bem com<br />

algum coroa e depois ter que fazer força para suportar o hálito de whisky <strong>do</strong> sujeito. No fim<br />

daqueles meses, eu me sentia o homem sexualmente mais respeita<strong>do</strong> de toda a cidade. Não era<br />

verdade, mas era assim que eu me via na minha fantasia.<br />

Em agosto de 1972, chegaram a Manaus três rapazes <strong>do</strong> Rio: Claudinho, Ricardinho e Neto.<br />

Eles eram faixa preta de jiu-jítsu da academia Gracie, em Copacabana. Foram a Manaus passar<br />

uns meses na esperança de poderem dar umas aulas de luta por lá. Além disso, Ricardinho e Neto<br />

eram “nativos”, ainda que tivessem se muda<strong>do</strong> para o Rio no início da década de 60, com o pai,<br />

político conheci<strong>do</strong> no esta<strong>do</strong>. O pai deles tinha si<strong>do</strong> figura importante no governo de Jango. Eles<br />

eram filhos <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>r Arthur Virgílio Filho.<br />

Foi fácil perceber aquelas três figuras andan<strong>do</strong> pela cidade, sempre sem camisa, com cabelos<br />

longos e pose de guerreiros. No dia seguinte, meu amigo André Gimenis nos chamou para ver as<br />

feras treinan<strong>do</strong> na academia dele. Fomos lá: Zé Curió e eu. Os caras eram incríveis. Vimos os<br />

homens mais fortes e bem-treina<strong>do</strong>s da cidade serem vira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> avesso por aqueles rapazes. No<br />

chão eles eram imbatíveis, não importava quão forte e bem-prepara<strong>do</strong> fosse o adversário.<br />

Pareciam invencíveis.<br />

Os três nos atraíram pelas artes marciais, e Curió e eu os fascinamos pelo nosso mo<strong>do</strong> sem<br />

caráter de viver. Eles não queriam ser como nós, mas gostavam de nos ver em ação.<br />

Três dias depois de os havermos conheci<strong>do</strong>, já sentíamos uma intimidade entre nós que era<br />

como se nunca tivéssemos vivi<strong>do</strong> separa<strong>do</strong>s. Claudinho voltou para o Rio depois de alguns dias,


mas Ricar<strong>do</strong> e Neto continuaram lá. Como eles não tinham “escola” em Manaus, elegeram<br />

Pedro, primo deles, Curió e eu como aqueles em quem eles investiriam seus conhecimentos de<br />

artes marciais. Em troca, nós seríamos seus garotos-propaganda. Estávamos fascina<strong>do</strong>s por eles.<br />

Concentramo-nos de manhã, de tarde e de noite nos treinamentos. Queríamos nos tornar tão<br />

invulneráveis quanto eles. Não demorou e começamos a perceber que nosso progresso já se<br />

manifestava.<br />

O problema é que duas coisas paralelas estavam acontecen<strong>do</strong>. A primeira é que havia um<br />

boca<strong>do</strong> de homem na cidade com muita <strong>do</strong>r-de-cotovelo de Neto. Ele não era bonito, mas fazia<br />

um gênero muito interessante, além de ter um papo de derrubar poste. Por isso, já havia fatura<strong>do</strong><br />

algumas mulheres casadas e também estava sain<strong>do</strong> com as garotinhas mais cobiçadas de Manaus.<br />

A segunda dificuldade tinha a ver com a rivalidade que começou a surgir entre ele e o pessoal <strong>do</strong><br />

caratê. O agravante é que Alipinho, meu amigo, era <strong>do</strong> pessoal <strong>do</strong> caratê, e eles formavam a elite<br />

<strong>do</strong>minante da cidade, inclusive economicamente falan<strong>do</strong>.<br />

Não demorou muito e eu percebi que teria de tomar um parti<strong>do</strong>. As coisas estavam<br />

esquentan<strong>do</strong> e não se falava em outro assunto nos círculos sociais de Manaus a não ser no<br />

possível “confronto das artes marciais”. Foram três meses de disputa, treinos, fofocas e<br />

definições de fidelidades.<br />

Acontece que Neto era brilhante e um tremen<strong>do</strong> estrategista. Já sen<strong>do</strong> forma<strong>do</strong> em advocacia<br />

e jornalismo, via a vida com um olhar duplo. De um la<strong>do</strong>, era um homem de 24 anos, capaz de<br />

falar mais duas línguas além <strong>do</strong> português e <strong>do</strong>no de uma vasta memória histórica, pois tanto seu<br />

avô quanto seu pai eram figuras eminentes da história <strong>do</strong> Amazonas e até da vida nacional. Mas,<br />

de um outro la<strong>do</strong>, Neto ainda era um rapaz confuso, desencontra<strong>do</strong>, buscan<strong>do</strong> um senti<strong>do</strong> para a<br />

sua existência. Vestia-se como hippie e se fazia de louco, mas odiava drogas; falava como<br />

comunista e se confessava marxista-leninista, mas não podia viver sem mor<strong>do</strong>mias; con<strong>do</strong>ía-se<br />

com a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> pobre, mas não tinha misericórdia de ninguém quan<strong>do</strong> se tratava de arrebentar<br />

quem quer que fosse no tatame ou na calçada, às vezes por quase nada; discursava sobre as<br />

causas sociais e econômicas que existiam por trás da prostituição, mas não poupava as<br />

caboclinhas jeitosas que passavam na sua frente. Enfim, ele era profundamente contraditório e,<br />

ao mesmo tempo, apaixonante e sedutor justamente por isso. Portanto, tomar o parti<strong>do</strong> de Neto<br />

foi natural. Com exceção <strong>do</strong> fato de não usar drogas, ele era tu<strong>do</strong> aquilo que eu queria ser aos 24<br />

anos de idade, se eu vivesse tanto.<br />

Sen<strong>do</strong> extremamente inteligente, Neto logo percebeu que a sua cruzada Gracie para<br />

desbancar todas as outras formas de luta não iria a lugar nenhum, se ele mesmo batesse nos<br />

caras. Ele era um deus no tatame, e to<strong>do</strong>s os demais adversários eram mortais fáceis de serem<br />

abati<strong>do</strong>s por ele. Portanto, precisava ser mais sutil. Para ele, o que estava em jogo era mais <strong>do</strong> que<br />

uma luta, era pura ideologia, pois sabia que to<strong>do</strong>s os caratecas e ju<strong>do</strong>cas da cidade eram filhos da<br />

aristocracia local e, como ele dizia, “tinha prazer em ferrar com aqueles caras”. Neto tinha a<br />

mesma história deles, mas odiava ser como eles eram: “aliena<strong>do</strong>s e sem nenhuma consciência<br />

política”. E Alipinho, para ele, era o símbolo bonito e bem vesti<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> aquele sistema que ele<br />

odiava e que resolvera vencer não mediante golpes políticos ou ações guerrilheiras, mas no pau,<br />

no braço, na pancada, no chão, na baiana, no armlock e na chave de perna.<br />

Assim foi que Neto começou a dizer para mim e Curió que Alipinho era o ser mais fútil,<br />

frívolo, burguês e vazio que ele já conhecera. Quan<strong>do</strong> ele falou isso pela primeira vez, eu reagi e<br />

disse que não, pois imaginei que ele estava dizen<strong>do</strong> aquilo apenas porque não conhecia Pinho tão<br />

bem quanto eu.<br />

A estratégia continuou. O próximo passo foi conquistar Liliane, uma<br />

norte-americana-amazonense, mulher linda, de olhos negros profun<strong>do</strong>s e pele tão branca quanto


o branco pode ser sem perder o poder de ser atraente numa pele feminina. Até a chegada de<br />

Neto, Liliane saía com Pinho. Mas o guerreiro jogou charme, conversas com ela em inglês,<br />

escreveu poesias e, assim, empurrou Pinho para fora <strong>do</strong> “tatame da menina”.<br />

Enquanto isso, ele treinava Curió, Pedro e eu para sermos seus solda<strong>do</strong>s. Celsinho percebeu<br />

o que estava acontecen<strong>do</strong> e se afastou. Alipinho escondia bem a <strong>do</strong>r-de-cotovelo e continuava se<br />

fazen<strong>do</strong> de desentendi<strong>do</strong>, mas começou logo a notar que eu já não era o mesmo com ele. O olhar<br />

dele passou a ficar triste e depois ressenti<strong>do</strong> e magoa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> pousava sobre mim. Sofri um<br />

pouco, mas já tinha feito a minha escolha. Era ao la<strong>do</strong> de Neto que eu marcharia quan<strong>do</strong> chegasse<br />

a hora da batalha.


Capítulo 19<br />

“Assim eram os meus companheiros, com os quais eu andava pelas ruas. Com eles<br />

eu rolava em esterco como se rolasse em especiarias e ungüentos preciosos. Para<br />

me amarrar mais tenazmente à barriga da corrupção, o inimigo invisível me<br />

<strong>do</strong>minou e me seduziu, apenas porque eu estava com desejo de ser seduzi<strong>do</strong>.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Em novembro de 1972, havia energia elétrica sen<strong>do</strong> liberada <strong>do</strong>s corpos das pessoas na<br />

praça <strong>do</strong> Congresso em Manaus. Os duzentos ou às vezes trezentos rapazes que se reuniam ali<br />

não falavam em outra coisa: havia uma grande luta sen<strong>do</strong> armada. As armas estavam sen<strong>do</strong> afiadas<br />

e os guerreiros treinavam para a hora e o lugar <strong>do</strong> combate. A praça parecia uma arena de<br />

gladia<strong>do</strong>res. Uns jogavam capoeira, outros faziam katas de caratê, e havia os que saltavam como<br />

boxea<strong>do</strong>res.<br />

Bill e seu irmão Adriano eram incrédulos. Acostuma<strong>do</strong>s a brigar na rua desde a infância,<br />

dançavam protegen<strong>do</strong> o rosto e diziam: “Eu lá quero saber de estilo. Se cair dentro, leva na cara e<br />

sai com o rabo roxo.” E assim as demonstrações de valentia eram constantes. Mas quan<strong>do</strong> Neto e<br />

Ricar<strong>do</strong> apareciam de peito nu e cabelos longos escorren<strong>do</strong> pelas costas largas e musculosas,<br />

subin<strong>do</strong> como guerreiros vikings pela avenida Eduar<strong>do</strong> Ribeiro, em direção à praça, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

disfarçava a valentia e dava lugar a outra atitude: “Comé qui é seu Neto? Comé qui é, seu<br />

Ricardinho?”, eram as saudações que se faziam ouvir pela calçada.<br />

O confronto, entretanto, não tinha mais como ser evita<strong>do</strong>. Neto percebeu que Zé Curió<br />

poderia representar seus interesses melhor <strong>do</strong> que eu no confronto físico com os inimigos. Era<br />

mais velho, mais forte e socialmente mais amargura<strong>do</strong> <strong>do</strong> que eu. Minha amargura era<br />

existencial, mas eu não me via como vítima da vida. Não achava que havia nasci<strong>do</strong> em meio a<br />

circunstâncias que haviam conspira<strong>do</strong> contra mim. Para Curió, entretanto, a história tinha si<strong>do</strong><br />

outra. De vez em quan<strong>do</strong> ele reclamava de suas origens sociais. Portanto, ele era mais recrutável<br />

<strong>do</strong> que eu para aquela missão de desmoralização da burguesia.<br />

Eu seria útil, mas de outra forma: minha missão seria ouvir e trazer as informações. Deveria<br />

manter-me dentro <strong>do</strong> outro ambiente, a fim de repercutir as coisas que meu general me pedisse<br />

para enfatizar. E assim foi.<br />

Quan<strong>do</strong> Neto julgou que tu<strong>do</strong> estava pronto e que Zé Curió já era imbatível no jiu-jítsu<br />

adapta<strong>do</strong> à guerrilha de rua, ele nos chamou e disse que partiríamos para o confronto. Eu deveria<br />

provocar Alipinho e atraí-lo para uma briga em frente ao Ideal Clube, logo depois que a festa <strong>do</strong><br />

Mingau — o point mais quente de to<strong>do</strong>s os fins de semana — tivesse acaba<strong>do</strong>. Zé Curió chegaria


na hora. Os desabafos aconteceriam. Neto então chegaria e diria que não faria nada porque não<br />

era covarde, mas que Curió estava autoriza<strong>do</strong> a representá-lo em qualquer enfrentamento. Aí<br />

seria fácil.<br />

Ninguém jamais vira Zé lutan<strong>do</strong> — ou melhor, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sabia que ele não era de sair no<br />

pau. Era <strong>do</strong> tipo baixinho, entroncadinho, de cabelos encaracola<strong>do</strong>s e se gabava de só se “atracar<br />

com mulher”, e bonita. “Se você me encontrar agarra<strong>do</strong> a uma mulher feia, desaparta que é<br />

briga”, era o que ele sempre dizia.<br />

O grande pulo <strong>do</strong> gato era que quase ninguém sabia que Zé estava sen<strong>do</strong> exaustivamente<br />

treina<strong>do</strong>, assim como eu, várias horas por dia, por mais de três meses. Enfim, havíamos fica<strong>do</strong><br />

bons naquilo, e nem nós sabíamos o quanto.<br />

Cheguei ce<strong>do</strong> ao Mingau. Naquele tempo eu vestia sempre um macacão italiano, to<strong>do</strong><br />

borda<strong>do</strong> de flores. Além disso, já fazia alguns meses que eu andava sempre com um chapéu preto,<br />

tipo cone, que me dava um toque de bruxo. Como estava nervoso, já cheguei de cabeça feita. Mas<br />

a ansiedade era tanta, que resolvi intensificar a loucura. Por isso, tomei também umas e outras e<br />

tentei aparentar frieza.<br />

Alipinho apareceu na esquina com uma loira linda, chamada Diná, por quem ele era<br />

eternamente enamora<strong>do</strong>. Conversaram um pouco e ela saiu. Ele ergueu o braço, fez o sinal hippie<br />

<strong>do</strong> V de paz e amor e atravessou a rua até a ilha de cimento que havia no meio da avenida Eduar<strong>do</strong><br />

Ribeiro, onde eu estava encosta<strong>do</strong> num carro.<br />

Logo muitos outros chegaram. Quan<strong>do</strong> o ambiente já estava carrega<strong>do</strong> de gente e o papo já<br />

era “quem era quem na hora <strong>do</strong> vamos ver”, eu provoquei.<br />

— Não há nesse mun<strong>do</strong> nada e nem ninguém que agüente enfrentar um luta<strong>do</strong>r como o<br />

Neto. O problema é que ele não aceita brigar com gente que não seja <strong>do</strong> nível dele — disse com<br />

veneno, olhan<strong>do</strong> para Alipinho.<br />

— Num sei não, bicho, acho o Neto muito bom no chão. O problema vai ser ele chegar perto<br />

dum cara como eu. Se me pegar, ferrou pra mim. Mas se eu chutar a cara dele antes, arrebento<br />

com ele — gabou-se Pinho, confian<strong>do</strong> no fato de que seu professor de caratê dizia que o chute<br />

dele era um <strong>do</strong>s mais fortes da cidade.<br />

Nesse momento, Neto apareceu sem camisa. An<strong>do</strong>u pausadamente e entrou pelo meio <strong>do</strong><br />

grupo, que se abriu num corre<strong>do</strong>r humano, como que ensaia<strong>do</strong> para a hora. Alipinho ficou páli<strong>do</strong><br />

e seus lábios tremeram. Então Zé Curió veio subin<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> suas acrobacias na moto 450<br />

Honda. Ninguém falava nada.<br />

— E aí, o que qui vocês tavam conversan<strong>do</strong>? Seu Caião, qual era o papo? — indagou como<br />

quem já sabia o que iria ouvir.<br />

Com a bola quican<strong>do</strong> na minha área, foi fácil chutar. Entreguei Pinho sem piedade. To<strong>do</strong>s<br />

estavam gela<strong>do</strong>s. Alguns amigos de infância de Alipinho, como Muchacho, tinham dito que se<br />

Neto fizesse alguma covardia contra o rapaz, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> iria entrar na briga, mesmo que fosse<br />

para apanhar.<br />

Quan<strong>do</strong> eu entreguei meu antes-melhor-amigo, Neto continuou:<br />

— Eu não preciso provar nada a ninguém. Mas posso provar o que estou falan<strong>do</strong> por meio de<br />

seu Zé. Cês to<strong>do</strong>s sabem que ele num é de briga. Mas seu Zé tá aí, pronto pra mostrar quem é<br />

homem e quem num é aqui nessa joça.<br />

Mal ele falou isso, Zé pulou da moto e an<strong>do</strong>u na direção <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r humano. Pinho estava lá<br />

no fun<strong>do</strong>, em posição de defesa. Vestia uma calça de cetim preta e uma camisa metade amarela,<br />

metade preta. Estava pronto, porém morren<strong>do</strong> de me<strong>do</strong>. No entanto, quan<strong>do</strong> ouviu que era o Zé<br />

que estava sen<strong>do</strong> ofereci<strong>do</strong> para a peleja, deu uma risadinha cínica que ele sempre usava para<br />

gozar das pessoas com alguma provocação, mas que quem o conhecia sabia que ali não havia


maldade.<br />

A risada começava com um hum, hum, virava há, há, há, e então crescia para uma gargalhada<br />

estridente, enquanto ele tomava ar ao mesmo tempo, o que dava ao som um zuni<strong>do</strong> tanto metálico<br />

quanto animal. Eu sempre gostara daquela gargalhada dele. Mas, naquele dia, foi o sinal de<br />

convocação para a guerra.<br />

Ele nem acabou de rir e já estava no chão. Zé Curió partiu para cima dele com tanta gana e<br />

força, que Pinho não conseguiu nem pular para trás a fim de esboçar seu famoso e poderoso<br />

chute de frente.<br />

— Pára com isso, Zé. Sou eu, teu amigo. Lembra? Esse cara nos dividiu. Ele não é nosso<br />

amigo — exclamava meu ex-melhor-amigo, enquanto era manti<strong>do</strong> imóvel por Curió, imprensa<strong>do</strong><br />

contra um carro, sofren<strong>do</strong> a pior humilhação pública de sua vida.<br />

Nós saímos dali com um esquisito sentimento de vitória, mas o único aparentemente feliz era<br />

Neto. Curió e eu estávamos nos sentin<strong>do</strong> estranhos, pois percebemos que havíamos acaba<strong>do</strong> de<br />

assinar uma confissão pública de cafajestagem <strong>do</strong> pior tipo. Não era exatamente culpa o que eu<br />

sentia, pois minha mente andava bastante cauterizada. Havia, entretanto, um sentimento de<br />

desconforto, de descolagem interior. Era como se algo tivesse fica<strong>do</strong> solto dentro de mim. Por<br />

isso, tive de afogar aquilo sob muita maconha e cachaça, para ver se minha mente encontrava<br />

outro cenário que não fosse aquele de centenas de pessoas paradas, ven<strong>do</strong> alguém a quem eu<br />

havia ama<strong>do</strong> como amigo, ser humilha<strong>do</strong> por mim e Zé, enquanto nós nem bem sabíamos<br />

exatamente por que estávamos agin<strong>do</strong> daquele mo<strong>do</strong>.<br />

Neto continuou conosco mais alguns dias. Durante o perío<strong>do</strong> curtimos todas as glórias<br />

daquele perverso triunfo. Assim, tomamos posse <strong>do</strong>s despojos de guerra: eram loiras, morenas,<br />

solteiras e até casadas. Era a festa <strong>do</strong>s vikings em meio à floresta.<br />

Nós sabíamos que, quan<strong>do</strong> Neto fosse embora para o Rio, teríamos de assumir nossa valentia<br />

contra tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s. Por isso, quan<strong>do</strong> ficávamos sozinhos, Zé sempre me dizia: “Poderoso Caião,<br />

temos de treinar, bicho. Pára de fumar tanta maconha assim. Se os caras nos pegam <strong>do</strong>idões, a<br />

gente dança.”<br />

Além disso onde quer que fôssemos Curió queria que eu estivesse sempre em guarda.<br />

“Prepara pra baiana!”, gritava ele de vez em quan<strong>do</strong>, referin<strong>do</strong>-se à entrada <strong>do</strong> jiu-jítsu nas<br />

pernas <strong>do</strong> adversário para levá-lo ao chão e esmagá-lo como uma jibóia faz com suas vítimas,<br />

matan<strong>do</strong> no acocho.<br />

Neto voltou para o Rio e nos deixou órfãos contra a cidade toda. A polícia andava atrás da<br />

gente por causa <strong>do</strong>s negócios <strong>do</strong> Zé. Os pais de família estavam cheios de ódio de nós porque<br />

havia o zunzunzum de que algumas das senhoras suas esposas estavam sen<strong>do</strong> traçadas pelo<br />

grupo de guerreiros. Além disso, os garotões da cidade também queriam a nossa cabeça,<br />

especialmente a de <strong>do</strong>is trai<strong>do</strong>res como eu e Zé, que havíamos troca<strong>do</strong> nosso direito de<br />

primogenitura pelo aprendiza<strong>do</strong> de uns golpes de jiu-jítsu, “a luta <strong>do</strong>s demônios”, alguns diziam.<br />

Andávamos olhan<strong>do</strong> por sobre os ombros. Zé tinha um revólver e disse que ia mantê-lo<br />

próximo. “Se os caras quiserem pau, tem pau. Mas se quiserem fazer covardia, passo chumbo”,<br />

dizia ele, realmente decidi<strong>do</strong> a fazer o que fosse necessário.<br />

Em razão de tu<strong>do</strong> aquilo, nossas amizades e círculos mudaram completamente na cidade.<br />

Onde quer que eu chegasse, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se retirava. Havia um ódio generaliza<strong>do</strong> contra nós. Mas<br />

contra mim, por razões óbvias, a bronca era maior.<br />

No primeiro fim de semana de nossa orfandade, Zé e eu saímos no jipinho Citroën dele e<br />

paramos para conversar com umas meninas na praça <strong>do</strong> Congresso. Era <strong>do</strong>mingo à noite.<br />

Estávamos ali, com “um olho no padre outro na missa”, quan<strong>do</strong>, de repente, começamos a ver um<br />

monte de carros e motos irem paran<strong>do</strong> à nossa volta. Ficamos ilha<strong>do</strong>s. A burguesia inteira estava


lá.<br />

Creio que pelo menos 65% <strong>do</strong> PIB <strong>do</strong> Amazonas estava ali representa<strong>do</strong> nos filhos <strong>do</strong>s<br />

homens mais poderosos <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s nos cercan<strong>do</strong>, raivosos.<br />

Percebi que era a hora da vingança. Iríamos ser descarna<strong>do</strong>s vivos por eles. Mas como<br />

Manaus era uma cidade de muitos pobres, e Zé era homem da beira <strong>do</strong> rio Negro, devagar<br />

começaram a chegar motoqueiros pobres e suburbanos de to<strong>do</strong>s os lugares. Em vinte minutos, o<br />

circo estava monta<strong>do</strong> e tu<strong>do</strong> indicava que o pau ia cantar, a menos que a questão fosse resolvida<br />

com a “diplomacia de Davi e Golias”, ou seja, <strong>do</strong>is brigariam, os outros assistiriam.<br />

Foi quan<strong>do</strong> apareceu Armandão, com seus braços musculosíssimos, andan<strong>do</strong> como um<br />

troglodita, cheio de maconha na cara, vin<strong>do</strong> na nossa direção.<br />

— Olha aqui, bicho, o que cês fizeram com o seu Alipinho não se faz com ninguém. Hoje nós<br />

vamos tirar isso a limpo — ele foi logo dizen<strong>do</strong>, enquanto jogava o sapato para longe e começava a<br />

rodar com suas posições de luta<strong>do</strong>r de caratê experiente.<br />

A comparação física entre Zé e Armandão era ridícula. Havia pelo menos uns trinta<br />

centímetros de diferença de altura entre eles, a favor <strong>do</strong> grandalhão. O peso, nem falar. Armandão<br />

devia ser uns 35 quilos mais pesa<strong>do</strong> que Curió, ia ser um massacre. Para completar, sem a força<br />

moral de Neto, nós éramos a metade <strong>do</strong>s guerreiros de uma semana antes.<br />

A minha surpresa foi ver o Zé pular <strong>do</strong> seu canto como um galinho de briga, valente e suicida.<br />

— Armandão, bicho, num tenho nada contra você. Cê é meu brother de viagem e de<br />

transação. Mas se tu quer caí dentro, eu tô aqui cara. É só tu aparecer — e foi logo corren<strong>do</strong> igual<br />

a um alucina<strong>do</strong> para dentro das pernas de Armandão.<br />

A distância que os separava era de uns dez metros. O imenso Armandão man<strong>do</strong>u um petar<strong>do</strong><br />

no meio da cara <strong>do</strong> Zé, mas a velocidade da baiana <strong>do</strong> Zé foi tão grande, que o chute entrou de<br />

resvalo, arrancou sangue, mas já era tarde.<br />

Nas pernas de Armandão, Zé continuou com a velocidade que vinha e saiu carregan<strong>do</strong> o bicho<br />

mais uns três metros, antes de fazê-lo despencar no chão com as costas contra o meio-fio. Daí em<br />

diante, foi só subir nele e amassar a cara <strong>do</strong> rapaz. Bateu como quis, enquanto eu, Bill, Aires e<br />

mais alguns amigos nos juntamos para garantir que a luta seria justa, ou seja, só <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is.<br />

Três minutos depois de começar a bater em Armandão, Curió levantou-se sozinho, deixan<strong>do</strong><br />

o outro estira<strong>do</strong> no meio da rua. An<strong>do</strong>u ofegante, resfolegante, quase sem ar. Parou, respirou<br />

fun<strong>do</strong> e fez um discurso de filme: “Sou eu, Zé das Can<strong>do</strong>ngas. Sou invencível e sou gostoso.<br />

Quem não me respeitar, apanha, bicho.”<br />

Rimos e gargalhamos, pulamos no carro e fomos comemorar nossa glória na Ponta Negra<br />

com umas meninas que pegamos ali mesmo, na arena da vitória.<br />

Enquanto isso, papai e mamãe não faziam outra coisa por mim a não ser orar. Decidiram que,<br />

acontecesse o que acontecesse, eles haveriam de ganhar a guerra <strong>do</strong> jeito deles, ou seja, de acor<strong>do</strong><br />

com a Bíblia: “nem por força, nem por violência, mas pelo poder <strong>do</strong> Espírito de Deus”. Em<br />

relação a mim, estavam cala<strong>do</strong>s, mas falavam com Deus sobre mim de dia e de noite. Aquela<br />

sim, era uma batalha da qual eu não tinha nenhuma chance de sair vence<strong>do</strong>r.


Capítulo 20<br />

“Não havia disciplina para me conter, o que me levou à dissolução sem rédeas, em<br />

muitas e diferentes direções. Em tu<strong>do</strong> havia uma densa névoa me cegan<strong>do</strong> os<br />

olhos, assim eu não conseguia ver o brilho deTua face, meu Deus, e minha<br />

iniqüidade era como se fosse ‘saída de minha própria gordura’.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Novembro corria pelo meio e, portanto, 1972 estava chegan<strong>do</strong> ao fim. Com o clima de<br />

hostilidade que se criara na cidade, Zé e eu evitávamos os lugares badala<strong>do</strong>s demais.<br />

Um dia eu estava com ele na casa de uma de suas mulheres quan<strong>do</strong> entrou um homem pela<br />

sala, com uma pistola na mão. Ele parecia que tinha muita moral sobre o Curió. Não disse nada,<br />

mas os <strong>do</strong>is obviamente se conheciam muito bem.<br />

— Desliga essa porcaria — gritou apontan<strong>do</strong> para o som liga<strong>do</strong> altíssimo num canto da casa.<br />

— Zé, tu num toma jeito. Os home tão pon<strong>do</strong> pressão in mim pra ti pegá. Vê se toma juízo. Tu dá<br />

bandêra demais, cara. Agora vive in coluna social. Tá brigan<strong>do</strong> cun gente grande e vai dançá. Os<br />

cara ti matun, bicho. Num dá essa moleza, não — disse com professoral vulgaridade.<br />

Zé estava ali, para<strong>do</strong>, cala<strong>do</strong>, ouvin<strong>do</strong> como se o homem da pistola fosse um padre, um <strong>pastor</strong>,<br />

um sacer<strong>do</strong>te de Deus. Eu é que não entendi nada <strong>do</strong> que estava acontecen<strong>do</strong>. Quis perguntar<br />

quem era o cidadão, mas ele não deixou. Antecipan<strong>do</strong>-se, olhou para mim, depois para o Zé.<br />

— Quem piorô a tua vida foi esse mau-elemento. Tem cara de bom garoto, mas ti botou<br />

nessa fria. Larga esse cara. Ele vai dançar — ele disse e saiu <strong>do</strong> jeito que entrou.<br />

Curió ouviu aquilo, esperou o homem se afastar, e caiu no chão dan<strong>do</strong> gargalhada.<br />

— Ai, ai, eu num agüento. Cê viu, seu Caião? Os cara acham que eu sou o bom garoto e que<br />

tu é o mau-elemento. Eu nasci de bumbum pra lua, bicho.<br />

— Quem é esse cara, Zé? Comé que ele entra aqui e diz esses negócios? Quem são os<br />

“home” que querem ti fechar? — perguntei, nervoso e amedronta<strong>do</strong>.<br />

— Ele é da Federal e é quem me garante lá. O cara é gente boa. Eu lavo a mão dele de vez em<br />

quan<strong>do</strong>, aí ele fica calmo. O problema é que o cara ti cunhece, bicho. Melô. É melhor tu caí fora<br />

da cidade. Também cum esse cabelão, essa cara de <strong>do</strong>i<strong>do</strong> e essas roupa extravagante, o que qui tu<br />

queria? — e caiu na gargalhada mais uma vez. Eu fiquei preocupa<strong>do</strong>.<br />

Naquela noite fomos à boate <strong>do</strong>s Ingleses. Chegamos devagar e ficamos quietos. To<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> estava lá. O clima estava horrível, pesa<strong>do</strong>. Eu podia sentir hostilidade no olhar de quase<br />

to<strong>do</strong>s. Vi uma garotinha atraente num canto, fui em cima e comecei a dançar com ela. Ficou bom<br />

pra mim e convidei-a a ir lá fora.


Quan<strong>do</strong> ia passan<strong>do</strong> com ela pelo corre<strong>do</strong>r escuro, cheio de gente, senti a primeira cadeirada<br />

nas minhas costas. Depois foi uma sucessão de socos, pontapés, murros e copadas, todas pelas<br />

costas. Rápi<strong>do</strong>, eu pulei sobre as mesas e atropelei quem estava na minha frente. Uns amigos que<br />

ainda restavam correram para me ajudar. Outros que não eram amigos correram também, apenas<br />

movi<strong>do</strong>s por um estranho senso de justiça muitas vezes presente nas pessoas e nos lugares mais<br />

improváveis.<br />

Quan<strong>do</strong> eu me achei, já estava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da boate. Dezenas, talvez centenas de pessoas<br />

estavam gritan<strong>do</strong> lá fora. Vi Zé Curió, percebi a presença de Bill, Nego Aires e de alguns outros<br />

que pareciam estar <strong>do</strong> meu la<strong>do</strong>. Eu estava muito <strong>do</strong>i<strong>do</strong> de maconha e outras coisas, incluin<strong>do</strong><br />

whisky. Apesar de tu<strong>do</strong>, entretanto, eu estava lúci<strong>do</strong> e ven<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> no lugar. Respirei fun<strong>do</strong> e<br />

percebi que quatro rapazes estavam destaca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> grupo.<br />

— Quem foram os bichas que me atacaram? — comecei a gritar com ódio.<br />

— Foram aqueles cocôs que estão ali — Zé foi logo dizen<strong>do</strong> e apontan<strong>do</strong> para Luís Carlos<br />

Areosa, o filho <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, e três outros riquinhos da cidade.<br />

— Quem vai cair dentro? Com os quatro de uma vez eu num dô conta. Mas se vier de um por<br />

um, eu bato nos quatro — eu disse sem saber se tinha energia para brigar tanto tempo.<br />

O filho <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r ficou na dele, quieto. Os <strong>do</strong>is outros também ficaram cala<strong>do</strong>s. Mas um<br />

moço grande, branco, com entradas precoces de calvície, rico e conheci<strong>do</strong> birita<strong>do</strong>r, chama<strong>do</strong><br />

Carlinhos, disse que ele tinha manda<strong>do</strong> as cadeiradas nas minhas costas e que teria prazer em me<br />

trucidar.<br />

Correu para cima de mim. Sen<strong>do</strong> mais velho uns quatro anos, mais forte e mais alto, saiu me<br />

cobrin<strong>do</strong> de braçadas e de chutes. Eu fiquei frio e fiz tu<strong>do</strong> o que Neto tinha me ensina<strong>do</strong>. Usei a<br />

força dele contra ele próprio, derrubei-o, machuquei-o muito já na queda no chão de<br />

paralelepípe<strong>do</strong>s, passei a guarda das pernas dele, sentei sobre aquela barriga cheia de whisky, e<br />

bati forte, cadente e impie<strong>do</strong>samente.<br />

Como a briga aconteceu no meio da rua e o chão era de pedras lisas e duras, além de castigar<br />

o rosto dele, comecei a bater a cabeça <strong>do</strong> rapaz contra o paralelepípe<strong>do</strong>. Carlinhos perdeu os<br />

senti<strong>do</strong>s e pensei que estivesse morto.<br />

— Ele tá morto. Bicho, tu matô o cara. Corre daqui — era o vozerio que eu ouvia.<br />

Zé Curió arrancou-me de cima dele, gritou que nós estávamos às ordens para quem tivesse<br />

alguma pendência, pôs-me no jipinho, e saiu em disparada, antes que a polícia chegasse.<br />

Eu estava cansadíssimo. O ar quase não me entrava pelas narinas, tamanha era minha<br />

ansiedade de respirar. Então, ouvi um sermão.<br />

— Cara, você tem um jeitão maravilhoso para brigar. Tem pose, tem ginga e é frio. É uma<br />

pena que cê se cuide tão pouco. Se tu malhá um pouquinho só e fumar menos maconha, tu vai<br />

ficar um guerreiro da pesada — disse Zé como candidato a ser meu técnico de jiu-jítsu.<br />

No dia seguinte o jornal estava uma comédia, segun<strong>do</strong> o ponto de vista de meus irreverentes<br />

amigos. Na página policial havia a história da briga que quase acabara em morte, ten<strong>do</strong> a vítima<br />

si<strong>do</strong> internada para tratamento médico, enquanto o agressor, um candidato a marginal chama<strong>do</strong><br />

<strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, fugira escolta<strong>do</strong> pelo seu mentor, Curió.<br />

Na segunda página, entretanto, a notícia era outra: Inaugurada a fábrica de compensa<strong>do</strong> três<br />

pinheiros. E a notícia contava que o reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> havia abençoa<strong>do</strong> a inauguração daquela<br />

iniciativa e pregara uma mensagem que havia feito muito bem a to<strong>do</strong>s os presentes, incluin<strong>do</strong><br />

várias autoridades.<br />

A gozação sobre mim foi inevitável.<br />

— Um pai cun um filho como tu, nun precisa crê no diabo, bicho. Basta falar cuntigo —<br />

diziam.


Eu, entretanto, sentia uma horrível depressão e não sabia por que minha alma estava tão<br />

infeliz.<br />

No dia seguinte, vi que minha situação na cidade estava realmente feia. Estava senta<strong>do</strong> na<br />

praça <strong>do</strong> Congresso por volta das dez da noite, sozinho, depois de ter passa<strong>do</strong> o dia dentro d’água,<br />

num igarapé, com o Zé e umas meninas. Também estava cansa<strong>do</strong> e com muita vontade de ir para<br />

casa <strong>do</strong>rmir.<br />

Naquele dia o que eu queria era ficar longe de tu<strong>do</strong> aquilo, mas o vício de certos ambientes e<br />

geografias é, por vezes, mais forte que o vício da cachaça. Era perigoso ir à praça <strong>do</strong> Congresso<br />

naquela noite, mas foi para lá que eu fui.<br />

De súbito, vi três carros pararem e deles saíram cinco homens de uns 25 a trinta anos. Um<br />

deles eu conhecia; era irmão <strong>do</strong> rapaz que eu tinha manda<strong>do</strong> para o hospital na noite anterior. Ele<br />

veio andan<strong>do</strong>, parou a uns cinco metros de distância, e disparou:<br />

— Seu safa<strong>do</strong>! Você pensa que pode sair baten<strong>do</strong> em gente de bem e que as coisas ficam<br />

assim? Olha, não dá pra sair no tapa contigo, mas dá pra ti meter uma bala no meio da cara e<br />

ninguém fica nem saben<strong>do</strong>. Sai da cidade, senão a gente manda te executar.<br />

Entraram nos carros e foram-se dali, cantan<strong>do</strong> pneu para to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> Zé voltou <strong>do</strong><br />

passeio com uma das meninas, eu contei o que havia aconteci<strong>do</strong>.<br />

Para piorar a situação eu fiz mais uma besteira imper<strong>do</strong>ável. No dia seguinte à noite, eu e<br />

Curió estávamos andan<strong>do</strong> de jipinho quan<strong>do</strong> vimos duas meninas em pé, dan<strong>do</strong> mole. Paramos,<br />

convidamos as duas para um passeio, e elas toparam. No caminho para a praia de Ponta Negra<br />

elas já estavam muito à vontade. Pareciam garotas experientes naquele tipo de programa. Quan<strong>do</strong><br />

chegamos lá, Zé e eu nos separamos, cada um com uma garota.<br />

Ficamos a cerca de trezentos metros um <strong>do</strong> outro, na escuridão da areia. Meia hora depois<br />

nos encontramos no carro e, assim que entramos, a menina que estava comigo começou a chorar.<br />

— Esse desgraça<strong>do</strong> me desvirginou. Eu disse que era virgem, mas ele fez assim mesmo. Eu<br />

disse que não queria, mas ele não me ouviu. Vou contar para o meu irmão que ele me estuprou.<br />

Ele vai matar você, seu desgraça<strong>do</strong> — ela gritava.<br />

Eu reagi dizen<strong>do</strong> que ela realmente tinha dito “não”, mas que, ao mesmo tempo, parecia me<br />

puxar para cima dela. Em momento algum, expliquei, julguei que a estivesse violentan<strong>do</strong>.<br />

Parecera-me um típico “jogo de dificuldade”, apenas para fazer tu<strong>do</strong> mais sedutor ainda.<br />

Mas que nada. Ela continuou a gritar, histérica, e a fazer promessas de morte. Foi quan<strong>do</strong><br />

Curió interrompeu.<br />

— Seu maluco, você só me apronta. A menina era virgem sim. Eu “brinco” com ela, mas<br />

nunca consumo. E o irmão dela é mau. É um policial <strong>do</strong>s mais violentos da cidade. Se ela falar, ele<br />

ti mata. Cê tem que dá o fora daqui.<br />

Uma semana depois daquilo meu pai me chamou em casa e disse que havia um crente da<br />

igreja dele que tinha um assunto muito importante a me falar. Perguntei o que era, mas ele disse<br />

que não sabia. Procurei Antônio, o tal “irmão”. Conversamos e ele me disse que não dissera a<br />

meu pai o teor <strong>do</strong> assunto porque não queria preocupá-lo, mas achava que eu precisava saber.<br />

— É que eu tenho um amigo na Federal e ele me disse que você está numa lista negra. Você é<br />

o terceiro. O teu amigo Zé é o segun<strong>do</strong>. O primeiro, eu não sei quem é. Eu não sei o que você<br />

anda fazen<strong>do</strong> da vida, mas é melhor você sair de Manaus — disse com sincera preocupação.<br />

Expliquei a ele que eu não fazia nada que merecesse cuida<strong>do</strong>s da Federal. Entretanto, como<br />

eu andava meti<strong>do</strong> em coisas que estavam fazen<strong>do</strong> gente grande ficar com raiva, talvez fosse por<br />

isso que eu estivesse naquela lista. De qualquer mo<strong>do</strong>, agradeci e comecei a me preparar para sair<br />

de Manaus. Liguei para o Neto e decidi ir para o Rio de Janeiro, e morar com meu mestre e guru.


Capítulo 21<br />

“Eu vim para Cartago e tu<strong>do</strong> ao meu re<strong>do</strong>r emanava um aroma de amores ilícitos...<br />

Eu procurei um objeto para o meu amor e me apaixonei. Apaixonei-me não por<br />

alguém, mas pelo amor. Eu odiava a segurança que caminhos livres de serpentes<br />

venenosas pudessem me dar.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Em apenas <strong>do</strong>is anos eu havia muda<strong>do</strong> tanto, que era como se dez anos tivessem se<br />

interposto entre meus pais e mim. E pior: era como se naquela década que se interpusera entre<br />

nós não nos tivéssemos visto ou fala<strong>do</strong>.<br />

Eu não sabia quem eles eram, mas eles também não tinham a menor idéia de quem eu havia<br />

me torna<strong>do</strong>. É quase sempre isso o que acontece com os pais. Assim, o que reinava entre nós era a<br />

lei <strong>do</strong> silêncio e da distância, pois desde o dia que eu dissera a papai que se quisesse me<br />

disciplinar viesse prepara<strong>do</strong> para apanhar, ele resolvera que, se eu ainda fosse “educável,<br />

redimível e alcançável”, isso, certamente, não seria por nenhum outro poder que não o <strong>do</strong> amor e<br />

o da amizade. Portanto, eles se mantiveram discretos e cordatos, limitan<strong>do</strong>-se a diminuir ao<br />

máximo a tensão que vazava de mim para eles todas as vezes que nos víamos.<br />

Chegar até papai e comunicar que eu estava in<strong>do</strong> para o Rio, sozinho, morar com amigos foi<br />

tão fácil quanto avisar que eu ficaria alguns dias sem dar as caras em casa. Ele ouviu, abaixou a<br />

cabeça, tentou ponderar alguma coisa, mas percebeu que seria absoluta perda de tempo, com o<br />

agravante de que poderia romper os últimos fiapos de vínculo que ainda me prendiam a eles.<br />

Perguntou apenas como eu iria, e eu respondi que o Zé estava me dan<strong>do</strong> a passagem, o que foi<br />

ótimo porque eu o poupei de precisar me dizer que ele não teria como financiar meu afastamento<br />

de casa e da cidade.<br />

No dia da viagem eu saí ce<strong>do</strong> com o Curió e fomos a um cabeleireiro. Meu cabelo estava<br />

compri<strong>do</strong>, abaixo <strong>do</strong> ombro, mas caía encaracola<strong>do</strong> sobre as minhas costas. Eu queria chegar no<br />

Rio com algo digno da loucura que estava acontecen<strong>do</strong> lá. Por isso, mandei fazer black power no<br />

pêlo.<br />

Quan<strong>do</strong> voltei para casa a fim de pegar uns poucos objetos que eu estava levan<strong>do</strong> — uma<br />

malinha e uma bolsa a tiracolo de couro cru —, mamãe olhou para mim e seus olhos encheram-se<br />

de lágrimas. Ela não disse nada, mas era como se perguntasse: “Como é que aquele garotinho <strong>do</strong><br />

gagau, da coqueluche, <strong>do</strong> amor pelo Tarzan, da casinha no quintal e da paixão pelos rachas de<br />

futebol, pôde ficar assim, tão distante e tão indiferente?”<br />

Eu apenas beijei Aninha, de sete anos, abracei Suely e Luiz, beijei mamãe na testa e disse:


“Fica firme, poderoso Caião”, referin<strong>do</strong>-me a papai, que, meigo que era, não podia conceber que<br />

uma despedida daquela acontecesse sem um beijo e um abraço. Ele me olhou com lágrimas nos<br />

olhos, an<strong>do</strong>u calmamente no compasso de sua muleta mágica, e pediu autorização para me dar<br />

um beijo. Sem graça, eu tive que deixar.<br />

Zé Curió estava ali e eu fiquei com me<strong>do</strong> da gozação que ele pudesse fazer depois. Mas<br />

quan<strong>do</strong> entramos no carro, o Zé me disse: “Bicho, teu pai é o maior barato. Com um pai desse eu<br />

não seria como você de jeito nenhum, nem em cem anos. Tu é muito ruim, bicho.”<br />

Fiquei ali, senta<strong>do</strong> no jipinho, perplexo com o que estava ouvin<strong>do</strong>. As pedras estavam<br />

claman<strong>do</strong> e eu era o último a discernir a sua voz. Mas não havia tempo para sentimentalismos.<br />

Em Manaus não dava mais para ficar, e eu iria para o Rio fazer o que a vida pedia de mim.<br />

Cheguei à Cidade Maravilhosa de madrugada. Como não havia ninguém me esperan<strong>do</strong>,<br />

preferi pegar um táxi e ir direto para Niterói. Gritei na porta da casa <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> Antônio Elias.<br />

Eles acordaram sem saber o que era, reconheceram-me com alguma dificuldade debaixo daquele<br />

cabelo enorme, chamaram-me de filho, deram-me um lanche e fizeram-me <strong>do</strong>rmir numa<br />

sleeping-bag que tinham em casa.<br />

Não <strong>do</strong>rmi a noite inteira, lutan<strong>do</strong> contra os mosquitos, que naquele tempo inundavam como<br />

enxames o bairro de São Francisco. Somente lá pelas cinco da manhã eu consegui a<strong>do</strong>rmecer.<br />

Passei alguns dias com eles, mas meu coração estava nas fantasias que me aguardavam em<br />

Copacabana, no próximo fim de semana.<br />

Quan<strong>do</strong> o sába<strong>do</strong> chegou, atravessei a baía de Guanabara e às quatro horas da tarde encontrei<br />

Ricardinho na porta da casa deles, na rua Aires Saldanha. Depois de um longo abraço, ele me<br />

levou direto para a esquina da rua Bolívar com a avenida Atlântica. O cheiro de maresia<br />

inun<strong>do</strong>u-me a alma, respirei fun<strong>do</strong> e disse: “É aqui que meu coração vai sentir todas as emoções<br />

dessa vida.” Neto chegou e me apresentou às figuras mais interessantes que eu já havia<br />

conheci<strong>do</strong> até então. Onde íamos passan<strong>do</strong> as pessoas falavam com o “meu guru” com<br />

reverência. Era como se um general andasse pelas ruas, passan<strong>do</strong> as tropas em revista.<br />

De repente, ouvi um zunzunzum.<br />

— Oba, o pau vai cantar, bicho. O Reison vai lá dentro da Senzala — disse Ricardinho.<br />

Eu não sabia o que era, mas me candidatei a ir junto. Lotamos vários ônibus na rua Barata<br />

Ribeiro e chegamos a um lugar próximo ao Canecão. Corremos pelas ruas e invadimos um lugar<br />

onde havia um monte de capoeiristas jogan<strong>do</strong> capoeira.<br />

Reison era considera<strong>do</strong> um deus. Sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s gênios <strong>do</strong> jiu-jítsu <strong>do</strong>s Gracie, luta que seus<br />

pais haviam desenvolvi<strong>do</strong> e aperfeiçoa<strong>do</strong>, ele era invencível no tatame e esmaga<strong>do</strong>r na briga de<br />

rua.<br />

Diziam que havia mais de vinte processos legais contra ele apenas nos últimos <strong>do</strong>is anos.<br />

Eram braços quebra<strong>do</strong>s, pernas fraturadas, narizes arrebenta<strong>do</strong>s, clavículas despedaçadas —<br />

enfim, era a máquina de quebrar ossos Reison, funcionan<strong>do</strong> contra garotões de praia que o<br />

haviam provoca<strong>do</strong> inadvertidamente, porteiros de edifícios que tinham feito pouco de seu<br />

loiríssimo cabelo longo e cachea<strong>do</strong>, ou jovens empresários, bonitos e atléticos, que, não ten<strong>do</strong><br />

gosta<strong>do</strong> de um beijinho ou de uma piscada que o loiro louco dera para suas mulheres, haviam<br />

resolvi<strong>do</strong> enfrentá-lo, sem saber que aquele pequeno homem era letal.<br />

Mas “o pau não cantou” na Senzala. O capoeirista-mor <strong>do</strong> lugar aproximou-se de Reison com<br />

humildade e pediu que ele entrasse na roda para “jogar” capoeira com eles, amistosamente.<br />

Ricardinho, sentan<strong>do</strong> ao meu la<strong>do</strong>, disse que Reison costumava dizer que capoeira não era luta,<br />

era dança, e como ele não dançava bem, não gostava de capoeira.<br />

A moçada delirou quan<strong>do</strong> ele entrou na roda e, desajeitadamente, tentou jogar com os<br />

baianos De Mola, Mestre Angola e outros. Duas horas depois a festa acabou entre beijos e


abraços, e nós voltamos para a esquina da Bolívar com a Atlântica.<br />

Tarde da noite eu fui para a casa <strong>do</strong>s pais de Neto e <strong>do</strong>rmi no quarto dele. No dia seguinte, fui<br />

apresenta<strong>do</strong> à família. Os pais dele me receberam muito bem em consideração aos meus avós e<br />

pais, antigos amigos da família <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>r Arthur Virgílio. A irmã, Aninha, tratou-me com<br />

especial carinho. Mas uma tia que morava com eles me olhou e me odiou. Eu senti que, se eu<br />

fosse ficar ali, a minha vida seria miserável por causa daquela mulher. Ela me fuzilava com um<br />

olhar gela<strong>do</strong> e cheio de desprezo.<br />

As primeiras duas semanas em Copacabana foram quase totalmente caretas. Neto e<br />

Ricardinho detestavam drogas e me <strong>do</strong>utrinavam contra elas o dia to<strong>do</strong>. Entupiram-me de suco<br />

de melancia, forçaram-me a correr na praia todas as manhãs e obrigaram-me a mergulhar no<br />

Arpoa<strong>do</strong>r e nadar até ao píer com eles to<strong>do</strong>s os dias. Não fosse por um conheci<strong>do</strong> de Manaus que<br />

já estava moran<strong>do</strong> no pedaço havia alguns anos, e eu teria “encareta<strong>do</strong>”. Carlos Alberto,<br />

entretanto, sempre que me encontrava me dizia:<br />

— Esses caras são <strong>do</strong>i<strong>do</strong>s sem droga. Mas você não é como eles. O teu barato é outro. Você<br />

gosta é de viajar — e aí me colocava na mão um ou <strong>do</strong>is basea<strong>do</strong>s e desaparecia.<br />

Os treinos na academia também eram diários e, em geral, iam das cinco da tarde às oito da<br />

noite. Depois, era suco de melancia, Zepelim, Le Bateau e New Jirau até uma da manhã. No fim<br />

de três semanas, eu estava meio cansa<strong>do</strong> de tanta ginástica e pouca droga e mulher. Assim, pensei<br />

em ir a Niterói ver se por lá as coisas estavam mais loucas<br />

Em Niterói reencontrei a maconheirada toda que eu conhecia no Ingá, em Icaraí e São<br />

Francisco, e fiz festa. Também pude verificar que Fernandinha tinha se recupera<strong>do</strong><br />

completamente de mim e que estava namoran<strong>do</strong> um garoto que eu conhecia. Quan<strong>do</strong> a vi e não<br />

senti nada, fiquei choca<strong>do</strong>. Nunca pensei que o coração fosse capaz de se desligar de um antigo<br />

sentimento com tanta certeza.<br />

A minha estada em Niterói naquele perío<strong>do</strong> teve duas marcas distintas. A primeira é que as<br />

lembranças da fé ali estavam muito mais fortes dentro de mim <strong>do</strong> que eu podia imaginar. Tanto<br />

é, que no primeiro <strong>do</strong>mingo que estive na cidade aconteceu-me algo que, naquele tempo, só<br />

poderia ser explica<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> o poder da fé me impedin<strong>do</strong> de fazer algo que poderia magoar<br />

gente que me amava.<br />

O episódio tem a ver com uma visita que fiz a uma família de gente amiga de meus pais.<br />

Quan<strong>do</strong> cheguei, não havia ninguém em casa, exceto a filha deles, de uns vinte anos, sozinha. Ela<br />

estava com um shortinho curto e provocativo. Conversamos sobre o namora<strong>do</strong> dela e fiquei<br />

saben<strong>do</strong> que ele lhe havia tira<strong>do</strong> a virgindade alguns meses antes.<br />

— Agora, que não tenho mais o que proteger, tô aberta pra te conhecer. Vem que eu não digo<br />

pra ninguém, mas você também tem que ficar cala<strong>do</strong>, tá? — disse a menina, viran<strong>do</strong>-se para mim.<br />

Em circunstâncias normais, eu não teria nem deixa<strong>do</strong> que ela chegasse ao ponto de me<br />

convidar. Com certeza eu a teria aborda<strong>do</strong> tão logo percebesse o fogo nos seus olhos. Mas<br />

naquele momento, e naquele lugar, algo estranho aconteceu comigo. Lembrei-me de mamãe<br />

dizen<strong>do</strong> que aquela menina era muito especial para seus pais, que colocavam muita expectativa<br />

sobre ela.<br />

— Olha, meus pais são amigos <strong>do</strong>s teus. Eu já desgracei a minha vida. Não quero fazer mal a<br />

ninguém próximo a mim — eu simplesmente disse, embora estivesse louco de desejo, e fui<br />

embora.<br />

A outra situação que me atingiu ali foi a de uma angustiante percepção de que não havia<br />

qualquer perspectiva de vida para gente que vivia como eu. Procurei por Atum, Zé Bumbum e<br />

outros, e vi que estavam em meio a um processo de alucinação e loucura. Estavam mal, e era algo<br />

feio de ver. O romantismo das drogas começava a desaparecer dentro de mim.


Retornei a Copacabana sem saber o que fazer. Mas tão logo voltei, Neto me disse que Zé<br />

Curió estava chegan<strong>do</strong> de Manaus. Fui ao aeroporto buscá-lo e vi meu amigo entrar em<br />

Copacabana com o ar de reverência com o qual os inicia<strong>do</strong>s adentram os santuários mais<br />

sagra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Para nós, amazonenses, aquele era o santo <strong>do</strong>s santos da alucinação e das<br />

vaidades.<br />

Zé dançou na calçada, saltou e correu como louco pelas ruas, gritan<strong>do</strong>: “Eu não quero nem<br />

saber quem morreu, eu quero é chorar.”<br />

Com a chegada de Zé, minha vocação para a galinhagem retornou imediatamente. Logo<br />

descobrimos que Ipanema e Copa estavam cheios de garotinhas <strong>do</strong> Sul, perdidas, queren<strong>do</strong><br />

qualquer tipo de aventura. Fizemos nossa cama ali. E como o dinheiro estava curto, começamos<br />

não só a usá-las para nosso consumo pessoal, mas passamos também a “alugá-las”, na esquina da<br />

Aires Saldanha com a Bolívar, para os coroas que passavam de carrão.<br />

A nossa vida não podia ser mais contraditória. Vivíamos como loucos — nas drogas e na cama<br />

com as meninas —, mas não deixávamos de la<strong>do</strong> as disciplinas físicas impostas por nosso guru,<br />

Neto.<br />

Na praia conhecemos as figuras mais folclóricas e extravagantes que poderiam existir. Aquilo<br />

tu<strong>do</strong>, para nós, era como um curso de antropologia aplicada às esquisitices da urbanidade. Era<br />

fascinante mergulhar na multiplicidade de experiências e percepções <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que ali havia.<br />

Naquele mês de dezembro de 1972 aprendi, em Copacabana, por que garotões como eu<br />

entravam para a academia <strong>do</strong>s Gracie. Havia gente de to<strong>do</strong>s os níveis por lá: médicos, advoga<strong>do</strong>s,<br />

policiais, porteiros de edifício e empresários. Mas a moçada mais jovem entrava para a academia<br />

para aprender a quebrar a cara <strong>do</strong>s outros em briga de rua. Naquele perío<strong>do</strong>, em apenas quatro<br />

meses participamos em mais de 15 brigas de rua. Em duas delas, até um grupo de choque <strong>do</strong><br />

Exército foi chama<strong>do</strong>.<br />

A primeira vez foi quan<strong>do</strong> quebramos to<strong>do</strong> o New Jirau, no dia de sua reinauguração, após um<br />

incêndio que lá havia aconteci<strong>do</strong>. No meio <strong>do</strong> quebra-quebra, ouviu-se o grito: “Um batalhão de<br />

choque chegou.” Aí nos espalhamos pelas ruas de Copacabana, fugin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s militares.<br />

Na outra ocasião, fui eu o objeto <strong>do</strong> conflito. Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> convida<strong>do</strong> por um certo Batata para<br />

uma festa na rua Toneleros, fui e entrei, sem querer saber onde estava e quem eram os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong><br />

luxuoso apartamento. To<strong>do</strong>s usavam roupas elegantes e a coisa parecia ser de altíssimo nível. Eu,<br />

entretanto, estava de macacão francês, cola<strong>do</strong> ao corpo magro e musculoso, sem camisa por<br />

baixo, fazen<strong>do</strong> questão de expor minha sensualidade o mais que pudesse. Como vi uma mulher<br />

loira, de uns 28 anos, sozinha no meio da sala, fui lá e comecei a dizer o quão linda era ela, que<br />

sorriu com um ar de contentamento diante de um galanteio tão imediato e descara<strong>do</strong>. Foi quan<strong>do</strong><br />

seu mari<strong>do</strong> chegou, pegou-me pelo braço e começou a querer me expulsar da sala. Eles eram<br />

muitos e eu estava sozinho naquele ambiente estranho. Peitei o homem e depois me retirei<br />

fazen<strong>do</strong> ameaças.<br />

Quan<strong>do</strong> cheguei ao Cabral 1500, nosso ponto de encontro, contei o episódio para Curió e<br />

Ricardinho. Em poucos minutos uns quarenta rapazes da academia já estavam mobiliza<strong>do</strong>s para a<br />

guerra. Fomos lá e cercamos o prédio. Até às duas da manhã ninguém saiu da festa. Ficaram<br />

saben<strong>do</strong> e recolheram-se lá dentro. Mas como um <strong>do</strong>s presentes era <strong>do</strong> serviço de segurança <strong>do</strong><br />

exército, chamou um choque da PE. Não demorou e estávamos cerca<strong>do</strong>s de solda<strong>do</strong>s arma<strong>do</strong>s.<br />

Corremos pelas ruas escuras e desaparecemos pelo bairro Peixoto.


Capítulo 22<br />

“Numa ocasião, na a<strong>do</strong>lescência, eu ardia por encontrar satisfação nos prazeres<br />

animais. Assim, eu corri selvagem pela floresta sombria das aventuras eróticas.<br />

Dessa forma, minha beleza se foi e eu apodreci ante os Teus olhos, ó Deus. Mas ao<br />

tentar me dar prazer, o que eu realmente buscava era obter aprovação humana.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No nosso caminho aparecia de tu<strong>do</strong>: artistas de televisão e cinema, músicos de renome,<br />

prostitutas da elite, cafetões de empresários e políticos, meninas virgens pela frente e<br />

marias-batalhão por trás, homossexuais musculosos e bons de briga, homens casa<strong>do</strong>s com<br />

mulheres lindas, mas que na moita não resistiam ao charme de um surfista etc. Enfim, era um<br />

circo de vaidades, perversões e <strong>do</strong>enças da alma.<br />

Para Zé e para mim aquilo tu<strong>do</strong> era parte <strong>do</strong> jogo da sobrevivência, e nós nos relacionávamos<br />

com to<strong>do</strong>s aqueles segmentos de mo<strong>do</strong> a tirar deles o máximo de vantagem possível. Mas como a<br />

situação financeira apertou, decidi ver se uma certa maneira de fazer dinheiro poderia funcionar.<br />

Ora, eu tinha ouvi<strong>do</strong> na academia que alguém de lá havia encontra<strong>do</strong> com Pedrinho Aguinaga —<br />

considera<strong>do</strong> na época o homem mais bonito <strong>do</strong> Brasil —, que o vira com um mulherão e lhe<br />

dissera: “Olha aqui, cara, você tá tiran<strong>do</strong> essa onda toda porque é bonito. Cê sabia que eu tenho o<br />

poder de ti fazer o cara mais feio <strong>do</strong> Brasil em <strong>do</strong>is minutos?”<br />

A lógica <strong>do</strong> negócio era a seguinte: homens bonitos demais não gostariam de se arriscar a<br />

levar uma surra na frente de suas mulheres. Saí dali e comecei a procurar homens bonitos pelas<br />

ruas <strong>do</strong> bairro. Não deu outra. Veio o primeiro, com uma mulher linda. Tinha uns 21 anos e cara<br />

de quem carregava dinheiro no bolso. Parei na frente dele, olhan<strong>do</strong> para a mulher que o<br />

acompanhava e dan<strong>do</strong> soco de uma mão contra a palma da outra.<br />

— Cara, você é bonito à beça. É uma pena que eu seja muito bom de briga e consiga te<br />

fraturar a cara rapidinho — disse.<br />

A resposta foi súbita. O moço arregalou os olhos, olhou para a mulher, viu que podia ser<br />

verdade, e disse:<br />

— Pára com isso, bicho. Eu sou de paz. O que qui cê quer?<br />

Aí, então, eu disse que precisava de grana, e ele me deu tu<strong>do</strong> o que tinha. Agradeci, elogiei a<br />

mulher dele, e saí andan<strong>do</strong> na direção oposta. Passei o resto <strong>do</strong> tempo fazen<strong>do</strong> aquilo. Sempre<br />

funcionou, exceto uma vez.<br />

Naquele dia, resolvi abordar um homem com cara de militar. O problema é que eu já estava<br />

tão cara-de-pau que havia perdi<strong>do</strong> completamente o receio. Nas cinqüenta vezes anteriores, eu


havia fica<strong>do</strong> na situação de um assaltante desarma<strong>do</strong> e gostara <strong>do</strong> negócio. Daquela vez,<br />

entretanto, pisei na bola.<br />

O homem estava com a família, comen<strong>do</strong> numa lanchonete que havia na rua Bolívar, em<br />

frente ao Cabral 1500, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da rua. Cheguei devagar, braços incha<strong>do</strong>s de exercício, cara<br />

queimada de praia, cabelos longos, bem abaixo <strong>do</strong> ombro, e olhos de maluco disposto a qualquer<br />

coisa. O homem era alto e forte, mas estava acompanha<strong>do</strong> da mulher e <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is filhinhos. Achei<br />

que sozinho ele era <strong>do</strong> tipo que brigaria. Mas com a família, talvez preferisse pagar para ficar livre<br />

da chateação.<br />

Minha abordagem daquela vez foi diferente.<br />

— Senhor, eu sei que um homem <strong>do</strong> seu tipo é generoso. Eu estou voluntarian<strong>do</strong> o senhor a<br />

dar um bom exemplo para a sua mulher e filhos. Passe-me grana suficiente para matar minha<br />

fome e a de meu amigo.<br />

Ele olhou para mim com um ar de segurança.<br />

— Por que é que você acha que eu vou fazer isso? — perguntou.<br />

— Porque você é gente boa, mas também porque você sabe que, se num passar a grana,<br />

apanha — respondi.<br />

Ele ficou vermelho de raiva. Pensei que fosse explodir. Depois, olhou para a esposa e os<br />

filhos, que àquela altura já estavam agarra<strong>do</strong>s às pernas dele.<br />

— Seu moleque, vá ali fora, olhe a placa daquele carro e depois venha cá — disse. Era um<br />

carrão preto, com chapa branca. Vi, ainda, que <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da rua havia um outro carro preto,<br />

também com chapa branca. — Eu sou coronel <strong>do</strong> Exército e tô com uma vontade danada de ferrar<br />

você. Mas eu não sei por que não vou fazer isso. Alguma coisa me diz que você não é ruim, só está<br />

perdi<strong>do</strong>. Saia daqui e nunca mais faça isso. Se fizer, vai dançar — ele me avisou.<br />

Virou-se de costa para mim e recomeçou a comer seu lanche, na maior moral. Eu andei pela<br />

rua com um monte de gente me olhan<strong>do</strong> pelas costas, sentin<strong>do</strong>-me um rato.<br />

Ali, to<strong>do</strong> dia acontecia de tu<strong>do</strong>. Era como se o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>, com suas inúmeras<br />

complexidades, coubesse inteiro no espaço daquela geografia e dentro de nossas horas e<br />

alucinações. Entretanto, algo estranho começou a me acontecer. Uma noite, eu estava andan<strong>do</strong><br />

pela praia com uns amigos para fazer hora para ir a uma festa na Lagoa quan<strong>do</strong>, de súbito, vi uma<br />

mulher negra, de olhos arregala<strong>do</strong>s, correr na minha direção. Ela começou a tremer e a dar<br />

demonstrações que um espírito estava se apossan<strong>do</strong> dela. Minha cabeça ro<strong>do</strong>u e eu comecei a<br />

sair de mim. Era como se outro ser estivesse me dan<strong>do</strong> um chega pra lá interior e eu não tivesse<br />

forças para impedi-lo. Tu<strong>do</strong> ro<strong>do</strong>u e escureceu. Eu parei, desespera<strong>do</strong>. A sensação era horrível.<br />

Parecia que a morte estava dizen<strong>do</strong> que faria morada em mim.<br />

Pedi socorro a Deus e recitei o Salmo 23, lembrança da Mãe Velhinha e da Escola Dominical.<br />

“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque Tu estás<br />

comigo”, gritei para dentro de minha própria mente. A coisa fugiu. Sentei num banco <strong>do</strong> calçadão<br />

e não consegui falar. Meus maxilares haviam enrijeci<strong>do</strong> de tensão. Não quis mais ir à festa. Fui<br />

para a esquina da Figueire<strong>do</strong> de Magalhães com a avenida Copacabana e fiquei ali, senta<strong>do</strong>,<br />

sozinho, cheio de angústia, com me<strong>do</strong> das sombras e com vontade de sumir.<br />

Não demorou, entretanto, e apareceu uma garota de uns 18 anos que começou a conversar<br />

comigo. Trinta minutos depois, estávamos num apartamento muito bem mobilia<strong>do</strong>, nus e<br />

fuman<strong>do</strong> maconha em companhia de um garotão forte, de uns vinte anos, que me dissera ser<br />

filho de um fazendeiro de Goiás. Havia algo esquisito no ar. Era como se o diabo estivesse ali.<br />

Comecei a sentir uma estranha presença espiritual. Senti um cheiro esquisito de cobra. O<br />

mesmo pitiú que me ensinaram a discernir no Amazonas quan<strong>do</strong> as cobras estavam próximas.<br />

— Sou discípulo de Satanás. Não há nada melhor <strong>do</strong> que segui-lo — disse o tal rapaz em tom


de voz macabro, confirman<strong>do</strong> minhas suspeitas.<br />

Tremi de cima a baixo. O lugar era demoníaco e com o “bicho”, em pessoa, eu não queria<br />

nada. Fazia coisas que eu sabia serem dele, mas nada de tratos pessoais.<br />

Saí dali o mais rápi<strong>do</strong> possível, mas a coisa foi comigo. Daquele dia em diante, comecei a<br />

sentir aquela presença insistentemente. Foi também na mesma ocasião que Curió foi morar com<br />

Dadá, conheci<strong>do</strong> como traficante de cocaína e adepto de macumba e bruxaria. Na casa <strong>do</strong> homem<br />

havia sempre despachos e muita cachaça consagrada aos espíritos. Ele vendia cocaína, fazia<br />

orgias e <strong>do</strong>rmia ali, naquela kitchenette. Zé <strong>do</strong>rmia num colchão posto ao pé da cama.<br />

Ali acontecia de tu<strong>do</strong>, e ninguém jamais imaginaria o nível das pessoas que freqüentavam o<br />

lugar: riquinhos, mulheres casadas, meninas de até 14 aninhos, velhas prostitutas e<br />

homossexuais enrusti<strong>do</strong>s. Zé Curió a<strong>do</strong>rava o lugar. Eu, entretanto, apesar de ter participa<strong>do</strong> de<br />

algumas orgias ali, sentia-me deprimi<strong>do</strong> e com a sensação de que estava na iminência de ser<br />

possuí<strong>do</strong> por algo muito maligno toda vez que entrava no “apê” <strong>do</strong> Dadá.<br />

Mas o cerco da morte estava apenas começan<strong>do</strong>. Um dia conheci uma menina na<br />

Universidade <strong>do</strong> Fundão, na Ilha <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r. Neto tinha i<strong>do</strong> inscrever-se para o vestibular de<br />

sociologia e me levou junto, no Bugre dele, para dar um passeio e paquerar umas gatinhas.<br />

Quan<strong>do</strong> ele subiu as escadas para fazer a inscrição, eu vi uma menina de uns vinte anos sentada<br />

sozinha, perto das grandes colunas <strong>do</strong> prédio principal.<br />

Senti que era hora de caçar. Cheguei, pedi para sentar ao seu la<strong>do</strong> e disse que estava<br />

cansan<strong>do</strong> de fazer ginástica. Então, pedi licença para deitar a cabeça no seu colo. Ela ficou tão<br />

surpresa com minha ousadia, que deixou. Trinta minutos depois Neto voltou e já nos encontrou<br />

no meio de um beijo. Marquei de ir à casa dela naquela mesma noite.<br />

A mãe de Ana era uma psicóloga louca, cheia de maconha na cabeça, e estava de viagem para a<br />

Argentina. Ela e o irmão não tinham nenhuma razão para ser melhores que a mãe. Fui entran<strong>do</strong> e<br />

ela me levou imediatamente para o quarto. Só depois de alguns minutos de sexo é que fiquei<br />

saben<strong>do</strong> quem ela era.<br />

— Olha, eu não costumo fazer o que fiz com você. Mas é que nunca conheci um cara tão<br />

<strong>do</strong>i<strong>do</strong> e ousa<strong>do</strong> quanto você. Sou noiva de um membro <strong>do</strong>s The Fevers. Estamos briga<strong>do</strong>s, mas<br />

gosto dele — ela me disse com ar de profunda respeitabilidade.<br />

Fiquei com Ana uns três dias, viajan<strong>do</strong> pelas loucuras <strong>do</strong> prazer e da droga. Mas no fim<br />

aconselhei-a a voltar para o músico da famosa banda. Dias depois eu os encontrei na casa de<br />

Dadá, onde eles tinham i<strong>do</strong> comprar cocaína, e o rapaz me agradeceu o conselho que havia da<strong>do</strong> à<br />

sua menina.<br />

— O prazer foi to<strong>do</strong> meu. Disponha sempre — disse eu, cínico e grato.<br />

O problema é que Ana me dera o telefone de uma amiga dela, Mariana, que tinha uns áci<strong>do</strong>s<br />

alucinógenos chama<strong>do</strong>s de microfilme. A droga era trazida para ela to<strong>do</strong>s os meses por um<br />

americano. Liguei para a tal Mariana e fui encontrá-la. Ela era loira, usava óculos de intelectual,<br />

falava com classe e me disse que seu pai era o chefe da segurança de Copacabana.<br />

— Beleza, assim num tem sujeira — foi o que falei ante aquela informação.<br />

Coincidentemente, o americano também estava na cidade. Pegamos o gringo num hotel no<br />

Flamengo e fomos para o Arpoa<strong>do</strong>r tomar o tal <strong>do</strong> microfilme. Tomamos juntos. Em mim a onda<br />

não foi das maiores, mas o americano começou a babar e a falar coisas que eu não entendia. Meu<br />

inglês era quase nenhum naquele tempo. De repente, eu ouvi Mariana — que falava inglês<br />

fluentemente — começar a dizer:<br />

— Aleluia! Aleluia! O anticristo nasceu. Ele está vivo e vai governar este mun<strong>do</strong>.<br />

Senti o arrepio da morte passar pela minha coluna.<br />

— O que cê tá dizen<strong>do</strong>? — perguntei nervoso e assusta<strong>do</strong>.


— O Richard acabou de receber uma revelação de Satanás dizen<strong>do</strong> que o filho dele já está<br />

neste mun<strong>do</strong> — foi a resposta assombrosa.<br />

Eu saí <strong>do</strong> carro e corri alucina<strong>do</strong> pela praia. Era como se o inferno inteiro estivesse<br />

marchan<strong>do</strong> atrás de mim. Eu gritei, chorei e pedi a Deus que jamais me deixasse viver como um<br />

filho <strong>do</strong> demônio. Eu não vivia como gente de Deus, mas eu sabia o que era viver com Ele.<br />

Daquele dia em diante, mergulhei em agonias cada vez mais intensas. Mas, infelizmente,<br />

aquilo era só o princípio das <strong>do</strong>res.


Capítulo 23<br />

“A tua mão pesava sobre mim e eu não me dava conta disto. Havia me<br />

ensurdeci<strong>do</strong> pelo fluxo barulhento de minha agitação mortal. Assim, eu viajei para<br />

muito, muito longe de Ti, e Tu não me impediste. Eu fui lança<strong>do</strong> em volta, por<br />

toda parte, cuspi<strong>do</strong> na vida, cozi<strong>do</strong> seco no cal<strong>do</strong> de minhas fornicações. Óh, meu<br />

Deus, quão lento eu fui em encontrar minha alegria. Sim, eu andava cheio de<br />

orgulho e ao mesmo tempo completamente incapaz de achar descanso na minha<br />

terrível exaustão.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

A pressão espiritual estava pesada demais. A sensação que eu tinha era a de que estava<br />

fican<strong>do</strong> louco. Ouvia meu nome sen<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> por ninguém na rua e lutava contra uma terrível<br />

sensação de morte que borboleteava dentro <strong>do</strong> meu peito. Por vezes, eu subia à laje <strong>do</strong> dúplex<br />

onde eu morava com Neto e ficava olhan<strong>do</strong> de cima para baixo, com quase metade <strong>do</strong>s pés para<br />

fora <strong>do</strong> 14 o andar, imaginan<strong>do</strong> — <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que eu fizera aos dez anos na rua Sá Ferreira<br />

— o que aconteceria se eu pulasse.<br />

O significa<strong>do</strong> da morte era a minha questão.<br />

E minha sensação de desgraça interior cresceu ainda mais com um episódio isola<strong>do</strong> que<br />

aconteceu numa tarde, mas que posteriormente me devastou a alma.<br />

No meio das “guerras de Manaus”, no fim de 1972, Neto tinha fica<strong>do</strong> deven<strong>do</strong> uma surra a<br />

um rapaz que havia engana<strong>do</strong> Liliane, a americana-amazonense que ele tomara de Alipinho. Era<br />

um sujeito grandão, chama<strong>do</strong> Adri. A mãe de Liliane havia dito que Adri tinha se “apropria<strong>do</strong><br />

indevidamente” de uma prataria dela e Neto respondera que a prataria “iria voltar por bem ou por<br />

mal”.<br />

Em Manaus não tinha da<strong>do</strong> para acertar com Adri, pois o caso seria visto como covardia <strong>do</strong><br />

mestre de jiu-jítsu. Mas, em Copacabana, ninguém queria saber quem era quem.<br />

Adri estava no Rio passan<strong>do</strong> o verão e eu encontrei com ele no píer de Ipanema. Aproveitan<strong>do</strong><br />

a oportunidade, disse para ele me visitar na rua Aires Saldanha e dei o endereço <strong>do</strong> Neto. Depois,<br />

fui para o faixa preta de jiu-jítsu e perguntei: “Cê ainda qué pegá o Adri?”, e entreguei o<br />

grandalhão de quase <strong>do</strong>is metros de altura de mão-beijada para Neto. À hora marcada, eu sentei<br />

na frente <strong>do</strong> edifício, em cima de um carro. Neto estava escondi<strong>do</strong> na garagem. Seu Adri, como o<br />

chamávamos, apareceu, ergueu o braço fazen<strong>do</strong> o V de paz e amor com os de<strong>do</strong>s da mão e sorriu<br />

para mim.<br />

— Fica aqui que tem uma gatinha queren<strong>do</strong> te dar uns beijinhos — eu disse quan<strong>do</strong> ele


chegou bem pertinho.<br />

Aí o Neto correu da garagem, deu uma baiana no grandalhão, sentou em cima dele e bateu só<br />

“um pouquinho”, mas o suficiente para conseguir o seu objetivo de intimidação. Não arrebentou<br />

o rapaz, porém o humilhou em público.<br />

— Você vai voltar pra Manaus e vai devolver tu<strong>do</strong> o que cê pegou da minha mulher. Tem um<br />

mês pra fazer isso. Se ela me disser que cê num fez nada, man<strong>do</strong> alguém de lá mesmo te finalizar<br />

— ameaçou.<br />

Adri foi embora, choran<strong>do</strong> de vergonha, <strong>do</strong> alto de seus 24 anos e <strong>do</strong> seu metro e noventa de<br />

altura. Então Neto olhou para mim e disse algo que me perturbou imensamente.<br />

— Cê sabe, o Dadá é mau-caráter. O Zé Curió é bom-caráter, apesar de tu<strong>do</strong>. Mas você,<br />

bicho, você é sem caráter. Vejo você parar pra dar tua fruta pras mães que pedem comida para os<br />

filhos na esquina. Mas vejo você fazer uma safadeza dessas. Eu tenho me<strong>do</strong> de você, bicho. Cê tá<br />

fican<strong>do</strong> perigoso, seu Macunaíma — ele falou com voz suave, mas em tom agressivo.<br />

Vindas de Neto — meu guru e mentor —, aquelas palavras me arrebentaram. Será mesmo<br />

que alguma coisa muito ruim tinha me muda<strong>do</strong> de vez? Será que eu havia perdi<strong>do</strong> a minha alma?<br />

Não fosse uma outra tarde daquele verão, acho que teria enlouqueci<strong>do</strong>. Estava em pé na<br />

esquina da Bolívar, por volta das duas da tarde, quan<strong>do</strong> vi um conheci<strong>do</strong> da praia passar com uma<br />

mulher que me arrebatou os senti<strong>do</strong>s. Ele era conheci<strong>do</strong> por ser louco e por ter si<strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> de<br />

envolvimento na morte de Aída Cúri, vítima de um crime famosíssimo uma década antes. O<br />

pessoal dizia que ele era capaz de tu<strong>do</strong>, pois quan<strong>do</strong> bebia ficava completamente fora de controle.<br />

Mesmo ten<strong>do</strong> me<strong>do</strong> <strong>do</strong> Barão — como o chamavam —, decidi que aquela mulher valia qualquer<br />

risco.<br />

Aproximei-me como quem não quer nada e comecei a conversar com ele, propositadamente<br />

ignoran<strong>do</strong> a mulher. Fui tão desinteressa<strong>do</strong> por ela, que ele acabou me convidan<strong>do</strong> para tomar<br />

uma cerveja com os <strong>do</strong>is no Cabral 1500. Quan<strong>do</strong> sentei à mesa, já sabia que a mulher não seria<br />

mais dele daquela tarde em diante.<br />

Mira era paulista e tinha uns 22 anos. Portanto, era uns quatro anos mais velha <strong>do</strong> que eu.<br />

Morena clara, tinha olhos iluminadamente castanhos e cabelos finos, leves, que se agitavam ao<br />

vento. O corpo da mulher era grande, cheio, generoso de espaços, extravagantemente sedutor.<br />

Uma vez senta<strong>do</strong>s, comecei logo a jogar charme para ela. Eram olhadas rapidíssimas que<br />

diziam tu<strong>do</strong>. Então Barão levantou e foi ao banheiro. Era tu<strong>do</strong> o que eu queria. Toquei nela por<br />

debaixo da mesa e disse que não sabia o que faria se ela não me encontrasse naquela noite. Ela<br />

apenas me devolveu o toque no mesmo lugar e escreveu o telefone num pedaço de guardanapo.<br />

Ficamos quase a noite toda juntos, no apartamento de um amigo de Manaus, o Renatinho<br />

Fradera. No dia seguinte, fiquei saben<strong>do</strong> que ela era sobrinha de um cara que tinha fama de ser o<br />

político civil mais forte <strong>do</strong> regime militar. E mais: ela estava moran<strong>do</strong> numa cobertura que um<br />

famoso diretor de cinema havia empresta<strong>do</strong> ao tio dela. Fui direto para lá. Estava com me<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Barão, mas certo de que queria pagar o preço da aventura.<br />

Fomos a to<strong>do</strong>s os bailes da cidade de graça. Bastava dizer quem era o tio dela e as portas se<br />

abriam. A mãe de Mira, por sua vez, parecia estar perfeitamente confortável com a situação. Veio<br />

de São Paulo e foi apresentada a mim. Conversei sobre família, como bom garoto, e ela me disse<br />

que era presbiteriana.<br />

— Eu também — afirmei cheio de moral.<br />

— É mesmo? Qual é a sua igreja? — perguntou.<br />

— Bem, no momento an<strong>do</strong> meio distante, mas meu pai é um bom <strong>pastor</strong>. Um cara da pesada<br />

com Deus — afirmei com certo orgulho.<br />

Ela foi à praia e nos deixou à vontade, e nós nos entregamos aos prazeres que cabem nas


camas das melhores famílias, especialmente de <strong>do</strong>is crentes distantes de Deus e <strong>do</strong>s princípios<br />

da fé.<br />

Eu me apaixonei por Mira e não queria nem pensar na idéia de que no fim de fevereiro de<br />

1973 ela voltaria para casa. A relação foi se tornan<strong>do</strong> intensa, obsessiva, dependente, meio sádica,<br />

mergulhan<strong>do</strong> na <strong>do</strong>ença. Quan<strong>do</strong> chegou a hora da despedida, choramos juntos. Ela foi, e eu me<br />

desarvorei de <strong>do</strong>r. Mas uma semana depois ela voltou, desesperada. Disse que não podia viver<br />

sem mim, que tinha fala<strong>do</strong> com a mãe e que queria casar comigo. Eu aceitei. Para mim, tanto<br />

fazia. Casar ou não casar não significava nada, afinal. Disse para ela que eu iria a Manaus resolver<br />

umas coisas e então a encontraria em São Paulo, no máximo até abril.<br />

Naquele fim de semana fui a Niterói ver Téo, Cecé e os amigos. Quan<strong>do</strong> voltei, na<br />

segunda-feira, ninguém estava lá no Cabral 1500, na Aires Saldanha ou na Miguel Lemos. To<strong>do</strong>s<br />

haviam desapareci<strong>do</strong>. E Neto tinha i<strong>do</strong> para a Bahia sem me levar com ele.<br />

Quis saber o que havia aconteci<strong>do</strong>, mas as pessoas estavam esquivas, não queriam conversar<br />

comigo. Até que um amigo me disse: “Sai daqui que os homens tão aí. Dançou to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>:<br />

Dadá, Zé Curió, a turma da Miguel Lemos, os meninos <strong>do</strong> Cabral, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, bicho. Trinta e<br />

seis caras. Tu num foi porque num tava aqui. Mas eles tão vin<strong>do</strong> passar o pente fino. Corre, cara.”<br />

Eu fiquei completamente desorienta<strong>do</strong> com a notícia da prisão de Curió. Não tinha para onde<br />

ir, pois soube depois que Neto havia i<strong>do</strong> para a Bahia com muita raiva de mim porque uma<br />

menina com quem ele saía de vez em quan<strong>do</strong> tinha dito a ele que eu tentara cantá-la, o que,<br />

naquele caso, não era verdade. Ele nunca falou comigo sobre o assunto, mas ficou magoa<strong>do</strong>.<br />

Ainda fiquei na área uma semana, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> nas areias de Copacabana e Ipanema e<br />

acordan<strong>do</strong> com o ar<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sol no meu rosto todas as manhãs. Comia o que me davam ou roubava<br />

tomates e frutas na feira para encher a barriga, e tomava banho nas garagens <strong>do</strong>s edifícios.<br />

Comecei a me sentir um mendigo. E três dentes meus começaram a dar sinal de apodrecimento.<br />

Ora, aquilo eu não podia admitir. Eu sempre me orgulhara imensamente da saúde de minha<br />

dentição.<br />

Nesse meio-tempo, chegou o carnaval. Não ten<strong>do</strong> para onde ir e faminto, aceitei o convite de<br />

um certo Zé Roberto, moço alto e rico, para ir passar o carnaval na casa de uns amigos dele em<br />

Búzios. Eram seis da tarde <strong>do</strong> sába<strong>do</strong> de carnaval quan<strong>do</strong> saímos. No caminho, resolvemos tomar<br />

uma anfetamina argentina. Tomei 17 e comecei a morrer. Meu coração disparou como nunca<br />

antes. Parecia que o peito ia estourar. A vista escureceu, eu caí para trás no banco <strong>do</strong> carro <strong>do</strong><br />

rapaz e não me mexi até meia-noite. Não sabia se estava vivo ou morto. Minha alma estava morta.<br />

Levantei aos poucos, feito um zumbi. Quan<strong>do</strong> Zé Roberto percebeu que eu não morreria, tomou<br />

a estrada e foi para a casa de Paulinho Imperial, na praia de Búzios. Ficamos naquela região até<br />

quarta-feira, sem mulher, mas com muita droga. Tomei trinta anfetaminas nos três dias que<br />

estive ali e não <strong>do</strong>rmi uma única noite. Voltei de Búzios com o gosto da morte na boca.<br />

Depois de tu<strong>do</strong> isso, cheguei à conclusão de que, se ficasse no Rio, seria preso ou viraria<br />

mendigo. Portanto, mesmo extremamente acanha<strong>do</strong>, fui direto para a casa da tia Bernadete, na<br />

rua Anita Garibaldi. De lá, liguei para papai e pedi para voltar para casa. Ele me man<strong>do</strong>u ir para a<br />

casa <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> Antônio Elias, em Niterói, para esperar que conseguisse o dinheiro e pudesse<br />

mandar a passagem.<br />

Em Niterói, eu continuei o processo de angústia de alma, mas agregou-se à minha <strong>do</strong>r um<br />

elemento de natureza moral. Ficar na casa <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> Antônio Elias fazia-me mal, pois lá to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> estudava, lia jornal e podia ler Mad em inglês, menos eu. Mesmo os mais <strong>do</strong>i<strong>do</strong>s, como<br />

Cecé e Lucilia, tinham rotina de vida, mas eu não. As únicas coisas que eu fiz naquele perío<strong>do</strong> de<br />

espera, que veio a durar 45 dias, foi ir à academia <strong>do</strong> Carson Gracie, em Niterói, para treinar com<br />

ele e Serginho; correr na praia de São Francisco, fumar um basea<strong>do</strong> no fim <strong>do</strong> dia, fazer uns


quinhentos apoios antes de ir para a cama e passar a noite toda em claro, absolutamente insone,<br />

pulan<strong>do</strong> fora <strong>do</strong> leito com raiva e fazen<strong>do</strong> ab<strong>do</strong>minais até a exaustão.<br />

Tu<strong>do</strong> o que eu queria era que a tal da passagem chegasse logo e que eu pudesse ir para<br />

Manaus. Aí eu me perguntava: “Que qui cê vai fazer em Manaus, bicho? Cê já tá aqui, por que<br />

num vai logo vê a mina em São Paulo?” O fato é que eu não tinha resposta para a minha<br />

necessidade de voltar a Manaus. Eu não tinha nada lá. A família era um detalhe emocional na<br />

minha vida e história, por que então voltar? Eu não sabia responder.<br />

Quan<strong>do</strong> tio Renato <strong>Fábio</strong> me telefonou dizen<strong>do</strong> que a passagem estava disponível, juntei<br />

meus trapos e fui para a casa dele em Copacabana. Fiquei no mesmo quarto em eu havia <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong><br />

oito anos antes, quan<strong>do</strong> chegara de Manaus no meio da depressão que nossa família vivera. As<br />

recordações daqueles sentimentos não me deixaram <strong>do</strong>rmir, além <strong>do</strong> que os o<strong>do</strong>res concentra<strong>do</strong>s<br />

nos porões <strong>do</strong>s eleva<strong>do</strong>res eram ainda os mesmos. Por isso, com mais força ainda, a minha<br />

desgraçada olfatividade remeteu-me a uma viagem onde muitos personagens e emoções<br />

reavivaram-se com extrema força, inclusive meus pais.<br />

Às cinco da manhã tio Renato me acor<strong>do</strong>u de minha insônia e me levou no seu DKV até o<br />

Galeão. Viajei oito horas e cheguei a Manaus às quatro horas da tarde. Fui o último a sair <strong>do</strong> avião.<br />

Minhas mãos estavam geladas e eu me sentia como se tivesse de brigar uma “briga contratada”,<br />

com hora e lugar marca<strong>do</strong>s. Só não sabia quem seriam os adversários. Aliás, se eles estivessem lá,<br />

não saberia como enfrentá-los e, se não estivessem, não saberia como enfrentar-me. Sentia me<strong>do</strong><br />

de que estivessem e pavor de que não estivessem.<br />

Eles estavam enfileira<strong>do</strong>s. Aninha, Luiz, Suely, mamãe e papai. Do mais novo ao mais velho.<br />

Era uma interessante escada de emoções. Ia de alguém por quem não tinha nenhum<br />

ressentimento, a Aninha; até aquele por quem eu não sabia mais o que sentia, papai. As mulheres<br />

choravam. Luiz estava páli<strong>do</strong> e cala<strong>do</strong>, seu mo<strong>do</strong> discreto de dizer que estava abaladíssimo. E<br />

papai se mostrava estranho. De um la<strong>do</strong> estava feliz, transparecia isso nos olhos; mas de outro<br />

la<strong>do</strong> se revelava nervoso, com as mãos suadas e os lábios um tanto sem cor. Parecia que ele não<br />

conseguia ficar sem se encher de esperança com minha volta, mas ao mesmo tempo estava<br />

apavora<strong>do</strong> de que eu tivesse volta<strong>do</strong> apenas para viver novas loucuras e assim morrer<br />

precocemente.


PARTE II<br />

<strong>Confissões</strong> de Dúvida e Fé


Capítulo 24<br />

“Tu estavas comigo, misericordiosamente me punin<strong>do</strong>, tocan<strong>do</strong> sempre com um<br />

gosto amargo to<strong>do</strong>s os meus prazeres ilícitos. Tua intenção, ao assim fazeres, era<br />

que eu encontrasse prazer não nos deleites poluí<strong>do</strong>s pelo desgosto e que, na minha<br />

busca por alcançar alegria, eu descobrisse que é só em Ti, Senhor, que está a fonte<br />

de tu<strong>do</strong>. Desse mo<strong>do</strong>, Tu me designaste a <strong>do</strong>r como lição; Tu me feriste para<br />

poderes me curar; e tu me trouxeste ao portão da morte a fim de que na presença<br />

dela eu me convertesse, e assim não morresse longe de tua face.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Voltei para casa queren<strong>do</strong> encontrar o caminho da normalidade de comportamento e<br />

conduta. Mesmo que dizen<strong>do</strong> aos amigos que até o fim de abril estaria de volta ao sudeste, mais<br />

precisamente a São Paulo, no fun<strong>do</strong>, sabia que estava tentan<strong>do</strong> me enganar com aquela história.<br />

Foi logo nas primeiras semanas de volta a Manaus que recebi o primeiro telegrama de Mira:<br />

“Meu amor, quan<strong>do</strong> é que você vem para São Paulo? Me escreva.” Não consegui responder. E<br />

veio o segun<strong>do</strong>: “O que está acontecen<strong>do</strong>? Você não me responde. Estou ansiosa.” Não respondi,<br />

e ela nunca mais escreveu nada. De fato, nós éramos apenas <strong>do</strong>is jovens confusos e perdi<strong>do</strong>s<br />

existencialmente, nutrin<strong>do</strong> esperança de “encontro” um no outro. Mas não havia entre nós nada<br />

mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> que lembranças de sexo arrebata<strong>do</strong>r.<br />

A vida em Manaus havia muda<strong>do</strong>. A cidade não era mais a mesma. As turmas haviam se<br />

desmantela<strong>do</strong> e os grupos de relacionamento viviam agora um novo processo de busca de<br />

identificação e confiança. Os eventos <strong>do</strong> final de 1972 haviam ti<strong>do</strong> um poder devasta<strong>do</strong>r na mente<br />

de muitos daqueles garotos e garotas <strong>do</strong>s círculos da alta sociedade.<br />

Os primeiros dias depois de minha volta tiveram, contu<strong>do</strong>, uma marca espiritual<br />

perturba<strong>do</strong>ra na minha mente, pois numa daquelas noites sonhei com algo que me possuía. A<br />

impressão que me ficou foi a de que, no meu inconsciente, um filme tinha si<strong>do</strong> roda<strong>do</strong> com uma<br />

“malha amarela em frente à lente da câmara”. Era como se o sonho-filme estivesse<br />

artisticamente envelheci<strong>do</strong> e a luz ali presente fosse de “um amarelo urbano”, cheio de<br />

melancolia, como o das ruas de Manchester, na Inglaterra. Uma cobra deslizava, leve e sutil,<br />

sobre o chão <strong>do</strong> ambiente, que, em si mesmo, era completamente indefini<strong>do</strong>. De súbito, a cobra<br />

deu o bote sobre mim, se enroscou em meu braço esquer<strong>do</strong> e me mordeu. Ao receber o seu<br />

veneno, imediatamente minha visão ficou amarela, o que me deu a certeza de que eu começava a<br />

morrer. No dia seguinte, contei o sonho à minha mãe.<br />

— Meu filho, na Bíblia, o amarelo, relaciona<strong>do</strong> a animais, é símbolo de morte. O cavalo


amarelo <strong>do</strong> Apocalipse é a morte — ela disse. — <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, sei que você não gosta de ouvir, mas<br />

Deus está tentan<strong>do</strong> falar com você sobre o caminho de morte no qual você está andan<strong>do</strong> —<br />

concluiu.<br />

Estranhamente, daquela vez eu não disse nada. Dei as costas a ela, pulei na moto e fui<br />

embora, porém com a mente impregnada com as imagens aterrorizantes daquele cinema <strong>do</strong><br />

inconsciente.<br />

Minha busca de inserção social acentuou-se. Ser como to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tornou-se um alvo para<br />

mim. Mas meu desejo de normalidade resumia-se em alcançar algumas coisas básicas: voltaria a<br />

estudar, conseguiria um emprego, arranjaria uma namoradinha de portão e usaria drogas de<br />

mo<strong>do</strong> muito controla<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> que durante a semana fumaria apenas maconha, e somente à<br />

noite, antes de <strong>do</strong>rmir.<br />

Não foi difícil conseguir voltar à escola — havia incentivo e ajuda de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. O<br />

emprego, entretanto, não apareceu. Aliás, eu nem procurei. Já as namoradinhas de portão<br />

surgiram com extrema facilidade e, naquela época, visitei pelo menos <strong>do</strong>is portões a cada semana.<br />

O problema eram as drogas, pois havia um latejante desespero crescen<strong>do</strong> dentro de mim. Era<br />

um sentimento de perdição, de total inadequação à sociedade e ao mun<strong>do</strong>. E mais que isto: sentia<br />

um esmagamento espiritual achatan<strong>do</strong> a minha alma. Era como se estivesse priva<strong>do</strong> de to<strong>do</strong><br />

prazer. Não havia nada que me desse satisfação. O gosto <strong>do</strong> desgosto era marcante e permanente,<br />

além <strong>do</strong> que era como se aquelas experiências espirituais vividas no Rio continuassem a reboar<br />

com seus sons e angústias dentro de mim, de mo<strong>do</strong> ininterrupto.<br />

Como os únicos amigos de compromisso incondicional estavam no Rio — Zé Curió, preso na<br />

Ilha Grande, e Nego Aires, curtin<strong>do</strong> nas praias —, sobrou-me muito pouca gente na cidade em<br />

quem eu podia confiar e ter certeza que não me entregaria para aqueles que desejavam acertar<br />

contas comigo. De fato, dentre os homens de meu relacionamento, os únicos que eu sabia que<br />

não me fariam mal eram os meus primos João <strong>Fábio</strong> e José <strong>Fábio</strong>, com quem passei a andar. As<br />

saídas com eles muitas vezes tomavam o caminho <strong>do</strong> interior, para longe de Manaus, na direção<br />

de Itacoatiara, a cerca de trezentos quilômetros da capital.<br />

Foi numa daquelas viagens para lá que me deparei com um espetáculo único no planeta. José<br />

<strong>Fábio</strong> dirigia um Fusca com cerca de dez anos de uso, porém bem conserva<strong>do</strong>. Nós éramos cinco<br />

pessoas ao to<strong>do</strong>. Chovia fino, embora com extrema insistência. Uma neblina baixa caíra sobre a<br />

estrada de piçarra pedregosa, que, de tanta água, já se transformara em pura lama. Por isso, o<br />

carro deslizava de um la<strong>do</strong> para o outro da pista, enquanto nós ríamos como se estivéssemos<br />

brincan<strong>do</strong> num parque de diversões. A noite já se avizinhava, de tal mo<strong>do</strong> que os faróis <strong>do</strong> carro<br />

estavam acesos.<br />

— Meu Deus, é um tronco? Não! É uma cobra — foi o que ouvimos de repente, bem no meio<br />

de uma curva, enquanto José, perplexo, nos fitava com os olhos arregala<strong>do</strong>s.<br />

— Nããããooo! Não passa por cima dessa bicha — gritei apavora<strong>do</strong> e, num reflexo, puxei os<br />

pés para cima <strong>do</strong> banco dentro <strong>do</strong> carro, como se entre nós e a estrada não houvesse a lâmina<br />

blindada <strong>do</strong> Fusca.<br />

Brum, brum, foi o que ouvimos quan<strong>do</strong> o veículo bateu duas vezes contra uma lombada de<br />

músculos que se revolvia de uma extremidade à outra da estrada.<br />

Paramos uns trinta metros adiante. Manobramos o carro e ficamos de frente, ven<strong>do</strong> aquela<br />

enormidade de réptil mover-se lenta e soberanamente, no meio <strong>do</strong> caminho.<br />

Vun, vun, vun, Zé <strong>Fábio</strong> aqueceu o acelera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> carro outra vez.<br />

— Não vai, bicho, porque se a gente num passar, essa cobra estrangula esse Fusca. Ela é<br />

descomunal — eu disse, tentan<strong>do</strong> dissuadi-lo <strong>do</strong> desejo de dirigir por cima dela mais uma vez.<br />

— Na primeira vez a gente rolou por cima porque a gente vinha no embalo. Agora, é


perigoso, Zé. A gente num tem velocidade — disse um <strong>do</strong>s rapazes no banco de trás.<br />

— Que nada. Eu vou atropelar essa bicha — disse nosso destemi<strong>do</strong> motorista, partin<strong>do</strong> para<br />

o ataque. Dessa segunda vez, já nos foi possível sentir o balanço da subida e da descida de cada<br />

roda.<br />

— Hum! Que nojo, cara — eu disse, agora com mais repugnância <strong>do</strong> que me<strong>do</strong>.<br />

Depois de manobrar o carro mais uma vez, nós ficamos ali, dentro <strong>do</strong> carro, ven<strong>do</strong> aquele<br />

animal imenso descer o barranco no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> nível mais íngreme na lateral da estrada.<br />

— Vamos ver que tamanho ela tinha — disse Zé <strong>Fábio</strong>. — Ela raspou no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> carro —<br />

ele prosseguiu — e ficou com o rabo de um la<strong>do</strong> e a cabeça <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> caminho. — Então,<br />

medimos a altura entre o Fusca e o chão, bem como a largura da estrada de um la<strong>do</strong> ao outro.<br />

— Cara, que monstro. Um palmo e meio de altura e onze metros de comprimento — meu<br />

primo concluiu. — Num vamos falar sobre isso lá em Itacoatiara pra ninguém dizer que nós<br />

estamos loucos. Tô falan<strong>do</strong> sério. Vai pegar mal — ele disse com seriedade. Concordamos to<strong>do</strong>s,<br />

mas, quan<strong>do</strong> chegamos lá, eu não resisti. Ven<strong>do</strong> um monte de meninas numa das praças, fui logo<br />

até lá venden<strong>do</strong> aventura e contan<strong>do</strong> aquela história de pesca<strong>do</strong>r.<br />

— Cê tá é muito <strong>do</strong>i<strong>do</strong>, bicho. Que foi que tu tomou, cara — me disse Tibério, um maluco<br />

da cidade que eu conhecia de outros carnavais.<br />

— Eu disse que num ia dá certo, num disse? — perguntou com um tom crítico o careta e<br />

pondera<strong>do</strong> José <strong>Fábio</strong>.<br />

A tentativa de “bom-mocismo” continuou. Mas como tinha feito muitos inimigos e também<br />

por causa <strong>do</strong> me<strong>do</strong> permanente de ser traí<strong>do</strong> por algum amigo de araque, mantinha o jiu-jítsu<br />

“em cima”, treinan<strong>do</strong> o máximo que podia com um luta<strong>do</strong>r conheci<strong>do</strong> na cidade, chama<strong>do</strong><br />

Espartacus. “Assim”, pensava, “quan<strong>do</strong> eles caírem dentro, eu vou estar prepara<strong>do</strong> pra<br />

arrebentar.”<br />

A minha decepção comigo mesmo aconteceu logo no final <strong>do</strong> primeiro mês. Era abril e eu<br />

concluía que não dava para ser normal. Os estu<strong>do</strong>s eram maçantes. Entrava na Escola Técnica<br />

Federal apenas para <strong>do</strong>rmir das 13 às 17 horas. As meninas de portão eram tediosas, chatas,<br />

insuportáveis. E as drogas eram irresistíveis, sedutoras e me faziam esquecer minha falta de<br />

senti<strong>do</strong> para viver. De repente, me vi jogan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> para o alto e partin<strong>do</strong> para aquela desgraçada<br />

forma de existência. Parecia um carma. Era como se não houvesse nenhum caminho para fora<br />

daquilo. Estava encurrala<strong>do</strong>.<br />

Até que numa noite, no início de maio, eu estava andan<strong>do</strong> de moto solitariamente, aí por volta<br />

das 22 horas, quan<strong>do</strong> vi uma mulher morena, de corpo grande e bem-feito, olhos negros<br />

profun<strong>do</strong>s e cabelos nanquim, de tão pretos que eram, desfilan<strong>do</strong> na penumbra, sem me<strong>do</strong>,<br />

provocativa e segura. Ela parecia ser adulta e madura, e eu jamais a vira antes. Percebi que houve<br />

uma certa faísca quan<strong>do</strong> nossos olhares se cruzaram. Parei imediatamente, fiz a volta e encostei<br />

na calçada, a um metro <strong>do</strong> ponto em que ela estava.<br />

— Cê é linda demais pra tá andan<strong>do</strong> sozinha aqui na Getúlio Vargas uma hora dessas. Deixa<br />

eu te levar pra casa. Eu prometo que cê vai gostar — disse com a certeza de quem sabia que,<br />

apesar dela parecer tão séria, o papo iria colar. Estava apostan<strong>do</strong> na faísca que vira nos olhos dela.<br />

Ela não disse nada. Não fez qualquer comentário positivo ou negativo. An<strong>do</strong>u solenemente na<br />

direção da moto, prendeu a saia e montou.<br />

— Me leva pra onde você quiser — disse.<br />

Fiquei abobalha<strong>do</strong> com sua resposta e, ao mesmo tempo, incendia<strong>do</strong> de desejo. Fomos para<br />

um motel recém-inaugura<strong>do</strong> nas proximidades <strong>do</strong> aeroporto Internacional de Manaus e só<br />

quan<strong>do</strong> chegamos ao quarto ela falou.<br />

— Sou noiva, vou casar no mês que vem e não quero arruinar meu futuro. Tô aqui só porque


queria te experimentar. Sou amiga de umas meninas que já saíram contigo e sempre quis sair<br />

também. Mas quan<strong>do</strong> a gente sair daqui, você me deixa onde me pegou e não vai jamais saber<br />

meu nome, quem sou ou onde moro, OK? — declarou quase como se fosse um roteiro de filme.<br />

— OK! Se é assim que cê quer, que seja assim — respondi guloso e disposto a viver aqueles<br />

momentos com intensidade, a fim de “beijar daquela vez como se fosse a última”, diria Chico<br />

Buarque.<br />

Ficamos ali apenas umas duas horas. O suficiente para que o mistério da situação iniciasse<br />

em mim o prelúdio de uma paixão. Queria saber quem ela era. Mesmo nos clímax das emoções<br />

vividas naquelas duas horas, eu haveria de pedir, de implorar.<br />

— Me diz teu nome. Me diz teu nome! — eu suplicava, quase em preces. Ela ficava agitada<br />

de tentação para falar, mas não dizia, o que me seduzia ainda mais.<br />

Ao fim daquelas duas horas, deixei-a na mesma calçada da rua Getúlio Vargas. Ela saiu da<br />

garupa, me beijou, sorriu para sempre, atravessou a rua, parou um táxi e desapareceu para toda a<br />

vida.<br />

Choca<strong>do</strong>, fiquei pensan<strong>do</strong> que a existência estava me pregan<strong>do</strong> uma peça e que não havia<br />

nada que eu pudesse fazer para impedir. Nunca a vira antes e, talvez, jamais a visse depois. No<br />

entanto, ela plantara em mim uma estranha semente. Não era paixão, nem sequer um broto <strong>do</strong><br />

amor. Era a sedução <strong>do</strong> mistério, <strong>do</strong> inacessível, <strong>do</strong> proibi<strong>do</strong> e daquilo que se cobre de véu e se<br />

recusa a fazer apocalipse, “revelação”. Nunca mais a vi, até hoje.<br />

Fiquei com raiva. Virei a moto contra o fluxo de carros, acelerei, fechei os olhos e pedi para<br />

morrer. Corri uns vinte segun<strong>do</strong>s de olhos fecha<strong>do</strong>s. Senti alguns automóveis se desviarem de<br />

mim. “Seu idiota, seu maluco, seu....”, eram as expressões que eu ouvia. Depois que achei que<br />

tinha da<strong>do</strong> tempo suficiente ao destino para me liquidar, reassumi o controle e fui procurar o Zé<br />

<strong>Fábio</strong>, meu primo. Disse a ele apenas que tinha saí<strong>do</strong> com uma mulher estranha e extraordinária.<br />

Zé <strong>Fábio</strong> não era de muitas palavras. Apenas deu um sorriso e disse: “Tu num toma jeito cara, só<br />

vive apaixona<strong>do</strong>.”<br />

A experiência com a mulher sem nome, sem endereço, sem passa<strong>do</strong> e sem futuro fez muito<br />

mal a mim. Para a maioria <strong>do</strong>s homens que ouvisse a história, eu tinha saí<strong>do</strong> no lucro. Possuí sem<br />

precisar pagar a conta, e o noivo dela não a conhecia como eu, um estranho, a conhecera. Que<br />

vantagem!<br />

Mas para mim a interpretação já não era aquela. De algum mo<strong>do</strong>, mesmo sem saber por que<br />

ou quan<strong>do</strong> começara, meu interior estava em profunda mudança. Já não me satisfazia dizer como<br />

coisas tão incríveis aconteciam comigo, de graça. Lá no fun<strong>do</strong>, já não era isso que eu desejava. De<br />

fato, queria conhecer alguém e mergulhar nas águas de um relacionamento que tivesse começo,<br />

meio e, se possível, não tivesse fim. Portanto, a “mulher da rua Getúlio Vargas” apenas acentuou<br />

aquele sentimento de que a vida não estava me oferecen<strong>do</strong> nada consistente e dura<strong>do</strong>uro. Já não<br />

me sentia como um garanhão, aproveita<strong>do</strong>r de mulheres. Estava começan<strong>do</strong> a me sentir usa<strong>do</strong> e<br />

não como aquele que usufruía <strong>do</strong>s prazeres. E o sentimento era confuso para mim, pois gritava<br />

por profundidade, embora eu amasse os vínculos passageiros. Essa era minha perdição: desejar<br />

aquilo que mais me fazia mal.<br />

E foi na tentativa banal de usar sem ser usa<strong>do</strong>, que peguei duas garotinhas de programa numa<br />

noite de <strong>do</strong>mingo. Naquele tempo, papai estava inician<strong>do</strong> o <strong>pastor</strong>eio na Igreja Presbiteriana<br />

Central de Manaus e havia um lugar nos fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> templo, onde tu<strong>do</strong> poderia acontecer sem que<br />

ninguém notasse. No tal lugar havia cama e banheiro, e isso era mais <strong>do</strong> que eu precisava. Sabia<br />

que depois das dez da noite ninguém aparecia por lá. E mais: sabia como entrar “na igreja” e não<br />

hesitei em levar as meninas para aquele lugar de culto. Assim, fiz sexo com elas num lugar que eu<br />

considerava sagra<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> as levei de volta à praça onde as havia encontra<strong>do</strong>, meu coração


estava pesa<strong>do</strong> e minha consciência descarnada, tomada por uma culpa que eu até então<br />

desconhecia. Era a culpa da profanação e <strong>do</strong> sacrilégio, e suas raízes estavam plantadas nos<br />

porões de minha alma e se ancoravam em to<strong>do</strong>s os ensinos sobre a santidade de lugares<br />

dedica<strong>do</strong>s a Deus que ouvira desde a infância.<br />

Aquela experiência meteu em mim um ferrão aceso com as brasas de uma culpa para a qual<br />

eu não conhecia alívio nem expiação. Assim, introduziu-me em profun<strong>do</strong>s questionamentos<br />

sobre o valor de minha busca de prazer a qualquer custo, especialmente porque agora eu estava<br />

pagan<strong>do</strong> a aventura até mesmo com o devasta<strong>do</strong>r preço da profanação.<br />

Foi nesse ponto que concluí que há um limite radical para que as pessoas possam sentir<br />

prazer. E este limite é o <strong>do</strong> “valor pessoal”. Na hora em que o prazer vem junto com o desvalor,<br />

ele paga apenas com a reação química que nasce na animalidade, no corpo. É a certeza <strong>do</strong> valor<br />

de ser o que remete a experiência <strong>do</strong> prazer para a alma, para o espírito e para a dimensão<br />

semi-religiosa, onde prazer e senti<strong>do</strong> se confundem. E, definitivamente, não era esse o meu caso.<br />

Estava constrangi<strong>do</strong> com minha excessiva animalidade e começan<strong>do</strong> a desejar ser homem e viver<br />

para além da química orgânica uma experiência de encontro com minha alma. Mas foi<br />

justamente aí que me poluí com as manchas da profanação <strong>do</strong> lugar santo.<br />

Naquele mês de maio de 1973 eu me desarvorei. Comecei a fumar até quatorze basea<strong>do</strong>s por<br />

dia. Passei a maior parte <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> na casa de tio Carlos, onde era sempre recebi<strong>do</strong><br />

com extremo amor pelos meus tios, primos e primas.<br />

Chegava lá to<strong>do</strong>s os dias em torno de meia-noite, deitava num colchonete que Zé <strong>Fábio</strong><br />

deixava ao la<strong>do</strong> da cama dele, e só sentia sono quan<strong>do</strong> meus primos estavam levantan<strong>do</strong> para ir à<br />

escola. Depois disso, <strong>do</strong>rmia até às onze da manhã, levantava e logo apertava e fumava um<br />

basea<strong>do</strong> na varanda da casa. Em seguida, descia, ia até o bar de seu Raimun<strong>do</strong> e pedia uma<br />

talagada de cachaça, bem branca, fazen<strong>do</strong> o sinal <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is de<strong>do</strong>s de marinheiro: o indica<strong>do</strong>r e o<br />

mínimo espaçadamente abertos, manten<strong>do</strong> os de<strong>do</strong>s maior-de-to<strong>do</strong>s e anelar presos para trás. E<br />

lá vinha a bicha, queiman<strong>do</strong>. Com o estômago vazio, aquilo parecia soda cáustica e tentativa de<br />

suicídio.<br />

Depois de uma ou duas <strong>do</strong>ses, eu atravessava a rua <strong>do</strong>idão, entrava na cozinha de tia Délia e<br />

pedia para comer um pão e tomar um cafezinho. Acendia uns três Continentais sem filtro e<br />

fumava um atrás <strong>do</strong> outro. Aí sim, devidamente acorda<strong>do</strong>, saía para mais um dia de loucura e<br />

busca ansiosa da morte. Mas a morte fugia de mim.<br />

Foi no final de maio que passei na porta <strong>do</strong> Colégio Cristus, na rua Joaquim Nabuco, a fim de<br />

encontrar um amigo <strong>do</strong>idão, chama<strong>do</strong> Brum, depois da aula. Ele era mais novo que eu, mas vivia<br />

em permanente esta<strong>do</strong> de alucinação. Complicadíssimo de alma, Brum odiava o planeta, o<br />

sistema, a sociedade e a vida. Tu<strong>do</strong> era idiota e nauseante para ele. Assim, passava o dia inteiro<br />

afoga<strong>do</strong> em Pink Floyd e maconha. Estranhamente, os estu<strong>do</strong>s, para ele, eram parte <strong>do</strong> barato das<br />

drogas.<br />

— Cara, eu me amarro em ir muito <strong>do</strong>i<strong>do</strong> para a escola e ficar curtin<strong>do</strong> com a cara <strong>do</strong>s<br />

professores e rin<strong>do</strong> da maluquice das fórmulas de química, física e matemática. Aula de história,<br />

quan<strong>do</strong> cê tá <strong>do</strong>i<strong>do</strong>, é o maior barato. Geografia, num dá nem pra falar. Doidão cê vai nos lugares.<br />

É demais, bicho — dizia ele com um ar delirante.<br />

Mas naquele dia, quan<strong>do</strong> cheguei em frente à escola, notei um rostinho de menina que<br />

jamais vira no pedaço.<br />

— Quem é aquela mina ali, Brum? Aquelazinha, de blusa bege com uns elefantinhos<br />

estampa<strong>do</strong>s? — perguntei curioso.<br />

— Fica longe dela, bicho. O pai dela é fera. É o capitão <strong>do</strong>s portos. A mina é <strong>do</strong> Rio e num<br />

gosta de maluco, não. Aliás, ela só anda com os caretas <strong>do</strong> vôlei lá <strong>do</strong> Rio Negro. E dizem que tá


sain<strong>do</strong> com uns caras que te odeiam. Lembra <strong>do</strong> Renato Oliveira? Saiu com ela. E o Michileno,<br />

lembra? Saiu com ela também. Então, dá pra ver qual é o tipo de cara que ela gosta: só<br />

burguesinho careta, bicho — falou com ar professoral e, ao mesmo tempo, sempre cínico,<br />

puxan<strong>do</strong> o canto da boca para baixo, como se fosse cair na gargalhada a qualquer momento.<br />

— Que nada, Brum. Essa gatinha é igual a todas as outras: sai com os caretas pra agradar<br />

papai e mamãe, mas gosta mesmo é de cara <strong>do</strong>i<strong>do</strong> como eu. Quer valer como eu faturo rapidinho<br />

e num tem pra ninguém se eu partir pra dentro? — apostei com ele.<br />

— Essa aí num dá. Quero valer qualquer coisa como cê quebra a cara. Tô mais que positivo.<br />

Vai que vou ficar aqui pra rir gostoso, bicho — disse.<br />

Brum não sabia como eu funcionava ao contrário. Tu<strong>do</strong> o que era difícil me seduzia, e as<br />

coisas fáceis enfastiavam-me antes mesmo de prová-las. Além <strong>do</strong> mais, havia uma meiguice na<br />

gatinha que me chamou a atenção. Ela não era arrebata<strong>do</strong>ra, mas era suave e parecia sensível e<br />

boa de cabeça. Eu não sabia o que era, mas senti um forte desejo de ir conferir quem era ela.<br />

Ela estava cercada de burguesinhas das classes sociais mais elevadas e badaladas de Manaus.<br />

Atravessei a rua, fingin<strong>do</strong> que não percebia a mulherada agitar-se com minha aproximação, e ouvi<br />

alguém dizer: “Ai meu Deus! Ele tá vin<strong>do</strong>. O que a gente faz, Alda?”<br />

— Meu amigo ali, o Brum, diz que você não gosta de caras como eu. Mas eu não acreditei.<br />

Vim aqui conferir. Escuta, cê num quer sair comigo uma hora dessas? — falei seguro, sem<br />

cinismo e com muita seriedade, mas com uma franqueza desconcertante e objetivíssima.<br />

As meninas em volta ficaram excitadíssimas. Uma ex-namoradinha minha, Virgínia, ficou<br />

torcen<strong>do</strong> contra. Umas outras fizeram cara de raiva, mas eu sabia que era só fachada. Lá no<br />

fun<strong>do</strong>, tinha certeza de que meu banditismo light dava a elas um sentimento ambíguo: falavam<br />

mal de mim, mas sonhavam comigo sempre que o inconsciente queria se liberar em algum<br />

encontro com o animal e o selvagem. Se era realmente isso que acontecia, não posso afirmar, mas<br />

era assim que eu me sentia. E quase sempre dava certo.<br />

Alda não disse quase nada. Falou apenas que estava dan<strong>do</strong> uma festa na casa dela no dia<br />

seguinte, no sába<strong>do</strong> à noite. Voltei para o Brum já cantan<strong>do</strong> vitória.<br />

— Pô, bicho, inacreditável. Quê qui cê falô pra ela? Impressionante! — ele falou.<br />

Não disse nada, apenas o coloquei na garupa da moto e saí agitan<strong>do</strong> a frente da escola em alta<br />

velocidade.<br />

No dia seguinte, vesti-me de hippie de butique e fui à festa <strong>do</strong> capitão <strong>do</strong>s portos. Era a<br />

apresentação de Alda às famílias de Manaus. Um acontecimento absolutamente idiota e sem<br />

propósito, na minha maneira de ver. Mas era minha hora de fazer o que mais gostava: chocar.<br />

Parei minha moto na calçada da casa e entrei na fila de acesso ao portão.<br />

— Aí, gente boa. Boa noite — gritei quan<strong>do</strong> chegou a minha vez e fui entran<strong>do</strong>.<br />

De repente, ouvi uma voz fina, estridente, com sotaque baiano, gritan<strong>do</strong> nas minhas costas.<br />

— Péra aí, meu filho! Tá pensan<strong>do</strong> que isso aqui é a casa da sogra? — era uma mulher bem<br />

vestida, magra, de uns 38 anos, segura de si e que parecia estar queren<strong>do</strong> fazer um showzinho<br />

particular, curtin<strong>do</strong> com a minha cara.<br />

Olhei para ela sem alteração. Mas os meninos <strong>do</strong> vôlei e <strong>do</strong>s outros esportes — os “caretas <strong>do</strong><br />

Rio Negro Clube”, como os chamava — estavam ali, se delician<strong>do</strong>, contentes com o episódio e<br />

seu possível desfecho: minha expulsão <strong>do</strong> lugar. O que não faltava eram marinheiros e seguranças<br />

para me “botar para fora”.<br />

Continuei olhan<strong>do</strong> fixo para a senhora <strong>do</strong> portão.<br />

— Como é o seu nome, seu cabelu<strong>do</strong> indecente? — ela perguntou provocativa, enquanto o<br />

pessoal <strong>do</strong> vôlei dava uma estron<strong>do</strong>sa gargalhada em volta de mim.<br />

— <strong>Caio</strong>, minha senhora. Meu nome é <strong>Caio</strong> — disse com o olhar preso ao dela, começan<strong>do</strong> a


ficar com raiva.<br />

— <strong>Caio</strong> de Bossa? É esse o seu nome, cabelu<strong>do</strong>? — nova gargalhada.<br />

— Não, minha senhora. Não é <strong>Caio</strong> de Bossa, não. É <strong>Caio</strong> de Boca; pergunte às meninas<br />

aqui. Elas sabem que meu nome é <strong>Caio</strong> de Boca — respondi lamben<strong>do</strong> os lábios, curtin<strong>do</strong> o gosto<br />

de minha vingança.<br />

Ninguém riu. Houve silêncio. A mulher maluca ficou me fitan<strong>do</strong> com surpresa durante uns<br />

três a cinco longos segun<strong>do</strong>s, e caiu na gargalhada. Foi só então que os demais bobos da corte<br />

riram também, sem graça.<br />

— Gostei de você seu <strong>Caio</strong> de Boca. Pode entrar. Mas num me apronta, tá? Cê é <strong>do</strong>idão, mas<br />

é sincero — ela completou, para perplexidade de to<strong>do</strong>s. Mas a surpresa maior é que a baiana era<br />

<strong>do</strong>na Rose, mãe de Alda. Então, entrei.<br />

Não conhecia a to<strong>do</strong>s, mas era conheci<strong>do</strong> pela maioria <strong>do</strong>s rapazes e moças que estavam ali.<br />

Entretanto, ninguém falava comigo. To<strong>do</strong>s me admiravam e me odiavam. E eu ignorava o ódio<br />

deles, mostran<strong>do</strong> minha total independência de movimentos, e, ao mesmo tempo, tirava proveito<br />

da admiração que sabia que eles tinham por mim. Gargalhava sozinho, como se estivesse<br />

bem-acompanha<strong>do</strong>, dançava ao som das músicas que me arrebatavam a alma, mesmo que não<br />

estivessem sen<strong>do</strong> tocadas, e via a minha solidão autônoma ser <strong>do</strong>na <strong>do</strong> ambiente daquelas pessoas<br />

inseguras e incapazes de acreditar em sua própria liberdade de ser.<br />

Foi só depois de alguns minutos que vi a menina da casa conversan<strong>do</strong> com um atleta de<br />

plantão. Aproximei-me e peguei seu braço.<br />

— Meu irmão, cê já conversou às pampas. Deixa eu bater papo com ela só um pouquinho! —<br />

disse eu ao rapaz, que nada respondeu. Apenas olhou para Alda e percebeu um consentimento no<br />

olhar da garota. Então perguntei a ela a que horas aquele circo estaria termina<strong>do</strong>.<br />

— Aí pela meia-noite — respondeu.<br />

— Então, à meia-noite fica na varanda que eu volto para te ver — disse eu, largan<strong>do</strong>-a no<br />

meio <strong>do</strong> salão e in<strong>do</strong> embora.<br />

À meia-noite eu voltei. Ela estava lá, em pé, ansiosamente me esperan<strong>do</strong>. Falamos cinco<br />

minutos e ela me disse que no dia seguinte iria a uma festa na casa de uma amiga. No <strong>do</strong>mingo eu<br />

estava na mesma festa. Dançamos e nos beijamos. Na segunda-feira, peguei-a na escola no meio<br />

da tarde e levei-a para a floresta, para as margens sedutoras de um igarapé. Choveu copiosamente<br />

sobre nós enquanto nos deliciávamos na liberdade da solidão que as matas amazônicas<br />

emprestam a qualquer um que as visite. Levei-a de volta um pouco antes de seu chofer chegar<br />

para buscá-la na escola. Ela estava toda ensopada, mas feliz e apaixonada. Eu, entretanto, sentia<br />

por ela algo estranho. Não era nada avassala<strong>do</strong>r, mas era forte, e me dava a sensação de ser algo<br />

amigo, constante e sincero.<br />

Nas semanas seguintes saí com ela to<strong>do</strong>s os dias. Íamos juntos para a floresta. Ela não fumava<br />

maconha com regularidade, mas não rejeitava um tapa ou outro sempre que eu oferecia. Piano,<br />

desenho e poesia eram as suas paixões. Amava arte e falar de coisas místicas. Dizia que sentia as<br />

vibrações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> espiritual e não se constrangia em dizer que sabia ler mãos. Afirmava que<br />

uma cigana a ensinara e que se tratava de uma “ciência precisa”. Eu não acreditava em nada<br />

daquilo, mas curtia a inocência <strong>do</strong>s seus 16 aninhos. Estava a caminho <strong>do</strong>s 19 anos, mas me sentia<br />

como se fosse muitos, muitos anos mais velho <strong>do</strong> que ela.<br />

Estar com Alda era diferente e eu me sentia bem. Passaram-se <strong>do</strong>is meses e nós continuamos<br />

a sair juntos. Entretanto, eu a tratava com um carinho e um respeito que eu jamais dispensara a<br />

nenhuma outra menina ou mulher antes, em minha curta, porém intensiva vida amorosa. Mas<br />

apesar de tu<strong>do</strong>, eu não estava feliz. O problema, no entanto, não estava nela, mas em mim, pois<br />

minhas angústias interiores não cessavam.


Para complicar ainda mais as coisas, nós conhecemos um hippie que posava de mestre<br />

oriental e estava sempre atrás da gente. Ele era alto, branco e calvo na frente, embora tivesse um<br />

longo cabelo liso, que se esparramava sobre suas costas. Sua barba era <strong>do</strong> tipo sacer<strong>do</strong>tal antigo:<br />

longa, espessa e totalmente desencontrada, com fiapos isola<strong>do</strong>s que vinham até a altura da<br />

barriga. Carlos falava de coisas místicas o tempo to<strong>do</strong> e nos prometia o encontro com o sagra<strong>do</strong><br />

pelas drogas, pela ecologia e pela meditação. Aldinha estava empolgada. Eu, entretanto, não<br />

agüentava mais aquele papo. Havia dias em que a voz dele me irritava tanto, que eu sentia vontade<br />

de amassar a cara <strong>do</strong> guru.<br />

O céu foi fican<strong>do</strong> blinda<strong>do</strong>. O ar faltava. Minha respiração começou a ficar difícil. A atmosfera<br />

parecia estar baixan<strong>do</strong> e colocan<strong>do</strong> uma pressão insuportável sobre a minha cabeça. O mun<strong>do</strong> se<br />

descoloria bem diante de meus olhos. A experiência <strong>do</strong> riso tornou-se um tormento<br />

<strong>do</strong>loridíssimo e a gargalhada me rasgava a alma, como se nela houvesse uma adaga que golpeasse<br />

meu interior. Assim, desejei a morte com força e profundidade.<br />

Aos dezoito anos e alguns meses eu estava existencialmente velho e cansa<strong>do</strong>. À semelhança de<br />

meu bisavô Araujinho, decidi que era tempo de partir. Só que ele vivera até os 104 anos para poder<br />

tomar aquela decisão, e eu, aos 18, já não agüentava mais existir.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos ao fim de julho, Alda e eu estávamos na iminência de terminar nossa<br />

relação. Ela me amava, mas não agüentava mais tanta loucura. E eu, de minha parte, sentia<br />

profunda ternura por ela, mas não conseguia ficar ao la<strong>do</strong> de ninguém. Queria a estabilidade<br />

amiga e serena que ela, apesar de tão menina, me oferecia, mas me apavorava com minha quase<br />

total incapacidade de aceitar os termos da normalidade de qualquer projeto de vida. Havia uma<br />

jibóia dentro de mim, faminta, insaciável, comen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os elementos de minha alma. Um de<br />

nós tinha de morrer: era ela, a jibóia, ou eu. Nós <strong>do</strong>is juntos não podíamos dividir o mesmo<br />

espaço: minha alma.<br />

Nos dias que se seguiram voltei a ser persegui<strong>do</strong> pela árvore sagrada da casa da vovó. Voltei<br />

ao lugar da infância, ao pôr-<strong>do</strong>-sol. Olhei a velha mangueira e chorei. “O que é isso, meu Deus?<br />

Que saudade é essa que me mata, que me atormenta?”, perguntei a ninguém. Mas a presença de<br />

ninguém me atormentava. Ninguém estava ali, sem dúvida.<br />

A certeza da presença de ninguém me confundia, me desesperava. Saí alucina<strong>do</strong>, com a alma<br />

tomada por prantos de morte. Eu estava de luto por mim mesmo. Fui até à casa de Aldinha,<br />

chamei-a ao portão, abracei-a, beijei-a, despedi-me dela.<br />

— Adeus, te cuida — disse enquanto sentava na moto.<br />

— Que é isso? Que qui cê tá fazen<strong>do</strong>? — perguntou com lágrimas nos olhos.<br />

— Eu estou in<strong>do</strong> encontrar a morte. Hoje é certo. Nem ela vai fugir de mim e nem eu vou<br />

fugir dela — arranquei com a moto e sumi atrás <strong>do</strong> posto de gasolina que impedia sua visão da rua<br />

que tomei.


Capítulo 25<br />

“Atribuo à Tua graça e indizível misericórdia o fato de teres derreti<strong>do</strong> meus<br />

peca<strong>do</strong>s como gelo. Além disso, também atribuo à Tua graça to<strong>do</strong>s os atos piores<br />

ainda que os aqui narra<strong>do</strong>s e que não cometi. E por que não os pratiquei, se<br />

naquele tempo amava o erro gratuitamente? Sim, foi pelo Teu amor e pela Tua<br />

graça que fui per<strong>do</strong>a<strong>do</strong> das torpezas que cometi e foi também por Tua bondade<br />

infinita que fui poupa<strong>do</strong> de ter feito coisas ainda piores.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Os pensamentos que se digladiavam em minha mente eram mais fortes <strong>do</strong> que quaisquer<br />

outros que jamais me haviam visita<strong>do</strong>. Eu pensei no inferno. Imaginei que talvez existisse<br />

realmente um lugar de punição e <strong>do</strong>r para aqueles que viviam e morriam dan<strong>do</strong> as costas ao<br />

Cria<strong>do</strong>r. Entretanto, as reflexões sobre o inferno eram menos fortes <strong>do</strong> que aquele movimento de<br />

borboletas espirituais revoan<strong>do</strong> loucas dentro de mim. Fazê-las parar era a única coisa que me<br />

interessava.<br />

Somente muitos anos depois foi que pude entender melhor o que estava acontecen<strong>do</strong> comigo<br />

naquela noite de quarta-feira, em julho de 1973. Muito depois daquele dia foi que aprendi que<br />

quan<strong>do</strong> a pior realidade que um ser humano conhece na existência é a morte, então ele quer viver;<br />

mas quan<strong>do</strong>, de súbito, ele reconhece a vida como sen<strong>do</strong> a pior experiência de seu existir humano,<br />

então, nesse dia, ele deseja ardentemente morrer.<br />

Era isso o que acontecia. Minha vida se tornara insuportável aos 18 anos de sua jornada, e eu<br />

achei que a morte era a minha mais acolhe<strong>do</strong>ra companhia. Dirigi a motocicleta numa velocidade<br />

média, angustiadamente reflexiva. Peguei a rua Sete de Setembro e fui até a esquina da rua<br />

Duque de Caxias, onde morava alguém que eu julgava que teria uma arma para me emprestar.<br />

Pela primeira vez eu não estava disposto a fazer testes ou jogos suicidas. Eu queria entrar em<br />

campo vestin<strong>do</strong> preto e desejava sair dali nos braços gela<strong>do</strong>s da morte. De súbito, entretanto, eu<br />

vi uma grande multidão parada à porta de um templo que havia <strong>do</strong> la<strong>do</strong> direito da rua.<br />

O lugar religioso era arquitetonicamente feio. Eu passara ali muitas vezes e sempre fizera<br />

questão de afirmar o mau gosto das cores daquele templo da Assembléia de Deus. Além disso, eu<br />

conhecia algumas pessoas que freqüentavam o lugar, e todas me pareciam muito esquisitas.<br />

Eram moças de cabelos longos, sem corte; rostos sem cor, sem batom ou quaisquer outros<br />

enfeites, e as pernas, muitas vezes, não eram depiladas. Os olhos, sobretu<strong>do</strong>, pareciam-me muito<br />

opacos, sem brilho, sem insinuação. Os homens eram <strong>do</strong> mesmo tipo, com o agravante de serem


desinteressantemente masculinos. Com suas calças de tergal e suas camisas brancas tipo “volta<br />

ao mun<strong>do</strong>”, em geral me davam ojeriza. Em outras palavras, aquele seria o último lugar no<br />

mun<strong>do</strong> onde eu decidiria parar a fim de realizar qualquer tipo de busca espiritual. Entretanto,<br />

enquanto eu dirigia toma<strong>do</strong> de perturbação, pousei os olhos na igreja e não pude retirá-los de lá.<br />

O que me chamou a atenção foi a quantidade de gente que se esparramava porta afora. Eram<br />

pessoas que não tinham consegui<strong>do</strong> entrar no lugar de culto por causa da multidão que já estava<br />

lá dentro. Olhei e, sem perceber, fui paran<strong>do</strong> minha motocicleta ali. Não havia nada<br />

extraordinário me atrain<strong>do</strong>, mas alguma coisa sutil, suave, leve e irresistível me puxava na direção<br />

daquele chocante prédio azul. Quan<strong>do</strong> me dei conta, estava estaciona<strong>do</strong> a um metro da calçada,<br />

com o descanso já puxa<strong>do</strong> e a moto repousan<strong>do</strong> sobre ele. Foi quan<strong>do</strong> um rapazinho moreno, de<br />

nariz grosso e largo e lábios excessivamente projeta<strong>do</strong>s para fora da boca veio e me pegou pelo<br />

braço.<br />

— Ei, cê lembra de mim? — perguntou. Como eu olhei para ele de mo<strong>do</strong> inexpressivo, ele<br />

acrescentou: — A gente estu<strong>do</strong>u na Escola Técnica, lembra? — e apontou para o outro la<strong>do</strong> da<br />

rua, pois a escola era ali, a menos de duzentos metros de distância.<br />

— Não, bicho, num lembro, não — completei.<br />

— Meu irmão, cê tá cuma cara horrível — disse ele com convicção.<br />

— Cara ruim? Que nada! Eu deixei de ter cara ruim faz tempo. Eu tô mermo é cum cara de<br />

morte, bicho. Eu quero é morrer. Quero metê uma bala na cabeça.<br />

Ele olhou para mim com imensa ternura.<br />

— Num faz assim, não. Por que qui cê num dá uma chance pra Deus? Ó, entra aqui e ouve<br />

uma mensagem que vai transformar a tua vida. Cê vai vê — afirmou com tamanha certeza, que<br />

me fez esquecer tu<strong>do</strong> o mais. Ele foi logo me puxan<strong>do</strong> pela mão e me conduzin<strong>do</strong> para dentro da<br />

igreja.<br />

Minha entrada ali foi um escândalo. Com aquele cabelão abaixo <strong>do</strong> ombro, usan<strong>do</strong><br />

gargantilhas e braceletes de couro, com uma calça cavada e sem zíper, completamente aberta,<br />

camisa multicolorida e um tamancão que fazia um barulho infernal, foi impossível entrar com<br />

discrição. Além disso, eu também fiquei choca<strong>do</strong> com a emoção <strong>do</strong> ambiente. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

estava gritan<strong>do</strong> junto. Para mim, eram pessoas que pareciam de outro planeta e conectadas a<br />

outro mun<strong>do</strong>.<br />

O meu anjo moreno e sem nome me levou à galeria <strong>do</strong> templo e falou alguma coisa ao ouvi<strong>do</strong><br />

de um homem forte. O gigante chegou para o la<strong>do</strong> e eu entrei ali, apertadinho.<br />

— Ô glóriaaa! Aleluuiia, Jesusss! Siiii! Ó Deus glorioso! Derrama, Senhor! — eram gritos<br />

que eu ouvia em volta de mim. O homem grande, por sua vez, tinha um bebê no colo. — Glória<br />

Deus. Oh! Fogo, desce. Queima, Senhor! — gritava ele e fazia o neném chorar sem parar. Para<br />

acalmar a criança, ele a sacudia com tamanha força, que o bichinho chorava mais ainda. Era um<br />

ciclo vicioso: o menino chorava porque ele gritava; para fazer a criança parar de chorar ele a<br />

sacudia, e porque o homem assim o fazia, o bebê chorava mais ainda. Comecei a ficar com raiva<br />

de ter entra<strong>do</strong> ali. “Meu Deus, eu tô <strong>do</strong>idão, mas esses caras aqui são mais <strong>do</strong>i<strong>do</strong>s que eu”, pensei<br />

indigna<strong>do</strong>.<br />

— Vocês sabem por que no alto da Cruz de Jesus havia uma epígrafe escrita em hebraico,<br />

latim e grego Este é Jesus Nazareno, o Rei <strong>do</strong>s Judeus? — perguntou o <strong>pastor</strong>, interrompen<strong>do</strong><br />

assim o fluxo de minhas invencíveis distrações. Eu estava completamente louco de drogas.<br />

Entretanto, a pergunta <strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r, deixada no ar retoricamente, sem resposta por alguns<br />

segun<strong>do</strong>s, capturou minha atenção. — Porque o hebraico era a língua da religião, o latim, a língua<br />

da política e o grego, a língua da filosofia. Sabem por que então ele deixou que escrevessem nas<br />

três línguas a mensagem? Já sabem? Não? Ora, porque Deus queria que os religiosos, os


ambiciosos e os que querem saber as coisas da vida ficassem to<strong>do</strong>s saben<strong>do</strong> que Jesus é o centro<br />

desse Universo. Jesus é o Rei da Vida — ele afirmou aos gritos, cheio de paixão, saltan<strong>do</strong> e dan<strong>do</strong><br />

murros no ar. Parecia que ele estava falan<strong>do</strong> com o planeta to<strong>do</strong> naquela hora e, ao mesmo tempo,<br />

eu senti como se fosse só para mim.<br />

“Meu Deus, eu já sei por que eu estou perdi<strong>do</strong>! É porque não tenho esse centro na minha vida.<br />

Eu sou como um astro vagan<strong>do</strong> sem órbita pela escuridão da noite. É assim que eu me sinto, Deus”,<br />

exclamei de mim para mim mesmo, inician<strong>do</strong> um choro solitário, convulsivo e <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>.<br />

Fiquei aproximadamente 15 minutos entregue àquele pranto. Quan<strong>do</strong> me recompus, percebi<br />

que o garoto sem nome estava lá, a uns cinco metros de mim, choran<strong>do</strong> muito também. Quan<strong>do</strong><br />

levantei, o <strong>pastor</strong> estava convocan<strong>do</strong> os “arrependi<strong>do</strong>s” para ir à frente e confessar a Cristo,<br />

publicamente, como Senhor e Salva<strong>do</strong>r. Mas eu não tinha condições de ir à frente. Mesmo agora<br />

— naqueles súbitos e eletrizantes minutos de arrependimento — queria Jesus, mas continuava a<br />

ter fortíssimos preconceitos contra toda forma de religião organizada. Dei um abraço no rapaz.<br />

— Valeu, bicho. Valeu, mermo — disse, enquanto batia no ombro dele e me retirava.<br />

Fui direto à casa de Alda. Ela estava angustiada. Já havia telefona<strong>do</strong> para as delegacias,<br />

hospitais e até para o necrotério. Ouvi o desabafo alivia<strong>do</strong> dela e contei o que havia aconteci<strong>do</strong>.<br />

— Olha, agora eu sei por que eu sou tão <strong>do</strong>i<strong>do</strong> — disse. — É porque eu tenho fome de Deus.<br />

Só vou me encontrar se for nele. Fora dele, eu estou perdi<strong>do</strong>.<br />

Ela me olhou e falou como se estivesse com aquela resposta na ponta da língua desde a<br />

infância.<br />

— Eu também sou Dele. Sei que Ele me ama e quero conhecê-Lo. Se você está in<strong>do</strong>, eu vou<br />

junto — afirmou com estranha convicção.<br />

Despedi-me dela e vaguei pela cidade deixan<strong>do</strong> o ar fresco da noite me gelar a face. Senti os<br />

aromas das estradas da periferia me invadirem a alma com a força de coisas novas que estavam<br />

prestes a acontecer. Quan<strong>do</strong> entrei na garagem da casa de meus pais, já eram umas duas da<br />

manhã. Vi a cama-de-campanha na qual eu <strong>do</strong>rmia armada embaixo da janela. A lua estava<br />

absolutamente cheia. Era uma bola prateada, quase irreal de tão linda.<br />

Dali de minha pequena cama percebi que a lua estava desenhan<strong>do</strong> uma silhueta parecida com<br />

aquela que o pôr-<strong>do</strong>-sol pintava atrás da mangueira sagrada <strong>do</strong> quintal da vovó. Agora, entretanto,<br />

era uma grande jaqueira que deixava o luar pintá-la de pratea<strong>do</strong>, enquanto resplandecia de mo<strong>do</strong><br />

mágico ante meus olhos. Era como se uma antiga e obsessiva visão tivesse volta<strong>do</strong>, com toda a sua<br />

força e sedução. Dessa vez, todavia, aquela árvore iluminada não me falava de um ser distante, de<br />

alguém para se sentir saudade. Não! O sentimento que me invadia ali — olhan<strong>do</strong> para aquele<br />

espetáculo da natureza, pinta<strong>do</strong> que estava pelas projeções de minha alma e pelos sonhos<br />

secretos de meu espírito — era o de que minha jornada de angústias, desejos, seduções,<br />

ansiedades, insônias, loucuras e coragens suicidas estava chegan<strong>do</strong> ao fim. De alguma forma,<br />

instalara-se dentro de mim a convicção de que naquela noite, naquela igreja de gente estranha, eu<br />

havia encontra<strong>do</strong> o Alguém de quem sentira saudade consciente desde os sete anos de idade. Fora<br />

na busca Dele que eu me pervertera, me desqualificara, me equivocara e quase me<br />

auto-aniquilara. Mas agora Ele estava ali, presente não na jaqueira, mas no meu quarto, e<br />

andan<strong>do</strong> para dentro de mim.<br />

“Jesus, mamãe me disse outro dia que Tu vieste a este mun<strong>do</strong> buscar e salvar gente perdida.<br />

Então, se o Teu negócio é com gente perdida, eu acho que sou o sujeito ideal para ser acha<strong>do</strong>.<br />

Acha-me, por favor, Jesus”, eu orei, posto de joelhos, olhan<strong>do</strong> na direção da Sarça Ardente que<br />

me acompanhara desde há muito.<br />

Deitei de la<strong>do</strong>, volta<strong>do</strong> para a jaqueira iluminada, e não percebi quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>rmeci. Às seis e<br />

quarenta e cinco da manhã a vizinhança toda ouviu um grito lancinante de pavor e desespero.


Meu tio Lucilo, que morava num pequeno quarto nos fun<strong>do</strong>s de nosso quintal e que já estava a<br />

uns quatrocentos metros de distância, voltou corren<strong>do</strong> em direção à casa ao ouvir aquele urro<br />

pavoroso. Meu pai pulou da cama, pegou automaticamente sua muleta e correu pela casa,<br />

tentan<strong>do</strong> saber de onde aquele esturro estava vin<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> ele entrou no meu quarto, a cena<br />

que viu foi chocante. Eu estava lá, num <strong>do</strong>s cantos <strong>do</strong> quarto, to<strong>do</strong> enrola<strong>do</strong>, com os olhos<br />

esbugalha<strong>do</strong>s, como quem via um espetáculo de performance demoníaca.<br />

Mas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro de meu ser, o que estava acontecen<strong>do</strong> era ainda pior <strong>do</strong> que o que os<br />

olhos de papai percebiam <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora. Eu fora acorda<strong>do</strong> com uma cobra grande como uma<br />

sucuri me arrochan<strong>do</strong>, enquanto também mordia meu braço esquer<strong>do</strong> e inoculava em mim um<br />

veneno mortal. De súbito, percebi que não era algo material. Na verdade, não havia uma cobra<br />

para ser vista. Fui me dan<strong>do</strong> conta de que seres diferentes habitavam dentro de mim. Não era<br />

mais o <strong>do</strong>no de mim mesmo e não estava no coman<strong>do</strong>. E aqueles seres que me possuíam eram<br />

maus, perversos e meus piores inimigos. Eles estavam ali para me matar. Não sei quanto tempo<br />

aquilo durou. Papai diz que foram apenas uns cinco minutos. Para mim, no entanto, parecia ter<br />

dura<strong>do</strong> uma eternidade. A repugnância da experiência era indescritível.<br />

Papai me olhou por algum tempo, orou a Deus e gritou com autoridade: “Eu não gerei filhos<br />

para serem morada de demônios. Eu gerei filhos para serem o santuário <strong>do</strong> Espírito Santo.” E<br />

acrescentou: “Saiam de meu filho, demônios, em nome de Jesus.”<br />

Eles — papai, mamãe e tio Lucilo — me carregaram dali para a cama de meus pais, onde<br />

<strong>do</strong>rmi até o meio-dia. Parecia que eu havia si<strong>do</strong> anestesia<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> acordei, dei-me conta de<br />

que estava em posição fetal. Era como se em meu inconsciente eu estivesse buscan<strong>do</strong> uma<br />

maneira de nascer de novo.<br />

Botar os pés para fora da cama naquela quinta-feira foi um <strong>do</strong>s maiores desafios que já<br />

enfrentei na vida. Que eu não podia mais viver como vinha viven<strong>do</strong>, não havia a menor dúvida.<br />

Existir daquele jeito tanto não valia a pena como era já a própria morte. A questão, no entanto,<br />

era: Meu Deus, o que é que está acontecen<strong>do</strong> comigo e como é que eu faço para viver como<br />

alguém que conheceu a Jesus?<br />

Quan<strong>do</strong> saí da cama, percebi que a casa toda estava em suspense. Suely e Luiz estavam por<br />

ali, fazen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> para parecerem normais. Aninha, com seus oito anos de diferença, correu para<br />

mim, me abraçou e me beijou. Mamãe veio com jeito preocupa<strong>do</strong>, suada que estava das tarefas<br />

<strong>do</strong>mésticas, e me beijou.<br />

— <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, teu pai disse para você não sair daqui que ele quer falar com você. Mas se você<br />

for sair, ele pediu pra você voltar aí pelas seis da tarde. Ele disse que é muito importante — disse<br />

em seguida, com lágrimas nos olhos.<br />

— Olha, mamãe, quem quer falar com ele sou eu. Diga isso a ele. Às seis da tarde eu vou<br />

estar aqui. E não se preocupe. Eu não sei o que é, mas tem alguma coisa boa acontecen<strong>do</strong> comigo<br />

— disse sereno como nunca tinha esta<strong>do</strong> antes.<br />

Comi qualquer coisa, acendi um cigarro, montei na moto e fui para uma estrada de barro que<br />

havia na periferia da cidade. Fazia aquilo com alguma regularidade. Ali, deixava a moto dentro <strong>do</strong><br />

mato e corria até não agüentar mais de cansaço. Naquele dia, no entanto, foi diferente. Quan<strong>do</strong><br />

comecei a correr, não senti mais aquela angústia estranha me impulsionan<strong>do</strong>. Havia uma coisa<br />

leve em mim. Olhei em volta e vi a graça e a beleza daquele pedaço <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, tão verde, tão cheio<br />

de aromas, tão encanta<strong>do</strong>. Chorei enquanto corria.<br />

Era como se eu estivesse me reconcilian<strong>do</strong> com a criação. O ambiente to<strong>do</strong> parecia estar<br />

recolori<strong>do</strong> e minha capacidade de perceber a respiração da floresta parecia estar mais aguçada <strong>do</strong><br />

que nunca. A trilha de barro se estendia até um igarapé, a uns três quilômetros dentro da mata.<br />

Ao ver o riacho de águas marrons, transparentes, eu chorei outra vez.


Caí dentro d’água de joelhos e orei. Falei com meu Cria<strong>do</strong>r e me batizei sozinho nas águas da<br />

floresta. Derramei o líqui<strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> sobre minha cabeça. Em seguida, mergulhei e fiquei sob a<br />

água o máximo que pude. Quan<strong>do</strong> tomei ar, de volta à superfície, senti como se algo novo tivesse<br />

si<strong>do</strong> planta<strong>do</strong> no terreno mais fértil de meu ser. Virei de frente para o céu azul e afoguei meus<br />

ouvi<strong>do</strong>s dentro da água. Fez-se um silêncio total à minha volta e uma paz indescritível me<br />

inun<strong>do</strong>u a alma. Naquele momento, pedi a Deus para morrer ali, nos portões <strong>do</strong> Paraíso.<br />

Quan<strong>do</strong> corri de volta para o início da trilha, havia um sentimento de novidade de vida dentro<br />

de mim. No caminho percebi a aproximação de uma ex-namoradinha minha e seu atual<br />

namora<strong>do</strong>. Eles vinham montan<strong>do</strong> lin<strong>do</strong>s cavalos de raça e se aproximavam num belo galope.<br />

Quan<strong>do</strong> me viram, pararam ao meu la<strong>do</strong>.<br />

— Ei, seu <strong>Caio</strong>, a gente tem uma mutuca de maconha aqui. Tá a fim dum basea<strong>do</strong>? — disse<br />

Sérgio, enquanto Dê me olhava com a surpresa de quem não me encontrava desde o dia em que<br />

fui à casa dela pela última vez, <strong>do</strong>is anos antes.<br />

Não sabia o que responder. De alguma forma, entretanto, eu sabia que nunca mais na vida<br />

apertaria um basea<strong>do</strong>. Afinal, de algum mo<strong>do</strong>, aquela erva perdera, milagrosamente, to<strong>do</strong> o seu<br />

encanto para mim. Aliás, foi só ali que me apercebi que aquele era o primeiro dia, em pelo menos<br />

quatro anos, que eu não havia senti<strong>do</strong> nenhuma fissura pela maconha ou qualquer outra forma de<br />

entorpecente.<br />

— Seu Serjão, aquele <strong>Caio</strong> que fumava maconha, cheirava pó e outras coisas morreu ontem e<br />

eu acabei de sepultá-lo num igarapezinho a uns três quilômetros daqui. Esse cara que tá aqui, na<br />

tua frente, num fuma maconha e nem toma drogas. E mais: ele também num qué mais saber de<br />

maluquice. E quem num respeitar a ele, vai entrar no pau — concluí <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> “mais cristão” que<br />

eu sabia.<br />

Sérgio me olhou assusta<strong>do</strong>, como se tivesse visto um ghost no meio da floresta.<br />

— É, bicho, agora é qui tu tá <strong>do</strong>i<strong>do</strong> mermo, cara. Que barato é esse qui tu tá toman<strong>do</strong>? —<br />

perguntou sem ficar para ouvir a resposta.<br />

Dê, a ex-namoradinha, olhou-me com estranheza, quase com desprezo, manobrou o animal e<br />

disparou. Sérgio fez o mesmo, galopan<strong>do</strong> atrás dela. Eu, de minha parte, montei na máquina e<br />

voltei para casa, celebran<strong>do</strong> a minha primeira “vitória cristã”.


Capítulo 26<br />

“A nova vontade, que começara a nascer em mim, de Te servir sem interesse, de<br />

me alegrar em Ti, ó meu Deus, única alegria verdadeira, ainda não era capaz de<br />

vencer a vontade antiga e inveterada. Deste mo<strong>do</strong>, minhas duas vontades, a velha<br />

e a nova, a carnal e a espiritual, lutavam entre si, e, discordan<strong>do</strong>, dilaceravam-me a<br />

alma.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Quan<strong>do</strong> entrei pela garagem em alta velocidade e parei a moto com uma derrapada de la<strong>do</strong>,<br />

um observa<strong>do</strong>r externo diria que nada de novo havia em mim. A diferença, contu<strong>do</strong>, é que ao<br />

invés de entrar com ar agressivo e hostil, eu sorri para o pessoal da casa e fui logo perguntan<strong>do</strong><br />

por papai.<br />

— Tá esperan<strong>do</strong> você lá em cima — disse Suely.<br />

Subi as escadas e fui à varanda <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> andar da casa. Papai estava lá, sério e preocupa<strong>do</strong>,<br />

com aquele biquinho na boca que revelava que ele estava um pouco nervoso.<br />

— Meu filho, eu pensei muito, e tenho que falar com você. Sua situação espiritual é<br />

gravíssima. Eu não sei se você ainda acredita na existência de espíritos maus, de demônios. Mas<br />

cren<strong>do</strong> ou não, eles existem e odeiam você. Deus tem um propósito muito especial para sua vida e<br />

os demônios querem destruir você. O que aconteceu hoje ce<strong>do</strong> foi uma demonstração dessa<br />

vontade assassina <strong>do</strong> diabo contra você. <strong>Caio</strong>zinho, é Cristo ou é a morte. Hoje você tem que<br />

decidir o que você quer. O mun<strong>do</strong> espiritual é real. E há forças nele que são muito más — ele<br />

afirmou com um tom <strong>pastor</strong>al e paternal.<br />

Aquela era a primeira vez em algum tempo — talvez em quatro anos — que eu e meu pai<br />

conseguíamos conversar sem que eu o interrompesse com irreverências.<br />

— Eu sei, pai, que o que está acontecen<strong>do</strong> comigo é espiritual. Sei que preciso tomar uma<br />

decisão e já o fiz. Ontem à noite eu assumi que vou viver com Jesus e vou ser um homem de Deus<br />

para o resto da minha vida. Eu só não sei é como — disse com lágrimas nos olhos e um me<strong>do</strong><br />

enorme de não ter forças para bancar aquela decisão, como acontecera com tu<strong>do</strong> o mais de bom<br />

que tentara fazer nos últimos anos e não conseguira.<br />

Foi ali, naquele ponto, que me passou um me<strong>do</strong> horrível pela mente. Gelei. Olhei para o sol<br />

que se punha atrás de um enorme pé de pitomba que havia na frente de nossa casa, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong><br />

da rua Urucará.<br />

Tinha vivi<strong>do</strong>, possivelmente, uns vinte anos em cinco, mas, cronologicamente, eu ainda era<br />

um menino de pouco mais de 18 anos. A vida toda ainda estava diante de mim e, naquela hora,


tu<strong>do</strong> o que eu queria era seguir a Cristo, ser discípulo Dele. Mas como é que eu estaria daí a<br />

alguns meses ou uns poucos anos? Será que aquilo não era apenas o fruto <strong>do</strong> me<strong>do</strong> de ficar<br />

possuí<strong>do</strong> por forças <strong>do</strong> inferno? Era fuga? Ou quem sabe apenas uma resposta de minha<br />

memória religiosa, infantil, aos dramas <strong>do</strong> momento. E as drogas? E os amigos? Como é que eu<br />

viveria essa vida de crente? Será que teria que encaretar de vez? E as gatinhas? Eu gostava<br />

alucinadamente de mulheres. Será que depois de alguns meses eu não entraria em crise e jogaria<br />

tu<strong>do</strong> para o alto apenas para não me privar <strong>do</strong>s prazeres sexuais e da promiscuidade da qual tanto<br />

me orgulhara? Enfim, foi um sentimento terrível e que se comprimiu em mim como se tu<strong>do</strong> isso<br />

tivesse esta<strong>do</strong> ali, perturban<strong>do</strong>-me, por muito tempo. Mas foram, de fato, apenas alguns<br />

segun<strong>do</strong>s de questionamento.<br />

— <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, meu filho, não vai ser nada fácil. Mas em Cristo você vai conseguir — disse<br />

papai, como se adivinhasse o tufão de questões que se alvoroçavam dentro de meu peito.<br />

— O que você acha que vai ser difícil, filho? — mamãe perguntou, ten<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> a palavra de<br />

papai desde o início.<br />

— A mulherada, mãe. As mulheres serão, sem dúvida, a pior luta que terei. Eu estou<br />

acostuma<strong>do</strong> demais a sair com muitas mulheres diferentes. Eu não consigo ficar sem sexo. Eu<br />

não sei como é que vai ser — eu respondi com toda sinceridade.<br />

— Olha filho, a tentação é como um animal. Se você der comida pra ele, ele cresce. Se não<br />

der, ele definha. Nunca morre, mas enfraquece muito dentro da gente — papai afirmou, como se<br />

eu soubesse como é que a gente não alimenta a fera que vive em nós. Eu não sabia nem como<br />

conseguir vontade para enfrentar aquilo, quanto mais força suficiente para desenvolver<br />

resistência interior para não alimentar minhas tentações.<br />

— Mas comé que a gente não alimenta o bicho que vive dentro da gente, pai? — era o que eu<br />

mais queria saber. — Eu não quero mais viver <strong>do</strong> jeito que tenho vivi<strong>do</strong>, mas também não quero<br />

deixar de fazer essas coisas só porque eu me acorrentei a esse pé de castanhola que tem aqui na<br />

frente de casa. Se for assim, vai ser um inferno. Eu quero parar numa boa. Sem desespero.<br />

Papai me olhou com um ar inesquecível de amizade e compromisso com a minha vida.<br />

— Se você quer vencer, você vai vencer. Deus nunca nos dá tentações maiores que as forças<br />

que ele também nos dá para resistir. Para matar a carne, a gente deixa de dar comida a ela. E para<br />

alimentar o espírito, a gente dá de comer a ele. Por isso, se você quiser, nós vamos começar a<br />

jejuar, você e eu, juntos. Assim nós vamos enfraquecer a carne. E com a leitura disciplinada da<br />

Palavra de Deus e com as orações, meditações e preces, nós vamos alimentar o espírito — ele<br />

concluiu e ficou aguardan<strong>do</strong> a minha reação.<br />

Completamente distante <strong>do</strong> convívio emocional de minha casa por mais de quatro anos, eu<br />

não sabia mais quem meus pais eram, como seres humanos. Entre outras coisas, eu não sabia que<br />

papai se tornara uma espécie de monge cristão <strong>do</strong> asfalto. Alguns anos após sua conversão<br />

evangélica, ele havia desenvolvi<strong>do</strong> disciplinas espirituais incríveis. Dentre elas, o jejum. Entregue<br />

ao prazer de jejuar, ele ficava longos perío<strong>do</strong>s semanais de abstenção alimentar radical. Às vezes,<br />

ficava até cinco dias sem comer nem beber nada. Apenas se isolava e orava com paixão e<br />

intensidade.<br />

— Eu quero aprender tu<strong>do</strong> isso. O senhor me conhece e sabe que eu não faço nada pela<br />

metade. Se é pra ir com Deus, então vamos até o fim. Eu gosto de ir pra valer. Me ajude, por favor<br />

— foi minha resposta e meu pedi<strong>do</strong> de socorro.<br />

Após aquela conversa, papai orou e pediu a Jesus que não deixasse mais aquelas forças <strong>do</strong><br />

inferno se apoderarem de mim. Em seguida, nos abraçamos e nos beijamos. Toda a família veio<br />

me beijar. Chorei como se estivesse voltan<strong>do</strong> de uma longa e perversa viagem, retornan<strong>do</strong> a um<br />

lar que eu achava que já não era meu, mas que, estranhamente, continuava a me pertencer.


O sol se pôs. A árvore que estava à nossa frente escureceu e tornou-se ninho para as aves<br />

cansadas <strong>do</strong> dia e em busca de pouso para a noite. Entretanto, estranhamente, eu não estava mais<br />

com aquele banzo <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>. O sol estava se pon<strong>do</strong>, mas eu estava em paz. De alguma forma que<br />

eu não sabia explicar, minha busca havia acaba<strong>do</strong>. Não propriamente minha ansiedade de viver,<br />

conhecer, mergulhar, descobrir, provar e sentir, mas a busca pelo Alguém de quem eu sentia<br />

saudades chegara ao fim. Agora sabia quem Ele era e também sabia que Ele me amava. E aquele<br />

era o sentir mais <strong>do</strong>ce e envolvente que eu jamais experimentara. Era como ser abraça<strong>do</strong> pela vida<br />

e descobrir que a vida, em essência, é uma pessoa. A única pessoa. É o ser em quem to<strong>do</strong> amor<br />

nasce.<br />

Na sexta-feira ce<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> estava sain<strong>do</strong> de casa para correr na trilha da floresta, vi um<br />

homem moreno, de ar obstina<strong>do</strong>, <strong>do</strong>no de um bigode cheio e já meio esbranquiça<strong>do</strong>,<br />

aproximar-se de minha moto. Ele vinha rin<strong>do</strong>, como se me conhecesse há muito tempo.<br />

— Ei, no <strong>do</strong>mingo à noite nós vamos ter uma programação para jovens na minha igreja e você<br />

não vai perder, vai?<br />

Perceben<strong>do</strong> que eu não havia gosta<strong>do</strong> <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> tão íntimo com o qual ele se aproximara,<br />

mu<strong>do</strong>u a estratégia e falou com mais cuida<strong>do</strong>.<br />

— Olha, eu sou da Igreja Batista Redenção e gostaria muito que você fosse ao nosso culto no<br />

próximo <strong>do</strong>mingo — afirmou com mais serenidade, pegan<strong>do</strong>-me carinhosamente no braço. —<br />

Traga a sua namorada — disse ele, enquanto me dava um sorriso e entrava pela garagem de nossa<br />

casa para falar com meu pai.<br />

No <strong>do</strong>mingo à noite, Alda e eu estávamos lá. Ao nosso la<strong>do</strong> sentou um rapaz vesti<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong><br />

conserva<strong>do</strong>r, mas muito alinha<strong>do</strong>. Cantava alto, porém de mo<strong>do</strong> afina<strong>do</strong>. Ria para nós sempre que<br />

o culto permitia uma interação. Eu me limitava a mover um pouquinho a musculatura da face<br />

para deixar que ele percebesse que nós não estávamos “ausentes”. Depois um outro jovem<br />

pregou a Palavra. Gritou, esmurrou a mesa, contou histórias que mais pareciam ficção, fez drama<br />

e tu<strong>do</strong> o mais. Eu, pessoalmente, não estava gostan<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> aquilo me parecia muito<br />

estereotipa<strong>do</strong>. O fato de eu ter ti<strong>do</strong> uma criação na qual a presença evangélica tinha esta<strong>do</strong><br />

presente fazia-me ver tu<strong>do</strong> com um senti<strong>do</strong> muito mais crítico <strong>do</strong> que a maioria das pessoas que<br />

simplesmente estavam se aproximan<strong>do</strong> da fé. Meu desconforto era claro. Estava quase<br />

arrependi<strong>do</strong> de ter i<strong>do</strong> lá.<br />

— Cristo veio ao mun<strong>do</strong> para buscar o perdi<strong>do</strong> — dizia o prega<strong>do</strong>r entre gritos e pequenos<br />

saltos na ponta <strong>do</strong>s pés. — Hoje ele está aqui para encontrar você — dizia ele.<br />

Ora, Alda fora criada como católica, fizera primeira comunhão, mas não sabia quase nada<br />

sobre Jesus. Ou melhor: ela sabia que não queria nada com a idéia de Cristo que havia si<strong>do</strong><br />

passada a ela. Aquele Jesus lângui<strong>do</strong>, fraco, pendura<strong>do</strong> na Cruz, indefeso, páli<strong>do</strong>, ausente e<br />

despretensioso causava-lhe repugnância. Além <strong>do</strong> mais, na casa de sua avó havia uma imagem<br />

enorme de Jesus, num canto <strong>do</strong> quarto, que desde a infância tinha funciona<strong>do</strong> para ela muito<br />

mais como uma presença mal-assombrada <strong>do</strong> que como algo que lhe inspirasse a conhecer e<br />

amar a Deus.<br />

— O único meio de alguém encontrar a Deus é através de Cristo. Quem quer encontrar com<br />

Cristo hoje, aqui? — era uma pergunta retórica, e ele realmente não esperava nenhuma resposta<br />

audível em retorno.<br />

— Eu quero! Sim, eu quero encontrar com ele — disse Alda, como se não pudesse mais<br />

suportar ir até o fim <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> <strong>pastor</strong>.<br />

Mas sem se dar conta de que seu sermão já havia chega<strong>do</strong> ao fim — pois um prega<strong>do</strong>r deve<br />

sempre encerrar o seu discurso quan<strong>do</strong> percebe que sua mensagem já foi entendida, mesmo que<br />

tenha si<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> planeja<strong>do</strong> —, ele continuou pregan<strong>do</strong> por mais dez minutos. E todas as vezes


que ele perguntava: “Quem quer receber a Jesus como seu salva<strong>do</strong>r”, Alda respondia baixinho:<br />

“Eu quero”, mas o homem não se tocava. No fim de tu<strong>do</strong>, perguntou se alguém queria ir à frente<br />

<strong>do</strong> púlpito fazer uma confissão de fé em Cristo. Alda foi e, até onde eu me lembro, só ela foi.<br />

Havia também algumas crianças ali na frente.<br />

— Amém! Aleluia! — era a exclamação <strong>do</strong> rapaz que estava ao nosso la<strong>do</strong>. Se eu não me<br />

garantisse muito em relação a ela, acharia que ele tinha fica<strong>do</strong> a fim de Alda. Olhei para ele quase<br />

irrita<strong>do</strong>. — Parabéns, sua namorada agora é de Jesus. Parabéns — disse-me ele estenden<strong>do</strong> a<br />

mão.<br />

— Eu disse a você que esse culto tinha si<strong>do</strong> feito para você, num disse? — exclamou<br />

Neemias, o homem <strong>do</strong> bigode que me convidara para ir à igreja. Meio sem graça, eu não dizia<br />

nada.<br />

— <strong>Caio</strong>, o homem ali na frente está pedin<strong>do</strong> meu nome e endereço — Alda veio ofegante e<br />

falan<strong>do</strong> alto até o último banco, onde eu estava em pé, cerca<strong>do</strong> por Neemias e Adilson, o rapaz<br />

alegre. — Será que ele vai querer me batizar na marra? Meu pai num vai gostar disso. Ele é muito<br />

católico — ela concluiu. Então o rapaz alegre tomou a palavra e explicou que não era nada de<br />

batismo. Eles apenas gostariam de mandar um material pelo correio para ela ler.<br />

No caminho para casa, Alda me disse que não havia gosta<strong>do</strong> <strong>do</strong> jeito estereotipa<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

prega<strong>do</strong>r, que não havia presta<strong>do</strong> atenção a nada, mas que, de repente, a afirmação dele sobre<br />

Jesus como o caminho para o Pai havia <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> completamente a sua mente. Disse que, de<br />

algum mo<strong>do</strong>, ela tinha percebi<strong>do</strong> que não estava sen<strong>do</strong> chamada ao Cristo lúgubre <strong>do</strong> quarto da<br />

vó Celina, mas para uma experiência de luz e libertação, completamente diferente das imagens<br />

escuras e derrotadas da religião.<br />

Com Alda cren<strong>do</strong> nas mesmas bases de fé que eu queria crer, as coisas começaram a ficar<br />

melhores. Agora, pela primeira vez em muito tempo, eu tinha uma amiga que me convidava para<br />

coisas boas. Não demorou e ela começou a se tornar mais comprometida com as coisas da fé que<br />

eu mesmo, pois nos primeiros trinta dias eu sentia temores periódicos de não conseguir me<br />

manter no caminho e, em vez de me entregar completamente, ainda dava algumas vaciladas<br />

interiores. Entretanto, sabia que aquele era o único meio de vida espiritual que eu tinha diante de<br />

mim. Somente em Cristo eu conseguiria <strong>do</strong>mar as feras selvagens que corriam insaciáveis pela<br />

floresta de minha alma.<br />

Foi nesse perío<strong>do</strong> que percebi como papai se tornara uma pessoa espiritualmente<br />

disciplinada. Ele acordava to<strong>do</strong>s os dias às três da madrugada para ler a Bíblia por uma hora. “Na<br />

solidão da noite é mais natural ouvir a voz de Deus”, dizia ele. Eu tentei fazer o mesmo mas não<br />

deu. Caía em cima da Bíblia, baban<strong>do</strong> de tanto sono. Papai também se entregava aos jejuns com<br />

extrema avidez. Era como se ele tivesse se torna<strong>do</strong> um glutão de jejum. Ele tinha fome de não<br />

comer comida, a fim de poder participar de um outro banquete, aquele que os anjos servem aos<br />

que têm desejo de Deus. Lá ficava ele, entregue à leitura bíblica e ao jejum. Às vezes, ele passava<br />

até cinco dias sem comer nem beber coisa alguma. Seus olhos ficavam cada vez mais claros,<br />

ilumina<strong>do</strong>s e puros. De minha parte, achava tu<strong>do</strong> aquilo fantástico, quase inalcançável para uma<br />

pessoa que tivera vícios carnais tão intensos quanto os que eu cultivara até pouco tempo atrás.<br />

Não mudei meu guarda-roupa para ser crente, mas mudei dramaticamente minha atitude.<br />

Por isso, logo correu pela cidade que eu tinha enlouqueci<strong>do</strong> de vez.<br />

— Tá <strong>do</strong>idão, hem bicho? Que barato é esse que cê anda toman<strong>do</strong>? — perguntavam-me<br />

onde quer que eu fosse.<br />

— O barato é Jesus, bicho! — eu respondia, aparentan<strong>do</strong> alguma coragem, mas por dentro<br />

ainda um tanto tími<strong>do</strong> em relação a afirmar a minha fé, pois, embora estivesse aprenden<strong>do</strong> a amar<br />

a Deus, tinha pavor de ser visto como mais um fanático produzi<strong>do</strong> pela religião. Essa era uma


visão de mim mesmo que eu jamais aceitaria. Estava me converten<strong>do</strong> ao evangelho, mas não<br />

queria me esquecer de boa parte de minha percepção anterior da vida, que jamais julgara estar<br />

equivocada.<br />

Não demorou e fui convida<strong>do</strong> para ir dar meu testemunho de fé em uma igreja de um bairro da<br />

periferia. Falei com paixão e não pude terminar. Chorei com muita <strong>do</strong>r na alma pelos meus<br />

peca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> coração. Ao mesmo tempo, <strong>do</strong>minava-me uma imensa gratidão para com esse Deus<br />

que me amava e me aceitava como eu era e que acreditava em mim, no potencial de minha vida,<br />

nas mãos dele.<br />

Eu estava convicto de que queria viver para Deus, mas não sabia como é que conseguiria<br />

conciliar meu desejo de pregar o evangelho de Cristo com as breguices da religião,<br />

aparentemente incuráveis. Esta era a questão que me atormentava, visto que as coisas da igreja<br />

me pareciam muito esquisitas. Às vezes, ficava muito mal-humora<strong>do</strong> com aquelas conversas<br />

caretas <strong>do</strong>s crentes. Tu<strong>do</strong> era peca<strong>do</strong>. O feio e o sem estética eram valoriza<strong>do</strong>s como virtude. O<br />

pequeno e o mirra<strong>do</strong> pareciam ser sinais da graça divina. Alguns jovens falavam de como tinham<br />

para<strong>do</strong> de estudar por amor a Deus. Eu não podia entender aquilo. Afinal, mesmo não sen<strong>do</strong> um<br />

amante <strong>do</strong> ensino acadêmico até aquela época, sabia <strong>do</strong> valor que o saber trazia para a vida. Essa,<br />

na minha opinião, era a diferença entre meu pai e a maioria <strong>do</strong>s <strong>pastor</strong>es que eu conhecia: ele<br />

sabia das coisas.<br />

Por tu<strong>do</strong> isso, a cada dia mergulhava mais apaixonadamente no estu<strong>do</strong> da Palavra de Deus,<br />

mas mantinha uma postura crítica e defensiva em relação à igreja. Além disso, não gostei muito<br />

<strong>do</strong> que vi em algumas igrejas em que fui. Mesmo por baixo daquelas saias longas, daqueles<br />

cabelos escorri<strong>do</strong>s e rostos quase sem pintura, percebia-se um fogo enorme aceso nas meninas e,<br />

às vezes, até nas mulheres casadas. A coisa era toda muito discreta, mas estava lá. Aí, então, ficava<br />

furioso. “Meu Deus, por que esse pessoal num vai pro mundão saber com quantos paus se faz<br />

uma cangalha ao invés de ficar aqui com essa cara de santo e esse desejo de égua no cio?”, eu me<br />

perguntava sozinho, chatea<strong>do</strong> por nem sempre encontrar na igreja um ambiente devidamente<br />

seguro para mim mesmo.<br />

No fim <strong>do</strong> terceiro mês, chegou a Manaus um prega<strong>do</strong>r armênio, que sempre andava vesti<strong>do</strong><br />

de preto e pregava com a simplicidade de uma criança. Sua mensagem era sem muita elaboração<br />

e baseava-se nas experiências espirituais que ele dizia ter com Deus. Ouvi-o com muito interesse<br />

na Igreja Batista de Renovação Espiritual. No dia seguinte, Samuel Doctorian foi almoçar com<br />

meu pai. Alda e eu também participamos <strong>do</strong> almoço e, ao final da conversa, aproveitei para dizer a<br />

ele como eu me sentia: queria servir a Deus, mas não gostava <strong>do</strong> que via na igreja, gostaria de ser<br />

espiritualmente culto, mas não queria ir ao seminário teológico, gostaria de ser <strong>pastor</strong>, mas não<br />

gostaria de ser dependente da igreja. Ele me aconselhou, falou-me de suas lutas contra os<br />

demônios, os homens, as mulheres e Deus e, a seguir, orou por mim.<br />

Naquela noite fomos ouvi-lo numa outra igreja. No meio da pregação, numa igrejinha de<br />

madeira da Assembléia de Deus <strong>do</strong> bairro de São Raimun<strong>do</strong>, ele parou de repente e disse:<br />

— Deus está me dizen<strong>do</strong> que Ele vai usar aquele jovem de cabelos longos senta<strong>do</strong> ali no<br />

final, e que esse rapaz vai ser conheci<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> este país como mensageiro <strong>do</strong> evangelho. — E<br />

acrescentou: — Não tenha me<strong>do</strong> de ser usa<strong>do</strong> por Ele. Deus vai honrar você — concluiu,<br />

enquanto eu me derretia em um pranto quente e cheio de fogo. Era como se estivessem<br />

derraman<strong>do</strong> uma cachoeira de amor sobre mim. A sensação que me <strong>do</strong>minava era a de que o<br />

Sublime me conhecia e me chamava pelo nome. Era demais para mim. Parecia que minha carne<br />

se liquefaria. A chama que ardia sobre minha cabeça e em meu peito não tinha precedentes em<br />

minha experiência humana. E, de algum mo<strong>do</strong> que eu não podia explicar, surgiu dentro de mim<br />

uma estranha intrepidez espiritual.


Saí dali com coragem para enfrentar o ridículo, os preconceitos, os olhares de desprezo e a<br />

ação mal<strong>do</strong>sa de quem quer que aparecesse. Tu<strong>do</strong> o que importava agora era viver para cumprir a<br />

profecia divina que pousara sobre a minha vida. Apenas muitos anos depois perceberia com<br />

clareza o poder e a influência que aquele episódio teve sobre minha trajetória como cristão.<br />

Daquele dia em diante, comecei a pensar na vida de fé com um senti<strong>do</strong> estratégico que antes<br />

eu não possuía. Passei a ver a mim mesmo como alguém que participava de uma grande e sutil<br />

conspiração divina para conquistar o coração de to<strong>do</strong>s os seres humanos com o Seu amor. E eu<br />

queria ser um <strong>do</strong>s Seus agentes espiritualmente mais sedutores e revolucionários.<br />

“Oh!, Deus, que Tu me uses para conduzir muitos ao conhecimento de Teu amor”, era a<br />

minha oração quase obsessiva. Ao me sentir assim tão especialmente desafia<strong>do</strong> por Deus a ser<br />

um de Seus agentes de amor, surgiu imediatamente em mim a mesma motivação para a oração e<br />

para o jejum que havia em meu pai. Iniciei os mesmos exercícios de devoção que eu o via fazer.<br />

No início, eram apenas 24 horas de jejum. Mas depois de três meses, já conseguia ficar até quatro<br />

dias sem comer nem beber nada, enquanto minha alma flutuava com um prazer de existir que<br />

não sabia estar disponível aos mortais.


Capítulo 27<br />

“Sentira-me atraí<strong>do</strong> pelo estu<strong>do</strong> da sabe<strong>do</strong>ria, mas ia adian<strong>do</strong> sempre a hora de me<br />

entregar à sua investigação. A busca da sabe<strong>do</strong>ria deveria ser preferida a qualquer<br />

felicidade terrena, pois não somente sua investigação, mas sobretu<strong>do</strong> sua<br />

descoberta, me daria acesso a riquezas maiores que os melhores tesouros <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> e mais excelentes que os maiores prazeres corporais, que, a um aceno,<br />

ainda estavam ao meu inteiro dispor.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Aquele ano de 1973, que havia começa<strong>do</strong> sob o signo da morte, estava terminan<strong>do</strong> como a<br />

estação de minha maior alegria e encontro na vida. Entretanto, eu me sentia na obrigação de dar<br />

rumos normais à minha existência. Talvez porque tenha ouvi<strong>do</strong> desde a infância que papai queria<br />

ter estuda<strong>do</strong> engenharia e nunca pôde, surgiu-me a idéia de que talvez meus pen<strong>do</strong>res fossem<br />

naquela área. Matriculei-me no curso de edificações, da Escola Técnica Federal, e fui à luta, em<br />

busca de um lugar ao sol.<br />

O problema é que dentro de mim havia um permanente desassossego. Dia e noite eu me via<br />

pregan<strong>do</strong> para multidões. Ia para a escola em jejum e mantinha a mente em oração e meditação o<br />

tempo to<strong>do</strong>. De súbito, comecei a me apanhar em lágrimas ante uma fórmula química ou uma<br />

equação de física. Tu<strong>do</strong> me falava das essências da existência e me remetia para meu Cria<strong>do</strong>r,<br />

com quem cochichava segre<strong>do</strong>s de amor essencial. Estava irremediavelmente apaixona<strong>do</strong> por<br />

Deus, e to<strong>do</strong> o resto, ainda que ten<strong>do</strong> sua importância reconhecida, tornava-se inapelavelmente<br />

secundário.<br />

A essa altura, lá pelo mês de março de 1974, minha mente começou a ficar definitivamente<br />

<strong>do</strong>minada pela idéia de que a pregação <strong>do</strong> evangelho era minha grande vocação. Isto porque, nas<br />

poucas vezes em que eu falara em público, duas coisas haviam aconteci<strong>do</strong>: meu interior fora<br />

toma<strong>do</strong> por uma alegria tão forte, que minha alma parecera estar experimentan<strong>do</strong> fortíssimas<br />

formas de prazer existencial. Além disso, eu havia percebi<strong>do</strong> que as pessoas paravam, como que<br />

incontrolavelmente ligadas ao que eu estava dizen<strong>do</strong>. E esses <strong>do</strong>is sinais me pareciam divinos.<br />

Foi nesse ponto que conheci um chileno, chama<strong>do</strong> Flávio Provoste, que havia si<strong>do</strong><br />

apresenta<strong>do</strong> à mensagem de Cristo enquanto tomava drogas na fronteira <strong>do</strong> Brasil com a<br />

Venezuela. Depois de passar um ano na casa de um <strong>pastor</strong> batista em Roraima, fora para Manaus.<br />

Flávio parecia um hippie. Com seus longos e lisos cabelos negros, queixo projeta<strong>do</strong>, rosto largo e<br />

não mais <strong>do</strong> que um metro e setenta de altura, ele era o tipo da figura cristã que me animava. Ali


estava, bem diante <strong>do</strong>s meus olhos, um crente <strong>do</strong>i<strong>do</strong>. Livre das drogas, mas devidamente manti<strong>do</strong><br />

em esta<strong>do</strong> de liberdade em relação a usos, costumes e jargões evangélicos. Eu gostei dele de<br />

saída.<br />

“Irmano, os caras estão morren<strong>do</strong>. O que eles sientem é sede de Dios”, falava ele em seu<br />

portunhol. Os caras que estavam morren<strong>do</strong> eram os milhares de hippies que andavam pela<br />

Amazônia naqueles dias, fazen<strong>do</strong> o circuito da ayahuasca que ia da Venezuela ao Pará. Em<br />

Manaus, as praças andavam cheias deles. “Por que qui usted non prega para elhos?”,<br />

indagava-me o crente hippie. Eu dizia que não me negava a fazê-lo, mas que não forçaria a barra.<br />

“Mas se nosotros não hablarmos, quiem va hablar?”, empurrava-me contra a parede. Um dia ele<br />

me apareceu com outro cara <strong>do</strong>i<strong>do</strong>. Era um tipo lin<strong>do</strong>, de cabelos escorri<strong>do</strong>s pelas costas e um<br />

aspecto imponente de índio apache de filme americano. Quan<strong>do</strong> vi Oswal<strong>do</strong> Parangues se<br />

aproximar, minha mente sofreu um impacto com a beleza indígena <strong>do</strong> rapaz. Ele estava no<br />

Amazonas queren<strong>do</strong> explorar as ondas alucinógenas <strong>do</strong>s chás de cogumelos, que eram<br />

amplamente servi<strong>do</strong>s à comunidade de malucos no interior <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>.<br />

No entanto, os braços e as costas de Oswal<strong>do</strong>, em conseqüência da profunda intoxicação<br />

causada pelos cogumelos, estavam cheios de feridas purulentas, e ele estava começan<strong>do</strong> a viver<br />

com uma febre permanente em razão das infecções. Quan<strong>do</strong> vi o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> rapaz, levei-o para a<br />

casa de meus pais e comecei a cuidar dele. Diariamente eu o levava ao hospital de <strong>do</strong>enças<br />

tropicais para que suas ataduras e curativos fossem troca<strong>do</strong>s. Durante aquele perío<strong>do</strong> de<br />

aproximadamente duas semanas, enquanto ele recebia tratamento, eu lhe falava <strong>do</strong> amor<br />

apaixona<strong>do</strong> e louco de Deus pelos seres humanos. Um dia, quan<strong>do</strong> voltávamos <strong>do</strong> hospital, ele me<br />

olhou com lágrimas nos olhos e disse: “Iô creo que Dios me ama porque usted me ama com uno<br />

amor que solomente Dios poderia ter poni<strong>do</strong> dentro de tu corazion.” Eu achava o portunhol dele<br />

bonito e cheio de ternura humana. Parei o carro, dei-lhe um abraço fraterno e pedi em voz alta a<br />

Deus que viesse encher o coração de Oswal<strong>do</strong> com o poder <strong>do</strong> Espírito Santo. Ele nunca mais foi<br />

a mesma pessoa até o dia de hoje.<br />

A conversão de Oswal<strong>do</strong> deflagrou um processo maravilhoso. Ele e Flávio passaram a ir às<br />

praças convidar to<strong>do</strong>s os malucos para virem à minha casa fazer bijuterias. Eu comprava to<strong>do</strong> o<br />

material: couro, cola, áci<strong>do</strong>, metal, correntinhas etc. Enfim, tu<strong>do</strong> o que pudesse entretê-los<br />

trabalhan<strong>do</strong> nos fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> quintal da casa de meus pais, enquanto eu abria a Bíblia e falava de<br />

Jesus com eles. Foram meses fantásticos. Nossa casa virou uma comunidade hippie. De repente,<br />

comecei a ver a força renova<strong>do</strong>ra e liberta<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> amor de Cristo iniciar processos de iluminação<br />

espiritual na mente daquela moçada louca. Muitos deles largaram as drogas ali, bem diante de<br />

nossos olhos, e passaram a ser anjos da graça de Deus, levan<strong>do</strong> a mesma mensagem para seus<br />

amigos ou mesmo de volta às suas casas e famílias.<br />

Eu não podia acreditar no que estava acontecen<strong>do</strong>. E mais: o assunto já se tornara tema de<br />

conversa em escolas e até em faculdades. Foi nesse ponto que comecei a ser convida<strong>do</strong> para ir<br />

falar em algumas escolas. O processo foi mais ou menos assim: motiva<strong>do</strong>s pelo trabalho com os<br />

hippies, Alda, eu, Júnior e Artunilza — amigos que também haviam acaba<strong>do</strong> de se converter à fé<br />

— iniciamos uma reunião somente para jovens, aos sába<strong>do</strong>s à noite. A iniciativa foi<br />

absolutamente bem-sucedida. Em <strong>do</strong>is meses, a velha e morta Igreja Presbiteriana Central de<br />

Manaus estava completamente lotada de moços de to<strong>do</strong>s os tipos e classes sociais.<br />

Até mesmo meu amigo Alipinho foi lá ver o que estava acontecen<strong>do</strong> e ficou por uns três<br />

meses. Depois me disse que não sabia como é que eu podia ficar sem mulher e disse que para ele<br />

não dava. Três meses sem faturar as gatas era demais. “Eu admiro você, <strong>Caio</strong>, mas eu num<br />

consigo ficar sem sexo”, disse-me com emoção, mas nunca mais voltou.<br />

A fórmula da reunião era simples: muita música cristã ao embalo de guitarras, baterias e tu<strong>do</strong>


o que fizesse barulho, seguida de uma mensagem minha ou de alguém que eu convidasse e que<br />

conseguisse se comunicar informalmente com a garotada. Era uma maravilha. Dezenas se<br />

entregavam a Cristo to<strong>do</strong>s os meses, e a coisa explodiu.<br />

Ora, essa moçada apaixonada por Deus ia de volta para a escola e contava o que estava<br />

acontecen<strong>do</strong>. Foi assim que as orienta<strong>do</strong>ras educacionais começaram a me convidar para ir dar<br />

aula de moral e cívica.<br />

— Mas eu não tenho nada a dizer sobre moral e muito menos sobre cívica, minha senhora.<br />

Eu só sei dizer o que Jesus fez na minha vida, serve? — eu perguntava.<br />

— Nós não podemos convidá-lo para a aula de educação religiosa porque o padre não vai<br />

gostar. Mas na aula de moral e cívica não há o que reclamar. O problema é que a gente num sabe<br />

mais o que fazer com esses moços. Estão rebeldes e não sabemos como falar com eles. Mas você<br />

sabe — diziam.<br />

Assim, um ano depois de ser um <strong>do</strong>s mais rebeldes e desordeiros jovens de minha cidade,<br />

vi-me alça<strong>do</strong> à posição de professor de moral e cívica, recruta<strong>do</strong> por diretores e professores<br />

desespera<strong>do</strong>s.<br />

Foi uma revolução. Eu começava de um texto bíblico sobre conduta e partia para a alma.<br />

— Nosso problema não é de moral e cívica. Nosso problema é esse vazio desgraça<strong>do</strong> que<br />

come a gente por dentro. É isso aí que leva você para a boca <strong>do</strong> inferno tentan<strong>do</strong> encontrar uma<br />

resposta. Foi isso que aconteceu comigo e é contra essa morte que Deus oferece o antí<strong>do</strong>to Dele,<br />

que é Jesus — eu pregava.<br />

A mensagem era simples, mas sincera, apaixonada e cheia de fé. Nunca falhava. Na maioria<br />

das vezes, via os meninos e meninas desabarem no choro bem diante <strong>do</strong>s meus olhos, enquanto<br />

eu falava. Não raramente a aula acabava e eu tinha que ficar mais duas horas no auditório ouvin<strong>do</strong><br />

as angústias juvenis <strong>do</strong>s alunos. A maioria deles me conhecia de antes e não podia acreditar no<br />

que havia aconteci<strong>do</strong>. Entretanto, não havia como negar as evidências de minha conversão.<br />

As devoções espirituais, no entanto, seguiam inalteradamente o seu curso. E mais: como eu<br />

havia acaba<strong>do</strong> de ler o Apóstolo <strong>do</strong>s pés sangrentos, o mesmo livro que estimulara a vida espiritual<br />

de meu pai cinco anos antes, decidira dedicar-me ainda mais à oração e à busca de êxtase para o<br />

espírito. Assim é que, mesmo sen<strong>do</strong> extremamente solicita<strong>do</strong>, freqüentemente parava tu<strong>do</strong> e me<br />

fechava no quarto por três dias sem comer nem beber, buscan<strong>do</strong> uma consagração especial de<br />

meu ser diante <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r. Naquelas ocasiões, não raramente meu espírito se enchia de uma luz<br />

indescritível. No primeiro dia geralmente sentia fome, mas depois to<strong>do</strong> o desconforto<br />

desaparecia e eu mergulhava em indizível esta<strong>do</strong> de comunhão com a divindade. Essa conexão era<br />

tão fantástica, que me dava a sensação de estar profundamente liga<strong>do</strong> a Deus e à Sua criação.<br />

Olhava o movimento das nuvens e derretia-me de amor ante sua dança celestial. O cântico <strong>do</strong>s<br />

pássaros arrebatava-me. Os cheiros da vida ao re<strong>do</strong>r vinham aos meus senti<strong>do</strong>s cheios de valor<br />

sacramental. Enfim, minha alma se tornava maior e mais sensível, e o mun<strong>do</strong> espiritual se<br />

convertia em meu vizinho mais próximo.<br />

Minha sensibilidade para a presença de anjos e demônios também crescia bastante. Naquele<br />

esta<strong>do</strong> de oração, eu sentia um cheiro estranho, sempre o mesmo, quan<strong>do</strong> entrava em lugares<br />

carrega<strong>do</strong>s de espíritos malignos. “Aqui tem alguém com forças malignas”, eu dizia sem<br />

ostentação, mas com certeza <strong>do</strong> que estava falan<strong>do</strong>. E não dava outra. Começávamos a investigar e<br />

logo aparecia alguém se dizen<strong>do</strong> amarra<strong>do</strong> à bruxaria e às forças das trevas. Mas os anjos também<br />

estavam lá. Às vezes, sentia uma alegria súbita imensa quan<strong>do</strong> discernia a presença das milícias<br />

de Deus ao meu re<strong>do</strong>r.<br />

Viven<strong>do</strong> naquela dimensão de arrebatamento espiritual, o curso de edificações tornou-se<br />

insuportável para mim. Não agüentava mais ficar senta<strong>do</strong> no banco da escola enquanto havia


tanta gente para ser ganha <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora e de dentro. Entretanto, eu perseverava o quanto podia.<br />

Contu<strong>do</strong>, sempre que ouvia falar de algum grupo que estava se reunin<strong>do</strong> para orar, largava a<br />

classe e ia me juntar a esses intercessores espirituais. Porém, minha decisão de não freqüentar<br />

mais o curso só veio a acontecer depois de um episódio inusita<strong>do</strong>.<br />

A aula de física estava acontecen<strong>do</strong>. O relógio marcava aproximadamente nove e meia da<br />

noite.<br />

— Meu Deus, o que é aquilo ali no céu? — perguntou em tom de total estupefação um rapaz<br />

senta<strong>do</strong> próximo à janela da sala.<br />

To<strong>do</strong>s nós, inclusive o professor, corremos para uma das janelas, de onde vimos que no pátio<br />

em frente à escola já havia uma pequena multidão, olhan<strong>do</strong> para o céu, em silêncio e<br />

perplexidade.<br />

— O que é aquilo Jesus? Será um sinal de Tua vinda? Como é que eu posso entender esse<br />

espetáculo à luz de Tua existência como Senhor de tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s? — perguntei a Deus em choque<br />

com aquilo que estava ali, bem em frente a to<strong>do</strong>s nós e para cuja realidade não tínhamos<br />

nenhuma explicação plausível.<br />

— Não é avião, nem helicóptero, e muito menos balão meteorológico — disse o professor.<br />

A coisa que pairava no céu, como se fosse uma imensa rocha cheia de luz, não era lisa nem<br />

uniforme em sua aparência. Na verdade, parecia uma imensa traça de parede, só que porosa e<br />

com irregularidades em seu corpo, como se fosse o <strong>do</strong>rso de um animal pré-histórico. A luz saía<br />

de dentro da coisa como se vazasse de seus poros. O movimento era lento, porém visivelmente<br />

determina<strong>do</strong>. O objeto passou bem devagar no céu em frente à escola. Sua distância em relação a<br />

nós parecia ser de uns três mil metros, mas a sensação de tamanho que aquilo passava era<br />

esmaga<strong>do</strong>ra. Lembrava alguns <strong>do</strong>s aparelhos estranhos <strong>do</strong>s filmes Star Trek. Era como se uma<br />

enorme base interplanetária, <strong>do</strong> tamanho de uns três Jumbos cola<strong>do</strong>s um ao outro, estivesse<br />

cruzan<strong>do</strong> lentamente o céu de Manaus.<br />

O espetáculo durou cerca de <strong>do</strong>is longos minutos. Depois, o objeto fez a curva, ganhou<br />

velocidade com uma propulsão extraordinária e desapareceu na direção <strong>do</strong> horizonte escuro<br />

como breu <strong>do</strong> rio Negro. Fiquei completamente choca<strong>do</strong> com o episódio.<br />

— Professor, o que era aquilo? — perguntei.<br />

— Não tenho a menor idéia. Mas que não era qualquer coisa que a gente conheça neste<br />

planeta, isso eu sei que não era — ele respondeu com humildade, consciente de suas limitações<br />

humanas.<br />

Pedi licença e saí da sala. No pátio não se falava em outra coisa.<br />

— Era disco voa<strong>do</strong>r, cara! — diziam uns.<br />

— Que nada, era algum supermeteoro — afirmava outro.<br />

— Tá maluco, bicho, meteoro num cai assim, passean<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> manobras lentas na<br />

frente da gente. Aquilo ali tinha movimento inteligente — dizia um outro com olhos cheios de<br />

mistério.<br />

Fosse o que fosse, causou-nos um imenso impacto.<br />

Montei na moto e corri para a casa de Alda, na Capitania <strong>do</strong>s Portos, bem às margens <strong>do</strong><br />

Negro. Quan<strong>do</strong> cheguei lá, encontrei-a com os irmãos, os pais e os marinheiros, enfim, com to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora, olhan<strong>do</strong> para o céu.<br />

— Cê viu a coisa? Que incrível! — disse Rose, irmã mais nova de Alda. Conversan<strong>do</strong> com<br />

eles é que vim a saber que aquela aparição demorara muito mais <strong>do</strong> que eu havia imagina<strong>do</strong>, e que<br />

as evoluções daquele objeto tinham si<strong>do</strong> mais longas e sofisticadas <strong>do</strong> que tínhamos percebi<strong>do</strong> lá<br />

da janela da escola. Na verdade, parece que o que vimos foi apenas o final daquelas<br />

demonstrações misteriosas. Para Alda e para muitas outras pessoas na cidade, o espetáculo


durara pelo menos uns seis ou oito minutos, e houve idas e vindas daquela manifestação, ora<br />

desaparecen<strong>do</strong> no horizonte, ora reaparecen<strong>do</strong> suave e majestosamente, exibin<strong>do</strong>-se ante os<br />

olhos estupefatos de milhares de amazonenses.<br />

No dia seguinte, os jornais amanheceram cheios de histórias sobre as visões coletivas da noite<br />

anterior. Estranhamente, não havia fotografias ou filmes de nada. Apenas o testemunho de<br />

milhares de pessoas é que permitia à própria cidade falar daquilo sem que ninguém se sentisse<br />

ridículo.<br />

As aparições deixaram-me com duas claras percepções na mente. A primeira era a de que,<br />

num mun<strong>do</strong> tão aberto para as manifestações <strong>do</strong> estranho e <strong>do</strong> inusita<strong>do</strong>, não havia mais espaço<br />

para eu viver de mo<strong>do</strong> normal. As portas <strong>do</strong> extraordinário estavam abertas e eu queria entrar por<br />

elas. A segunda idéia era a de que aquilo poderia ser um <strong>do</strong>s sinais bíblicos da vinda de Jesus e<br />

que, portanto, eu não queria mais desperdiçar meus dias com qualquer coisa que não apontasse e<br />

contribuísse para a preparação da humanidade para aquele dia e hora.<br />

Nunca mais voltei à escola. Daquele ponto em diante, dediquei-me completamente ao estu<strong>do</strong><br />

da Bíblia, à oração e à pregação da Palavra.<br />

Estávamos em julho de 1974. Fazia um ano que minha vida virara <strong>do</strong> avesso. Agora,<br />

entretanto, eu me deparava com uma oportunidade completamente nova. Um velho amigo de<br />

meu pai, Dr. Filipe Dau, <strong>do</strong>no da Rede Amazônica de Televisão, ofereceu-nos a possibilidade de<br />

termos um programa semanal na sua emissora. Seria ao vivo, aos <strong>do</strong>mingos à noite, com trinta<br />

minutos de duração. De repente, vi-me diante das câmeras e com um moço chama<strong>do</strong> Rosinal<strong>do</strong>,<br />

diretor da estação, dizen<strong>do</strong>-me que eu estaria no ar em um minuto.“Olha, num pode errar. Se<br />

gaguejar, não pare. Vá adiante”, informou-me ele.<br />

Ao final <strong>do</strong> primeiro programa, o próprio Rosinal<strong>do</strong> parabenizou-me, dizen<strong>do</strong>: “Meu amigo,<br />

você tem jeito para esse negócio. Tô impressiona<strong>do</strong>. Cê num errou nem uma vez. Muito bom.”<br />

Com tu<strong>do</strong> isso se des<strong>do</strong>bran<strong>do</strong> como num turbilhão, eu não tinha tempo suficiente para<br />

perceber o que estava acontecen<strong>do</strong> comigo, mas muita gente falava no assunto o tempo to<strong>do</strong> na<br />

cidade. E, mesmo sem me dar conta, eu havia me transforma<strong>do</strong> na atração espiritual de Manaus.<br />

— Meu filho, sempre assisto ao seu programa na televisão. Você é muito jovem, mas fala com<br />

a alma e eu gosto de ouvi-lo. Não pare de fazer o que você está fazen<strong>do</strong>. Há muita gente<br />

impressionada — disse-me o governa<strong>do</strong>r José Lin<strong>do</strong>so num dia em que o encontrei por acaso<br />

numa das salas <strong>do</strong> palácio <strong>do</strong> governo, onde eu fora acompanhan<strong>do</strong> meu pai.<br />

Depois, comecei a ver gente que não falava comigo por causa de minhas loucuras anteriores<br />

começar a balançar a cabeça em saudação quan<strong>do</strong> me encontrava na rua ou quan<strong>do</strong> eu passava<br />

pilotan<strong>do</strong> minha motocicleta. Minha imagem estava sen<strong>do</strong> restaurada com rapidez<br />

impressionante, e eu apenas assistia ao desenrolar daqueles eventos nos quais eu era muito mais<br />

especta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que agente. Deus estava em ação e Seu propósito parecia ser muito mais defini<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> que eu jamais conseguiria perceber naquele momento. Fosse como fosse, minha alma vivia em<br />

permanente esta<strong>do</strong> de prazer espiritual. E eu sabia exatamente por que aquilo estava<br />

acontecen<strong>do</strong>.


Capítulo 28<br />

“Naqueles dias não me fartava de considerar a profundidade de Teus desígnios<br />

para a salvação <strong>do</strong> gênero humano, pela <strong>do</strong>çura admirável que sentia. Quanto<br />

chorei ao ouvir, profundamente comovi<strong>do</strong>, Teus hinos e cânticos, que ressoavam<br />

suavemente em Tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus ouvi<strong>do</strong>s, e<br />

destilavam verdade em meu coração. Acendia-se em mim um afeto pie<strong>do</strong>so,<br />

corriam-me lágrimas <strong>do</strong>s olhos, e me fazia bem chorar.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No segun<strong>do</strong> semestre de 1974, Alda e eu começamos a falar em casamento. Ela ainda era<br />

uma menina, com seus 17 anos, assim como eu não era mais que um garoto bem-roda<strong>do</strong>,<br />

embora, aos 19 anos, eu me sentisse maduro e cheio de fé. Obviamente, eu não era nenhuma das<br />

duas coisas, mas normalmente, aos 19 anos, é assim que você se sente, especialmente quan<strong>do</strong><br />

tem histórias para contar que a grande maioria <strong>do</strong>s anciãos nem sonha em ter vivi<strong>do</strong>.<br />

No mesmo perío<strong>do</strong> comecei a ser chama<strong>do</strong> de <strong>pastor</strong> pelas pessoas da cidade. Mas como eu<br />

poderia carregar aquele título, se os presbiterianos, grupo ao qual estava liga<strong>do</strong> por causa de<br />

meus pais, não ordenavam ministros que não fossem cursar os quatro anos de seminário<br />

teológico? Na verdade, eu desejava que as duas coisas me acontecessem o quanto antes: queria<br />

casar e sonhava ser ordena<strong>do</strong> <strong>pastor</strong>. O primeiro desejo, contu<strong>do</strong>, parecia estar muito mais à mão<br />

que o segun<strong>do</strong>.<br />

— Papai, vamos enfrentar aquela fera? — indaguei fazen<strong>do</strong> referência ao capitão <strong>do</strong>s portos,<br />

o capitão-de-mar-e-guerra Manoel José <strong>do</strong>s Passos Fernandes, pai de Alda. Fomos até lá, e quase<br />

matei o pobre homem <strong>do</strong> coração quan<strong>do</strong> lhe falei que ele teria de voltar para o Rio sem a sua filha<br />

primogênita, pois ela iria se casar comigo em janeiro <strong>do</strong> ano seguinte, 1975.<br />

— Pela madrugada! — ele exclamou. — Vocês são to<strong>do</strong>s malucos — continuou. — Como é<br />

que vocês vão viver? Alda é menina e é mimada, acostumada a tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> bom e <strong>do</strong> melhor. Você,<br />

<strong>Caio</strong>, era um <strong>do</strong>idão da pesada até um dia desses. Agora diz que está muda<strong>do</strong>. Deus te ouça. Mas<br />

e aí? A vida é dura, gente. E eu me admiro é <strong>do</strong> senhor, reveren<strong>do</strong> — e olhou para meu pai — de<br />

dar força para uma loucura dessas! — disse agitadíssimo, trocan<strong>do</strong> as pernas no sofá, enquanto<br />

mostrava grande constrangimento com a situação.<br />

Era fácil para ele, entretanto, perceber nos meus olhos e nos de Alda que aquela era uma<br />

situação sem volta. Resmungou, balbuciou pequenos impropérios, sacudiu a cabeça, mas acabou<br />

ceden<strong>do</strong>.


— Quan<strong>do</strong> é mesmo que vocês estão pensan<strong>do</strong> em casar? — perguntou. Alda entrou em ação<br />

e já foi fazen<strong>do</strong> planos em vez de responder a pergunta.<br />

— Em janeiro, capitão — disse meu pai sem alteração na voz.<br />

— E como é que vocês vão viver? Onde vão morar? Amor não paga a conta de luz e não põe<br />

pão na mesa, meninos! — falou de mo<strong>do</strong> soberano. — Além disso, esse aí — olhou para mim —<br />

não tem emprego e não me parece estar queren<strong>do</strong> ganhar a vida como to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Desculpe-me, reveren<strong>do</strong>, o senhor era um advoga<strong>do</strong> brilhante, mas seu filho não era nada e agora<br />

quer ganhar a vida no bico, pregan<strong>do</strong>. Eu não enten<strong>do</strong> isso, não. O senhor me desculpe — disse<br />

meu futuro sogro.<br />

Papai respondeu calmamente que ele sabia o que estava fazen<strong>do</strong> e que acreditava em mim.<br />

— O senhor ainda vai agradecer a Deus por ter consenti<strong>do</strong> com a união <strong>do</strong> <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> e da<br />

Aldinha. O senhor vai ver — afirmou papai com total confiança.<br />

O segun<strong>do</strong> desejo, no entanto, era muito mais difícil de ser realiza<strong>do</strong>, pois embora eu<br />

desejasse viver para o ministério da pregação <strong>do</strong> evangelho, não podia me ver quatro anos dentro<br />

das paredes de um seminário. Achava que aquilo me afastaria das ruas, das escolas, <strong>do</strong> rádio e da<br />

televisão, e que eu, provavelmente, não sobreviveria ao tédio da experiência. Como sabia que os<br />

presbiterianos jamais consentiriam com minha ordenação sem o curso teológico, comecei a me<br />

imaginar para o resto da vida como um prega<strong>do</strong>r leigo <strong>do</strong> evangelho.<br />

— Vejo esses teólogos de seminário pregan<strong>do</strong> em templos vazios e falan<strong>do</strong> o que ninguém<br />

quer ouvir, enquanto eu prego e as pessoas se convertem. Por que eu vou ficar com inveja deles?<br />

— às vezes confidenciava a meu pai. — Eu vou é dar toda a minha vida para o evangelho de Cristo.<br />

Se me quiserem ordena<strong>do</strong>, que me ordenem; caso contrário, vou servir a Deus e não aos homens<br />

— prosseguia.<br />

O segun<strong>do</strong> semestre de 1974 foi também o tempo de algumas das minhas primeiras<br />

experiências cristãs com as forças espirituais <strong>do</strong> mal. Meu pai já era um combativo guerreiro<br />

espiritual desde sua primeira experiência com um possesso de demônios logo após sua<br />

conversão. Eu, todavia, só havia vivencia<strong>do</strong> aquela dimensão, até então, como vítima. Agora,<br />

entretanto, o cenário era completamente outro. Temor de ficar cara a cara com o bicho, sem a<br />

menor dúvida eu tinha, e muito. Mas, ao mesmo tempo, recusava-me a fugir da luta, se ela<br />

aparecesse.<br />

Dentre os amigos de oração de meu pai havia o irmão Israel. Os <strong>do</strong>is liam a Bíblia juntos,<br />

faziam visitas aos hospitais também juntos e expulsavam demônios juntos. Eu nunca ia com eles.<br />

— Vamos conosco, meu filho — convidava papai.<br />

— Obriga<strong>do</strong>, vou ficar aqui em oração por vocês — respondia com ar compenetra<strong>do</strong>, mas<br />

amedronta<strong>do</strong> por dentro. Meu temor era que aquelas forças, que já haviam me ronda<strong>do</strong> tão de<br />

perto, ainda tivessem o poder de me perturbar a alma.<br />

Um dia, contu<strong>do</strong>, eu estava conversan<strong>do</strong> com papai e Israel na garagem de nossa casa quan<strong>do</strong><br />

chegou alguém corren<strong>do</strong>, pedin<strong>do</strong> que os <strong>do</strong>is fossem ao bairro de São Francisco, a fim de<br />

expulsar um demônio que se apoderara de uma moça de 18 anos. Quan<strong>do</strong> ouvi a história, fiquei<br />

gela<strong>do</strong>. No fun<strong>do</strong>, sabia que não dava mais para fugir da luta. Eu jejuava e orava como pouca gente<br />

fazia, no nível daquelas disciplinas pessoais. Mas não me sentia prepara<strong>do</strong> para o confronto.<br />

— Vem com a gente, meu filho — papai convocou daquela vez, sem deixar margem para<br />

minha hesitação. Tremi como nunca havia tremi<strong>do</strong> diante de uma briga. Meus pêlos se<br />

arrepiaram e meu estômago embrulhou. Uma leve tonteira apoderou-se de mim. Eram os<br />

poderosos sintomas <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Mas não havia retorno.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos ao lugar, vimos que a casa ficava numa depressão profunda, talvez uns<br />

vinte metros abaixo <strong>do</strong> nível da rua. Papai desceu devagar e Israel ficou ao seu la<strong>do</strong>. Sem


perceber, deixei meu nervosismo me empurrar para a linha de frente. Quan<strong>do</strong> me dei conta, já<br />

estava entran<strong>do</strong> na casa sozinho.<br />

— Seu desgraça<strong>do</strong>. Seu desgraça<strong>do</strong>. Eu te conheço, seu desgraça<strong>do</strong>. Eu te vi no Rio de<br />

Janeiro. Você era meu e eu te perdi, desgraça<strong>do</strong> — falou a menina, com voz masculina, enquanto<br />

cinco ou seis homens tentavam segurá-la.<br />

Seus olhos estavam esbugalha<strong>do</strong>s, o branco <strong>do</strong> globo ocular parecen<strong>do</strong> quase saltar da órbita.<br />

Ela era <strong>do</strong> tipo caboclo, atarracada, de compleição gorda e cabelos desgrenha<strong>do</strong>s. Babava de raiva,<br />

enquanto olhava para mim e repetia aquelas palavras. De repente, vi-me em cima dela. Quan<strong>do</strong><br />

papai e Israel entraram na casa, eu já estava em pleno combate.<br />

— É, eu sei que eu fui teu. Eu fui teu, mas tu me perdeste para sempre. Eu também me<br />

lembro de ti lá na praia de Copacabana. Tu quiseste me possuir. Mas eu não fui feito para ser teu.<br />

E agora eu sei de quem eu sou. Eu sou de Jesus. Sai dela, demônio — eu gritei to<strong>do</strong> arrepia<strong>do</strong>,<br />

mas toma<strong>do</strong> de profunda intrepidez.<br />

— Pára de falar assim, seu desgraça<strong>do</strong>. Você parece aqueles cristãos <strong>do</strong>s dias da Cruz. Eu<br />

estava lá quan<strong>do</strong> ele me venceu na Cruz — exclamaram os espíritos que possuíam a jovem.<br />

Por aproximadamente dez minutos nós ouvimos aquelas confissões de derrota por parte <strong>do</strong>s<br />

demônios até que, de súbito, eles se foram, e a garota caiu desmaiada no sofá de napa vermelha,<br />

onde era mantida presa pelo peso <strong>do</strong>s homens que tentavam <strong>do</strong>miná-la.<br />

— Irmão <strong>Caio</strong>, você viu como as regiões celestiais o reconhecem como homem de Deus,<br />

coberto pelo Sangue de Cristo? — disse-me Israel, no fun<strong>do</strong> tentan<strong>do</strong> transformar aquilo tu<strong>do</strong><br />

numa confissão sobre a validade de meu vínculo com Jesus.<br />

— Olha, o diabo não sabe como me edificou espiritualmente hoje, aqui. Nunca mais na vida<br />

eu vou vacilar na luta contra eles. Hoje eu vi, com meus olhos, o que a Cruz de Jesus significa no<br />

mun<strong>do</strong> espiritual — falei, sentin<strong>do</strong>-me extremamente fortaleci<strong>do</strong> na fé.<br />

Não demorou muito e outra história fantástica aconteceu. Todas as sextas-feiras João<br />

Chrisóstomo, Artunilza, Alda e eu — sempre acompanha<strong>do</strong>s de meus irmãos Suely e Luiz <strong>Fábio</strong>,<br />

além de vários outros companheiros de fé — íamos orar a noite toda em lugares solitários. Na<br />

primeira sexta-feira após o episódio da moça de São Francisco, fomos fazer nossa vigília de<br />

oração nas imediações das cachoeiras de Tarumã, nos arre<strong>do</strong>res de Manaus. Em 1974, o lugar<br />

ainda era quase completamente deserto. Ficamos instala<strong>do</strong>s numa pequena casa de madeira<br />

construída sobre troncos enfia<strong>do</strong>s na areia branca, habitação comum nas beiras de alguns<br />

igarapés amazônicos.<br />

Fizemos preces a noite toda. Naquele dia, especialmente, Alda e eu oramos e choramos<br />

muito, pedin<strong>do</strong> a Deus que nos desse filhos que fossem seres humanos bons e capazes de viver<br />

para Deus e para o próximo. Nunca me esquecerei da força que aquela noite teve sobre minha<br />

consciência paterna.<br />

Pela manhã, bem cedinho, ouvimos um grito.<br />

— Jacaré! Peguei um jacaré — era a voz <strong>do</strong> caseiro que tomava conta daquele pequeno sítio,<br />

que pertencia a uma amiga da igreja. Corremos e vimos o homem puxan<strong>do</strong> um jacaré de quase<br />

<strong>do</strong>is metros, pela cauda.<br />

— Por que o senhor matou o bicho? — perguntei um pouco incomoda<strong>do</strong> com o ato<br />

predatório, a meu ver totalmente desnecessário.<br />

— Ora, por quê? Pra gente cumê, moço — falou o caboclo com um ar de riso irônico nos<br />

lábios.<br />

— E o senhor come jacaré? — perguntou uma das meninas <strong>do</strong> grupo, já quase sentin<strong>do</strong><br />

náuseas.<br />

— Se como? Num tem coisa milhó — afirmou ele, passan<strong>do</strong> a língua de uma extremidade à


outra da boca.<br />

Uma hora depois, estávamos sen<strong>do</strong> convida<strong>do</strong>s a comer o jacaré. Quase to<strong>do</strong>s recusaram. Eu<br />

fui e provei o bicho.<br />

— Que delícia. Tem gosto de galinha com peixe — eu me lembro de ter exclama<strong>do</strong>,<br />

enquanto as meninas torciam o rosto fazen<strong>do</strong> o charme de um nojo previamente ensaia<strong>do</strong>.<br />

Depois daquilo, fomos jogar vôlei no campinho de areia que ficava em frente à casa. De<br />

repente, vimos um grupo de cerca de sessenta pessoas se aproximan<strong>do</strong>. Estavam vestin<strong>do</strong> roupas<br />

esquisitas, uns roupões em branco e vermelho, e traziam nas mãos galinhas vivas e outros<br />

alimentos. Pararam a alguns metros de nós e começaram a cantar aos deuses da floresta. Como<br />

apenas uma pequena cerca de estacas pintadas de branco nos separava deles, nós interrompemos<br />

o jogo e nos recolhemos à varanda da casa, de onde ficamos ven<strong>do</strong> o ritual que eles começavam a<br />

oferecer.<br />

— Vem, espírito da floresta. Vem, caboclo. Vem, índio. Vem, bate-bate. Venham, espíritos da<br />

floresta — gritavam juntos.<br />

Depois, uma mulher com ar de sacer<strong>do</strong>tisa destacou-se <strong>do</strong> grupo e começou a cantar um<br />

cântico de invocação <strong>do</strong>s espíritos de mortos. Em seguida, ela deu um grito lancinante e começou<br />

a ro<strong>do</strong>piar sobre os próprios calcanhares. To<strong>do</strong>s se agitaram e gritaram com vozes de estranha<br />

alegria. Então as galinhas passaram a ser imoladas. O sangue era derrama<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r da mata,<br />

num círculo desenha<strong>do</strong> como que para marcar uma clareira espiritual para a chegada daqueles<br />

seres invisíveis.<br />

Foi exatamente naquele momento que fui toma<strong>do</strong> de uma profunda repulsa espiritual, pois<br />

embora reconhecesse o direito cidadão que qualquer pessoa tem de cultuar a quem quer que<br />

pretenda identificar como divindade, minha convicção cristã já não me permitia assistir a um rito<br />

daquele com tranqüilidade. Sabia que a Bíblia proibia a invocação de mortos e também tinha<br />

consciência de que os deuses das florestas nada mais eram <strong>do</strong> que anjos caí<strong>do</strong>s, demônios<br />

engana<strong>do</strong>res e perversos, ansiosos por determinarem seu <strong>do</strong>mínio escravizante sobre aqueles<br />

que a eles se submetiam.<br />

— Nós não vamos ficar assistin<strong>do</strong> a isso cala<strong>do</strong>s. Vamos nos ajoelhar aqui e orar a Deus<br />

contra esse negócio. Isso é demais. A gente invoca o Deus único e vivo a noite toda, e de manhã,<br />

no mesmo lugar, espíritos da escuridão são cultua<strong>do</strong>s? Assim não dá — falei revolta<strong>do</strong>.<br />

Pusemos nossos joelhos no chão e clamamos a Deus. Uma batalha de forças <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

espíritos estabeleceu-se ali. Era possível sentir a densidade conflituosa <strong>do</strong> clima que se formou<br />

no lugar. Deu me<strong>do</strong>. Durante uns 15 minutos a arena estava composta por <strong>do</strong>is grupos humanos<br />

que se digladiavam espiritualmente pela posse <strong>do</strong> espaço invisível que ali existia, enquanto<br />

inúmeros seres angelicais disputavam o controle daquela arena de culto.<br />

— Senhor, nós sabemos que só Tu és Deus e que os deuses <strong>do</strong>s povos não passam de í<strong>do</strong>los.<br />

Senhor, faz com que toda a natureza se una a nós na confissão de que só Tu és Deus. Manda uma<br />

tempestade poderosa. Faz Teus trovões retumbarem e os Teus relâmpagos cortarem os céus<br />

com as luzes de Tua majestade. Ouve a nossa voz, Senhor Jesus — clamei com meu rosto posto<br />

no pó <strong>do</strong> assoalho de madeira que nos mantinha a cerca de um metro de altura <strong>do</strong> chão de areia<br />

branca.<br />

Ora, naquele dia, aquela oração parecia não ter a menor chance de ser ouvida. O sol estava a<br />

pino e o céu completamente azul, sem nuvens. Cinco minutos depois, no entanto, ouvimos algo.<br />

Era o rugir monstruoso de um trovão leonino. Outro gemi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s céus e mais outro. Aí a coisa<br />

toda estalou. Parecia que a floresta estava vin<strong>do</strong> abaixo. Quan<strong>do</strong> as árvores da floresta são agitadas<br />

pelo vento, em geral ouvem-se sons semelhantes a gemi<strong>do</strong>s e grunhi<strong>do</strong>s fantasmagóricos. São os<br />

troncos gigantescos roçan<strong>do</strong> uns nos outros. É aterrorizante. Naquele dia, contu<strong>do</strong>, aqueles


gemi<strong>do</strong>s transformaram-se em sons da voz de Deus. Os trovões tremeram a terra e os relâmpagos<br />

acenderam luzes súbitas e aterra<strong>do</strong>ras em volta de nós. A água que caiu <strong>do</strong> céu era monstruosa<br />

em sua força. Algo anormal estava acontecen<strong>do</strong>.<br />

Demo-nos as mãos e cantamos em júbilo. O gozo <strong>do</strong> divino nos invadiu e nos sentimos<br />

toma<strong>do</strong>s pela força das coisas eternas de um mun<strong>do</strong> invisível, que a maioria <strong>do</strong>s humanos não<br />

percebe e nem discerne a importância essencial.<br />

“Não há Deus tão grande como Tu. Não, não há. Não, não há. Não há Deus que faça as<br />

mesmas obras como as que fazes Tu”, esse era o cântico que nos embalava no nosso devaneio <strong>do</strong><br />

divino e <strong>do</strong> sublime. Então vimos que a tempestade que nos trazia o senti<strong>do</strong> da a<strong>do</strong>ração <strong>do</strong> Deus<br />

único, para<strong>do</strong>xalmente, causava nos nossos oponentes espirituais efeito completamente oposto.<br />

Eles gritavam de raiva. Derramaram o que faltava <strong>do</strong> sangue <strong>do</strong>s animais e começaram a se<br />

retirar. Seus olhos nos fuzilavam com ódio, pois em suas mentes não havia a menor dúvida de que<br />

os deuses haviam si<strong>do</strong> invoca<strong>do</strong>s, mas o único que se apresentara fora Aquele que,<br />

aparentemente, eles não conheciam.<br />

À medida que eles se retiravam nos fitan<strong>do</strong> com fogo e hostilidade, nós mantínhamos nossas<br />

mãos erguidas, abençoan<strong>do</strong>-os e pedin<strong>do</strong> a Deus que os olhos <strong>do</strong> coração daquelas pessoas se<br />

abrissem para que elas percebessem que em Cristo estão todas as provisões para a alma humana.<br />

Daquele dia em diante, comecei a expulsar demônios quase to<strong>do</strong>s os dias. Depois de alguns<br />

meses, filas formavam-se para que nós fizéssemos orações de libertação espiritual sobre os<br />

atormenta<strong>do</strong>s de alma, que vinham de to<strong>do</strong>s os lugares na cidade. De fato, nos anos seguintes eu<br />

haveria de lidar diariamente com situações tão incríveis naquela dimensão espiritual, que, se<br />

contadas, muita gente teria dificuldade de acreditar. Mas porque nós jejuávamos, orávamos e<br />

libertávamos as pessoas de seus tormentos, nossa fama corria a cidade e as pessoas vinham a nós<br />

buscar socorro, o que sempre recebiam, de graça e sem qualquer compromisso com coisa<br />

alguma. Ao contrário, quan<strong>do</strong> alguém desejava deixar uma oferta em dinheiro por ter si<strong>do</strong><br />

atendi<strong>do</strong>, nós repreendíamos essa pessoa veementemente. Meu pai sempre dizia: “Nós<br />

recebemos de graça, nós damos de graça”, o que eu repetia sem vacilação.<br />

Naquelas sessões de exorcismo, havia de tu<strong>do</strong>: pessoas que expeliam longos e pretos espinhos<br />

de tucumã de dentro de seus corpos; gente que tinha letras percorren<strong>do</strong> a pele e mudan<strong>do</strong> de<br />

posição no corpo duas ou três vezes a cada hora; mulheres que derramavam sangue pelos olhos e<br />

pelos poros todas as noites e que eram possuídas por espíritos de prostituição; homens<br />

desarvora<strong>do</strong>s de loucura e manti<strong>do</strong>s em cativeiro por anos, mas que eram “subitamente<br />

liberta<strong>do</strong>s” durante a nossa visita. Além disso, havia ainda mulheres que andavam pelo chão da<br />

casa serpentean<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> na cauda imaginária o ruí<strong>do</strong> de uma cascavel; às vezes, copos de<br />

vidro eram comi<strong>do</strong>s bem diante de nossos olhos ou éramos agredi<strong>do</strong>s com facões imensos por<br />

possessos que corriam em nossa direção para nos matar.<br />

“Sai dele em nome de Jesus”, gritávamos, e víamos as pessoas se espatifarem na corrida,<br />

como se tivessem se choca<strong>do</strong> contra uma muralha invisível. Enfim, to<strong>do</strong>s os dias nós visitávamos<br />

o inferno e saíamos de lá vitoriosos em nome de Jesus. Fazer aquilo, todavia, não nos dava prazer<br />

e não nos induzia ao hábito. Sempre sofríamos juntos, papai e eu, ao vermos um ser humano<br />

posto naquelas condições abissais. Era horripilante ver o que as forças <strong>do</strong> mal podiam fazer com<br />

as pessoas que inadvertidamente se envolviam com elas.<br />

Apesar de toda aquela guerrilha espiritual, Alda e eu prosseguimos em nossos planos de<br />

casamento. Marcamos a data para 20 de janeiro de 1975. Enquanto isso, fui separa<strong>do</strong> para ser<br />

evangelista — designação dada ao obreiro leigo da Igreja Presbiteriana —, servin<strong>do</strong> junto com<br />

meu pai no templo central da cidade e ganhan<strong>do</strong> um salário mínimo por mês.<br />

Não me importan<strong>do</strong> muito com o título de evangelista, continuei as pregações na televisão,


nas escolas e nas praças. E, sobretu<strong>do</strong>, prossegui no trabalho de exorcismo de aflitos, oprimi<strong>do</strong>s e<br />

possessos. Entretanto, algo novo iria acontecer.<br />

Havia na cidade um radialista famoso, que detinha 60% da audiência <strong>do</strong> rádio das sete ao<br />

meio-dia, to<strong>do</strong>s os dias. Esse homem, filho de pais evangélicos, porém viven<strong>do</strong> distante da fé por<br />

mais de trinta anos, veio subitamente a ter uma experiência com Cristo no natal de 1973,<br />

enquanto ouvia um hino evangélico na vitrola de sua casa. O choque da graça de Deus nele foi tão<br />

intenso, que não conseguia mais ficar sem comunicar, aonde quer que estivesse, a existência<br />

daquele mar de Deus que o inundara.<br />

Na rádio, contu<strong>do</strong>, ele tinha embaraços de natureza contratual para fazer isso. Assim,<br />

resolveu desenvolver uma estratégia diferente. Passou a divulgar, dentro de seu programa, todas<br />

as manhãs, uma questão que suscitasse algum tipo de resposta bíblica ou espiritual. Nos<br />

intervalos, ele dizia: “Ao final <strong>do</strong> programa, o jovem <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> vai responder a essa questão. Mas<br />

antes, ligue e dê a sua opinião.” Ele conversava no ar com as pessoas e levantava a bola na área<br />

para eu chutar sozinho e correr para o abraço.<br />

Na primeira vez que isso aconteceu, o telefone não parou de tocar o resto <strong>do</strong> dia. O fluxo<br />

passou a ser tão intenso, que nossa casa começou a se tornar o pior lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para que<br />

pudéssemos descansar. Agora era tu<strong>do</strong> de uma vez: os hippies ainda andavam por lá, os moços das<br />

escolas e faculdades também nos solicitavam, a televisão gerava uma exposição enorme de minha<br />

imagem na cidade e tirava completamente a minha privacidade, e aquele mun<strong>do</strong> de possessos e<br />

aflitos não nos dava descanso. Para completar, quanto mais trabalhava, mais eu jejuava. Assim, no<br />

início de 1975 eu estava pesan<strong>do</strong> 59 quilos, contra os 85 que pesava no tempo de minha conversão,<br />

um ano e meio antes.<br />

Quan<strong>do</strong> dezembro de 1974 começou, fui pintar um barco no qual viagens missionárias eram<br />

feitas para o interior <strong>do</strong> Amazonas. Ali, na beira <strong>do</strong> rio Negro, encosta<strong>do</strong> junto às casas flutuantes,<br />

peguei uma hepatite fortíssima. Possivelmente foram as águas sujas com fezes e outros dejetos o<br />

que me contaminou. O fato é que comecei a me sentir muito mal e não sabia o que era. Como<br />

lidava freqüentemente com coisas espirituais ruins, logo pensei que fossem ataques demoníacos.<br />

Lutei no espírito e resisti pela fé ao mal-estar, repreendi as forças <strong>do</strong> mal, mas não adiantou.<br />

Ondas estranhas percorriam meu corpo. Minha sensação de distância alterou-se e à noite eu via<br />

menos, como se tu<strong>do</strong> estivesse meio amarela<strong>do</strong>. Meu estômago <strong>do</strong>ía e meu fíga<strong>do</strong> parecia estar<br />

grande. Até que amanheci completamente ictérico e me trouxeram um médico, que diagnosticou<br />

hepatite.<br />

Trinta dias na cama, comen<strong>do</strong> leite condensa<strong>do</strong> e goiabada, era o remédio. Obviamente,<br />

consideran<strong>do</strong> o “tratamento”, não achei ruim. Mas ficar <strong>do</strong>ente justo naquele momento, com<br />

tanto demônio para expulsar e ainda por estar tão perto <strong>do</strong> meu casamento, não era o que eu<br />

queria.<br />

Quan<strong>do</strong> o dia 20 de janeiro chegou, Alda estava arrebatada de alegria e eu angustia<strong>do</strong>. Eu a<br />

amava, mas estava com muito me<strong>do</strong> de mim mesmo. “Será que eu vou conseguir ser fiel a ela e só<br />

a ela o resto de minha vida? Será que eu <strong>do</strong>u conta <strong>do</strong> reca<strong>do</strong> de ser um bom mari<strong>do</strong>? Como é que<br />

eu vou fazer para dar atenção a ela no meio de tantas outras coisas? Será que ela agüenta essa vida<br />

louca que eu levo e vou levar pro resto da vida?”; eram as questões de meu pânico, especialmente<br />

na tarde <strong>do</strong> dia 20, quan<strong>do</strong> caí de costa na cama, de braços abertos, e pedi a Deus que não me<br />

deixasse fazer qualquer coisa que a magoasse e que fizesse mal ao testemunho de minha fé.<br />

Casamos ten<strong>do</strong> uma multidão de desconheci<strong>do</strong>s como nossas testemunhas. Eram quase<br />

to<strong>do</strong>s amigos <strong>do</strong>s pais de Alda e o evento virou acontecimento político, com a presença <strong>do</strong><br />

governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> e demais autoridades. Eu queria era sair logo dali. Para mim, aquilo era um<br />

circo. Tive de tirar a barba para casar, pois meu futuro sogro me ameaçou de não nos deixar


contrair núpcias caso eu fosse para lá com aquela cara de Che Guevara. E, imitan<strong>do</strong> Zé Curió,<br />

enquanto eu raspava a barba, repetia: “Eu não quero nem saber quem morreu, eu quero é<br />

chorar.”<br />

Mas a força de meus contatos com a dimensão espiritual não me permitiu relaxar nem<br />

mesmo no casamento, vez que Alda e eu havíamos planeja<strong>do</strong> passar a lua-de-mel num barco, <strong>do</strong><br />

outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> rio Negro, e em vez de fazermos uma lua-de-mel com sexo, iríamos jejuar e orar.<br />

Ela havia concorda<strong>do</strong> com a minha proposta; mas eu, entretanto, fora o pai da idéia maluca.<br />

— Eu já fui tão <strong>do</strong>i<strong>do</strong> nessa área, que o melhor é não fazermos sexo por uma semana depois<br />

de casa<strong>do</strong>s. Será um exercício de <strong>do</strong>mínio próprio e um ato de consagração de nossa sexualidade<br />

a Deus — dizia eu cheio de convicção, enquanto ela apenas consentia com a idéia.<br />

— Cê tem certeza? Pra mim o que você quiser tá bom — falava ela com aquele sotaque<br />

carioca dengoso e pesa<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> uma semana antes <strong>do</strong> casamento dissemos na casa de Alda, que iríamos pegar um<br />

pequeno barco com motor de centro e zarpar para o outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> rio, a mãe dela não se conteve.<br />

— Que nada. Vocês não são loucos de pensar que Manelzinho e eu vamos consentir com uma<br />

maluquice dessas. Pode tirar o cavalinho da chuva que isso não vai acontecer de jeito nenhum —<br />

falou <strong>do</strong>na Rose.<br />

Lutaram contra a idéia, mas não nos apresentaram nenhuma alternativa. Pensamos em outro<br />

programa de índio: ir para um pequeno sítio de amigos, para nos internarmos numa cabana no<br />

meio <strong>do</strong> mato.<br />

— Melhorou um pouco — disseram eles.<br />

Mas como nosso negócio era casar, estávamos aceitan<strong>do</strong> qualquer imposição deles, desde que<br />

não mudassem nossos planos básicos. Na véspera <strong>do</strong> casório, o pai dela chegou com duas<br />

passagens para o hotel Tropical de Santarém.<br />

Casamos e fomos para lá. Alda se encantou. Apreciou as flores <strong>do</strong> lugar, brincou com as<br />

crianças na piscina, na<strong>do</strong>u e pegou muito sol com um casal paulista que também estava em<br />

lua-de-mel. Eu participei de tu<strong>do</strong>, mas com muito menos ímpeto <strong>do</strong> que a situação demandava de<br />

mim. Fizemos tu<strong>do</strong> para manter nosso voto de abstinência intacto, e conseguimos. No sába<strong>do</strong> à<br />

tarde, entretanto, fomos visita<strong>do</strong>s por um missionário americano que trabalhava na cidade, que<br />

nos fez um pedi<strong>do</strong> insólito: “Será que dá para o irmão ir pregar na nossa igreja amanhã, <strong>do</strong>mingo,<br />

à tarde e à noite?” Alda achou um absur<strong>do</strong> que alguém tivesse a cara-de-pau de convidar um casal<br />

em lua-de-mel para uma atividade como aquela, mas não disse nada.<br />

Como eu iria pregar no <strong>do</strong>mingo à tarde, jejuei pela manhã, literalmente me absten<strong>do</strong> de toda<br />

e qualquer comida. O missionário nos pegou no hotel e nos levou a uma pequenina igreja nos<br />

arre<strong>do</strong>res da cidade. O local era extremamente pobre, e as ruas que davam acesso à igreja eram<br />

bastante enlameadas. O templo era ínfimo, porém devidamente cuida<strong>do</strong> pelo trato meticuloso<br />

das mãos <strong>do</strong> casal de americanos. Preguei uma mensagem sobre o amor de Deus como sen<strong>do</strong> o<br />

único poder capaz de nos fazer amar os homens e mulheres desse mun<strong>do</strong>. Meu texto foi o <strong>do</strong><br />

apóstolo Paulo, em I Coríntios 13: “Ainda que eu fale as línguas <strong>do</strong>s homens e <strong>do</strong>s anjos, se não<br />

tiver amor serei como o bronze que soa e como címbalo que retine.” Falei com muita paixão. Toda<br />

a minha ternura e emoção contidas pelo voto de abstinência vazaram ali, na projeção de uma<br />

outra forma de amor. Depois, ao final <strong>do</strong> culto, em vez de nos levar para o hotel, o <strong>pastor</strong>, de quase<br />

<strong>do</strong>is metros de altura, ainda teve o santo desplante de pedir que eu ficasse no lugar, oran<strong>do</strong><br />

individualmente por aproximadamente trinta pessoas que se enfileiraram esperan<strong>do</strong> que eu<br />

impusesse as mãos sobre elas em prece intercessória. E o pior de tu<strong>do</strong> é que fui insensível o<br />

suficiente para com Alda e aceitei o convite.<br />

Às onze horas da noite ele nos devolveu ao hotel, esbagaça<strong>do</strong>s e com a promessa de que às 13


horas da segunda-feira nos buscaria para visitar as congregações de sua igreja e algumas outras<br />

atividades. E o trágico foi que eu aceitei. Na manhã seguinte, demos de cara com cinqüenta<br />

missionários americanos reuni<strong>do</strong>s num congresso que iniciara naquela manhã num <strong>do</strong>s salões de<br />

convenção <strong>do</strong> hotel.<br />

— Que bom que o irmão está aqui. O Frank, nosso amigo de ministério, gosta muito de você.<br />

Será que não quer assistir às nossas reuniões? — perguntou-me um deles, com um sorriso muito<br />

amigável.<br />

“Se você aceitar, eu vou embora daqui”, foi o que li no olhar frustra<strong>do</strong> de minha<br />

recém-quase-esposa, já anteven<strong>do</strong> o que seria sua vida comigo, a menos que algo tão forte quanto<br />

a conversão que me livrara de minhas perdições anteriores salvasse-me agora de uma vida ao<br />

mesmo tempo monástica e religiosamente guerrilheira.<br />

— Muito obriga<strong>do</strong> pelo convite, mas hoje não vai dar. Nós estamos em lua-de-mel aqui — eu<br />

disse.<br />

— É, nós sabemos. Mas venha assim mesmo — reafirmou o irmão. Foi ali que comecei a<br />

perceber como privacidade e coisas <strong>do</strong> coração, na maioria das vezes, recebem tão pouca<br />

importância em alguns ambientes religiosos.<br />

A tarde transcorreu tediosa para quem deveria estar ali para curtir o amor, a pele, os gostos da<br />

paixão e a liberdade <strong>do</strong>s amantes. Alda foi paciente e generosa comigo e com os missionários, mas<br />

já era possível perceber o início de um certo cansaço em seu olhar. Passa<strong>do</strong>s os sete dias de<br />

abstinência, nossa lua-de-mel enfim começou. E ali também se iniciou a luta de minha esposa<br />

para criar fronteiras entre meu ministério cristão e nossa vida privada, combate esse que jamais<br />

cessaria, até o dia de hoje, sen<strong>do</strong> que, alguns anos depois, eu também me aliaria a ela na tentativa<br />

de erguer esses muros de proteção.


Capítulo 29<br />

“Ali, sozinhos, conversamos com grande <strong>do</strong>çura, esquecen<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong>, ocupa<strong>do</strong>s<br />

apenas no porvir, e indagávamos juntos, na presença da Verdade, que és Tu, qual<br />

seria a vida eterna <strong>do</strong>s santos, que nem os olhos viram, nem os ouvi<strong>do</strong>s ouviram, e<br />

nem o coração <strong>do</strong> homem pode conceber.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

O carro começou a puxar para a direita e percebi que o pneu estava fura<strong>do</strong>. Nós havíamos<br />

acaba<strong>do</strong> de chegar de Santarém e era a nossa primeira visita à casa <strong>do</strong>s pais de Alda depois de<br />

casa<strong>do</strong>s. Saí para trocar o pneu e pensei que iria desmaiar quan<strong>do</strong> me levantei para tirar os<br />

parafusos da roda. Troca<strong>do</strong> o pneu, o carro — um Hondinha <strong>do</strong> tamanho de uma Romiseta —<br />

não queria pegar.<br />

— Fica aí na direção que eu vou empurrar até ali a frente — falei, enquanto Alda assumia o<br />

volante. Então empurrei uns dez metros. — Alda, tô ven<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> escuro. Eu vou desmaiar — falei<br />

encostan<strong>do</strong> a cabeça contra o carro e toman<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o ar que podia com a boca e as narinas. Uma<br />

coisa muito ruim estava dentro <strong>do</strong> meu corpo. Pareciam os mesmos sintomas <strong>do</strong>s demônios<br />

contra os quais eu havia luta<strong>do</strong> <strong>do</strong>is meses antes, quan<strong>do</strong> o médico diagnosticara a hepatite.<br />

Meu médico era o Dr. Antônio Nogueira de Farias. Ele já havia trata<strong>do</strong> de mim na primeira<br />

hepatite, e eu pedi seu socorro para cuidar da segunda. Ele vinha to<strong>do</strong>s os dias supervisionar as<br />

aplicações de soro que eu recebia e ver como estava meu esta<strong>do</strong> geral. Batia no fíga<strong>do</strong> e no baço<br />

para ver que repercussão sonora haveria. “Ainda está muito grande”, dizia ele apalpan<strong>do</strong> o<br />

tamanho <strong>do</strong> fíga<strong>do</strong>. Até que um dia ele não apareceu. Fiquei preocupa<strong>do</strong> com o que poderia ter<br />

aconteci<strong>do</strong>. Passaram-se três dias. Uma semana. E, então, sua esposa apareceu lá por casa.<br />

Joedisa chegou a pretexto de visitar-me. Depois de alguns minutos de conversa, disse-me que ela<br />

e Antônio estavam em situação conjugal muito difícil, prestes à separação, e que os <strong>do</strong>is estavam<br />

envolvi<strong>do</strong>s com <strong>do</strong>utrinas de natureza mediúnica. No fim de tu<strong>do</strong>, ela me contou que Antônio<br />

estava muito <strong>do</strong>ente em casa. Oramos juntos, e ela se foi.<br />

Alguns dias depois, ela me visitou outra vez e me solicitou que, se possível, fosse visitar seu<br />

mari<strong>do</strong>, meu médico. Embora estivesse sob rigoroso repouso, aliás prescrito pelo próprio mari<strong>do</strong><br />

dela, disse-lhe que no <strong>do</strong>mingo seguinte eu pediria a meu pai que me levasse até a casa dela. No<br />

entanto, antes <strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo chegar fomos até lá, onde ele nos explicou que sua <strong>do</strong>ença era de<br />

natureza pré-leucêmica, e que o tipo <strong>do</strong> mal que sobre ele se abatera era chama<strong>do</strong> de<br />

mononucleose. Disse também que, em certos casos, a <strong>do</strong>ença evoluía para leucemia.<br />

No sába<strong>do</strong>, ficamos saben<strong>do</strong> por Joedisa que os médicos, colegas de Antônio, haviam trazi<strong>do</strong>


más notícias sobre o seu quadro clínico. A informação era a de que, de fato, o quadro<br />

transformara-se em leucemia. Joedisa estava em pânico. Papai e eu decidimos que no <strong>do</strong>mingo<br />

iríamos lá para orar com ele.<br />

No <strong>do</strong>mingo, no fim da tarde, nós fomos à casa deles. Ao chegarmos, encontramos uns<br />

amigos da família fazen<strong>do</strong> uma visitinha. Aguardamos cerca de uma hora na esperança de que<br />

pudéssemos orar a sós com Antônio e Joedisa, mas os amigos não saíam. Cansa<strong>do</strong>s da espera,<br />

resolvemos orar independentemente <strong>do</strong> público ser adequa<strong>do</strong> ou não. Perguntamos ao Antônio<br />

se ele cria que Jesus podia curá-lo.<br />

— Sim, eu creio — respondeu com fé.<br />

— Você gostaria que nós derramássemos o óleo da unção, em nome de Cristo, sobre a sua<br />

cabeça, como ordena a Bíblia? — perguntamos.<br />

— Sim, eu quero, eu preciso — afirmou ele com emoção e carência.<br />

Papai pegou o vidrinho de óleo de unção que ele sempre carregava e nós ungimos o médico.<br />

— Senhor Jesus, Tu tens to<strong>do</strong> o poder no céu e na Terra. Tu criaste o corpo <strong>do</strong> Antônio. Tu<br />

podes curá-lo. Não estamos Te dizen<strong>do</strong> o que fazer, porque Tu és Deus. Tu sabes o que fazer e<br />

quan<strong>do</strong>. Mas nós estamos aqui, Jesus, para dizer que cremos no Teu poder de curar<br />

milagrosamente. Assim, Senhor, pedimos: cura o Antônio e Te exaltaremos — oramos de mo<strong>do</strong><br />

calmo, cheios de fé de que tínhamos si<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>s.<br />

Oramos e saímos.<br />

No dia seguinte, Antônio nos contou que nada aconteceu até que ele nos ouviu dan<strong>do</strong> partida<br />

no carro. No entanto, quan<strong>do</strong> ele escutou aquele rum, rum, rum <strong>do</strong> motor <strong>do</strong> carro, olhou para o<br />

teto da casa e teve a impressão de que haviam aberto o telha<strong>do</strong> e derrama<strong>do</strong> um caldeirão de amor<br />

liquefeito sobre ele.<br />

— Aí, meu fíga<strong>do</strong>, que estava enorme, cavalgou aos saltos para debaixo da costela, onde era o<br />

seu lugar. O baço também veio aos pinotes de volta ao seu lugar de origem, desinchan<strong>do</strong><br />

imediatamente. Senti o sangue ferver e correr aceleradamente pelo meu corpo. Uma energia<br />

extraordinária me envolveu. Saltei e comecei a gritar: Jesus me curou, Jesus me curou —<br />

contou-nos Antônio.<br />

A essa altura, seus amigos, que ainda estavam lá, ficaram embasbaca<strong>do</strong>s, sem entender nada.<br />

Ele correu, saltou o muro da frente de sua casa e gritou: “Eu estou cura<strong>do</strong>!”<br />

No dia seguinte, foi trabalhar. Quan<strong>do</strong> os colegas o viram entran<strong>do</strong> no hospital, correram para<br />

segurá-lo.<br />

— Qui é isso, cara? Cê tá maluco? Vai pra casa. Cê vai morrer aqui — vaticinaram os<br />

médicos.<br />

Antônio contou-lhes o que havia aconteci<strong>do</strong> e pediu para fazer to<strong>do</strong>s os exames. O resulta<strong>do</strong><br />

foi alarmante para os médicos. Tu<strong>do</strong> normal. Eles não podiam acreditar. O quadro leucêmico<br />

revertera-se instantaneamente. Jesus operara um milagre em Antônio. E mais: ele usara alguém<br />

como eu para curar, enquanto eu mesmo pedia cura para a minha <strong>do</strong>ença, mas Ele me deixava ir<br />

até o fim, sem nenhuma intervenção sobrenatural. E isso eu não entendia.<br />

Ter cri<strong>do</strong> que o Deus que curava aqueles por quem nós orávamos certamente também me<br />

curaria quan<strong>do</strong> viesse a precisar e ter ti<strong>do</strong> experiência diferente, ten<strong>do</strong> precisa<strong>do</strong> da cura e não a<br />

ten<strong>do</strong> encontra<strong>do</strong>, fez-me um mal enorme e abalou a minha fé.<br />

Além disso, a hepatite colocou-me fora de circulação por seis meses. Mas, na verdade, aquela<br />

foi minha primeira parada para pensar desde a minha conversão, pois, mesmo investin<strong>do</strong> tanto<br />

tempo em oração e jejum, eu fazia aquilo de mo<strong>do</strong> muito objetivo, ou seja, eu praticava aquelas<br />

disciplinas espirituais porque estava convenci<strong>do</strong> de que aquele era o caminho para fortalecer o<br />

meu espírito e para adquirir poder espiritual na luta contra as forças invisíveis <strong>do</strong> mal. Quanto ao


mais, no entanto, minha vida continuava agitada e trepidante: televisão ao vivo to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mingos,<br />

rádio to<strong>do</strong>s os dias, debates na mídia sobre assuntos <strong>do</strong> momento, pregação nas escolas,<br />

universidades e ao ar livre, aconselhamento de jovens na igreja, visitas aos hospitais, além daquela<br />

legião de oprimi<strong>do</strong>s e perturba<strong>do</strong>s que nunca nos deixavam.<br />

A hepatite, entretanto, me fez parar e pensar. Ali, rolan<strong>do</strong> na cama o dia to<strong>do</strong>, cansa<strong>do</strong> de não<br />

fazer nada, entreguei-me à leitura não só da Bíblia, mas de outros textos. Foi naquele perío<strong>do</strong> que<br />

fui introduzi<strong>do</strong> a pensa<strong>do</strong>res cristãos não-orto<strong>do</strong>xos, que questionavam tu<strong>do</strong>: a Bíblia como<br />

Palavra de Deus, o nascimento virginal de Cristo, os milagres, a ressurreição física de Jesus e,<br />

sobretu<strong>do</strong>, a segunda vinda dele, um dia no futuro, de volta ao planeta Terra, conforme as<br />

Escrituras afirmam que acontecerá. De súbito, em meio àquelas leituras, vi-me toma<strong>do</strong> de<br />

profundas dúvidas.<br />

— Mas como é que eu posso duvidar, se tenho visto milagres e atos sobrenaturais de Deus?<br />

— eu me indagava, enquanto minha mente sempre encontrava uma nova base para manter o<br />

questionamento.<br />

— Mas isto tu<strong>do</strong> pode ser apenas o resulta<strong>do</strong> de fenômenos psíquicos e to<strong>do</strong>s os milagres da<br />

Bíblia podem ser explica<strong>do</strong>s pela parapsicologia ou como sen<strong>do</strong> grandes mal-entendi<strong>do</strong>s<br />

históricos — eu respondia a mim mesmo, dan<strong>do</strong> assim chance a que minha alma se revolvesse<br />

em agonia cada vez maior.<br />

Era horrível. Meus pés ficavam gela<strong>do</strong>s. À noite, uma angústia tão grande me invadia, que era<br />

como se ondas de desespero se alternassem sobre minhas costas.<br />

— Jesus, não deixa eu me tornar um descrente. Ajuda-me na minha falta de fé. Não deixa eu<br />

desistir de crer. Se eu perder a fé, eu me mato. Me segura Jesus — eu orava com intensidade e<br />

pavor.<br />

— Mas e se você estiver dan<strong>do</strong> a sua vida a uma balela? E se tu<strong>do</strong> isso for apenas o resulta<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> nervosismo religioso <strong>do</strong>s primeiros discípulos? E se você morrer e não houver nada? — algo<br />

em mim me indagava e me punha contra a parede.<br />

— Ora, se for assim, eu nunca vou ficar saben<strong>do</strong>. Vou morrer e vou cair no nada. Mas e se<br />

houver tu<strong>do</strong> o que a Bíblia diz? Como é que eu fico? — eu mesmo contra-atacava.<br />

Então lia os livros <strong>do</strong>s apologetas, os defensores racionais da fé. Li tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s que pude<br />

encontrar na época. E quanto mais lia, pior ficava. Então, concentrava a mente nas imagens da<br />

Ressurreição. Pensava com força, como que queren<strong>do</strong> materializar aquela visão, como se tivesse<br />

volta<strong>do</strong> no tempo <strong>do</strong>is mil anos. Mas que nada. Quanto mais pensava na coisa, mais distante de<br />

mim ela se tornava e cada vez mais fantasiosa parecia ficar. E mais: a impressão que eu tinha era a<br />

de que minhas dúvidas cresciam à medida que eu orava e jejuava. Pensei que fosse enlouquecer.<br />

Pelas madrugadas eu acordava e buscava a sintonia da rádio Transmundial, cujas<br />

transmissões eram feitas das Antilhas Holandesas. Ouvia os <strong>pastor</strong>es e cristãos falarem com<br />

simplicidade e fé, e os invejava. “Meu Deus, por que o Senhor me fez inteligente? Eu queria ser<br />

burro e simples. Meu Deus, tu<strong>do</strong> o que eu queria era ter a mesma capacidade de crer da Mãe<br />

Velhinha”, dizia em desespero e lágrimas, lembran<strong>do</strong> que minha avó materna estava ali, viven<strong>do</strong><br />

conosco na parte térrea da casa de meus pais, sempre fazen<strong>do</strong> fortes confissões de fé.<br />

Aqueles seis meses foram infernais. Evitei pregar, mas não era possível. Consegui ficar longe<br />

da pregação apenas durante os primeiros sessenta dias. Depois daquele perío<strong>do</strong>, entretanto, aos<br />

sába<strong>do</strong>s à noite eu saía da cama e ia à igreja falar aos jovens. Meus programas de TV foram<br />

repeti<strong>do</strong>s e apenas nos últimos meses é que pude voltar a gravá-los. Mas o caminho de volta era<br />

sempre para a cama.<br />

Quan<strong>do</strong> recebi alta, seis meses depois, havia muda<strong>do</strong> enormemente por dentro. Decidi que<br />

não haveria mais de buscar nas emoções fundamento para a minha fé e que iria viver em Cristo


exclusivamente basea<strong>do</strong> nas evidências de sua divindade, conforme a Bíblia. Passei a ser muito<br />

mais elabora<strong>do</strong> nas minhas pregações e busquei apoio para a fé na filosofia e na teologia. Às vezes,<br />

eu me desesperava, achan<strong>do</strong> que nunca mais na vida voltaria a viver com a paixão confiante que<br />

me incendiara nos <strong>do</strong>is anos anteriores. Voltar atrás, todavia, jamais. Jesus era real demais para<br />

que eu me afastasse Dele, mas o fato não me ter cura<strong>do</strong> da hepatite quan<strong>do</strong> cri com tanta certeza,<br />

abalou-me profundamente e me deixou com uma ponta de raiva de Deus no coração.<br />

Os que comigo conviviam não podiam jamais imaginar que eu estava viven<strong>do</strong> aquelas<br />

angústias, pois quanto mais eu me sentia em conflito, mais convincente e bem-elaborada minha<br />

pregação se tornava. “Como você está pregan<strong>do</strong> bem. Continue assim, cheio de fé”, diziam-me<br />

com extrema freqüência, o que me fazia viver sentimentos ainda mais ambíguos. Eu ficava grato a<br />

Deus e, ao mesmo tempo, sentia-me horrível. “Meu Deus, eles não sabem como eu estou tão<br />

confuso”, eu segredava a mim mesmo.<br />

Com o passar <strong>do</strong> tempo, o ministério absorveu-me de tal maneira, que meu luxo filosófico foi<br />

se tornan<strong>do</strong> ridículo. Era tanta gente necessitada, <strong>do</strong>ente, carente, drogada e oprimida, que<br />

acabei esquecen<strong>do</strong> de mim mesmo. Além disso, curas milagrosas começaram a acontecer<br />

espontaneamente quan<strong>do</strong> eu orava por pessoas necessitadas e não me foi difícil, a partir daí,<br />

concluir que o fato de Jesus não me haver cura<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> eu pedira tinha ti<strong>do</strong> uma finalidade<br />

pedagógica para mim. “Já pensou se você tivesse si<strong>do</strong> cura<strong>do</strong>? Oran<strong>do</strong> pelos outros e ven<strong>do</strong> Deus<br />

responder; pedin<strong>do</strong> a Ele por você mesmo e ainda obten<strong>do</strong> resposta, seria terrível. Você ficaria<br />

vai<strong>do</strong>so e presunçoso”, dizia de mim para mim, enquanto tentava silenciar as recaídas de meus<br />

questionamentos.<br />

No fim de 1975 eu já estava a to<strong>do</strong> vapor outra vez. Voltei a pregar com toda paixão e<br />

entreguei-me alucinadamente às pessoas. Além disso, depois de ler a Morte da razão, <strong>do</strong> filósofo<br />

cristão Francis Schaeffer, decidi que viveria o cristianismo com radicalidade social. Passei a<br />

pegar pessoas na rua e a levar para casa. Cheguei mesmo a colocar duas moças <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> em<br />

nossa cama, enquanto Alda e eu passávamos a noite no chão. Abrigamos até gente suspeita de<br />

crimes, como um rapaz de Brasília, sobre quem pairava a dúvida de ter estupra<strong>do</strong> e mata<strong>do</strong> a<br />

irmã. Mas minha convicção de que o evangelho tinha poder para mudar bichos, monstros e<br />

perverti<strong>do</strong>s, tornan<strong>do</strong>-os capazes <strong>do</strong> arrependimento e de uma existência nova, era tão forte, que<br />

eu corria qualquer risco para provar este poder. E Alda embarcava comigo nas aventuras.<br />

Entretanto, meus pais também se tornaram meus sócios naqueles empreendimentos<br />

arriscadíssimos, pois, afinal, o quarto era meu e de Alda, mas a casa era deles; e, sem dúvida,<br />

sobrava-lhes um quinhão bem eleva<strong>do</strong>, especialmente para minha mãe, que tinha de providenciar<br />

comida para aquela gente que ela não sabia de onde vinha e nem para onde ia.<br />

Foi também no início daquele ano que o concílio presbiteriano da cidade de Manaus decidiu<br />

me dar uma chance de pleitear a ordenação <strong>pastor</strong>al sem a formação de seminário.<br />

— Nós vamos dar a você três anos de prazo para que demonstre sua vocação <strong>pastor</strong>al e, ao<br />

fim desse tempo, você nos apresentará uma tese teológica. Você também deve ler os livros <strong>do</strong><br />

currículo <strong>do</strong> seminário. Se for aprova<strong>do</strong> no teste, nós o ordenaremos, mesmo contra os<br />

regulamentos da Igreja. O problema é que esse tipo de concessão só é feita a gente de vocação<br />

tardia, o que não é o seu caso — disse o presidente <strong>do</strong> presbitério.<br />

— Meu Deus, eu não enten<strong>do</strong> esses irmãos — disse papai. — Você está mais envolvi<strong>do</strong> no<br />

ministério <strong>pastor</strong>al <strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s eles juntos, e eles têm a coragem de dizer que querem ver se<br />

você tem vocação <strong>pastor</strong>al?<br />

Eu, contu<strong>do</strong>, não fiquei magoa<strong>do</strong> com aquilo. Na verdade, nunca tivera qualquer tipo de fé na<br />

instituição religiosa. Sabia que ela era útil apenas para manter a tradição da fé, mas que era<br />

completamente inútil quanto a produzir amor e paixão no coração das pessoas sofridas deste


mun<strong>do</strong>.<br />

— Vou fazer o que estão pedin<strong>do</strong>. Mas não quero jamais ser um cara da política religiosa e de<br />

to<strong>do</strong>s esses regulamentos. Se fosse para viver assim, eu jamais teria me converti<strong>do</strong> — eu<br />

desabafava com alguns amigos mais chega<strong>do</strong>s.<br />

Quan<strong>do</strong> peguei a lista de livros básicos <strong>do</strong> seminário, percebi que já havia li<strong>do</strong> a maior parte<br />

deles. Mergulhei na pesquisa e no estu<strong>do</strong> teológico, filosófico e <strong>do</strong>utrinário. Fiz isso, todavia, sem<br />

aban<strong>do</strong>nar meus compromissos para com o mun<strong>do</strong> real e para com aqueles que haviam cri<strong>do</strong> em<br />

Deus por meu intermédio. No final <strong>do</strong> ano, o concílio se reuniu e mu<strong>do</strong>u sua orientação.<br />

— Três anos é muito tempo. Nós não temos mais dúvidas de sua vocação. Escreva uma tese<br />

e apresente-a em janeiro de 1977 — foi o veredicto.<br />

Vibrei com a mudança nos prazos. Já não agüentava mais evangelizar, cuidar, instruir e<br />

preparar centenas de pessoas para o batismo sem que eu mesmo pudesse ser oficialmente o<br />

ministrante <strong>do</strong> sacramento sobre elas. Contu<strong>do</strong>, apesar da euforia, não me dediquei<br />

exclusivamente àquela tarefa. Ao contrário, imergi radicalmente nas outras atividades, as únicas<br />

que realmente me desafiavam e davam prazer.<br />

Em maio de 1976 Alda deu à luz nosso primogênito, Ciro, na cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro, uma<br />

vez que seus pais não quiseram que ela tivesse o primeiro bebê longe deles e nos levaram para o<br />

Méier, onde moravam. No dia 12, às seis e meia da manhã, a bolsa d’água estourou. O trânsito<br />

estava pesadíssimo e ela quase deu à luz dentro <strong>do</strong> carro. Subi calçadas, cruzei ilhas de<br />

isolamento no meio das ruas, buzinei, orei, corri enlouqueci<strong>do</strong>, mas cheguei com ela e <strong>do</strong>na Rose<br />

ao hospital. O menino veio em seguida.<br />

Quan<strong>do</strong> vi meu filho nos braços de uma enfermeira, dancei pelo corre<strong>do</strong>r <strong>do</strong> hospital. Era a<br />

realização de meu mais enraiza<strong>do</strong> sonho humano: ser pai. Esse desejo se enrolara em minha<br />

alma, com força inarredável desde que papai construíra aquela casinha de compensa<strong>do</strong> lá no<br />

fun<strong>do</strong> de nosso quintal na rua Apurinã. “Entre aí, ame uma mulher e ame seus filhos”, era o som<br />

que muitas vezes voltava à minha memória desde então. E mais: o impacto daquelas palavras fora<br />

tão profun<strong>do</strong> em minha alma, que mesmo quan<strong>do</strong> eu vivia de loucura em loucura e de mulher em<br />

mulher, ainda assim eu dizia que poderia até não chegar a casar, mas que filhos eu com certeza<br />

teria.<br />

A volta a Manaus com o bebê foi uma festa em nossa casa e na igreja. Ciro ia de mão em mão<br />

naquela comunidade de centenas de jovens. Nossa dificuldade era ficar com ele. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

queria o garoto. No início gostamos, mas depois nos enchemos daquilo.<br />

— Desse jeito eu não vou ser mãe desse garoto nunca — disse-me Alda, já bastante<br />

frustrada. Mas ela não teve nem tempo de se frustrar com maior profundidade. — <strong>Caio</strong>, você não<br />

vai acreditar, mas estou grávida outra vez — ela me confidenciou. Beijei sua barriga e fiquei feliz.<br />

Ela, entretanto, mostrava-se claramente preocupada.<br />

“O Ciro só tem três meses e eu já estou esperan<strong>do</strong> outro neném. É demais, cê num acha? —<br />

ela me indagava.<br />

— Que nada, meu amor, “a herança <strong>do</strong> Senhor são os filhos e o fruto <strong>do</strong> ventre é o galardão<br />

<strong>do</strong> homem. Os filhos são como flechas na mão <strong>do</strong> guerreiro. Bendito é aquele que enche sua<br />

aljava com essas flechas de Deus”. Não se preocupe — respondi, citan<strong>do</strong> o Salmo 127. Alda,<br />

contu<strong>do</strong>, parecia não concordar com tamanho fatalismo bíblico-biológico. Mas não dizia nada.<br />

Durante aquele ano organizei vários eventos musicais com a finalidade de evangelizar jovens.<br />

Eram os Reflex-sons. Depois tive a idéia de fazer uma coisa bem artística no teatro Amazonas.<br />

Seria algo com muita música, coreografia, danças e uma pregação objetiva, que eu faria. O desejo<br />

era o de alcançar um público que jamais iria à igreja. À Cruz Urgente, era o nome <strong>do</strong> evento.<br />

Trabalhamos intensamente para aquele projeto. Eu mesmo me dediquei à supervisão de cada


detalhe da programação. A data já estava agendada. Seria o dia 6 de novembro daquele ano.<br />

Quan<strong>do</strong> amanhecemos o dia 2 de novembro, eu saí da cama com o coração estranhamente<br />

angustia<strong>do</strong>. Fui para a igreja e atendi as pessoas para aconselhamento e oração, como fazia todas<br />

as manhãs. Naquele dia, todavia, era diferente. Por ser Dia de Fina<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que veio me<br />

procurar perguntou sobre a morte. “A gente vai direto para o céu quan<strong>do</strong> morre cren<strong>do</strong> em<br />

Cristo?” Ou então: “Por que é que a Bíblia proíbe a consulta aos mortos?” Assim, as questões<br />

sobre a morte se sucediam. Às 13 horas fui almoçar.<br />

— Lacy, sabe quem faleceu ontem no Rio e o corpo está sen<strong>do</strong> trazi<strong>do</strong> de avião para Manaus?<br />

— papai perguntou a minha mãe. Alda, eu, Aninha, Suely e o mari<strong>do</strong> estávamos à mesa. — A mãe<br />

<strong>do</strong> Bernar<strong>do</strong> Cabral — concluiu papai, lembran<strong>do</strong> a amizade de seu compadre.<br />

— Não diga isso, <strong>Caio</strong>. Poxa, que pena! — acrescentou mamãe.<br />

Durante o almoço o assunto continuou em torno da morte.<br />

— Olha, se eu morrer não precisa gastar dinheiro comigo. Pode mandar abrir uma vala e<br />

jogar o corpo lá. O corpo foi meu, mas não sou eu. Eu estarei com Jesus, na Glória — disse papai,<br />

arrancan<strong>do</strong> protestos de to<strong>do</strong>s nós.<br />

— O <strong>Caio</strong> é radical demais. Eu não aceito isso. Para mim isso é fanatismo — contestou<br />

mamãe.<br />

— Eu também penso diferente. Não temos que cultuar o corpo, mas reverenciá-lo é sadio —<br />

falei e citei inúmeros exemplos bíblicos daquela prática.<br />

— Ei, gente. Vamos parar com isso. Nós estamos almoçan<strong>do</strong> e vocês só falam em morte —<br />

disse Alda com timidez, mas com bom senso.<br />

Logo após o almoço subi a rua Urucará, que passava ao la<strong>do</strong> de nossa casa, e fui com Alda à<br />

casa de Nalia e Liana, amigas da igreja em cuja residência um <strong>do</strong>s conjuntos musicais ensaiava<br />

para a apresentação <strong>do</strong> dia 6. Eram duas da tarde.<br />

— Amor, que coisa estranha. Estou com a sensação de que alguém nosso está morren<strong>do</strong><br />

agora. Estou possuída por uma agonia de morte — Aldinha falou, paran<strong>do</strong> de caminhar.<br />

— Que é isso. Você só está impressionada com tanta conversa sobre morte. Não se preocupe<br />

com isso. Vai passar — refutei o sentimento dela. Chegamos ao lugar <strong>do</strong> ensaio e iniciamos. Às<br />

três horas da tarde vi o carro de meu pai para<strong>do</strong> em frente à casa.<br />

— <strong>Caio</strong>zinho, alguém telefonou dizen<strong>do</strong> que os filhos de Dr. Agnelo Balbi, o Camilo e o<br />

Agnelo Jr., sofreram um acidente horrível na estrada. Eles estavam no sítio e vinham para o<br />

ensaio. Vou ver o que aconteceu — ele me falou com o rosto preocupa<strong>do</strong>.<br />

— Papai, e o Luiz <strong>Fábio</strong>? O mano estava com eles, não estava? — indaguei, embora estivesse<br />

certo que sim.<br />

— Não sei, filho. Ninguém falou nada <strong>do</strong> Luiz. Vou ver — rebateu imediatamente. Pedi para<br />

acompanhá-lo, mas ele insistiu que seria importante a minha presença ali, visto que Hilda, irmã<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is garotos, estava entre nós e talvez precisasse de minha ajuda, caso as notícias não fossem<br />

boas.<br />

— Lacy, Lacy, meu Deus, Lacy! Teu filho está morto, Lacy. Ai! Lacy, por quê? — <strong>do</strong>na<br />

Conceição entrou em nossa casa gritan<strong>do</strong> e foi logo apanhan<strong>do</strong> mamãe sozinha no tanque de lavar<br />

roupa.<br />

— O que é isso, Conceição? — perguntou mamãe.<br />

E a resposta foi massacrante.<br />

— O Luizinho está morto. Foi um acidente de carro na estrada — falou nossa amiga,<br />

perturbada pela notícia que a ela chegara primeiro <strong>do</strong> que a nós.


Olhei pela janela da casa de Nalia e vi papai subin<strong>do</strong> a rampa com o olhar roxo de angústia.<br />

Seu rosto estava macera<strong>do</strong> de tanta <strong>do</strong>r.<br />

— Papai, e o Luiz? — corri e perguntei.<br />

— Ele já está onde nós ainda vamos ter de lutar muito para chegar. O Luiz já está com Cristo<br />

— ele disse com força e <strong>do</strong>r, mas sem desespero e sem lágrimas.<br />

Eu o abracei e chorei em silêncio. Uma lâmina fina e fria percorria meu ser de ponta a ponta.<br />

Um carrossel de lembranças ro<strong>do</strong>u intenso à minha volta.<br />

— Papai, deixa eu tocar Dominique-nique-nique no piano? — ele pedira aos seis anos, antes<br />

de nós sabermos que ele tinha a música dentro de si.<br />

— Eu sei tirar o carro da garagem sozinho, qué vê? — quan<strong>do</strong> ele nos assustou, aos sete<br />

anos, mostran<strong>do</strong> perícia ao volante.<br />

E mais: vi aquele rosto nervoso me esperan<strong>do</strong> no aeroporto, feliz e aflito com minha volta para<br />

casa em março de 1973. Também o vi bonachão, sempre dan<strong>do</strong> carona às velhinhas da igreja após<br />

os cultos, e tocan<strong>do</strong> belos hinos no órgão com aquelas mãos enormes e tão contraditórias, que ora<br />

alisavam a música, ora desapertavam parafusos de máquinas de carro com a mesma paixão, como<br />

se ambas fossem extensão uma da outra.<br />

E, por último, eu vi a cena de Ciro urinan<strong>do</strong> na boca de Luiz. Ele, to<strong>do</strong> orgulhoso, levantou o<br />

neném e disse: “Olha o titio, olha Cirinho.” De repente o esguicho. Era pipi para to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>. Luiz<br />

caiu na gargalhada, aparentemente orgulhosíssimo com aquele batismo.<br />

“Meu Deus, por quê? Por que, meu Deus?”, mamãe indagava ao Eterno. Deixou Conceição<br />

sozinha e subiu angustiada a escada de nossa casa, in<strong>do</strong> em direção à sua Bíblia, velha e<br />

manuseada, posta à cabeceira de sua cama. Caiu de joelhos no chão <strong>do</strong> quarto. Abriu as páginas<br />

da Escritura a esmo, enquanto perguntava: “Por que, meu Deus?” Seus olhos pousaram sobre as<br />

páginas de Isaías 57: 2 e 3. “Por que o justo é leva<strong>do</strong> antes que venha o mal; e entra na paz.” De<br />

repente, ela sentiu a força da mesma voz que falara com ela em 1964: “O que eu faço não o sabes<br />

agora, compreendê-lo-ás depois.” Uma paz enorme invadiu sua alma. “Senhor, obrigada. Agora<br />

enten<strong>do</strong> que a morte já não é o pior mal. O verdadeiro mal não é morrer, é viver sem Deus.<br />

Obrigada porque Tu estás poupan<strong>do</strong> o meu Luiz de um mal maior. Eu confio em Ti e vou chorar<br />

sem amargura”, ela anunciou a Deus, com <strong>do</strong>çura de coração.<br />

Aquela foi a primeira vez que tive de lidar com a morte naquele nível de proximidade<br />

emocional. Saí dali e fui ao necrotério. Por ser Fina<strong>do</strong>s, o lugar estava apinha<strong>do</strong> de gente. Foi lá<br />

que fiquei saben<strong>do</strong> que os três rapazes — Luiz, Agnelo e Camilo — haviam apanha<strong>do</strong> uma<br />

carona com um amigo <strong>do</strong> pai deles, que se oferecera para levá-los de volta à cidade. O problema é<br />

que o homem estava completamente embriaga<strong>do</strong>. Seis quilômetros adiante, perdeu o controle <strong>do</strong><br />

carro e mergulhou num precipício de uns trinta metros. O carro voou, ro<strong>do</strong>u no ar e ficou preso<br />

de cabeça para baixo entre <strong>do</strong>is barrancos. To<strong>do</strong>s caíram. O motorista fraturou as pernas e os<br />

braços. Agnelo teve fissura de fíga<strong>do</strong> e baço, além de fraturar a clavícula e abrir um rombo entre o<br />

crânio e o couro cabelu<strong>do</strong> tão profun<strong>do</strong>, que a área ficou toda cheia de terra. Camilo não sofreu<br />

nada, mas o óleo quente <strong>do</strong> motor <strong>do</strong> carro derramou to<strong>do</strong> sobre ele. A <strong>do</strong>r foi tão grande, que fez<br />

com que subisse os trinta metros de barranco íngreme com as unhas. E Luiz <strong>Fábio</strong>, meu irmão,<br />

caiu com a cabeça sobre uma haste de lenha, fraturou a base <strong>do</strong> crânio e morreu<br />

instantaneamente.<br />

Luiz estava com 19 anos quan<strong>do</strong> morreu. Media um metro e oitenta e sete e pesava 96 quilos.<br />

Não gostava de esportes, mas amava a música e os carros. Tu<strong>do</strong> o que ele queria era ter uma<br />

oficina mecânica e tocar órgão na igreja até o fim de sua vida. Ele conseguiu viver e morrer como


desejou. Olhan<strong>do</strong>-o ali, sobre aquele azulejo branco da mesa <strong>do</strong> necrotério, no entanto, parecia<br />

que tu<strong>do</strong> era absolutamente irreal. Foi somente quan<strong>do</strong> toquei em sua coxa que me dei conta da<br />

irreversibilidade daquele esta<strong>do</strong>. Minha mão afun<strong>do</strong>u em sua perna, como se os músculos se<br />

abrissem ao peso dela. Tentei ajeitar sua cabeça, e um jorro de sangue se derramou<br />

abundantemente sobre seu peito. Chorei. Depois de lavá-lo, cumpri o desejo de minha mãe, que<br />

era vesti-lo com um terno azul xadrez que ele mandara fazer recentemente e que não tivera<br />

chance de vestir tanto quanto desejara. Em seguida, removemos seu corpo para o templo da<br />

Igreja Presbiteriana.<br />

A <strong>do</strong>r era enorme, mas descobri ali que mamãe e eu tínhamos algo muito nosso e que até<br />

aquele momento eu não havia percebi<strong>do</strong>. Às 11 da noite, nós <strong>do</strong>is estávamos com fome, e<br />

comemos. Às duas da manhã, estávamos com sono, e <strong>do</strong>rmimos. To<strong>do</strong>s os demais não fizeram<br />

nenhuma das duas coisas. Dali em diante, descobri que <strong>do</strong>r e perda não têm o poder de nos<br />

roubar nem a fome e nem o sono. Diminuem a sua intensidade e regularidade, mas jamais os<br />

excluem completamente; falo de mim e minha mãe.<br />

Quan<strong>do</strong> o dia 3 de novembro amanheceu, a frente da igreja estava completamente tomada. O<br />

templo já estava abarrota<strong>do</strong> com centenas de pessoas que ali se comprimiam. O problema é que<br />

no final da tarde <strong>do</strong> dia 2 havia chega<strong>do</strong> à TV Amazonas, emissora onde eu tinha o meu programa,<br />

a notícia de que eu havia morri<strong>do</strong>, e não o meu irmão. Daquele momento em diante, a emissora<br />

começou a colocar um crédito — letras corren<strong>do</strong> na barra inferior da tela — dizen<strong>do</strong> que eu<br />

estava morto e que o enterro seria no dia seguinte. Assim que soubemos entramos em contato e<br />

esclarecemos os fatos, mas muita gente não ficou saben<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> cheguei, vi ainda várias<br />

pessoas me olhan<strong>do</strong> como se estivessem ven<strong>do</strong> uma visagem. Outras me abraçavam, choravam<br />

por meu irmão, mas diziam que tinham pensa<strong>do</strong> que havia si<strong>do</strong> eu. Foi estranho ter uma idéia <strong>do</strong><br />

que seria o meu próprio funeral.<br />

Papai pediu para eu oficiar o ato fúnebre, o que fiz junto com muitos outros <strong>pastor</strong>es que ali<br />

estavam. Ao final, ele mesmo tomou a palavra e falou de mo<strong>do</strong> arrebata<strong>do</strong>r sobre a força <strong>do</strong><br />

consolo de Deus nas horas das perdas mais radicais. To<strong>do</strong>s choravam muito não apenas por<br />

causa da morte de meu irmão, mas estranhamente, também, pelo conforto espiritual que a<br />

cerimônia lhes trouxe ao coração.<br />

No dia 6 de novembro nós estávamos no teatro Amazonas, realizan<strong>do</strong> a programação de À<br />

Cruz Urgente. Apesar de tu<strong>do</strong>, houve profunda graça e consolo de Deus sobre to<strong>do</strong>s nós. Alda<br />

disse que preguei como nunca antes. Eu mesmo sentia que havia luz sobre minha alma em<br />

intensidade que eu até ali não conhecera. Centenas de pessoas tomaram a decisão de andar com<br />

Jesus. Voltamos para casa cheios de imensa e indizível paz.<br />

Uma semana depois, eu estava andan<strong>do</strong> pela avenida Eduar<strong>do</strong> Ribeiro, no centro da cidade.<br />

Eram aproximadamente duas horas da tarde, e meu coração carregava uma saudade sem cura.<br />

Olhei e vi Chiquilito Erse, amigo de outros tempos, em pé na esquina, de costas para mim.<br />

Chiquilito tivera por anos o apeli<strong>do</strong> de Peter Fonda, tamanha era a semelhança que havia<br />

entre ele e o artista <strong>do</strong> filme Sem destino. Fui até lá, por trás, e peguei no ombro dele.<br />

— Meu Deus. Meus Deus. Que é isso, meu Deus?! — foi a exclamação de Chiquilito, cujo<br />

rosto ficou páli<strong>do</strong> e os olhos esbugalha<strong>do</strong>s.<br />

— Sou eu Chico, sou eu! <strong>Caio</strong>! O que está acontecen<strong>do</strong>? Tá com me<strong>do</strong> de quê? — indaguei.<br />

— Cara, cê tá morto! — disse-me ele como se quisesse convencer uma assombração que ela<br />

deveria voltar para o lugar de onde saíra.<br />

— To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pensou que havia si<strong>do</strong> eu, Chico, mas foi meu irmão, Luiz, quem morreu.<br />

Eu tô aqui, é só me pegar — insisti tocan<strong>do</strong> nele.<br />

— Bicho, cê quase me mata — disse aquele que, anos mais tarde, se tornaria prefeito de


Porto Velho, capital de Rondônia.<br />

Assim, o susto de Chiquilito fez com que a morte de meu irmão ficasse gravada em minha<br />

memória como uma lembrança mista. A ambigüidade da vida ficou mais que presente naquela<br />

recordação, fazen<strong>do</strong> com que lágrimas e risos, gemi<strong>do</strong>s e gargalhadas se misturassem de mo<strong>do</strong><br />

inconveniente, porém inevitável. Afinal, quem pode <strong>do</strong>minar as fontes da vida? E quem pode<br />

garantir que choro e risada não caibam na mesma boca, no mesmo dia, mesmo que seja o dia da<br />

morte?


Capítulo 30<br />

“Se te agradam as almas, ama-as em Deus, porque, embora mutáveis, fixas Nele,<br />

permanecerão; de outro mo<strong>do</strong>, passariam e pereceriam. Ama-as, pois, Nele, e<br />

arrasta contigo até Ele quantas almas puderes, dizen<strong>do</strong>-lhes: ‘Amemo-Lo’—<br />

porque Ele criou estas coisas, e não está longe daqui. Porque não as fez e se foi,<br />

mas Dele procedem e Nele estão. Mas eis que Ele está onde se aprecia a verdade:<br />

no íntimo <strong>do</strong> coração.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Quinze dias após a morte de Luiz iniciei a tarefa de escrever minha tese de ordenação. O<br />

concílio se reuniria no dia 6 de janeiro de 1977 e a idéia era a de me ordenar no dia 10, caso fosse<br />

aprova<strong>do</strong>. O problema é que não se escreve uma tese teológica em um mês. O trabalho demanda<br />

muita pesquisa e consulta, para não falar na produção <strong>do</strong> texto em si. Até aquele dia eu nunca<br />

precisara escrever nada que excedesse algo em torno de oito laudas datilografadas.<br />

Assim, quan<strong>do</strong> percebi que não poderia trabalhar nenhum assunto que demandasse<br />

pesquisa, resolvi produzir algo sobre o que jamais havia encontra<strong>do</strong> sequer uma única linha<br />

escrita. Perguntei a vários <strong>pastor</strong>es se eles tinham bibliografia para uma tese que versasse sobre a<br />

salvação <strong>do</strong>s pagãos fora da religião. Ninguém jamais lera nada objetivo a respeito. Apenas o<br />

reveren<strong>do</strong> José Mattos Filho me disse ter li<strong>do</strong>, na Teologia <strong>do</strong>gmática de Strong, uma alusão à<br />

eventual salvação espiritual de Sócrates, o filósofo grego. Para mim, tu<strong>do</strong> aquilo era ao mesmo<br />

tempo fascinante e odioso, pois se de um la<strong>do</strong> a Bíblia diz que a salvação é uma obra da graça<br />

divina que decorre de nossa resposta de fé à revelação de Deus em Cristo, de outro la<strong>do</strong> a própria<br />

Bíblia afirma, contundentemente, que nenhum mortal pode pretender saber ou fazer afirmações<br />

sobre quem foi salvo ou perdi<strong>do</strong>, espiritualmente, além <strong>do</strong>s portões da morte. O fato de Strong<br />

haver menciona<strong>do</strong> uma eventual salvação de Sócrates deixou-me com raiva.<br />

— Quem é esse cara para se sentir com autoridade para falar da eternidade humana como se<br />

estivesse fazen<strong>do</strong> um simples comentário sobre quem passou ou não no vestibular? — comentei<br />

com meu pai.<br />

Como não havia nada escrito que me tivesse chega<strong>do</strong> ao conhecimento sobre o assunto,<br />

resolvi fazer <strong>do</strong> tema a minha dissertação. “Assim, ninguém me pede bibliografia além da Bíblia,<br />

e vai ser muito mais fácil discorrer sobre o assunto livremente”, imaginei. O desenvolvimento <strong>do</strong><br />

tema já estava to<strong>do</strong> alinhava<strong>do</strong> dentro de mim desde aqueles seis meses de angústia teológica que<br />

me acometeram durante a segunda hepatite. Naqueles dias, enquanto rolava na cama,<br />

vinham-me à mente questões sobre o que teria aconteci<strong>do</strong> a bilhões de seres humanos que


nasceram e morreram longe <strong>do</strong> ambiente histórico e geográfico da pregação <strong>do</strong> evangelho. Ou seja:<br />

eu queria saber por que somente quem teve a oportunidade de ouvir uma determinada<br />

informação, como é o caso <strong>do</strong> evangelho, poderia ter a chance da salvação, de acor<strong>do</strong> com os<br />

ensinamentos da Igreja (e aqui neste ponto, católicos e protestantes pareciam estar quase em<br />

absoluta harmonia).<br />

Eu, entretanto, achava que aquela redução era pagã. Como é que nós podemos imaginar que<br />

um Deus como o nosso haveria de reduzir a possibilidade da salvação a coisas tão humanas,<br />

condicionadas por elementos de natureza econômica, social, política e religiosa? E se eu tivesse<br />

nasci<strong>do</strong> índio? E se meu chão de vida fosse a China, o Japão ou a Índia? E se minha existência<br />

histórica tivesse aconteci<strong>do</strong> há três mil anos, numa tribo pagã da Europa Nórdica? Enfim, até que<br />

ponto nós temos o direito de pretender determinar que a salvação de Deus acontece apenas<br />

quan<strong>do</strong> um missionário apaixona<strong>do</strong> atravessa os mares para levar a informação da redenção até os<br />

confins <strong>do</strong> planeta?<br />

Ou seja: na minha mente, não havia dúvida quanto ao fato de que o evangelho tinha de ser<br />

prega<strong>do</strong> a todas as criaturas humanas e eu estava comprometi<strong>do</strong> com isso até o âmago de meu<br />

ser. Meu conflito, entretanto, era sobre se Deus não poderia ser Deus para fora dessa ação<br />

missionária da Igreja e salvar a quem ele bem entendesse simplesmente por causa de sua<br />

liberdade para ser Deus.<br />

“Se for diferente”, eu pensava, “mesmo que nós digamos que a salvação é possível só por<br />

meio de Cristo, estamos condicionan<strong>do</strong> esse caminho a um outro meramente humano: a vontade<br />

da Igreja de ir falar de Deus aos homens. Nesse caso, quem deveria ir para o inferno não era o<br />

pagão aliena<strong>do</strong>, mas a Igreja desobediente, que não cumpriu sua missão no mun<strong>do</strong>.”<br />

Escrevi cerca de cem páginas e submeti-as à apreciação de papai.<br />

— É assim que eu creio. Cristo é o centro da salvação, não a Igreja — falou com os olhos<br />

cheios de lágrimas.<br />

Sem perceber, contu<strong>do</strong>, eu havia entra<strong>do</strong> num terreno muito sensível. A implicação de meus<br />

pensamentos naquela área era que a Igreja é agente de Deus neste mun<strong>do</strong> para pregar a salvação,<br />

mas não é a detentora da administração da graça divina por meio algum. Assim, inocentemente,<br />

eu estava arranhan<strong>do</strong> o assunto mais delica<strong>do</strong> da experiência eclesiástica: a ação divina fora da<br />

instituição religiosa, o que me tornava extremamente vulnerável.<br />

— Pera aí, <strong>Caio</strong>. Cê já pensou nas conseqüências? Os irmãos vão dizer que você é<br />

universalista na aplicação da salvação e teologicamente liberal. Cê tem certeza que quer correr o<br />

risco? — indagou meu amigo Ivan Moreira.<br />

Mas eu queria correr o risco. Afinal, eu jamais seria cristão exclusivamente por causa da<br />

Igreja. E quan<strong>do</strong> a graça de Cristo me encontrou, o que mais me estimulou foi o fato de tu<strong>do</strong> ser<br />

tão livre e tão divino, sem tutelas humanas.<br />

O couro cantou quan<strong>do</strong> minha tese foi examinada. Eu não tinha a menor idéia de que os meus<br />

irmãos <strong>pastor</strong>es iriam enroscar-se tanto naquela temática.<br />

— Isso tem cheiro de liberalismo. Cren<strong>do</strong> assim, quem precisa evangelizar? — indagou<br />

Cláudio.<br />

— O problema é que pensan<strong>do</strong> assim, você diminui o peso da pecaminosidade universal <strong>do</strong>s<br />

homens — falou Alfonso.<br />

— É por essa razão que não devemos ordenar quem não foi ao seminário. Falta teologia e<br />

<strong>do</strong>utrina à tese dele — concluiu Felipino.<br />

Foram <strong>do</strong>is dias inteiros de discussão. Durante aquele perío<strong>do</strong> fui defenden<strong>do</strong> cada uma das<br />

acusações levantadas. Em suma: insisti na afirmação de que só há salvação em Cristo, e que a<br />

Cruz de Jesus é o centro espiritual <strong>do</strong> universo. Todavia, a administração da graça divina, que


aplica a salvação, é prerrogativa de Deus. A Igreja tem a missão de pregar a to<strong>do</strong>s os homens e<br />

deve fazer isso porque Cristo ordenou. Mas a Igreja não limita o amor salva<strong>do</strong>r de Deus, ou seja,<br />

Deus também age — às vezes, ou até mesmo sobretu<strong>do</strong> — fora das instituições religiosas.<br />

— Eu enten<strong>do</strong> a preocupação de vocês, irmãos. Sei que to<strong>do</strong>s aqui querem que os ministros<br />

presbiterianos sejam <strong>do</strong>utrinariamente sãos. Eu também. Mas nós não estamos aqui legislan<strong>do</strong><br />

nada para a Igreja. Estamos apenas discutin<strong>do</strong> uma tese teológica. E o que o <strong>Caio</strong> Filho está<br />

defenden<strong>do</strong> pode ser um problema para mim e para você, pois parece que as nossas motivações<br />

para evangelizar dependem desse sentimento de que se nós não o fizermos o mun<strong>do</strong> se perderá.<br />

Ele diz que crê assim, mas diz também que isso não impede a Deus de aplicar a graça de Cristo,<br />

mesmo sem a presença da Igreja. Se isso fosse um problema para o <strong>Caio</strong>, ele não evangelizaria<br />

como tem feito e nem com a dedicação que to<strong>do</strong>s percebemos nele. Quem de nós aqui está<br />

evangelizan<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que ele, mesmo ten<strong>do</strong> convicções mais orto<strong>do</strong>xas <strong>do</strong> que as dele? —<br />

perguntou o reveren<strong>do</strong> Frank Arnold, missionário americano servin<strong>do</strong> em Manaus. Ninguém<br />

respondeu, e o assunto foi encerra<strong>do</strong> ali.<br />

Devidamente introduzi<strong>do</strong> ao espírito complica<strong>do</strong> <strong>do</strong>s concílios da religião, aceitei a<br />

ordenação. Mas quan<strong>do</strong> o dia 10 chegou, senti a mesma tremedeira que me acometeu no dia de<br />

meu casamento. Jejuei o dia to<strong>do</strong>, mas à medida que a noite chegava, eu gelava. “Senhor, será que<br />

eu serei um bom <strong>pastor</strong>? E se eu fraquejar? E se eu cometer algum ato pecaminoso e vier a<br />

desonrar o nome de Jesus? E se eu não agüentar a vida eclesiástica e suas veredas estranhas e,<br />

muitas vezes, completamente ilógicas para mim? E se algumas de minhas convicções me levarem<br />

a ficar sozinho dentro da Igreja?”, eram as questões que me aterrorizavam.<br />

— <strong>Caio</strong>zinho, eu preciso dizer algo a você. Ninguém sabe, mas dias depois de seu<br />

nascimento eu vi você no bercinho, ao pôr-de-sol, e fui toma<strong>do</strong> por um profun<strong>do</strong> e irresistível<br />

desejo de oferecer você à divindade. Mesmo sen<strong>do</strong> agnóstico naquele tempo, eu entreguei você a<br />

Deus, numa prece. Pedi para você ser <strong>pastor</strong>, mesmo não sen<strong>do</strong> protestante. Queria que você<br />

servisse a Deus, mas também tivesse esposa e filhos. Ele ouviu minha voz, mesmo quan<strong>do</strong> eu não<br />

o conhecia — papai falou, enquanto lágrimas grossas rolavam pela sua face.<br />

Ficamos abraça<strong>do</strong>s, choran<strong>do</strong> juntos. Quan<strong>do</strong> nossos rostos se separaram <strong>do</strong> abraço, minhas<br />

dúvidas tinham desapareci<strong>do</strong>. Era como se o próprio Deus tivesse vin<strong>do</strong> me abraçar e dizer: “Não<br />

foi você que me escolheu. Fui eu quem escolheu você. E eu sei o risco que eu corro colocan<strong>do</strong> o<br />

meu nome sobre a sua vida. Mas eu quero correr esse risco. Vá sem me<strong>do</strong>.”<br />

Chorei to<strong>do</strong> o tempo em que a cerimônia durou. O reveren<strong>do</strong> José Mattos Filho, que me<br />

batizara na Igreja Protestante na infância e que oficiara meu casamento, agora fora também<br />

incumbi<strong>do</strong> de dirigir o ato de ordenação. Meu pai, entretanto, disse que a exortação ao novo<br />

ministro, chamada Parenesis, ele mesmo fazia questão de pronunciar. Foi um <strong>do</strong>s momentos<br />

mais tocantes e comoventes de toda a minha existência, até hoje. À porta <strong>do</strong> templo, após a<br />

cerimônia, senti-me realiza<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> as pessoas me diziam: “Deus o abençoe, <strong>pastor</strong>.” Embora<br />

simples, eu não trocaria aquele título por nenhum outro. E, para mim, aquilo era bem mais que<br />

um título, era uma relação com a vida e com o próximo. Eu queria ser <strong>pastor</strong> de homens, e isso<br />

era tu<strong>do</strong>.<br />

Mas a ordenação ao <strong>pastor</strong>a<strong>do</strong> tornou-se uma grande tentação para mim. O meu desejo de ser<br />

chama<strong>do</strong> de <strong>pastor</strong> ou reveren<strong>do</strong> misturou-se com uma outra impressão, falsa: a de que quem<br />

quer que não me chamasse de <strong>pastor</strong> não estava reconhecen<strong>do</strong> o significa<strong>do</strong> de minha vida.<br />

— Ei, Caião. Dá uma chegada aqui — alguns jovens da igreja me chamavam com<br />

espontaneidade.<br />

De súbito, me percebi andan<strong>do</strong> no caminho da formalidade e da distância de to<strong>do</strong>s aqueles<br />

que não me chamavam de <strong>pastor</strong>. Lutei como pude contra aquilo, mas a coisa parecia ser mais


forte <strong>do</strong> que eu. Era como se não estivesse sen<strong>do</strong> reconheci<strong>do</strong> justamente na única área da vida<br />

que eu considerava de valor essencial para mim. Cheguei a ser grosseiro com aqueles que<br />

escolhiam o caminho da informalidade no trato para comigo.<br />

Num daqueles dias, Nalia, uma amiga de outros tempos e que agora estava na igreja conosco,<br />

veio apressada até a minha casa para nos dizer que Zé Curió, a quem eu não via desde 1975, após<br />

seu retorno da prisão na Ilha Grande, no Rio, estava balea<strong>do</strong> num <strong>do</strong>s hospitais da cidade,<br />

morren<strong>do</strong>.<br />

— É um quadro de infecção generalizada. Ele vai morrer. Só um milagre. Olha <strong>Caio</strong>, ele quer<br />

que você vá vê-lo — disse-me Nalia com a consciência profissional da boa médica que ela se<br />

tornara, mas ao mesmo tempo deixan<strong>do</strong> espaço para uma intervenção de Deus na situação.<br />

— Ei, Caião! Cê tá numa boa, bicho, e eu tô aqui, morren<strong>do</strong>. Cê fez a melhor escolha —<br />

disse Zé Curió assim que me viu entrar no quarto em companhia de meu pai. Ficamos ali com<br />

ele, ouvin<strong>do</strong>-o falar como a vida lhe estava sen<strong>do</strong> difícil, constatação tardia, porém esperançosa.<br />

— Os home tão queren<strong>do</strong> me pegar. O que me aconteceu foi isso. A polícia me pegou. Veio um<br />

cara, olhou pra mim e, sem mais nem menos — pô eu tava senta<strong>do</strong> no carro, bicho — despejou<br />

um monte de tiro na minha barriga. Tão queren<strong>do</strong> acabar comigo, cara — continuou Zé Curió. O<br />

corpo dele ardia em febre. — Tô cum me<strong>do</strong> de morrê, bicho. Faz uma oração por mim.<br />

Papai e eu impusemos as mãos sobre ele, pegamos óleo de um vidrinho que sempre tínhamos<br />

conosco e, conforme a instrução <strong>do</strong> Apóstolo Tiago, derramamos o líqui<strong>do</strong> sobre a sua cabeça, em<br />

nome de Cristo.<br />

— Zé, nós te ungimos com óleo para a cura de teu corpo, em nome de Jesus — dissemos.<br />

Em seguida, meu pai orou por ele, enquanto nossas mãos se mantinham sobre a cabeça de<br />

meu ex-melhor amigo. Agora eu tinha enorme piedade dele, mas nossas vidas não tinham mais<br />

nada em comum, a não ser as lembranças.<br />

— Pô, valeu mermo, Caião. Valeu, bicho — disse Zé, enquanto nos retirávamos.<br />

— Cê num vai acreditar — disse Nalia —, o Zé já saiu <strong>do</strong> hospital. A febre cedeu<br />

milagrosamente — completou.<br />

Ao saber <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> procurei o Curió para estimulá-lo a ir à igreja a fim de iniciar uma vida<br />

de fé.<br />

— Pô, cara, valeu. Mas pra mim esse negócio de crente num dá. Tua esperteza foi essa.<br />

Agora tu tá numa boa. Bem casa<strong>do</strong>, carro, casa, e gente que te respeita. Foi uma tremenda sacada.<br />

Mas pra mim a esperteza tem que ser outra. Obriga<strong>do</strong> por me convidar, mas esse negócio de ficar<br />

cantan<strong>do</strong> Foi na Cruz, foi na Cruz que um dia eu vi meu Jesus morren<strong>do</strong> por mim peca<strong>do</strong>r num é<br />

pra mim não, bicho. Obriga<strong>do</strong>, mas tô fora — disse Zé com uma ponta de gozação. Foi a última<br />

vez que me lembro de tê-lo visto.<br />

Fiquei muito triste com a reação dele ao toque <strong>do</strong> amor de Deus em sua vida. Mas respeito<br />

gente que não faz trocas com Deus. Ou ele viria por amor e gratidão, ou jamais viria apenas por<br />

me<strong>do</strong>. Aquilo era típico <strong>do</strong> Curió.


Capítulo 31<br />

“Senhor, Deus da verdade, acaso, para Te agradar, basta ter conhecimento? Infeliz<br />

<strong>do</strong> homem que, ten<strong>do</strong> conhecimento de todas as coisas, Te ignora; mas feliz de<br />

quem Te conhece, mesmo que ignore todas as demais coisas. Quanto ao que é<br />

cheio de conhecimento e ainda também Te conhece, não é mais feliz por causa de<br />

sua ciência, mas só é feliz por Ti, se, conhecen<strong>do</strong>-Te, Te glorificar como Deus, e<br />

Te der graças, e não se desvanecer em seus pensamentos.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Dois meses depois da ordenação, eu estava em casa uma manhã, quan<strong>do</strong> vi um homem<br />

grandalhão entran<strong>do</strong> pelo portão.<br />

— Irmão <strong>Caio</strong>. Eu tenho um convite a lhe fazer em nome <strong>do</strong> Instituto Lingüístico. O irmão<br />

aceita ir pregar para a tribo <strong>do</strong>s yscarianas na fronteira <strong>do</strong> Amazonas com o Pará, no rio<br />

Nhamundá? — foi logo falan<strong>do</strong> com objetividade o missionário americano Pedro Peter, assim<br />

chama<strong>do</strong> na intimidade pelos jovens de nossa igreja.<br />

Fiquei tão entusiasma<strong>do</strong> com a idéia, que nem pedi tempo para pensar.<br />

— Vou sim! Quan<strong>do</strong> é? — foi só o que perguntei.<br />

— Na semana que vem. E você vai ter que ficar lá uma semana. Tá bom? — ele indagou.<br />

O problema é que Alda estava no final <strong>do</strong> sétimo mês de gravidez. Com os pais longe <strong>do</strong><br />

Brasil, o pai da Alda estava servin<strong>do</strong> como adi<strong>do</strong> naval e aeronáutico em Portugal e na Espanha, a<br />

minha ausência de casa a abalava profundamente. Assim mesmo eu disse ao missionário que iria.<br />

— Mas logo agora, <strong>Caio</strong>! E se o menino nascer? Eu não estou me sentin<strong>do</strong> bem. Há uma<br />

pressão muito forte na minha barriga — ela ponderou, enquanto eu simplificava tu<strong>do</strong> de um jeito<br />

clássico e bem masculino.<br />

— Não se preocupe, querida. Vai dar tu<strong>do</strong> certo.<br />

Quan<strong>do</strong> pousamos naquele aviãozinho Lake anfíbio bem no meio das águas <strong>do</strong> rio<br />

Nhamundá, não fizemos isso sem risco. A clareira de árvores que dava acesso à flor d’água <strong>do</strong> rio<br />

não era larga e, por isso, não permitia nenhuma margem de erro por parte <strong>do</strong> piloto. Mas Daniel,<br />

o piloto adventista que nos levou até lá, parecia saber muito bem o que estava fazen<strong>do</strong>, e<br />

conseguimos pousar sem problemas.<br />

Uma canoa de casco de tronco de árvore veio nos buscar. A visão que tive, já desde o interior<br />

<strong>do</strong> casquinho, ven<strong>do</strong> a multidão de índios na beira <strong>do</strong> rio, foi completamente única. Não sabia que<br />

a somente duas horas e meia de avião de minha casa havia uma comunidade tão primitiva como


aquela. Minha sensação era a de que eu havia volta<strong>do</strong> no tempo ou mergulha<strong>do</strong> numa outra<br />

dimensão da experiência humana.<br />

Homens baixinhos, cuja nudez se disfarçava apenas atrás de pequenos panos de cor<br />

vermelha, de cabelos muito escorri<strong>do</strong>s e entrelaça<strong>do</strong>s por longos caniços, saudavam-me numa<br />

língua gutural, completamente estranha aos meus ouvi<strong>do</strong>s. Crianças barrigudas e absolutamente<br />

nuas, destemidamente se enroscavam em minhas pernas, que para elas eram extremamente<br />

longas. Mulheres e mocinhas seminuas — com seus grandes e caí<strong>do</strong>s seios, no caso das mães; ou<br />

com seios fortes, firmes e bem-feitos, no caso das mais jovens — riam para mim, como se<br />

tivessem acaba<strong>do</strong> de ver um homem de outro planeta.<br />

— Bem-vin<strong>do</strong> ao nosso meio, irmão <strong>Caio</strong> — disse Pedro Peter, que já havia mora<strong>do</strong> na aldeia<br />

mais de <strong>do</strong>is anos e agora estava de volta. — Esse aqui é Desmun<strong>do</strong> e essa <strong>do</strong>na Mary, sua esposa<br />

— falou apontan<strong>do</strong> na direção de um gringo com cara de inglês e sua esposa, baixinha, de rosto<br />

bem re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, porém bem europeu.<br />

Já era meio-dia e a fome estava grande. Levaram-me para a maloca, onde eu <strong>do</strong>rmiria em<br />

companhia de pelo menos umas dez outras pessoas, e perguntaram se eu queria comer.<br />

— O que vai ser? Uma galinhazinha piroca? — perguntei, apontan<strong>do</strong> para uma ave de<br />

pescoço pela<strong>do</strong> que comia farelos ali ao la<strong>do</strong>.<br />

— Não! Galinha aqui é apenas para decoração de cabelos e roupas. O que nós temos para<br />

comer é só beiju e vinho de açaí — falou a esposa de Pedro Peter.<br />

Como eu gostava muito de ambas as coisas, comi até não poder mais. Depois, parei para ouvir<br />

Desmun<strong>do</strong> contar a história daquela comunidade.<br />

— Quan<strong>do</strong> eu cheguei aqui, não sabia nada sobre os yscarianas. Vim apenas porque queria<br />

aprender a língua deles e traduzir a Bíblia para o idioma. Quan<strong>do</strong> chegamos, eles nos receberam<br />

com tranqüilidade. Não sabíamos como nos comunicar, mas percebemos que eles eram<br />

diferentes, nos traziam comida e riam muito para nós. Um dia, quan<strong>do</strong> eu estava escovan<strong>do</strong> os<br />

dentes na beira <strong>do</strong> rio, um indiozinho veio e ficou bem ao meu la<strong>do</strong>, olhan<strong>do</strong>-me enfiar aquela<br />

escova na boca e mexer de um la<strong>do</strong> para o outro. Fiquei sem graça. Levantei, olhei para o rio e<br />

decidi assobiar um hino. Aprontei o bico e soprei os sons de Santo, Santo, Santo, Deus onipotente.<br />

De repente, percebi que o rapazinho estava assobian<strong>do</strong> comigo. Parei e olhei para ele, mas ele<br />

continuou a assobiar sozinho. O índio sabia o hino to<strong>do</strong> e assobiou-o com um riso maroto no<br />

canto da boca, enquanto eu arregalava os olhos.<br />

— Mas como? Quem já tinha prega<strong>do</strong> o evangelho pra eles? Onde é que eles aprenderam<br />

Santo, Santo, Santo? — perguntei curiosíssimo.<br />

— Há uma tribo chamada uai-uai. Eles são das matas venezuelanas. Lá nas florestas onde<br />

viviam, chegaram uns missionários e falaram sobre o evangelho com eles. A tribo inteira se<br />

tornou cristã e eles decidiram que seriam os porta-vozes de Deus na floresta. Eles estão<br />

percorren<strong>do</strong> as matas pregan<strong>do</strong> para outros índios — informou-me Desmun<strong>do</strong>, enquanto eu<br />

quase não acreditava na beleza daquilo que ouvia.<br />

— E a conversão <strong>do</strong>s yscarianas, como aconteceu? — indaguei com profunda ansiedade.<br />

— Os uai-uai chegaram aqui perto, abriram uma clareira, acamparam e mandaram uma<br />

comitiva até aqui. “Mandem alguns homens porque temos boas novas para vocês”, eles<br />

mandaram dizer. Então, os yscarianas mandaram uma comitiva. Lideran<strong>do</strong> o grupo foi o<br />

feiticeiro da tribo, o sacer<strong>do</strong>te, o pajé. O nome dele é Araca. Lembra <strong>do</strong> homem de cabelo corta<strong>do</strong><br />

re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> em forma de cuia? Aquele que eu apresentei a você em primeiro lugar? Ele é o Araca.<br />

Eles foram até lá e se sentaram com os líderes <strong>do</strong>s uai-uai. Ouviram sobre a visita <strong>do</strong> Filho de<br />

Deus ao mun<strong>do</strong>. Disseram não saber que KorinKumam tinha um filho. Mas os uai-uai disseram<br />

que Jesus era o filho de KorinKumam. Ouviram várias histórias de milagres <strong>do</strong> evangelho, todas


guardadas na memória <strong>do</strong>s uai-uai. Eles voltaram para casa e reuniram a tribo toda. Araca disse<br />

que daquele dia em diante ele só faria orações a Jesus, o filho de KurinKumam. Muitos fizeram a<br />

mesma coisa e a maioria da tribo se tornou cristã. Foi assim que tu<strong>do</strong> aconteceu — contou<br />

Desmun<strong>do</strong> com um olhar puro, limpo, cheio de amor, o que fazia seus olhos crescerem enquanto<br />

falava.<br />

— Mas e você e sua esposa? Qual foi o papel que vocês tiveram nisso tu<strong>do</strong>? — perguntei,<br />

queren<strong>do</strong> saber no que consistia a vida e a missão deles no lugar.<br />

— Bem, eu não sou <strong>pastor</strong> e nem prega<strong>do</strong>r. Sou antropólogo e lingüista. Mas antes de tu<strong>do</strong>,<br />

eu sou cristão. Minha missão aqui foi aprender a língua deles, criar um alfabeto e ensiná-los a ler.<br />

Fiquei quase sete anos fazen<strong>do</strong> isso. Enquanto esse trabalho era feito, eu traduzia trechos da<br />

Bíblia para eles. Com a ajuda de Araca, traduzi o evangelho de Marcos, que é bem simples, o<br />

evangelho de João, as cartas de São Paulo aos Romanos e a Timóteo, e as epístolas de São Pedro.<br />

Eu <strong>do</strong>u o texto a eles e deixo que decidam que tipo de cristãos querem ser. Não estou tentan<strong>do</strong><br />

impor nada — ele me disse com muita certeza de seus objetivos naquele particular.<br />

— E que tipo de cristãos eles se tornaram? — indaguei com ansiedade e <strong>do</strong>i<strong>do</strong> para ouvir<br />

alguma coisa que reforçasse as minhas teses sobre o obsoletismo das formas de culto e prática da<br />

Igreja atual, pois estava convicto de que muito <strong>do</strong> que a igreja pratica hoje não tem nada a ver com<br />

a Bíblia. São apenas tradições, feitas sagradas. Só isso. — Mas sim, em que tipo de crentes eles se<br />

tornaram? — insisti.<br />

— Cristãos primitivos, quase como os <strong>do</strong> Novo Testamento. Só que são mais puros, pois<br />

nunca foram judeus — disse brincan<strong>do</strong>.<br />

— Como assim? Na prática, como é isso? Por exemplo, como é que eles batizam, a quem<br />

eles batizam e como é que eles dirigem a igreja? Eles têm <strong>pastor</strong>? Qual é a hierarquia que eles<br />

têm, se é que têm alguma? E os líderes da tribo? São os mesmos da igreja? Há separação de<br />

casais? E a vida sexual? Um homem pode ter mais de uma mulher? E os espíritos, eles ainda têm<br />

algum vínculo com eles? — foram todas as questões que eu despejei sobre ele, excita<strong>do</strong> de tanta<br />

curiosidade.<br />

— Eles batizam <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s: tanto por aspersão, jogan<strong>do</strong> a água na cabeça, como fazem<br />

os católicos, anglicanos e presbiterianos; como também batizam por imersão, mergulhan<strong>do</strong> a<br />

pessoa no rio Nhamundá. Depende <strong>do</strong> tempo. Quanto está frio, vai de um jeito, quan<strong>do</strong> está<br />

quente, vai <strong>do</strong> outro. Eles batizam os que se convertem. Mas às vezes, quan<strong>do</strong> os pais pedem, eles<br />

também batizam crianças. Eles também têm <strong>pastor</strong>es; são oito. O Araca é o líder maior, mas eles<br />

decidem tu<strong>do</strong> juntos. Quanto a casamento, não há separação aqui. Quan<strong>do</strong> um homem não quer<br />

mais sua mulher, ele não a deixa. Apenas não toca mais nela, mas cuida dela. Quem já tinha mais<br />

de uma mulher quan<strong>do</strong> se converteu, manteve todas. Os que estão se casan<strong>do</strong> agora, depois que<br />

se tornaram cristãos, estão sen<strong>do</strong> aconselha<strong>do</strong>s a ter uma só. Mas quem quer, pode ter mais de<br />

uma, só não pode é ser líder da igreja. Os <strong>pastor</strong>es têm que ser mari<strong>do</strong>s de uma só mulher, como<br />

eles leram na carta de São Paulo. Mas não pode haver adultério. Se um homem quer ter outra<br />

mulher, não deve nunca ser uma já casada. Tem que ser solteira, e a esposa dele tem que<br />

consentir.<br />

Eu fiquei perplexo com tu<strong>do</strong> aquilo. De fato, jamais pensara que na vida eu fosse ser<br />

apresenta<strong>do</strong> a um quadro tão fantasticamente original quanto aquele.<br />

— Mas e você, Desmun<strong>do</strong>, você não tenta passar para eles coisas que você pratica e crê? —<br />

perguntei, achan<strong>do</strong> quase impossível que pudesse ser diferente.<br />

— Não. Eu não digo nada, a menos que me perguntem. Mas quan<strong>do</strong> eles me perguntam<br />

algo, eu sempre respon<strong>do</strong> que aquilo é apenas a minha opinião — afirmou.<br />

— Mas e se você vê na Bíblia um mandamento claro a respeito daquilo? O que você diz? Você


diz o que consta na Bíblia? — questionei com a decisão de quem estava acostuma<strong>do</strong> a dizer como<br />

as pessoas deviam viver.<br />

— Não, eu não os man<strong>do</strong> fazer nada, mesmo quan<strong>do</strong> tenho opiniões bem claras sobre o<br />

assunto. Eu apenas mostro o que está escrito na Bíblia e digo para eles irem pensar e orar juntos.<br />

Às vezes eles voltam com a mesma opinião que eu tenho. Outras vezes, não — concluiu com um<br />

certo orgulho de seu méto<strong>do</strong> cientificamente tão “isento e democrático”.<br />

— Mas Desmun<strong>do</strong>, por que é que você faz assim? Se você sabe a verdade, você tem que<br />

passar para eles! — falei um pouco impaciente.<br />

— Mas o que é a verdade? O que eu vejo como verdade, outro pode ver de mo<strong>do</strong> diferente.<br />

Uma coisa que eu aprendi nos estu<strong>do</strong>s, mas muito mais no convívio com os índios, é como eu<br />

estou completamente condiciona<strong>do</strong> a ver a vida como inglês. Por mais que eu queira ser isento na<br />

minha leitura da Bíblia, eu não consigo. Eu sempre leio a Bíblia com o olhar de minha família,<br />

criação e cultura nacional e religiosa. Então, como eu vou saber se eu estou len<strong>do</strong> de fato a Bíblia<br />

ou apenas ven<strong>do</strong> coisas com meus olhos europeus? — falou, dan<strong>do</strong>-me de graça uma fantástica<br />

aula de antropologia missionária.<br />

— Voltan<strong>do</strong> ao assunto. E os poderes? Igreja e tribo são a mesma coisa? — indaguei,<br />

desejoso de saber mais sobre aqueles fascinantes seres humanos, que também eram meus<br />

irmãos na fé.<br />

— Deixa eu dar um exemplo de como as coisas funcionam aqui. O cacique, o líder político da<br />

nação yscariana, fez algo erra<strong>do</strong>. Em vez de pedir para desposar uma outra esposa, ele foi lá e<br />

simplesmente pegou a menina e levou-a. Os pais dela eram da igreja. O cacique também. Então,<br />

o assunto foi leva<strong>do</strong> ao Araca e aos outros <strong>pastor</strong>es. Eles decidiram afastar o cacique da comunhão<br />

da igreja por má conduta. Passaram a ordem no <strong>do</strong>mingo de culto e informaram ao chefe que ele<br />

estava excluí<strong>do</strong> até se arrepender. No momento, o cacique está fora da igreja há mais de um ano.<br />

Mas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da igreja, to<strong>do</strong>s o tratam como chefe. Até os <strong>pastor</strong>es. Mas ele também trata<br />

os <strong>pastor</strong>es como autoridades espirituais da igreja. As coisas estão bem separadas aqui. Às vezes<br />

eu acho que os líderes da Igreja da Inglaterra deviam vir aqui ver como as coisas têm de ser entre<br />

Igreja e Esta<strong>do</strong> — encerrou Desmun<strong>do</strong>, dan<strong>do</strong>-me de graça mais uma aula preciosa.<br />

Os dias transcorreram como num sonho entre os yscarianas. De manhã ce<strong>do</strong> eu andava pela<br />

tribo com as crianças. Almoçava com os missionários e andava de canoa à tarde, conhecen<strong>do</strong> as<br />

corredeiras <strong>do</strong> rio Nhamundá. Ao fim da tarde, ia para a praça de chão bati<strong>do</strong>, no meio da aldeia,<br />

onde os líderes liam as Escrituras e discutiam teologia ao mo<strong>do</strong> deles. À noite nós comíamos<br />

juntos e depois líamos a Bíblia, cantávamos e orávamos. Aí então, ouvíamos histórias da mata e da<br />

vida entre eles; todas me eram traduzidas por um índio que sabia português e que evocara um<br />

nome brasileiro para si pelo fato de saber falar a língua <strong>do</strong> Brasil. “Meu nome é Manoel”, dizia ele<br />

de mo<strong>do</strong> bem explica<strong>do</strong>, quase soletran<strong>do</strong> as palavras.<br />

Em algumas daquelas tardes, ajudei Pedro Peter a tratar <strong>do</strong>s dentes e a dar óculos para os<br />

índios que não enxergavam quase nada. Era uma festa. Com uma multidão esperan<strong>do</strong> à porta da<br />

maloca, quan<strong>do</strong> alguém saía lá de dentro com óculos na cara a moçada rolava no chão de tanto rir.<br />

O bom humor deles me impressionou imensamente.<br />

Na sexta-feira à tarde, fui passear de canoa com um indiozinho de uns <strong>do</strong>ze anos. O moleque<br />

era esperto e gostava de me provocar. Às vezes ele balançava a canoa no meio <strong>do</strong> rio e ameaçava<br />

fazê-la virar comigo. “Pára com isso. Num faz isso, não”, eu gritava, enquanto ele morria de dar<br />

risada. Ao longe, na beira <strong>do</strong> rio, a cerca de 150 metros de distância de onde estávamos, os líderes<br />

da igreja riam de mim. Era uma delícia. Mas foi naquele mesmo dia, depois que o garoto curtiu<br />

com a minha cara o quanto quis, que eu aprendi dele algo que marcou minha vida para sempre.<br />

Eu comecei a cantar um hino cristão enquanto remávamos e, quan<strong>do</strong> parei, o garoto começou:


O xim xam xam Nairamam KorinKomam!<br />

O xim xam xam Nairamam KorinKomam!<br />

O xim xam xam, Korikorinramam!<br />

Obviamente o que acabei de fazer foi uma transliteração fonética da música. Eu não sei<br />

escrever em yscariana, mas sei como a canção soou em minha alma desde aquele dia.<br />

Fiz o garoto repetir umas vinte vezes o hino até que eu conseguisse gravá-lo em minha<br />

péssima memória para música. Quan<strong>do</strong> voltamos à aldeia, fui logo cantan<strong>do</strong> o hino. Onde eu<br />

passava cantarolan<strong>do</strong> a música, as pessoas riam orgulhosas, como se no seu indigenismo tivessem<br />

me conquista<strong>do</strong> tão rapidamente. Cantei também para Pedro Peter e perguntei pelo significa<strong>do</strong><br />

daquelas palavras.<br />

Deus é bom, Deus é bom!<br />

Desde o nascer <strong>do</strong> sol até ao pôr-<strong>do</strong>-sol!<br />

Deus é bom e cheio de misericórdia!<br />

A canção inun<strong>do</strong>u minha alma para sempre. Ainda hoje, quan<strong>do</strong> preciso de paz e serenidade,<br />

muitas vezes ouço a voz <strong>do</strong>ce daquele garoto, embalan<strong>do</strong> esta canção na proa de uma canoa<br />

imaginária, na cadência de seu remar melódico, enquanto a brisa, com cheiro de mato e de vida,<br />

embrenha-se em meu interior.<br />

No sába<strong>do</strong> à tarde eu estava na beira <strong>do</strong> rio com Desmun<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ele me mostrou duas<br />

canoas que remavam contra a correnteza, subin<strong>do</strong> o rio.<br />

— São os uai-uai. Eles mandaram uma comitiva para representá-los na grande festa de<br />

amanhã — disse.<br />

No dia seguinte, a tribo toda se reuniria para receber formalmente o Novo Testamento<br />

completo, escrito em yscariana. Seria o coroamento <strong>do</strong>s 14 anos de trabalho de Desmun<strong>do</strong> e <strong>do</strong>na<br />

Mary ali entre eles.<br />

As pessoas da primeira canoa saíram e foram logo pon<strong>do</strong> o rosto em terra e choran<strong>do</strong>. A<br />

seguir, to<strong>do</strong>s estavam choran<strong>do</strong>, muitos com a cara no chão.<br />

— O que é isso Desmun<strong>do</strong>? O que aconteceu? É alguma coisa ruim? — perguntei meio<br />

assusta<strong>do</strong> com a cena.<br />

Parecia algo oriental, <strong>do</strong>s tempos bíblicos. Era como se ali, bem diante de meus olhos,<br />

estivesse acontecen<strong>do</strong> uma sessão de pranto comunitário, conforme as melhores descrições <strong>do</strong><br />

Velho Testamento.<br />

— O que eles estão dizen<strong>do</strong> é que uma irmã <strong>do</strong>s uai-uai que viria à festa de amanhã pisou<br />

num poraquê, o peixe elétrico, toman<strong>do</strong> banho na beira <strong>do</strong> rio e morreu. Ela estava grávida, por<br />

isso também estava muito pesada. Quan<strong>do</strong> recebeu a carga elétrica, caiu desmaiada e se afogou.<br />

Foi isso que aconteceu — ele explicou num inglês meticuloso, mas com profun<strong>do</strong> pesar.<br />

O resto <strong>do</strong> dia o assunto foi aquele. Naquela noite a tribo silenciou muito ce<strong>do</strong>. Logo to<strong>do</strong>s<br />

estavam <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, exceto eu, que saí da maloca e fiquei olhan<strong>do</strong> a imensidão daquele céu,<br />

choca<strong>do</strong> com minha insignificância humana. “Meu Deus, como é possível que eu tenha vivi<strong>do</strong> o<br />

tempo to<strong>do</strong> no mesmo mun<strong>do</strong> que esses irmãos, sem ter a menor idéia de que eles existiam e de<br />

que se tornariam, tão rapidamente, tão especiais para mim?”, falei com Deus e não esperei ouvir<br />

nenhuma resposta.<br />

Quan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mingo chegou, ouvi chifres sen<strong>do</strong> toca<strong>do</strong>s pouco antes das sete da manhã. Saltei<br />

da rede onde <strong>do</strong>rmia e corri para fora. As malocas estavam sen<strong>do</strong> abertas e delas saíam mulheres


vestidas de saia vermelha e usan<strong>do</strong> penas de galinha na cabeça, com seus filhos pendura<strong>do</strong>s em<br />

suportes de palha na parte lateral de suas costas. Elas andavam rápi<strong>do</strong>, balançan<strong>do</strong> os seios nus.<br />

As crianças corriam euforicamente, como se estivessem in<strong>do</strong> ao melhor lugar deste planeta. E os<br />

homens pareciam lordes ingleses. Com a cabeça completamente branca de penas de pintinhos<br />

coladas ao cabelo com óleo de madeira, ostentavam algum tipo de aparato especial. Podia ser uma<br />

sandália de borracha que a FUNAI lhes dera, uma camisa branca ou um prende<strong>do</strong>r especial de<br />

cabelo. Calças, só alguns deles tinham. A maioria vestia tanga ou pequenos calções. E o som <strong>do</strong><br />

chifre não parava de convocá-los ao lugar central da aldeia.<br />

O templo para o qual to<strong>do</strong>s nós nos dirigimos era uma obra de arte indígena. To<strong>do</strong> feito de<br />

troncos e galhos de árvores, era re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> e mantinha-se solidamente construí<strong>do</strong>, uma vez que<br />

todas as suas intercessões eram amarradas com cipó. Os bancos eram de madeira roliça,<br />

amarradas umas às outras nas extremidades, também com cipó. Ali não havia um único prego. Na<br />

direção para a qual to<strong>do</strong>s os bancos estavam arruma<strong>do</strong>s e bem finca<strong>do</strong>s no chão, havia uma mesa<br />

de troncos. Atrás dela também havia bancos para cerca de dez pessoas se sentarem.<br />

O culto começou sem nenhum sinal especial. O Araca leu um texto bíblico e alguém iniciou<br />

espontaneamente o hino. Depois outra pessoa leu mais uma passagem das Escrituras. E mais<br />

hinos puxa<strong>do</strong>s ao sabor da poesia das almas que ali se reuniam. Eles fizeram isso por quase duas<br />

horas, sem direção e sem interrupção. Depois o Araca perguntou quem tinha alguma palavra de<br />

testemunho de fé a dar. Vários levantaram as mãos e to<strong>do</strong>s falaram, um de cada vez. Por fim, o<br />

cacique pediu a palavra. Araca chamou-o e perguntou <strong>do</strong> que se tratava. Ouviu a explicação e só<br />

depois disso passou a palavra ao governa<strong>do</strong>r local.<br />

— É que eu pequei e quero pedir perdão à Igreja. Eu dei mal exemplo como crente de<br />

KorinKomam e como cacique. Quero saber se posso ser per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>? — ele falou, enquanto<br />

Manoel traduzia para mim.<br />

Os oito <strong>pastor</strong>es conversaram rapidamente, e então Araca se levantou.<br />

— Você é nosso líder e nós respeitamos você. Mas o que você fez foi erra<strong>do</strong>. Se você está<br />

arrependi<strong>do</strong>, nós per<strong>do</strong>amos. Agora, não pode mais fazer assim. Pode voltar à Igreja. Hoje<br />

também pode tomar a comida de Cristo — disse o <strong>pastor</strong> com meiguice e autoridade.<br />

Ao meio-dia eles introduziram os elementos da Eucaristia: beiju de mandioca com<br />

castanha-<strong>do</strong>-pará e vinho de bacaba. Era o mais fascinante serviço eucarístico que eu já vira na<br />

vida. Os cálices nos quais o vinho era servi<strong>do</strong>, feitos da casca seca de uma fruta local que os<br />

amazonenses chamam de cuia, não eram mais <strong>do</strong> que uns seis. Nós, entretanto, éramos quase<br />

quatrocentos. Assim, fiquei feliz por ser o oitavo a receber o cálice, pois ainda deu para achar uma<br />

ponta que não tivesse si<strong>do</strong> bicada. Olhei para trás e imaginei como aquele cal<strong>do</strong> estaria quan<strong>do</strong> a<br />

cuia chegasse lá atrás.<br />

Somente às 13 horas eles me passaram a palavra. Abri o livro <strong>do</strong> Apocalipse e li:<br />

“Digno és de tomar o Livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com teu sangue<br />

compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação, e para o nosso Deus os<br />

constituíste reino e sacer<strong>do</strong>tes; e reinarão para sempre.”<br />

Meu intérprete estava vestin<strong>do</strong> uma camisa branca de baba<strong>do</strong>s, novinha, que eu lhe dera. Eu<br />

jamais vestira aquela camisa, mas quan<strong>do</strong> ele a viu, seus olhos brilharam. “Você quer?”,<br />

perguntei. Ele nem respondeu, foi logo estenden<strong>do</strong> a mão e pegan<strong>do</strong>. E quan<strong>do</strong> eu o vi de peito<br />

incha<strong>do</strong> ali ao meu la<strong>do</strong>, percebi que, para ele, aquele momento era história pura. Talvez aquilo<br />

fosse o equivalente à posse de um presidente da República, para nós. O fato é que Manoel não se<br />

continha de felicidade por estar me interpretan<strong>do</strong> justamente na hora em que o Livro iria ser<br />

aberto. Peguei o Livro Vermelho, que era o Novo Testamento em yscariana, e disse:<br />

— O filho de KurinKumam veio a este mun<strong>do</strong> para nos livrar de todas as coisas que nos


prendiam. Especialmente as forças espirituais que nos amedrontavam. Essa visita de Jesus<br />

beneficiou gente de todas as terras. Alcançou a mim, que vivia corren<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> e da<br />

morte que me perseguiam. E alcançou vocês aqui, que antes viviam com me<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong>: da noite,<br />

<strong>do</strong>s espíritos e das forças da natureza. Agora, to<strong>do</strong>s nós estamos livres para amar uns aos outros e<br />

amar a Deus e a Sua criação. Agora nós somos propriedade exclusiva de Deus e somos os seus<br />

sacer<strong>do</strong>tes neste mun<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s nós somos Aracas de Jesus. To<strong>do</strong>s nós podemos falar com Ele e<br />

ser ouvi<strong>do</strong>s — e prossegui por cerca de vinte minutos.<br />

Como a tradução era demorada — pois o yscariana é uma língua de palavras longas, bem<br />

maiores que o português — às vezes eu falava dez segun<strong>do</strong>s e ficava esperan<strong>do</strong> vinte até Manoel<br />

chegar ao fim da tradução. E como tinha — e tenho — pavor de ser inconveniente e cansativo,<br />

reduzi minha fala ao mínimo. Quan<strong>do</strong> terminei, pedi para orar e ofereci aquele Livro Vermelho a<br />

Deus, pedin<strong>do</strong> que ele fosse sempre a estrela <strong>do</strong>s yscarianas. Pedi ainda que, à semelhança <strong>do</strong>s<br />

uai-uai, eles também se tornassem anjos da floresta.<br />

Araca encerrou o culto e to<strong>do</strong>s voltaram para suas malocas, cada um com um exemplar <strong>do</strong><br />

Novo Testamento Vermelho nas mãos. Ele, então, me convi<strong>do</strong>u para almoçar com os anciãos da<br />

igreja. Atravessamos toda a aldeia e chegamos a um lugar espaçoso, de chão bati<strong>do</strong>, coberto de<br />

palha seca e à volta <strong>do</strong> qual havia muitos cascos de tartaruga. O lugar parecia uma sala de<br />

convenções, uma espécie de Salão Oval ou coisa <strong>do</strong> tipo. Araca me indicou um <strong>do</strong>s cascos de<br />

tartaruga e eu sentei. O ambiente era solene, porém alegre. A seguir, vi que as mulheres<br />

começaram a trazer umas bacias naturais cheias de carne e outras cheias de beiju.<br />

— Irmão Pedro Peter, o que é aquilo? Que carne é aquela? — perguntei a ele, que estava<br />

senta<strong>do</strong> num casco grande de tartaruga, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da sala, bem na minha frente.<br />

— É carne de cuatá! — falou com simplicidade.<br />

— Carne de quê? — insisti.<br />

— Carne de macaco cuatá. Sabe o cuatá? Aquele macaco grande, assim <strong>do</strong> tamanho de um<br />

menino de uns seis ou sete anos? — disse Pedro Peter, e eu quase vomitei.<br />

— Ih, meu Deus, o negócio aqui num tá fácil. Como é que eu vou comer carne de macaco<br />

que parece menino de seis anos? Assim num dá — falei mais comigo mesmo que com Deus, é<br />

claro.<br />

Araca levantou e me chamou para acompanhá-lo na direção <strong>do</strong> cuatá. Pedro Peter fez sinal<br />

com os olhos para eu ir. Ergui-me vacilantemente e andei até lá. Meu estômago embrulhou.<br />

Araca pegou um pedaço mais escuro de carne e me deu. Vi que ali ao la<strong>do</strong> havia uma cuia com sal.<br />

Peguei a carne e taquei sal nela. Depois, mais que relutantemente, coloquei um pedaço na boca,<br />

enquanto Araca esperava eu provar.<br />

— Hum! Que bom! Maravilha! — exclamei.<br />

Meu rosto mu<strong>do</strong>u e minha atitude também. O tal <strong>do</strong> cuatá era uma delícia. Comi até não<br />

poder mais. Além disso, aquele era o primeiro pedaço de carne que eu comia aquela semana. Só<br />

parei de comer quan<strong>do</strong> percebi que o sal da cuia já estava úmi<strong>do</strong> de saliva, pois to<strong>do</strong>s os que se<br />

serviam ficavam voltan<strong>do</strong> à cuia para salgar um pouco mais a sua carne. Para mim já era demais.<br />

Naquele mesmo dia eu voltaria para Manaus. Pedi para ser o último a sair dali. Dois pilotos se<br />

alternaram pegan<strong>do</strong> os que iriam para Manaus. Ao to<strong>do</strong>, éramos sete: Desmun<strong>do</strong>, <strong>do</strong>na Rosa,<br />

Pedro Peter e esposa, um outro casal de missionários e eu. Deixar os yscarianas foi um parto para<br />

a alma. Meu me<strong>do</strong> era o de não voltar mais a vê-los neste mun<strong>do</strong>.


Capítulo 32<br />

“A tempestade cai sobre os navegantes e ameaça tragá-los. To<strong>do</strong>s empalidecem<br />

diante da morte que os espera. O céu e o mar se acalmam, e o excesso da alegria<br />

que nasce em seus corações é exatamente proporcional ao excesso de seu me<strong>do</strong> na<br />

hora da tormenta.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Conforme havia solicita<strong>do</strong>, fui o último a ser retira<strong>do</strong> da aldeia. A tribo toda foi para a beira<br />

<strong>do</strong> rio para se despedir de mim. Chorei muito, beijei a to<strong>do</strong>s os que pude e disse que jamais me<br />

esqueceria de seus rostos para o resto de minha existência. Enquanto Manoel remava o<br />

casquinho até ao fragilíssimo monomotor que viera me buscar, mantive meus olhos fixos na<br />

paisagem que ficava para trás. Tinha a esperança de um dia voltar ali, mas também tinha a<br />

suspeita de que talvez jamais conseguisse retornar. Acenei uma última vez e entrei no<br />

apertadíssimo avião.<br />

— Boa tarde, <strong>pastor</strong>. Meu nome é George — disse o piloto, homem de uns sessenta anos e<br />

com um pesadíssimo sotaque de americano que não se esforça o suficiente para falar português.<br />

— Quanto tempo vai levar daqui a Manaus? — perguntei, pois sabia que num avião daquele o<br />

tempo e o vento têm importância fundamental.<br />

— Ah, umas duas horas e meia, no máximo — ele respondeu.<br />

A decolagem de dentro <strong>do</strong> rio Nhamundá foi um susto, pois pegamos um vento de proa e a<br />

velocidade <strong>do</strong> aparelho diminuiu. Subimos, mas passamos raspan<strong>do</strong> na copa de uma enorme<br />

castanheira.<br />

— Ê, ê! Esse negócio sempre sobe assim mesmo, George? — indaguei assusta<strong>do</strong>.<br />

— Não. Foi porque a gente quase não conseguiu — ele respondeu friamente, como se a<br />

possibilidade de nós não termos consegui<strong>do</strong> fosse significar qualquer coisa menos banal que a<br />

morte.<br />

“Esse George é esquisito”, pensei.<br />

Dez minutos depois de estarmos voan<strong>do</strong>, entramos numa nuvem escura. O avião subiu,<br />

desceu, sacudiu e começou a tremer sem parar. Em seguida, caiu um pé d’água sobre nós como<br />

eu jamais vira antes. Foi esquentan<strong>do</strong>. Comecei a suar. Alaguei meu tênis e encharquei a calça.<br />

Foi quan<strong>do</strong> vi que na janela havia uma tampinha de vidro, bem re<strong>do</strong>nda, que estava ali para casos<br />

como aquele: permitir a entrada de vento quan<strong>do</strong> uma tempestade impedisse o piloto de abrir<br />

mais as entradas de ar. Rodei aquela tampinha e enfiei o nariz ali. Que alívio.<br />

A tempestade, entretanto, não aliviava. Os balanços e as trepidações pareciam se agravar.


Olhei para George e vi que estava completamente páli<strong>do</strong>. Nós, àquela altura, já estávamos voan<strong>do</strong><br />

a uns 25 minutos.<br />

— George, está tu<strong>do</strong> bem? — perguntei queren<strong>do</strong> ouvir alguma coisa boa.<br />

— Bem? Como é que pode estar bem? Não vejo nada, não sei para onde estamos in<strong>do</strong> e não<br />

tenho como saber. A melhor coisa que você faz é pedir a Deus para salvar a gente! — ele falou<br />

com um misto de raiva e me<strong>do</strong>.<br />

— Mas como? Que negócio é esse de “não sei para onde estamos in<strong>do</strong>”? Você tem que saber!<br />

— cobrei irrita<strong>do</strong>.<br />

— Mas não sei. Conheço essa floresta como a palma de minha mão direita. Mas eu tenho que<br />

ver para onde estamos in<strong>do</strong>. Sem ver, não dá — repetiu.<br />

— E os aparelhos, bússola e as outras coisas? — indaguei.<br />

— Que bússola, que nada! Aqui num tem nada disso. É tu<strong>do</strong> no olho — falou, olhan<strong>do</strong>-me<br />

com extrema seriedade.<br />

— Mas então como é que você saiu de lá? Eu vi que o tempo estava fechan<strong>do</strong>. Se eu soubesse<br />

que você voava no olho, não teria saí<strong>do</strong> de lá de jeito nenhum — afirmei, começan<strong>do</strong> a sentir uma<br />

angústia fina gelar meu estômago. — E agora, George?<br />

— Agora, meu amigo, só Deus pra nos tirar daqui. Eu nunca vi uma cena como essa, nem<br />

quan<strong>do</strong> bombardeei Berlim — ele respondeu.<br />

Quan<strong>do</strong> eu ouvi aquele negócio dele ter senti<strong>do</strong> menos me<strong>do</strong> bombardean<strong>do</strong> Berlim que ali<br />

na floresta, eu realmente me apavorei.<br />

— Meu Deus, a gente vai morrer aqui! — falei baixinho.<br />

Enquanto isso, a tormenta piorava. O pobre aparelho parecia uma pena soprada por um<br />

ventila<strong>do</strong>r superpotente. Nós não tínhamos a menor chance. Depois de voarmos cerca de vinte<br />

minutos no escuro, o céu abriu por não mais <strong>do</strong> que um minuto, mas por tempo suficiente para o<br />

dana<strong>do</strong> <strong>do</strong> George descobrir onde estávamos.<br />

— Sei onde estamos. Manaus está para aquela direção — disse ele.<br />

Aí, então, entramos em outra interminável nuvem negra, carregada de eletricidade. Os<br />

trovões estouravam na cara da gente e os relâmpagos pareciam ser acesos bem nos nossos olhos.<br />

Além disso, o barulho de tanta água cain<strong>do</strong> sobre nós era apavorante. Eu encostei a cabeça no<br />

vidro e orei incessantemente.<br />

“Senhor, eu só tenho 23 anos. Tenho esposa, um filhinho e outro a caminho. Por favor, não<br />

me deixa morrer sem conhecer meu segun<strong>do</strong> filho. Também, eu Te peço: deixa-me viver mais,<br />

pois ainda tenho muito para fazer. Fica com a gente aqui, Jesus”, pedi com fervor e pavor.<br />

A viagem durou mais de três horas. Durante to<strong>do</strong> o tempo sofremos aquele pânico horroroso.<br />

Graças a Deus, entretanto, George era muito bom de ar. Conhecia tu<strong>do</strong> na região. O que nos<br />

salvou foi que as nuvens se abriram rapidamente três vezes, embora nunca por perío<strong>do</strong>s mais<br />

longos <strong>do</strong> que <strong>do</strong>is minutos, mas por tempo suficiente para o americano encontrar o rumo de<br />

Manaus.<br />

— A cidade está a vinte minutos daqui. Aquele ali já é o rio Urubu — falou George<br />

subitamente, enquanto me olhava com mais esperança.<br />

Quan<strong>do</strong> o céu se abriu outra vez, já estávamos sobre o rio Negro, bem em frente a Manaus.<br />

George deu um tapa no painel e disse algo que não entendi. Pousamos e apertamos a mão um <strong>do</strong><br />

outro.<br />

— Olha, eu já vi coisa preta nesse mun<strong>do</strong>. Mas nunca vi nada tão feio como a tempestade de<br />

hoje. Escapamos por pouco, graças Deus — disse George ainda nervoso e com lágrimas nos<br />

olhos.<br />

— É, tu<strong>do</strong> o que eu quero agora é voltar para casa. E pensar que a gente quase não volta.


Obriga<strong>do</strong>, Jesus — falei, olhan<strong>do</strong> para George.<br />

— Eu já estava que não agüentava mais — disse Alda. — Estou sentin<strong>do</strong> um peso horrível.<br />

Meu me<strong>do</strong> era que o menino nascesse e você não estivesse aqui.<br />

Deixei que ela falasse tu<strong>do</strong> o que estava sentin<strong>do</strong> e depois contei minhas experiências<br />

mágicas entre os yscarianas. Papai e mamãe também se deleitaram ouvin<strong>do</strong> as minhas histórias<br />

sobre a tribo.<br />

— Que coisa, meu filho, <strong>do</strong> jeito que você está falan<strong>do</strong> parece até que você ficou muitos anos<br />

com eles — disse mamãe.<br />

O que eles não sabiam, e àquela altura eu também não, é que aquela semana alteraria<br />

dramaticamente minha visão daquilo que é essencial e genuíno no evangelho em relação a<br />

inúmeras imposições da religião e que não têm nada a ver com a fé.<br />

— É, sim, mãe. Eu me sinto como se, de alguma forma, eu tivesse vivi<strong>do</strong> muito tempo entre<br />

eles. De algum mo<strong>do</strong> eu sei que não sou mais o mesmo em muitas áreas da minha vida. Aqueles<br />

índios vão viver em mim para sempre — falei com uma certa emoção.<br />

— <strong>Caio</strong>, me ajuda. A bolsa d’água estourou. O que eu faço? — Alda exclamou, assustada, às<br />

quatro da manhã <strong>do</strong> dia seguinte à minha chegada da tribo. Saí de casa corren<strong>do</strong> e fui acordar<br />

uma parteira que morava a uns quinhentos metros de nossa residência. Quan<strong>do</strong> ela examinou<br />

Alda, foi logo mandan<strong>do</strong> ir buscar uma bacia, toalhas, gaze e outras coisas. Aí me apavorei. Eu<br />

queria apenas que ela me dissesse se dava tempo de correr para o hospital, não que Alda tivesse o<br />

filho em casa. Era muito arrisca<strong>do</strong>.<br />

— Joede, a Aldinha está em trabalho de parto. Estou com <strong>do</strong>na Maria, a parteira lá da igreja,<br />

aqui com a gente. O que devo fazer? Deixo nascer aqui ou levo para o hospital? — perguntei<br />

nervoso ao telefone, acordan<strong>do</strong> nosso médico às quatro e meia da manhã.<br />

— Saia daí corren<strong>do</strong> agora mesmo. Encontro vocês no hospital em 15 minutos — disse ele, já<br />

baten<strong>do</strong> o telefone.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos, uma maca já esperava por Alda e levaram-na imediatamente. Cinco<br />

minutos depois, vi uma enfermeira sain<strong>do</strong> da mesma sala com uma coisinha branquinha e<br />

pequenininha como um bonequinho.<br />

— De quem é esse neném? É homem ou mulher? — indaguei. Mas a mulher não me deu<br />

resposta. Olhou-me com aquele estranho ar de reprimenda que às vezes as enfermeiras<br />

possuem, e entrou no berçário. — Joede, nasceu? — perguntei tão logo ele meteu o rosto para<br />

fora da sala.<br />

— Você não viu? Acabou de passar aqui. É homem. To<strong>do</strong> ruivo. É compri<strong>do</strong>, mas bem<br />

magrinho. Também, prematuro de oito meses! — disse contente.<br />

Quan<strong>do</strong> vi o menino já devidamente lava<strong>do</strong>, eu me assustei. Ele era tão ruivo e branco, que<br />

pensei tivessem troca<strong>do</strong> meu filho por outro ali no hospital. Depois, com calma, é que fui ven<strong>do</strong><br />

como ele reunira as duas linhas européias de nossa ascendência. O la<strong>do</strong> de vovó Zezé, com seus<br />

ancestrais franceses, e a linhagem absolutamente européia de Alda, com avós alemães e<br />

portugueses, to<strong>do</strong>s muito brancos e loiros. No dia seguinte, quan<strong>do</strong> saí <strong>do</strong> hospital carregan<strong>do</strong> o<br />

ruivinho, já havíamos decidi<strong>do</strong> que ele seria Davi, como o da Bíblia, pois a semelhança no biótipo<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is era óbvia.<br />

— Pega esse menino que ele vai explodir de vermelho — gritei para Alda. Assim que os<br />

primeiros raios de sol caíram sobre ele, a impressão que tive foi a de que ele estouraria. Foi<br />

fican<strong>do</strong> vermelho com tamanha rapidez, que parecia que algo estava erra<strong>do</strong>.<br />

— Fica calmo, é que gente branca demais é assim mesmo — disse Alda <strong>do</strong> alto de sua vasta


experiência com sua própria brancura.<br />

Davi era um santo. Não dava trabalho e <strong>do</strong>rmia o tempo to<strong>do</strong>. Diferentemente de Ciro, que<br />

com apenas 11 meses me dava uma canseira profunda. Não parava e mostrava-se tão irrequieto,<br />

que às vezes eu pensava que ele tinha alguma coisa fora <strong>do</strong> lugar. Até ali, entretanto, nossa<br />

família, já de quatro pessoas, vivia socada no mesmo quartinho que abrigara Alda e eu desde o<br />

início. Só que agora, além de nós quatro, ainda havia minha biblioteca, de quase mil livros, e mais<br />

berços, cama de casal, aparelho de som, uma mesa para escrever, penteadeira e um monte de<br />

outras bugigangas. Tu<strong>do</strong> isso em, no máximo, vinte metros quadra<strong>do</strong>s de área.<br />

No início de maio de 1977 recebemos um telegrama <strong>do</strong>s pais de Alda nos convidan<strong>do</strong> para<br />

irmos à Europa visitá-los. “Não agüentamos mais ficar sem nossos netos”, dizia a mensagem. Em<br />

seguida, eles nos mandaram o dinheiro das passagens. Partimos para Portugal. Na chegada<br />

ficamos surpresos com as mor<strong>do</strong>mias que o governo brasileiro concedia aos seus representantes<br />

no exterior. Sabíamos que existiam vantagens, mas não imaginávamos que fossem tantas. Só que<br />

em Portugal, em 1977, as facilidades eram ainda maiores, pois com a revolução socialista em<br />

Angola e Moçambique, milhares de “retorna<strong>do</strong>s” africanos de língua portuguesa invadiram a<br />

terrinha. E uma das conseqüências dessa situação foi que muitos deles, no desespero de<br />

encontrar onde morar e não achan<strong>do</strong> pousada, emprego ou vínculos, acabavam invadin<strong>do</strong><br />

casarões ou castelos que serviam como segunda ou terceira residência para a aristocracia<br />

lusitana, toman<strong>do</strong>-os e, muitas vezes, vilipendian<strong>do</strong>-os.<br />

Meus sogros estavam viven<strong>do</strong> em Sintra, paraíso histórico nas montanhas, a apenas trinta<br />

minutos de Lisboa. A residência onde se instalaram era a Casa <strong>do</strong>s Pene<strong>do</strong>s, uma mansão de uma<br />

senhora riquíssima, que, ten<strong>do</strong> moradia fixa numa casa maravilhosa na capital, se dava ao luxo de<br />

possuir uma outra igualmente extraordinária entre a serra da Estrela, ao norte, e a maravilha de<br />

Sintra, a qual usava como residência de verão. Ficamos estupefatos com o luxo, a arte, a grandeza<br />

e o bom gosto que definiam a casa, bem como com a paisagem lindíssima de toda aquela região.<br />

Dos janelões da Casa <strong>do</strong>s Pene<strong>do</strong>s via-se o Palácio da Vila, com suas torres em forma de<br />

grandes Fantas. Ao re<strong>do</strong>r deste, havia uma quantidade enorme de casas e pequenos palácios,<br />

to<strong>do</strong>s plenos de detalhes artísticos. Olhan<strong>do</strong>-se à esquerda <strong>do</strong>s mesmos janelões, era possível<br />

avistar as torres <strong>do</strong> Palácio da Pena Verde, lugar belíssimo e considera<strong>do</strong> mal-assombra<strong>do</strong> pelos<br />

mora<strong>do</strong>res da região, vez que, inexplicavelmente, sobre ele caíam pedras abrasadas, vindas <strong>do</strong><br />

céu. De lá também se via a torre <strong>do</strong>s Sete Ais e o horizonte infindável <strong>do</strong> oceano Atlântico. Nos<br />

fun<strong>do</strong>s da casa, erguia-se uma montanha de aparência medieval, cheia de árvores antigas, de<br />

cujos galhos derramavam-se teias vegetais finas e bem decoradas. A tonalidade das folhas era<br />

belíssima. Tantos eram os tons, que para um amazonense acostuma<strong>do</strong> apenas a variações <strong>do</strong><br />

verde, aquilo parecia uma experiência alucinógena, de matizes surrealistas.<br />

No topo da montanha, <strong>do</strong>is castelos erguiam-se imponentíssimos. As ruínas <strong>do</strong>s Mouros,<br />

com seus muros de pedras brutas, desenhavam os contornos da montanha, prosseguin<strong>do</strong><br />

ondulantemente à medida que a topografia subia e descia. E um pouco à direita, acima <strong>do</strong>s<br />

Mouros, projetava-se, de mo<strong>do</strong> sobranceiro e cheio de realeza, o Palácio Nacional da Pena. Este<br />

sim, era algo deslumbrante e capaz de fazer a alma apaixonada pela história viajar para dias em<br />

que os mares ainda eram habita<strong>do</strong>s por dragões, a terra era plana, o horizonte terminava num<br />

abismo e o nosso planeta era o centro <strong>do</strong> universo, exceto para uns poucos seres humanos que<br />

ousaram enfrentar o papa, a Igreja, a ciência e os bons costumes, a fim de crer e viver de outro<br />

mo<strong>do</strong>.<br />

Os primeiros 15 dias ali foram de total deslumbramento para nós. Visitamos to<strong>do</strong>s aqueles<br />

castelos e nos metemos em cada lugarzinho pitoresco da vila. À tarde, descíamos <strong>do</strong>s pene<strong>do</strong>s<br />

pelas vielas de chão de paralelepípe<strong>do</strong> liso, que serpenteavam românticas entre casas estreitinhas


e coladas umas às outras, quase todas pintadas de cor-de-rosa, e íamos até a Periquita, uma casa<br />

de chás e <strong>do</strong>ces que se espremia, quase na parte plana da vila, entre outras pequenas lojinhas.<br />

Que <strong>do</strong>ces saborosos e que gente fina e boa encontrávamos ali, naquele tempo bem anterior à<br />

invasão de brasileiros que saturou os portugueses em relação a nós. Naqueles dias, entretanto, os<br />

brasucas, como nos chamavam, eram vistos como primos prósperos e bem-sucedi<strong>do</strong>s, olha<strong>do</strong>s<br />

com orgulho pela nostálgica e deprimida alma portuguesa. Com a novela Gabriela cravo e canela<br />

sen<strong>do</strong> exibida por lá, os encantos <strong>do</strong> Brasil estavam exercen<strong>do</strong> seus dias de mais profunda e<br />

fascinante sedução sobre os lusitanos.<br />

Ao fim da primeira quinzena, disse aos meus sogros que iríamos deixar as crianças com eles<br />

para irmos a Israel, visitar a terra da Bíblia e conhecer in loco a geografia e a história <strong>do</strong> livro que<br />

me <strong>do</strong>minara o ser com sua mensagem. O pai de Alda contestou nossa opção, disse que nunca<br />

perderia seu tempo numa terra daquelas, cheia de deserto, guerra e pobreza, e nos ofereceu uma<br />

viagem para Paris. Mas como visse que nós estávamos irredutíveis, calou, e no dia seguinte nos<br />

trouxe duas passagens Lisboa—Tel Aviv, no vôo inaugural da ElLal, companhia israelense. Era<br />

setembro de 1977 quan<strong>do</strong> nossos pés tocaram o chão da Palestina pela primeira vez.<br />

Enchi o peito de ar e cheirei a Terra Santa. Havia um forte o<strong>do</strong>r de óleo e combustível de<br />

avião, pois, afinal, ainda estávamos na pista <strong>do</strong> aeroporto Ben Gurion. Mas meu olfato discerniu<br />

cheiros que eu nunca havia senti<strong>do</strong> antes. Como não estávamos numa excursão turística, tivemos<br />

de nos virar, às duas da madrugada, para encontrar onde <strong>do</strong>rmir ou, pelo menos, passar a noite.<br />

— Já que estamos aqui, vamos direto para Jerusalém — disse para Alda.<br />

Pegamos um táxi Mercedes, de três fileiras de assentos, e dividimos a corrida com <strong>do</strong>is<br />

árabes e duas freirinhas, vestidas de hábito branco, que estavam in<strong>do</strong> para um mosteiro no Monte<br />

Sião. Para mim, que crera em Cristo lá no meio da floresta <strong>do</strong> Amazonas, a mera menção de que<br />

elas iriam passar a noite naquele monte de tantas menções na Bíblia e de simbolismo espiritual<br />

tão forte arrepiou-me to<strong>do</strong>.<br />

Fiz questão de sair <strong>do</strong> carro quan<strong>do</strong> elas desceram <strong>do</strong> táxi no Monte Sião. Parei em silêncio e<br />

inspirei aquele cheiro de ciprestes e pinhais. O aroma da terra, <strong>do</strong> chão, também era diferente.<br />

Havia um certo cheiro de poeira <strong>do</strong> deserto em volta de nós. Depois desse culto olfativo,<br />

continuamos nossa busca de um hotel. Estavam to<strong>do</strong>s cheios. Rodamos até às quatro da manhã,<br />

até que encontramos uma espelunca que nos acolheu.<br />

No dia seguinte pulamos da cama ce<strong>do</strong> e saímos como loucos e famintos, tentan<strong>do</strong> comer as<br />

páginas da Bíblia como se elas fossem pão e estivessem derramadas pelo chão de Jerusalém. Que<br />

viagem! Que sensação!<br />

Passamos quinze dias em Israel, nos misturamos ao povo e fomos de ônibus para to<strong>do</strong>s os<br />

lugares. Na nossa inocência e sem assistência turística de qualquer espécie, abríamos a Bíblia e o<br />

mapa de manhã ce<strong>do</strong> e decidíamos o que iríamos visitar naquele dia. Sen<strong>do</strong> assim, íamos aonde o<br />

coração mandasse, mesmo que a área fosse considerada perigosa. E como não falávamos quase<br />

nenhum inglês naquele tempo, nós simplesmente íamos, e pronto. Pegávamos um ônibus cheio<br />

de palestinos e agüentávamos o sufoco, especialmente quan<strong>do</strong> o lugar em questão não era<br />

permiti<strong>do</strong> para turistas comuns. Só fomos perceber a extensão de nossa aventura quan<strong>do</strong><br />

encontramos com grupos de brasileiros que tinham guias israelenses, lhes contamos onde<br />

havíamos esta<strong>do</strong> e percebemos seu ar de profunda preocupação. Mas não fazia mal. Nós<br />

estávamos nos sentin<strong>do</strong> em casa com os palestinos. Nunca nos molestaram e nem tentaram nos<br />

intimidar. Fizeram apenas o possível para nos roubar numa boa, oferecen<strong>do</strong>-nos negócios por<br />

preços altíssimos e depois barganhan<strong>do</strong> conosco até o nível <strong>do</strong> irrisório. Era a melhor parte da<br />

viagem, no seu aspecto não-religioso.<br />

Naquela viagem eu não me dei tão bem com os judeus. Como bom evangélico, eu tinha si<strong>do</strong>


<strong>do</strong>utrina<strong>do</strong> a venerar judeu. Eles eram a raça eleita, o povo escolhi<strong>do</strong>, os descendentes <strong>do</strong>s<br />

patriarcas, os escritores da Bíblia, os irmãos raciais de Jesus e os gênios <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Pensei assim<br />

até que, numa certa manhã em Jerusalém, um desses filhos de Abraão acabou com minha poesia.<br />

Ora, Alda e eu estávamos in<strong>do</strong> da Cidade Velha para a Cidade Nova e pegamos um ônibus de<br />

judeus. O veículo estava completamente lota<strong>do</strong>. Vagou um assento, e Alda sentou. Quan<strong>do</strong> vagou<br />

o próximo, foi a minha vez. Pedi licença em inglês e me espremi ao la<strong>do</strong> de uma figura religiosa<br />

masculina, toda vestida com um fraque preto. Sobre a cabeça, uma cartola e, debaixo desta,<br />

cachinhos de cabelo loiro, que escorriam por suas têmporas. A barba era imensa e tinha as<br />

extremidades esfiapadas, parecen<strong>do</strong> que não eram aparadas havia tempo. Perceben<strong>do</strong> que ele<br />

queria ficar no corre<strong>do</strong>r, estiquei as pernas e consegui passar, sentan<strong>do</strong>-me à janela, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

religioso. Sorri para ele umas três vezes, mas nada. O judeu me olhava fixamente, quase me<br />

fuzilan<strong>do</strong> com os olhos. “Ele deve estar pensan<strong>do</strong>: ‘o que esse gentio esquisito está fazen<strong>do</strong><br />

senta<strong>do</strong> aqui ao la<strong>do</strong> de um legítimo filho de Abraão’, afinal, esta é a terra deles”, falei comigo<br />

mesmo, me sentin<strong>do</strong> quase na obrigação de achar explicação para a atitude mal-encarada daquele<br />

fariseu.<br />

Bum, bum, traack, pruuu, foi o que ouvi, enquanto o homem me olhava fixamente e mantinha<br />

a banda esquerda de sua nádega erguida uns quatro centímetros <strong>do</strong> assento, a fim de poder<br />

disparar melhor os seus mais letais puns contra a minha pessoa. Não acreditei. De repente, o gás<br />

subiu com to<strong>do</strong> o seu veneno e corruptibilidade. Fedia como jamais imaginara que um filho de<br />

Abraão fosse capaz de fazê-lo feder. Tentei abrir a janela, mas estava emperrada.<br />

— Alda — falei entre os dentes sem olhar para ela —, esse cara aqui está podre e quer me<br />

humilhar. Tá soltan<strong>do</strong> pum aqui e fica olhan<strong>do</strong> pra mim. Dá pra acreditar? — e ela, ao ouvir a<br />

história, ficou roxa de tanto rir ante o insólito da situação.<br />

Bem ali, no meio <strong>do</strong> bairro judeu de Jerusalém, a mística <strong>do</strong>s filhos de Jacó acabou para mim.<br />

Daquele dia em diante, eu veria Israel como uma nação única na história, mas o judeu, enquanto<br />

indivíduo, apenas como um ser capaz de soltar os piores puns <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como qualquer outro<br />

mortal. A minha decepção foi muito maior <strong>do</strong> que a daquele caboclo que flagrou meu avô João<br />

<strong>Fábio</strong> soltan<strong>do</strong> aquele monumental pum no porão de sua casa. “E judeu também peida?”, era<br />

minha questão existencial mais profunda naquele momento. A partir daquele dia, passei a assistir<br />

ao Woody Allen, procuran<strong>do</strong> uma resposta.<br />

Mas aquela viagem mu<strong>do</strong>u a minha vida espiritual e, sobretu<strong>do</strong>, a minha visão da Bíblia.<br />

Sen<strong>do</strong> uma pessoa tão olfativa e visual, a peregrinação pela palestina capacitou-me a, daí em<br />

diante, fazer uma leitura multidimensional das Escrituras, pois, além de to<strong>do</strong> o enriquecimento<br />

geográfico, histórico e até mesmo arqueológico que a viagem nos propiciou, as grandes<br />

contribuições aconteceram mesmo foi no nível da subjetividade. As páginas da Bíblia ganharam<br />

cor, cheiro, ondulação, abóbada celeste e dimensão para mim. Além disso, a visita à Galiléia<br />

enterneceu-me a alma a tal ponto, que era como se eu tivesse i<strong>do</strong> lá para namorar Deus. Fiquei<br />

apaixona<strong>do</strong> e romantiza<strong>do</strong> pelo divino, e Jesus dava a Ele um rosto meigo e amigo.<br />

No fim da viagem, fomos para Tel Aviv curtir um pouco de praia mediterrânea. Entramos na<br />

água às oito da manhã e às seis da tarde ainda estávamos lá, nos delician<strong>do</strong> naquela praia de ondas<br />

mansas e de águas tépidas.<br />

Naquela noite, entretanto, após o jantar num <strong>do</strong>s restaurantes à beira-mar, resolvemos<br />

caminhar pela calçada. Não sei por que cargas-d’água perguntei a Alda se ela era feliz.<br />

— Não. Não sou! — foi sua resposta. Eu quase caí para trás.<br />

— O quê? Você não é feliz? Mas como? Você tem tu<strong>do</strong>! Eu vivo para você, temos <strong>do</strong>is filhos<br />

lin<strong>do</strong>s, conhecemos o amor de Deus, e estamos aqui, num lugar onde jamais imaginamos estar<br />

em nossas vidas. Como não ser feliz? Não acredito no que estou ouvin<strong>do</strong> — falei oscilan<strong>do</strong> entre


uma leve angústia e uma pontinha de raiva.<br />

Ela não falou mais nada. Voltamos ao hotel e fomos para a cama. Rolei de um la<strong>do</strong> para outro e<br />

não consegui <strong>do</strong>rmir. Minha alma estava angustiada, frustrada, zangada e perplexa. Aí então<br />

percebi que ela também não <strong>do</strong>rmira. Sentei na cama e disse que gostaria de entender o que ela<br />

dissera lá na praia.<br />

— Não é que eu não seja feliz. Eu sou. Eu amo você e seria capaz de dar minha vida por você<br />

e por nossos filhos. Amo a Deus e quero ser Dele até o fim da vida e para sempre. Mas se pudesse<br />

voltar no tempo para antes de julho de 1973, eu voltaria. Então eu aceitaria a fé em Cristo, seria<br />

sua amiga ou mesmo sua ovelha, mas não sua esposa. Eu divi<strong>do</strong> você com tu<strong>do</strong> e com to<strong>do</strong>s, e não<br />

há limites e nem folgas. Quan<strong>do</strong> penso em viver <strong>do</strong> jeito que a gente vive até o fim da vida, eu me<br />

desespero. Eu não quero viver assim, entende? Seus pais também são maravilhosos. São gente de<br />

Deus como eu não pensei que existissem. Mas não agüento mais morar com eles e viver de favor<br />

naquele quartinho. Eu estou assim tão infeliz justamente porque eu estou tão feliz aqui e sei que<br />

tu<strong>do</strong> isso vai acabar. É por isso que eu estou sofren<strong>do</strong> — disse-me ela, choran<strong>do</strong>.<br />

No início, não entendi. Fiquei pensan<strong>do</strong> que havia amarra<strong>do</strong> meu burrinho no lugar erra<strong>do</strong>.<br />

Depois, convidei-a para orarmos juntos. Aí então ela <strong>do</strong>rmiu e pude ficar sozinho para pensar em<br />

tu<strong>do</strong> o que ela dissera. Não <strong>do</strong>rmi a noite toda. Fiquei imaginan<strong>do</strong> o que aconteceria se ela não<br />

agüentasse o tranco e resolvesse jogar tu<strong>do</strong> para o alto. Pensei no fracasso de meu ministério se<br />

isso acontecesse. Imaginei-me divorcia<strong>do</strong> e viven<strong>do</strong> longe <strong>do</strong>s filhos. A idéia para mim era muitas<br />

vezes pior que a morte. Por fim, perguntei-me o que poderia fazer para tirar aqueles obstáculos<br />

<strong>do</strong> caminho. Afinal, amava minha esposa e queria vê-la feliz.<br />

— Quan<strong>do</strong> a gente voltar, vou arrumar as coisas. Vamos comprar um terreno e construir uma<br />

casa. Vou separar as segundas-feiras apenas para nós. Também não atenderei mais ninguém em<br />

casa e vou abrir um escritório público que nos ajude a manter as coisas bem separadas de nossa<br />

vida. Vou tirar férias to<strong>do</strong>s os anos e não vou mais dar o número <strong>do</strong> nosso telefone pra to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. Certo? — afirmei e perguntei ao mesmo tempo.<br />

— E você vai conseguir? — foi a pergunta dela.<br />

— Não adianta ficar falan<strong>do</strong>. Você me conhece e sabe que eu prefiro provar as coisas com<br />

fatos. Espere pra ver. Mas, enquanto isso, relaxe e curta o que Deus está dan<strong>do</strong> pra gente agora —<br />

respondi.<br />

O retorno a Portugal foi tranqüilo. As crianças estavam bem. Ciro já falava tu<strong>do</strong> e mostrava<br />

profunda acuidade intelectual. Davi, entretanto, continuava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. De vez em quan<strong>do</strong><br />

acordava, comia, sorria, balançava a cabeça, e <strong>do</strong>rmia outra vez. Era impressionante.<br />

Logo percebi que as pessoas que nos cercavam estavam muito mal ali. A solidão delas era<br />

impressionante. Aquela gente da corte, que andava pelas festas que meu sogro organizava<br />

profissionalmente, era muito vazia e vivia numa infelicidade desgraçada: era a <strong>do</strong>r de ter tu<strong>do</strong>,<br />

mas não ter senti<strong>do</strong> para a vida. Não me contive. Ven<strong>do</strong> tanta gente triste, mesmo que sorrin<strong>do</strong>,<br />

comecei a falar-lhes de Jesus. Foi incrível. Às vezes, no meio de uma festa ou banquete, alguém<br />

se encostava ao meu la<strong>do</strong> e começava a conversar. De repente a pessoa abria o coração. Então<br />

chorava. Depois eu falava o que Deus fizera por mim. Não raro terminávamos a noite numa sala<br />

mais reservada, buscan<strong>do</strong> a Deus em prece.<br />

— Puxa, obriga<strong>do</strong>. Eu não podia ter perdi<strong>do</strong> esta festa. Que maravilha! — era o que a pessoa<br />

dizia aos meus sogros à porta, enquanto eles ficavam orgulhosos sem saber que o seu convida<strong>do</strong><br />

não estava fazen<strong>do</strong> referência à qualidade <strong>do</strong> whisky ou da comida, mas da água viva que bebera<br />

em algum lugar na Casa <strong>do</strong>s Pene<strong>do</strong>s.<br />

Ficamos quatro meses na Europa. Visitamos 17 países e nos divertimos muito. Mas no final<br />

<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, eu já estava cansa<strong>do</strong> de não fazer nada. Estava louco para voltar para Manaus. Foi


então que, numa viagem pela Alemanha, Alda falou-me que estava grávida outra vez. Só que dessa<br />

vez, além de tê-la deprimi<strong>do</strong>, a gravidez produziu o mesmo impacto em mim.<br />

— Mas como? Você não faz tabela? É muito filho em tão pouco tempo. O Ciro só tem um ano<br />

e meio e o Davi tá com sete meses. Como é que isso foi acontecer? — perguntei num ataque de<br />

idiotice, como se não soubesse como aquelas coisas aconteciam.<br />

— O problema é que você só me permite evitar filhos pela tabela. É muito arrisca<strong>do</strong>. Eu<br />

precisava tomar pílula — ela disse, lembran<strong>do</strong>-me de meu radicalismo evangélico, comum nos<br />

anos setenta, de afirmar que a pílula não era de Deus.<br />

— Pílula não! É artificial. Eu não concor<strong>do</strong>. Além disso, temos de confiar que Deus sabe<br />

tu<strong>do</strong> e, se Ele quer nos dar mais um filho, sabe o que está fazen<strong>do</strong> — falei, contradizen<strong>do</strong> meu<br />

discurso anterior, e assumin<strong>do</strong> minha postura <strong>pastor</strong>al.<br />

— Mas se a gente fosse deixar tu<strong>do</strong> pra natureza e pra providência de Deus, a gente tava<br />

lasca<strong>do</strong>. A gente não faz assim com relação às outras coisas, como trabalho, estu<strong>do</strong>, profissão e<br />

muitas outras coisas. Por que no sexo e na procriação a gente tem de ser naturalista e cheio desse<br />

calvinismo <strong>do</strong> qual você tanto fala? — ela me provocou de mo<strong>do</strong> inteligente.<br />

— É que filhos são vida. E esse assunto Deus cuida de mo<strong>do</strong> diferente — falei sem muita<br />

convicção, uma vez que no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> coração concordava com ela. Só não estava era com<br />

disposição de ter de enfrentar meu pai com uma teologia de procriação diferente da dele e <strong>do</strong>s<br />

demais <strong>pastor</strong>es de Manaus, naquele tempo.<br />

— Filhos são vida, mas as outras coisas são essenciais pra vida da gente também. Olha, você<br />

pode me dizer um milhão de vezes que as coisas são diferentes, mas meu coração não aceita. Eu<br />

sei que estou certa — ela concluiu, dan<strong>do</strong> a entender que não queria discutir mais o assunto.<br />

Fazia muito frio em Hamburgo naquela noite. Dormimos mal. Ouvi ela dar umas choradinhas<br />

bem discretas e senti borboletas voarem dentro de mim a noite toda.<br />

De volta a Portugal, algo ruim começou a acontecer. Todas as noites comecei a sentir uma<br />

presença espiritual maligna rondan<strong>do</strong> o nosso quarto. Podia sentir aquele cheiro característico de<br />

inhaca de demônio. Ciro foi o primeiro a sofrer os resulta<strong>do</strong>s daquela opressão. Começou a se<br />

agitar durante o sono, sempre na mesma hora em que eu sentia aquela presença no quarto. Ele se<br />

contorcia, gemia, chorava de angústia, abria os olhos, apontava na direção <strong>do</strong> canto <strong>do</strong> quarto e<br />

gritava. Eu o pegava no colo e orava com ele, mas sua agitação não cessava. Então eu o colocava no<br />

meu la<strong>do</strong> da cama, ajoelhava-me, impunha as mãos sobre ele e repreendia em voz alta toda e<br />

qualquer presença demoníaca naquela Casa <strong>do</strong>s Pene<strong>do</strong>s. Depois de alguns dias é que fiquei<br />

saben<strong>do</strong> pelo caseiro que havia <strong>do</strong>is quartos fecha<strong>do</strong>s no porão da mansão porque eles ouviam e<br />

viam vultos assusta<strong>do</strong>res sempre que abriam aqueles aposentos.<br />

Andei pela casa oran<strong>do</strong> e repreenden<strong>do</strong> aquelas sombras espirituais. Jejuei e orei com<br />

intensidade até que tu<strong>do</strong> aquilo cessou. Foi somente depois daqueles dias de escuridão que<br />

conseguimos relaxar outra vez e tentar aproveitar os últimos dias na Europa. Então, voltamos ao<br />

Amazonas.<br />

— A Aldinha vai ter neném, não vai, <strong>Caio</strong>zinho? — papai me perguntou.<br />

— Hum? — indaguei constrangi<strong>do</strong>, pois Alda e eu havíamos combina<strong>do</strong>, ainda na Europa,<br />

que não diríamos a ninguém que ela estava grávida até que a barriga o dissesse. Não<br />

agüentávamos ouvir as pessoas dizen<strong>do</strong>: “Coitadinha, tão novinha e já com três filhos. Que pena!”<br />

— Tá sim, mas como é que o senhor sabe? — indaguei.<br />

— É que Deus me falou em sonhos. Eu estava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> no mês passa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> vi você de<br />

joelhos num quarto grande, antigo e bem-decora<strong>do</strong>, o Cirinho choran<strong>do</strong> muito e Alda deitada na<br />

cama, deprimida e angustiada. Você chorava e orava. Então ouvi uma voz que dizia: “Ore por eles,<br />

pois Alda está grávida e não está aceitan<strong>do</strong>.” Acordei sua mãe e oramos até de madrugada. Depois


senti que vocês já estavam em paz. Então <strong>do</strong>rmimos — contou-me quase como se tivesse visto<br />

um filme, no caminho <strong>do</strong> aeroporto para casa.<br />

Ouvin<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> aquilo fiquei fortaleci<strong>do</strong> na certeza de que Deus estava no controle de nossas<br />

vidas e também feliz em perceber a ternura divina para conosco.


Capítulo 33<br />

“Tuas palavras, Senhor, tinha gravadas em minhas entranhas, e me via cerca<strong>do</strong> de<br />

Ti por todas as partes. Tinha certeza de Tua vida eterna, embora não a visse mais<br />

que em enigma e como em espelho. Assim, o que eu desejava não era tanto estar<br />

mais junto de Ti, mas mais firme em Ti.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Aproximava-se o Natal de 1977. A ida a Belém da Judéia havia acendi<strong>do</strong> em mim dimensões<br />

novas da celebração da visita de Deus ao nosso planeta, quan<strong>do</strong> Ele se vestiu de gente e assumiu a<br />

condição humana no menino Jesus. Além disso, apareceu no meu coração uma enorme ansiedade<br />

de reconciliação com pessoas que eu havia magoa<strong>do</strong> ou que haviam me machuca<strong>do</strong>. Visitei várias<br />

pessoas, pedin<strong>do</strong> e oferecen<strong>do</strong> perdão. Mas havia duas pessoas que não me saíam da alma:<br />

Simone e Alma.<br />

Numa daquelas quentíssimas tardes de Manaus, eu ia dirigin<strong>do</strong> meu carro pelo Boulevard<br />

Amazonas, quan<strong>do</strong>, de súbito, vi um salão de beleza. “Alguém me disse que a Simone tem um<br />

salão de beleza aqui. Deixa eu ver se é esse!”, falei alto, ainda que estivesse sozinho no carro.<br />

Parei em frente e fui entran<strong>do</strong> no lugar. Ainda à porta, vi aquele monte de mulheres com suas<br />

cabeças enfiadas naqueles aparelhos, quase astronáuticos, de secar cabelos. Era um corre<strong>do</strong>r de<br />

madames e o tititi não cessava.<br />

Foi quan<strong>do</strong> vi uma mulher loira, toda vestida de branco, bem-conservada, trilhan<strong>do</strong> o<br />

caminho <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo: de um la<strong>do</strong> parecia ser insinuante; mas de outro, mostrava-se<br />

absolutamente tímida e desconcertada.<br />

— Você é filho <strong>do</strong> <strong>Caio</strong>, não é? — ela me perguntou baixinho.<br />

Assim mesmo, muitas mulheres ouviram e escorregaram em seus assentos para ver melhor a<br />

cena.<br />

— Sou sim. E vim aqui por causa disso — declarei, sem graça com a situação.<br />

— Então, você deve me odiar — disse ela.<br />

— Olhe, eu não queria falar desse assunto aqui. Tem outro lugar? — perguntei, já<br />

seguran<strong>do</strong> seu braço e conduzin<strong>do</strong>-a para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> salão, onde parecia haver uma porta de<br />

acesso a um pequeno pátio. — Eu vim aqui pra me reconciliar com você. Isto é parte de minha<br />

cura como homem. Sou <strong>pastor</strong> e não quero passar este Natal sem estar bem com você. Na<br />

infância, eu chamava você de jaburu. Hoje, quero respeitar você como se respeita a uma mãe —<br />

disse eu, olhan<strong>do</strong> firme dentro <strong>do</strong>s olhos castanhos cor de mel daquela mulher que havia si<strong>do</strong><br />

amante de meu pai e o maior motivo contínuo de <strong>do</strong>r e vergonha para a vida de minha mãe


durante seis anos.<br />

— Eu não acredito no que estou ouvin<strong>do</strong>. Eu fiz vocês sofrerem muito. Como é que você<br />

pode dizer que me respeita? — falou, desaban<strong>do</strong> em lágrimas copiosas e convulsivas, enquanto<br />

eu a puxava para cima de meu peito e dava-lhe um abraço terno e filial.<br />

Ela ficou ali, com a cabeça no meu ombro, por uns cinco minutos. Alguém foi até a janela e<br />

viu-a abraçada comigo. Em razão de minha fama passada, apesar de já ser <strong>pastor</strong>, achei que a<br />

situação poderia ser mal interpretada. Por isso, tratei de recompô-la a fim de sair dali. Afinal, não<br />

seria a primeira vez que o filho se serviria da amante <strong>do</strong> pai.<br />

— Olhe, eu quero que você vá à igreja comigo. Você iria? — perguntei.<br />

— Você num sabe o que está fazen<strong>do</strong>. Sabe, teu pai me amou muito. O que houve entre nós<br />

foi muito forte. Hoje ele é <strong>pastor</strong>, mas ainda é homem. Se eu for lá, pode ser que tu<strong>do</strong> aquilo<br />

nasça outra vez. Seria terrível e um mal muito maior — disse ela com sinceridade.<br />

— Eu virei pegar você no próximo sába<strong>do</strong> à noite. Tem muita gente lá. Cê entra comigo,<br />

pelos fun<strong>do</strong>s. Eles nem vão ficar saben<strong>do</strong>. Aí então você vê meu pai. Se você achar que ele ainda é<br />

vulnerável a você, a gente deixa como está. Se não, eu vou continuar levan<strong>do</strong> você pra igreja,<br />

certo? — falei com ar final, de quem combina um tanto unilateralmente.<br />

No sába<strong>do</strong> seguinte fizemos conforme o combina<strong>do</strong>. Ela tremia de nervosa. Entramos depois<br />

da reunião ter começa<strong>do</strong>. Ela se sentou no meio da multidão e eu fui lá para a frente. Preguei<br />

minha mensagem e meu pai fez uma oração. Encerramos o culto.<br />

— Eu não acredito. Meu Deus, aquele não é o <strong>Caio</strong> que eu conheci tão bem. O que<br />

aconteceu com ele? Tá com cara de profeta com aquela barba branca, grande, e aquele ar de paz!<br />

Que coisa! — foi o que ela disse tão logo entrou no carro.<br />

Voltei para casa e fui direto falar com papai e mamãe. Contei tu<strong>do</strong> e fiz um pedi<strong>do</strong>.<br />

— Gostaria que nos encontrássemos com ela como família. Isso vai nos libertar <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e<br />

nos fará muito mais livres como pessoas. Vocês aceitam? — provoquei.<br />

— Por mim, não há problema. Eu já havia deseja<strong>do</strong> fazer algo assim, mas nunca tive<br />

coragem. Temia que me interpretassem mal, a começar por sua mãe. Mas meu pensamento<br />

sempre foi o seguinte: “Se eu, que tive o caso com ela, pude mudar de vida, por que ela não<br />

pode?” O problema é que eu sei que eu jamais deveria ser a pessoa para pregar para ela.<br />

Certamente poderia dar uma “aparência de mal”, e isso eu não quero — concluiu citan<strong>do</strong> uma<br />

exortação de São Paulo sobre não criar aparências desnecessárias que possam se tornar escândalo<br />

para os outros.<br />

— Desculpe-me, meu filho, mas eu não tenho sangue de barata. É muito fácil pra você e seu<br />

pai ficarem aí dan<strong>do</strong> uma de bons cristãos. Mas fui eu que fui humilhada por ela. Não, não dá não.<br />

Quero que ela se converta e que seja per<strong>do</strong>ada <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s dela, mas bem longe de mim. Aqui<br />

perto, jamais — disse mamãe sem titubeio e com clara revolta no olhar. A impressão que me deu<br />

foi a de que ela havia se senti<strong>do</strong> traída por mim.<br />

Então ela abaixou a cabeça, fixou o olhar no chão e chorou um pranto ambíguo. Parecia que,<br />

de um la<strong>do</strong>, ela gostaria de vencer aquilo, deixar o passa<strong>do</strong> ser passa<strong>do</strong> e per<strong>do</strong>ar a mulher. Mas<br />

de outro, to<strong>do</strong>s os seus brios femininos levantaram-se e prenderam-na numa teia de sentimentos<br />

que nem nós nem ela imaginávamos que ainda estivessem tão vivos.<br />

— Vai ver que a Simone tá certa. Essa coisa foi profunda demais pra acabar assim, sem<br />

marcas e conseqüências incuráveis. Vai ver que eu tô pedin<strong>do</strong> de mamãe o que ninguém pediria<br />

de sua mãe. Mas e se isso for uma oportunidade divina pra gente ficar maior que o passa<strong>do</strong>? Mas<br />

eu também sei que ninguém é maior que seu passa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> este define a conduta no presente<br />

— pensei alto, enquanto caminhava em direção ao meu quarto.<br />

Apesar de tu<strong>do</strong>, continuei visitan<strong>do</strong> Simone. Evitei ao máximo falar sobre meus pais.


Conversamos muito sobre outros assuntos, especialmente sobre as filhas delas. Foi quan<strong>do</strong><br />

fiquei saben<strong>do</strong> que Silvia, a mais velha, casara-se e já lhe dera netos. Mas a situação de Alma era<br />

desalenta<strong>do</strong>ra. Na ocasião, ela estava internada há meses numa clínica psiquiátrica em razão de<br />

mais um de seus surtos psicóticos.<br />

Contei para Simone o que acontecera entre nós <strong>do</strong>is.<br />

— Eu sei de tu<strong>do</strong>. Mas não fique preocupa<strong>do</strong>. Seu caso contribuiu pra ela ficar assim, mas<br />

não foi a única causa. Eu e meus “amores” fomos a principal razão. Especialmente quan<strong>do</strong> eu<br />

deixei seu pai. Naquela época, eu a feri muito. Alma era louca por ele. Nunca pensei que fosse<br />

afetar tanto a menina — disse-me ela, derraman<strong>do</strong>-se em lágrimas.<br />

— Eu enten<strong>do</strong>. Conheço perfeitamente o poder que papai tem de ser pai e impressionar<br />

filhos. Comigo, os meus desencontros também tinham a ver com ele. Demorou muito pra eu<br />

equilibrar as coisas dentro de mim em relação a ele — falei, tentan<strong>do</strong> igualar nossos males e<br />

<strong>do</strong>res.<br />

A noite de Natal foi maravilhosa. Tivemos um culto cheio de música e devoção. Fiz uma<br />

mensagem impregnada de gratidão a Deus pela sua solidariedade para conosco, fazen<strong>do</strong>-se<br />

gente. Depois <strong>do</strong> culto, abraçamos muita gente e, em seguida, nos encontramos como família.<br />

— Vamos lá, gente, que eu estou morren<strong>do</strong> de fome. Quero comer aquele peru gostoso que<br />

me aguarda lá em casa — falei, tentan<strong>do</strong> apressar a família.<br />

— Meu filho, acho que a gente vai ter que esperar pra comer a ceia de Natal — mamãe falou.<br />

— Eu não vou conseguir comer mais nenhuma ceia de Natal se não fizer uma coisa hoje que está<br />

me sufocan<strong>do</strong>. Eu não agüento mais ficar sem per<strong>do</strong>ar a Simone. Eu quero ir lá e dizer que estou<br />

livre de to<strong>do</strong> o ódio, de toda a amargura ou qualquer coisa. Eu quero ficar limpa — disse mamãe<br />

com a alma já lavada pela graça de Deus.<br />

— Então por que não vamos to<strong>do</strong>s juntos? Vamos lá cantar uns hinos de Natal — propus.<br />

Éramos dez pessoas. Meus pais e Aninha, minha irmã caçula; eu, Alda, Ciro e Davi; minha<br />

irmã Suely, seu esposo, e Anelise, a filhinha deles.<br />

“No Natal a gente sempre agradece<br />

Por Jesus ter nasci<strong>do</strong> em Belém<br />

Mas nem sempre se lembra na prece<br />

Que ele nasce na gente também.”<br />

Cantamos suavemente. Estávamos na calçada. À nossa frente, havia um portão de ferro que<br />

dava acesso à casa de Simone. O salão de beleza ficava ao la<strong>do</strong>, e a casa nos fun<strong>do</strong>s, a uns trinta<br />

metros de onde estávamos. Entre nós e a casa, portanto, havia um corre<strong>do</strong>r estreito e longo.<br />

Seguimos cantan<strong>do</strong> outros hinos.<br />

“Nas estrelas vejo Sua mão<br />

No vento ouço Sua voz<br />

Deus <strong>do</strong>mina sobre céu e mar<br />

Tu<strong>do</strong> Ele é pra mim<br />

Eu sei o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Natal<br />

Pois na história teve o seu lugar<br />

Cristo veio para nos salvar<br />

Tu<strong>do</strong> Ele é pra mim.”<br />

Quan<strong>do</strong> estávamos no meio da canção, vimos que a porta da casa ao fun<strong>do</strong> se entreabrira.


Dava para ver somente a metade <strong>do</strong> rosto de Simone, sozinha, choran<strong>do</strong>.<br />

Foi quan<strong>do</strong> não pude acreditar no que vi. Mamãe abriu o portão, an<strong>do</strong>u firme pelo corre<strong>do</strong>r,<br />

sozinha, na direção de Simone. Era como se ela andasse no tempo para abraçar o passa<strong>do</strong>, libertar<br />

seus fantasmas e ver nos olhos quem um dia a havia magoa<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> mamãe já estava a uns dez metros da porta, Simone correu de lá na direção dela,<br />

jogou-se sobre o ombro de minha mãe e chorou com urros de <strong>do</strong>r e angústia.<br />

— Eu vim aqui te dizer que Jesus me libertou de minhas amarguras e que eu estou livre pra<br />

amar você. Você não me deve mais nada. Tu<strong>do</strong> o que eu quero é que você seja feliz — mamãe<br />

falou, enquanto Simone se derretia de tanto chorar. To<strong>do</strong>s nós a abraçamos, inclusive papai, e<br />

antes de sairmos fiz uma oração abençoan<strong>do</strong> o Natal dela.<br />

Daquele dia em diante, muita coisa mu<strong>do</strong>u em nossas vidas. Surgiu uma liberdade enorme<br />

para confessar, para ser, para viajar em busca <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> a fim de poder caminhar com paixão em<br />

busca <strong>do</strong> futuro, que só existe para quem quer que o ame com força.<br />

Mamãe passou a dar atenção espiritual a Simone. Eu, sempre que podia, visitava Alma na<br />

clínica. Mas depois de um tempo, percebi que minhas visitas não faziam bem a ela. Confusa<br />

como estava, ela sempre imaginava que eu estava ali por outras razões.<br />

Nossas vidas prosseguiram em paz, até que em março de 1978, grávida de seis meses e meio,<br />

Alda acor<strong>do</strong>u em trabalho de parto. Corremos para o hospital. Nasceu um menino. Era lin<strong>do</strong>,<br />

branquinho, de nariz afila<strong>do</strong> e cabeça bem-feitinha. Viveu cinco horas e morreu. Alda e eu<br />

choramos baixinho. Resolvemos chamá-lo Luiz. Estranhamente, só percebemos depois, era o<br />

terceiro Luiz em minha família que morria, um em cada geração. Sepultamos nosso filho e<br />

voltamos à vida, sem perguntas e sem mágoas.<br />

O episódio da morte de Luizinho teve, entretanto, um aspecto hilário, pois nos lábios das<br />

crianças, mesmo a mais estranha declaração, com potencial para soar perversa, reveste-se de<br />

outro tom.<br />

Quan<strong>do</strong> minha irmã Suely, que estivera conosco no hospital fazen<strong>do</strong> vigília à porta da sala<br />

onde Luiz estava numa incuba<strong>do</strong>ra, ouviu de seu passamento, resolveu ir até a nossa casa para a<br />

dar a notícia aos que lá estavam. Ao chegar, deu de cara com Ciro e Davi em pé, juntos, à porta.<br />

— Tia, cadê o Luizinho? — perguntou Ciro.<br />

— Cirinho, Davizinho, o neném nasceu e uma coisa muito boa aconteceu com ele. Olha, ele<br />

já foi morar no céu, com Jesus. O neném está lá, ven<strong>do</strong> anjos e um monte de coisas lindas — ela<br />

disse com voz de quem contava uma historinha de Walt Disney.<br />

— Tia, o céu é lin<strong>do</strong>? É mais bonito que aqui? — perguntou o curioso Ciro, enquanto Davi,<br />

loiríssimo, olhava em volta sem nem bem saber o que estava acontecen<strong>do</strong>.<br />

— Ah! É lin<strong>do</strong>, sim. É tão bom morar no céu — concluiu Suely, achan<strong>do</strong> que a conversa<br />

estava encerrada.<br />

Então Ciro ficou olhan<strong>do</strong> para as nuvens azuis sobre sua cabeça, suspirou profun<strong>do</strong>, botou<br />

um <strong>do</strong>s braços em volta <strong>do</strong> pescocinho de Davi, e disse:<br />

— Jesus. O céu é lin<strong>do</strong>. Leva o Davizinho pra morar no céu contigo também.<br />

Assim, a morte de Luizinho não é lembrada por nós como um momento de <strong>do</strong>r, mas como<br />

uma ocasião na qual a inocência de um menino de três anos, inquieto com a chegada de irmãos<br />

que vinham sem pedir licença, desejou o melhor para eles, promoven<strong>do</strong>-os ao céu, e deixan<strong>do</strong><br />

assim a terra livre para o exercício de seus banais privilégios.<br />

Aqueles dias, entretanto, tiveram também componentes de natureza profundamente<br />

espiritual. Duas são as histórias que podem muito bem caracterizá-los. O fascinante dessas<br />

histórias é que ambas têm a ver com anjos e aconteceram exatamente no mesmo lugar: um<br />

grande prédio cheio de apartamentos e lojas, no centro comercial de Manaus.


Antes da minha conversão à fé, dentre os meus amigos havia <strong>do</strong>is irmãos conheci<strong>do</strong>s na<br />

cidade por serem bons de briga. Fazia anos que eu não os via. De repente, aí pelo final de 1978,<br />

um deles me procurou.<br />

— <strong>Caio</strong>, preciso de ajuda. Um anjo man<strong>do</strong>u eu vir falar com você — disse ele, e eu achei que<br />

tu<strong>do</strong> não passava de uma gozação.<br />

— Ah, é? Que anjo foi esse? — indaguei também brincan<strong>do</strong>.<br />

— Não tô brincan<strong>do</strong> não. Foi um anjo mesmo — repetiu ele com o rosto mais que sério. —<br />

Olha, meu irmão e eu temos uma loja aqui no edifício Cidade de Manaus. Os negócios tavam in<strong>do</strong><br />

bem, mas de repente começou a ficar tu<strong>do</strong> ruim. A gente tava quebran<strong>do</strong>. Então resolvemos fazer<br />

uma loucura. Como a gente tem um seguro contra incêndio, revolvemos tocar fogo na loja. Com a<br />

grana dava pra salvar o negócio — disse ele, mostran<strong>do</strong>-me o braço —, não posso nem lembrar<br />

que fico to<strong>do</strong> arrepia<strong>do</strong>.<br />

— Mas e aí, o que foi que aconteceu? — eu já estava fican<strong>do</strong> bastante curioso.<br />

— A gente preparou tu<strong>do</strong>. A idéia era que fosse um fogo bran<strong>do</strong> e que queimasse só a loja da<br />

gente. Na noite da véspera, eu estava muito ansioso e meu irmão parecia estar calmo. Fomos pra<br />

casa. Eu saí e ele ficou sozinho. Olha, bicho, o que ele contou é incrível. Só acreditei porque você<br />

conhece o cara. Ele não tem me<strong>do</strong> de nada e num tá nem aí pra esse negócio de religião e Deus e<br />

o escambau — afirmou, deixan<strong>do</strong>-me cada vez mais em suspense. — Ele disse que tava toman<strong>do</strong><br />

um wisquinho senta<strong>do</strong> na sala quan<strong>do</strong> viu um ser cheio de luz entrar pela sala, cara. O ser não<br />

tocava no chão, flutuava e se movia como se estivesse sen<strong>do</strong> empurra<strong>do</strong> suavemente de um la<strong>do</strong><br />

para o outro — falou, mostran<strong>do</strong>-me outra vez o braço to<strong>do</strong> arrepia<strong>do</strong>.<br />

— E como era esse ser?<br />

— Era como um homem, só que cheio de luz e muito bonito.<br />

— Mas e aí? O que foi que ele disse pro teu irmão?<br />

— Ele disse que tinha si<strong>do</strong> manda<strong>do</strong> por Deus pra nos impedir de matar muita gente. Disse<br />

que o que íamos fazer teria conseqüências desastrosas. Botou a mão nos olhos de meu irmão e fez<br />

ele ver — disse com os olhos cheios de lágrimas.<br />

— Ver o que, mano? — perguntei, já anteven<strong>do</strong> o desfecho de tu<strong>do</strong> aquilo.<br />

— Ele viu o fogo pegan<strong>do</strong> na loja ao la<strong>do</strong> e incendian<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o edifício, com centenas de<br />

mora<strong>do</strong>res. Era de noite. Então to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tava em casa. Era gente morren<strong>do</strong> pra to<strong>do</strong> la<strong>do</strong> —<br />

ele já não conseguia continuar de tanta emoção.<br />

— Mas o que é que isso tem a ver comigo? — perguntei, queren<strong>do</strong> juntar as pontas da<br />

história.<br />

— É que depois que o ser mostrou isso a ele, meu irmão ficou congela<strong>do</strong>. Parecia que estava<br />

morto. Não se movia <strong>do</strong> lugar. Foi quan<strong>do</strong> o ser me man<strong>do</strong>u procurar você — falou ele me<br />

olhan<strong>do</strong> com um ar de quem havia chega<strong>do</strong> mais perto <strong>do</strong>s mistérios da vida <strong>do</strong> que jamais<br />

imaginara.<br />

— Mas como é que foi que o anjo man<strong>do</strong>u vocês me procurarem? — perguntei, já<br />

esclarecen<strong>do</strong> que o ser era, na verdade, um anjo <strong>do</strong> Senhor.<br />

— Ele disse: “Aqui nesta cidade tem um amigo de vocês que conhece a Deus. Procurem o<br />

<strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> e ele vai ajudar vocês.” Foi só isso cara, o anjo te conhece — completou.<br />

Parti daquele ponto e falei de Cristo a ele e, depois, ao seu irmão, que, no entanto, era um<br />

homem muito duro de coração. Ficou uns 15 dias choca<strong>do</strong>, mas logo esqueceu tu<strong>do</strong> e mergulhou<br />

nas águas escuras das paixões que vivia. O porta<strong>do</strong>r da mensagem angelical, entretanto, ficou<br />

toca<strong>do</strong> por muito tempo. Passou a ir à igreja e nunca mais foi o mesmo. Casou-se com a moça que<br />

namorava naquele tempo e jamais deixou de ler a Bíblia. Não se tornou um crentão evangélico,<br />

mas jamais conseguiu deixar de ser um cristão. Aquele contato imediato de primeiro grau com as


forças <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> espiritual mu<strong>do</strong>u sua vida para sempre.<br />

Outro evento conecta<strong>do</strong> com as forças invisíveis <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> espiritual que me aconteceu<br />

naqueles dias teve a ver com a conversão de um jovem. Marcílio era um moço de cerca de vinte<br />

anos que vivia no alto <strong>do</strong> edifício Cidade de Manaus, o mesmo lugar <strong>do</strong> episódio anterior. Sen<strong>do</strong><br />

politicamente consciente e socialmente sensível, sofria muito ao perceber o esta<strong>do</strong> de injustiças<br />

sociais no qual o Amazonas vivia. Ele queria ver uma revolução acontecer. Por isso, candidatou-se<br />

a fazer parte da guerrilha urbana e foi receber treinamento no interior da Bahia.<br />

O problema é que Marcílio não tinha sossego de alma. Havia dentro dele um desassossego<br />

profundamente suicida. Um dia ele me ouviu pregar no câmpus universitário, achou tu<strong>do</strong><br />

ridículo e foi embora fazen<strong>do</strong> gozação. Mas o desespero <strong>do</strong> rapaz cresceu tanto, que numa<br />

determinada noite ele decidiu se suicidar. Foi para o alto <strong>do</strong> prédio e ficou de lá, olhan<strong>do</strong> para<br />

baixo. De súbito, foi puxa<strong>do</strong> para dentro <strong>do</strong> apartamento, onde caiu no chão, choran<strong>do</strong>. Então,<br />

ouviu uma voz.<br />

— Vai e procura o <strong>Caio</strong>, que ele vai ajudar você.<br />

— <strong>Caio</strong>? <strong>Caio</strong>? Quem é esse cara? — respondeu meio sem rumo.<br />

Então ele se lembrou que me ouvira pregar e também que tinha umas vizinhas que me<br />

conheciam bem. Mas o ator<strong>do</strong>amento <strong>do</strong> rapaz era tão grande, que nem pensou em ir à casa das<br />

moças para saber onde eu morava. Apenas pegou o eleva<strong>do</strong>r, desceu corren<strong>do</strong> para o seu<br />

fusquinha vermelho e caiu na estrada atrás de mim.<br />

Manaus já tinha cerca de oitocentos mil habitantes naquela época, uma população que<br />

crescia de forma larga e bastante espalhada. Marcílio seguiu suas intuições. Botou o carro na<br />

direção <strong>do</strong> endereço emocional que lhe surgiu no coração e seguiu em frente. Chegou ao bairro da<br />

Cachoeirinha e parou numa esquina. O bairro era amplo e bastante ramifica<strong>do</strong>, com muitas ruas<br />

e avenidas.<br />

— Ei, moço! Estou procuran<strong>do</strong> um tal de <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>. Você sabe onde ele mora? Já ouviu falar<br />

nele? — indagou Marcílio ao primeiro ser humano que passou por seu caminho naquela esquina<br />

escura das ruas Urucará com Tefé.<br />

— Se conheço? É claro. E você também conhece, né? Parou o carro bem na garagem dele! —<br />

respondeu o homem, apontan<strong>do</strong> na direção da porta de minha casa, a não mais <strong>do</strong> que dez metros<br />

de distância.<br />

Marcílio derreteu-se de tanto chorar. Havia uma conspiração invisível de amor queren<strong>do</strong><br />

preservar sua vida a to<strong>do</strong> custo, e aquela era uma percepção maravilhosa demais para ele.<br />

— Ô de casa! Eu vim me entregar pra Deus. Tem alguém aí pra me receber? — foi a voz que<br />

ouvi, gritan<strong>do</strong> no portão de minha casa.<br />

Eu estava sozinho na cozinha, fritan<strong>do</strong> um ovo. Eram nove e meia da noite, quan<strong>do</strong> ouvi<br />

aquela voz cheia de choro. Saí e fui ver quem era. O rapaz pulou nos meus braços, sem dar<br />

explicação, e chorou. Depois me contou sua história. Está lá, entre os irmãos de fé que ele passou<br />

a conhecer depois daquilo, até o dia de hoje.<br />

Aprendi com aqueles fatos que os anjos nos conheciam e trabalhavam a nosso favor. E mais:<br />

pude perceber que quan<strong>do</strong> se ama o próximo de verdade e quan<strong>do</strong> se entrega a vida como<br />

instrumento de realização de desejos divinos, até os anjos se tornam emprega<strong>do</strong>s, trabalhan<strong>do</strong> a<br />

favor da realização de nossos sonhos e missões.


Capítulo 34<br />

“Tampouco podes ser obriga<strong>do</strong>, contra a Tua vontade, seja ao que for, porque tua<br />

vontade não é maior <strong>do</strong> que Teu poder. Seria maior caso pudesses ser maior <strong>do</strong><br />

que és, pois a vontade e o poder de Deus são o mesmo Deus. E que pode haver de<br />

imprevisto para Ti, se conheces todas as coisas, e se todas elas existem por que as<br />

conheces?”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

A vida já estava toman<strong>do</strong> os seus contornos de sempre. O tufão estava lá e eu amava viver<br />

dentro dele. Alda, entretanto, olhou para mim com aqueles olhos de tela de cinema e me fez ver o<br />

filme de nossa noite da verdade em Tel Aviv, como que dizen<strong>do</strong>: “Eu sabia que tu<strong>do</strong> iria voltar ao<br />

que sempre foi.”<br />

Estava bem com os anjos, mas corria o risco de ficar mal com minha mulher. Com vergonha<br />

de minha lentidão em assumir mudanças tão fundamentais, comuniquei primeiro a meu pai, que<br />

também era meu colega de trabalho <strong>pastor</strong>al na mesma igreja, as alterações de vida que estavam<br />

em processo. Depois, fiz o mesmo para toda a igreja. E o mais difícil: tive de dizer a mesma coisa,<br />

pessoa a pessoa, pois muita gente, mesmo receben<strong>do</strong> a informação geral, não aceitava que, na<br />

prática, as mudanças fossem acontecer. Por isto, insistiam em que eu as recebesse às 23 horas,<br />

ou até mesmo às duas da madrugada, quan<strong>do</strong> tinham diarréia espiritual no meio da noite. Foi<br />

difícil convencer algumas pessoas que eu não estava mais de plantão na vida. Mas persisti, às<br />

vezes com muita culpa, até que as coisas se acomodaram e Alda e eu pudemos preservar nossa<br />

família de males maiores.<br />

Fiz tu<strong>do</strong> o que havia prometi<strong>do</strong> em Israel. Compramos um terreno — só que ao la<strong>do</strong> da casa<br />

de meus pais —, e com a ajuda de papai construímos uma casa engraçadinha, de <strong>do</strong>is andares,<br />

toda em madeira de lei, com troncos de Aquariquara como colunas e uma graciosa escada espiral<br />

de ferro fazen<strong>do</strong> a conexão <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is pisos. Foi um alívio enorme para Alda, e pela primeira vez, já<br />

três anos após nosso casamento, nos sentimos de fato um casal e um núcleo familiar.<br />

Mas para tirar definitivamente as coisas de dentro de nossa casa, decidi montar um escritório<br />

de assistência espiritual, que também não fosse uma igreja. Seis meses depois disso, entretanto,<br />

as filas de gente começaram a se acumular por lá. Além disso, Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Guerra, o radialista,<br />

continuava me pon<strong>do</strong> no ar ao vivo todas as manhãs e os telefones não paravam de tocar. Por isto<br />

fui à companhia telefônica e propus uma parceria. “Vocês querem vender serviço e ganhar<br />

dinheiro. Eu quero oferecer serviço e ganhar corações. Por que não nos unimos? Vocês me<br />

instalam de oito a dez linhas seqüenciadas e receptoras, e eu divulgo o serviço. Assim vocês me<br />

ajudam e eu aju<strong>do</strong> vocês”, eu disse ao diretor comercial da Telamazon. Ele topou.


Passamos a receber até mil e oitocentas chamadas por dia, das oito da manhã à meia-noite.<br />

Tive de pedir ajuda a to<strong>do</strong>s os <strong>pastor</strong>es da cidade. E a maioria veio nos ajudar fazen<strong>do</strong><br />

aconselhamento ao vivo, via telefone, inclusive o decano evangélico local, <strong>pastor</strong> Alcebiades<br />

Vasconcelos, líder das Assembléias de Deus.<br />

Em conseqüência daquela ação de evangelização e genuíno marketing cristão, milhares de<br />

pessoas passaram a se converter por mês e dezenas de igrejas cresceram.<br />

Naqueles dias, contu<strong>do</strong>, apareceu em Manaus um missionário que mantinha um estranho<br />

estilo de pregação e se utilizava de méto<strong>do</strong>s que nos pareciam completamente mercenários. Nós<br />

estávamos ali, trabalhan<strong>do</strong> de graça de dia e de noite, servin<strong>do</strong> às pessoas com o coração e sem<br />

outros interesses a não ser agradar a Deus. Mas aquele missionário, Ivonil<strong>do</strong>, parecia ter outras<br />

motivações. O negócio dele era grana. No rádio, a auto-apresentação que fazia era esta: “Chegou<br />

aquele que já curou milhões. Seu nome é Ivonil<strong>do</strong>. O homem a quem o diabo obedece. Venha<br />

conhecer o poderoso missionário Ivonil<strong>do</strong>. O homem <strong>do</strong> poder.” Ele usava voz grossa, empostada,<br />

cavernosa, imitan<strong>do</strong> Deus, e se apresentava como ninguém na Bíblia jamais se auto-apresentara.<br />

Aliás, na minha percepção, as Escrituras não apresentavam nem mesmo a Jesus daquela forma<br />

tão artificial e exaltada.<br />

Conquistávamos o respeito das pessoas de um la<strong>do</strong>, e ele punha tu<strong>do</strong> a perder de outro.<br />

Fazíamos o possível para que a cidade percebesse nosso total desinteresse por dinheiro e nossa<br />

paixão por pessoas. Ele, todavia, cobrava para fazer visitas e até mesmo estipulava o preço de<br />

certas orações. Além disso, depois de explorar as pessoas com todas as formas de misticismos e<br />

superstições pretensamente associadas ao evangelho, ele pedia dinheiro por perío<strong>do</strong>s de até<br />

quarenta minutos segui<strong>do</strong>s. “Se vocês não derem a Deus, Deus não dará nada a vocês”, decretava<br />

ele, estabelecen<strong>do</strong> o sistema monetário como a moeda de troca na compra e venda de bênçãos, as<br />

quais o genuíno cristianismo afirma serem gratuitas.<br />

Do alto apenas de meus seis anos de experiência cristã, resolvi que alguém tinha de peitar<br />

aquele homem, e se ninguém mais experiente e autoriza<strong>do</strong> tivesse coragem para fazê-lo, eu<br />

mesmo o faria.<br />

— Irmãos, não dá. Esse homem está destruin<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que nós estamos construin<strong>do</strong> com<br />

lágrimas e amor. Alguém tem que falar — eu dizia em reuniões de <strong>pastor</strong>es.<br />

— Mas, irmão, tá certo que o que ele diz e faz não está de acor<strong>do</strong> com o ensino bíblico. Mas<br />

ele fala em nome de Jesus e muitos aceitam a Cristo. Não podemos impedir — era o que sempre<br />

ouvia da maioria <strong>do</strong>s meus colegas <strong>pastor</strong>es.<br />

— Tá certo que não podemos impedir. Mas podemos advertir. Só porque ele usa o nome de<br />

Jesus, o que ele faz não fica certo. O nome de Jesus cabe em qualquer lugar. Esse homem ganha<br />

uns e afugenta milhares — eu falava, inamovível na minha disposição de não permitir que o<br />

evangelho virasse merca<strong>do</strong>ria para camelôs religiosos.<br />

Como ninguém quis ir, fui à luta sozinho. Comecei a falar em público que as práticas de<br />

Ivonil<strong>do</strong> não eram cristãs. Mas ao final, sempre orava por ele e pedia a Deus que o ajudasse a<br />

pregar o evangelho com genuinidade. A mídia de Manaus soube e começou a me procurar para<br />

discutir o assunto.<br />

— Esse missionário é ou não é de Deus? — era a hipersimplificação a que chegavam.<br />

— Eu não sou Deus e nem secretário de Deus — dizia eu. — Além disso, não estou julgan<strong>do</strong><br />

o homem Ivonil<strong>do</strong>, mas suas práticas. O homem, só Deus pode julgar. Mas as práticas, cabe a nós<br />

discernir. E o que ele está fazen<strong>do</strong> não é cristão. Leia os evangelhos e veja se você encontra<br />

espaço para as coisas que ele está fazen<strong>do</strong> em nome de Cristo? — respondi inúmeras vezes no<br />

rádio e especialmente nos jornais.<br />

Até que um dia encontrei Ivonil<strong>do</strong> num banco. O gerente era membro de nossa igreja e o


missionário depositava semanalmente seus milhares de dólares numa conta pessoal que ele tinha<br />

naquela instituição bancária.<br />

— Pastor, tem alguém olhan<strong>do</strong> para você quase a ponto de lhe comer — falou-me<br />

discretamente Luís, o gerente.<br />

— Quem é? — indaguei baixinho.<br />

— É o Ivonil<strong>do</strong>. Está nas suas costas — respondeu entre os dentes.<br />

Despedi-me de Luís e fui sain<strong>do</strong>.<br />

— Irmão <strong>Caio</strong>. Como vai você? — alguém perguntou em voz mais que audível.<br />

Virei-me e vi o missionário andan<strong>do</strong> na minha direção.<br />

— Bem, graças a Deus — respondi.<br />

— Montei uma igreja aqui e já temos milhares. É uma igreja poderosa — ele foi falan<strong>do</strong> alto,<br />

como que desejan<strong>do</strong> mostrar a to<strong>do</strong>s no banco que nós éramos amigos ou pelo menos amistosos,<br />

pois embora sua voz fosse muito conhecida <strong>do</strong> rádio, sua imagem não era. Eu, entretanto, por<br />

causa da televisão, tornara-me bastante conheci<strong>do</strong>.<br />

— Até onde eu sei, o senhor não tem uma igreja, mas uma miscelânea, ou uma ro<strong>do</strong>viária —<br />

afirmei. — O senhor cuida das ovelhas? Visita-as de graça? Chora com elas e por elas? Vive suas<br />

alegrias e sofre suas <strong>do</strong>res? — perguntei, embora já soubesse as respostas.<br />

— Assim você está me julgan<strong>do</strong>. Só Deus pode me julgar. Você não — exclamou exalta<strong>do</strong>,<br />

falan<strong>do</strong> em voz mais alta ainda.<br />

— E vai! Não tenha dúvida disso. Deus vai julgar você. Eu não estou julgan<strong>do</strong> você, mas as<br />

suas obras. Jesus disse que a gente conhece a árvore pelos frutos — completei de mo<strong>do</strong> firme.<br />

— Então eu estou melhor que você. Minha igreja já é maior que a sua. Quantas pessoas você<br />

tem? — perguntou como se fôssemos mafiosos, traficantes ou bicheiros, disputan<strong>do</strong> o tamanho<br />

<strong>do</strong>s negócios.<br />

— Fruto de ministério cristão não se mede em números, pois nesse caso os profetas, João<br />

Batista, Jesus e os apóstolos teriam si<strong>do</strong> grandes fracassa<strong>do</strong>s, uma vez que foram aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s e<br />

muitas vezes morreram sozinhos — eu disse e fui sain<strong>do</strong>.<br />

O gerente me disse que ele ficou branco, começou a andar pelos cantos, pediu água e se<br />

sentou. “Ele não podia dizer essas coisas para mim. Ele não podia”, repetiu várias vezes.<br />

Dias depois, Luís contou-me que a polícia federal pegara Ivonil<strong>do</strong> para um interrogatório.<br />

Deram-lhe um aperto tão grande por causa de estelionato, exploração da boa-fé, sonegação de<br />

imposto e outras coisas, que o tal missionário teve de aban<strong>do</strong>nar a cidade na carreira. Mas antes<br />

de sair, tomou providências no senti<strong>do</strong> de leiloar a igreja. Um “grupo religioso <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> país”<br />

comprou aquelas duas mil almas, mais cinco galpões e suas mobílias, por alguns milhares de<br />

dólares. Quan<strong>do</strong> ouvi o que tinha aconteci<strong>do</strong>, eu me desesperei. Meu me<strong>do</strong> era de que coisas<br />

daquele tipo viessem a se multiplicar por to<strong>do</strong> o país, pois nesse caso o prejuízo seria irreparável.<br />

Se os cristãos se acomodassem àquele tipo de coisa, voltaríamos à idade das trevas.<br />

Contu<strong>do</strong>, apesar de perceber que charlatães gostam muito de veículos de comunicação, não<br />

perdi a fé no fato de que a mídia poderia ser usada de mo<strong>do</strong> legítimo. Eu mesmo usava a mídia e<br />

via os resulta<strong>do</strong>s positivos. Dessa forma, anima<strong>do</strong> com o sucesso <strong>do</strong>s meios de comunicação, parti<br />

para um projeto de saturar Manaus com o evangelho. Unimo-nos à Cruzada Estudantil e<br />

Profissional Para Cristo, bem como com à Mocidade Para Cristo (MPC) e à Aliança Bíblica<br />

Universitária (ABU), e partimos para o ataque.<br />

Pensava de mo<strong>do</strong> estratégico e queria ver as ações cristãs serem feitas de forma objetiva e<br />

bem estudada. Mas o volume de coisas era tão grande, que às vezes me enrolava to<strong>do</strong> pelo<br />

caminho. Foi aí nesse ponto, já em julho de 1978, que eu decidi que, definitivamente, nós<br />

tínhamos de nos organizar. Aquelas ações não podiam ser vinculadas a uma igreja, especialmente


à minha. Precisava haver uma estrutura que pairasse acima das bandeiras evangélicas, de mo<strong>do</strong><br />

que pudesse servir a to<strong>do</strong>s. Pensamos e criamos aquilo que no meio evangélico se chama de<br />

Missão, e que <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora se convencionou chamar de ONG cristã. Assim nasceu a Vinde,<br />

sigla de Visão Nacional de Evangelização.<br />

A questão é que eu pensei que aquilo que nós estávamos fazen<strong>do</strong> ali no meio <strong>do</strong> mato era<br />

lugar-comum. Minha admiração foi enorme quan<strong>do</strong> ouvi Marcos Gilson, da ABU, e Abraão, da<br />

MPC, dizerem que o que estava acontecen<strong>do</strong> ali não tinha paralelos no resto <strong>do</strong> Brasil. “Vocês<br />

estão anos à frente <strong>do</strong> resto da Igreja. Não há nenhuma outra cidade no Brasil com o nível de<br />

impacto estratégico na sociedade que vocês conseguiram alcançar aqui”, disseram-nos, de<br />

comum acor<strong>do</strong>, em ocasiões distintas. Daí em diante, comecei a desejar expandir meu programa<br />

de televisão, Jesus, esperança das gerações, para toda a nação. De repente, já estávamos<br />

alcançan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o nordeste e já tínhamos patrocina<strong>do</strong>res locais. Aí então vieram convites para<br />

conferências e grandes ajuntamentos em estádios, praças e ginásios de esportes por to<strong>do</strong> o Brasil.<br />

No início de 1979 eu já não parava em Manaus. E para piorar as coisas, fui convida<strong>do</strong> a falar<br />

naquele que seria o maior evento evangélico interdenominacional da história <strong>do</strong> Brasil, o Geração<br />

79. Meu papel naquele congresso era secundário, mas duas coisas fundamentais<br />

aconteceram-me ali. A primeira foi que pude conhecer os principais líderes evangélicos <strong>do</strong> Brasil,<br />

ali no Centro de Convenções <strong>do</strong> Anhembi, onde ficamos reuni<strong>do</strong>s por uma semana. A outra foi<br />

que preguei para grupos menores, de quinhentas pessoas — ao to<strong>do</strong> havia quatro mil jovens<br />

reuni<strong>do</strong>s ali —, o que fez correr pelo lugar a informação de que eu me comunicava com<br />

facilidade. Logo, ali mesmo comecei a receber convites de to<strong>do</strong> o Brasil para pregar.<br />

O primeiro que aceitei foi para uma Igreja Presbiteriana em Taguatinga, Distrito Federal.<br />

Cheguei numa quarta-feira à tarde e deveria ficar até <strong>do</strong>mingo à noite. Mas durante aqueles dias<br />

houve um impacto tão grande da mensagem que eu pregava sobre o povo, que a programação<br />

precisou ser estendida. Naqueles dias, cheguei a iniciar cultos às cinco da manhã, enquanto a<br />

multidão se comprimia no templo de mil lugares para ouvir a Palavra. Houve de tu<strong>do</strong> ali.<br />

Quan<strong>do</strong> o arrocho da convicção <strong>do</strong> Espírito Santo caiu sobre a turma, os tumores da igreja<br />

foram espremi<strong>do</strong>s. Era gente casada que cantava baixo no coral levan<strong>do</strong> para a cama a soprano;<br />

era líder leigo confessan<strong>do</strong> que estava transan<strong>do</strong> com as gatinhas da comunidade, eram <strong>pastor</strong>es<br />

revelan<strong>do</strong> suas frustrações ministeriais e, sobretu<strong>do</strong>, eram milhares os que vinham orar comigo<br />

carrega<strong>do</strong>s de <strong>do</strong>res e culpas sem fim. Fiquei ali todas as noites até uma e meia da madrugada<br />

atenden<strong>do</strong> gente numa fila que não acabava nunca. E como o meu senti<strong>do</strong> de inadequação ante às<br />

responsabilidades que sobre mim começavam a avolumar-se era grande demais, jejuava o tempo<br />

to<strong>do</strong>. Somente às duas da manhã é que comia alguma coisa, de prefêrencia uma sopinha, em<br />

companhia <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> Adail San<strong>do</strong>val, <strong>pastor</strong> da igreja.<br />

O <strong>do</strong>mingo foi adrenalina pura. Comecei às cinco da madrugada e fui até às seis da tarde sem<br />

parar. Haveria um intervalo de uma hora para eu tomar um banho e me deitar na cama de costas<br />

por alguns minutos, para então voltar para a reunião das 19 horas. Triste ilusão. Quan<strong>do</strong> íamos<br />

entran<strong>do</strong> em casa o telefone tocou. Era uma mãe em desespero, pedin<strong>do</strong> para que eu fosse até a<br />

casa dela com urgência, pois seu filho estava possesso de demônios, quebran<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>. Relutei<br />

quanto a ir, tão grande era o meu cansaço. Mas não houve jeito, e tive de ir até lá.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos, vi que a coisa era muito pior <strong>do</strong> que pensara. Afrânio era um rapaz de uns<br />

24 anos, alto, espadaú<strong>do</strong>, forte, de cabeleira cheia e olhos profun<strong>do</strong>s. A força que ele demonstrava<br />

possuir era enorme. E pior: a situação já saíra <strong>do</strong> âmbito da casa e fora para o meio da rua. Uma<br />

multidão estava olhan<strong>do</strong> o moço quebrar coisas e falar com voz alterada palavras que eram ditadas<br />

pelos demônios. Ao me ver foi logo partin<strong>do</strong> para cima de mim a fim de me agredir. “Senhor, me<br />

ajuda. Dá-me poder espiritual e também permite que ele fique livre, logo”, orei em minha mente.


— Seu desgraça<strong>do</strong>. Tá pensan<strong>do</strong> que me <strong>do</strong>mina? — falaram os seres que habitavam<br />

Afrânio, que correu para me esmurrar.<br />

— Sai dele, diabo, em nome de Jesus — gritei, inician<strong>do</strong> um duelo espiritual que as cem<br />

pessoas que estavam por ali possivelmente jamais haviam presencia<strong>do</strong> antes.<br />

Como ele continuou corren<strong>do</strong> para me atingir, fiquei na posição de guarda que Neto me<br />

ensinara no jiu-jítsu. Não deu outra. Ele pulou em cima e eu o girei no ar, coloquei-o no chão de<br />

asfalto e montei nele, prenden<strong>do</strong>-lhe a respiração com o peso de meu corpo sobre o seu<br />

estômago. Ali de cima, então, eu o exorcizei em nome de Cristo. Dois minutos depois ele estava<br />

livre, cerca<strong>do</strong> por uma pequena multidão e queren<strong>do</strong> saber o que havia aconteci<strong>do</strong> a ele.<br />

Expliquei e convidei-o para ir à igreja. À noite ele estava lá e ao final da reunião fez uma oração de<br />

invocação, pedin<strong>do</strong> a Jesus que viesse morar nele, fazen<strong>do</strong> assim com que as forças espirituais da<br />

maldade ficassem sem chance de invadi-lo outra vez.<br />

A reunião de <strong>do</strong>mingo acabou depois da meia-noite. E quan<strong>do</strong> pensei que iria enfim poder<br />

<strong>do</strong>rmir, percebi que a noite só estava começan<strong>do</strong>, pois um empresário desespera<strong>do</strong> veio me dizer<br />

que naqueles dias, não suportan<strong>do</strong> mais a culpa de trair sua esposa com uma senhora da igreja,<br />

decidiu contar tu<strong>do</strong> a ela. Agora, entretanto, a mulher o estava expulsan<strong>do</strong> de casa.<br />

— Mas o que é que eu posso fazer para impedir isso? — perguntei.<br />

— Ela disse que minha única chance está em conseguir levar você até lá. Disse que com você<br />

ela conversa — ele me implorou em lágrimas.<br />

Eu tinha apenas 24 anos e eles eram um casal de aproximadamente cinqüenta anos. Fui e<br />

ouvi as <strong>do</strong>res e mágoas deles até às cinco da manhã. Eu já estava para desmaiar de sono. Era a<br />

quinta noite que eu praticamente não <strong>do</strong>rmia nada. Minhas pernas estavam bambas e os<br />

pensamentos turvos. Mas no fim de tu<strong>do</strong> eles decidiram dar uma chance um ao outro e estão<br />

juntos até hoje.<br />

Na segunda-feira, preguei o dia quase to<strong>do</strong>. Começamos numa escola e fomos de reunião em<br />

reunião até o fim da tarde. À noite fui ao templo para o que imaginei que fosse ser uma pequena<br />

reunião, mas centenas de casais estavam lá, queren<strong>do</strong> ouvir algo que melhorasse seus<br />

casamentos. Como não era um expert no assunto, apenas falei <strong>do</strong> que sabia: “Cristo pode pegar a<br />

água insípida de seu casamento e transformá-la num vinho gostoso.”<br />

De volta a Manaus, meu pai foi me buscar no aeroporto.<br />

— Meu filho, o Rosinal<strong>do</strong>, seu amigo, tentou o suicídio. Está viven<strong>do</strong> uma crise conjugal e<br />

não agüentou. Tentou envenenar-se. Está mal no hospital. Ele quer ver você. Vamos lá?<br />

Quan<strong>do</strong> vi Rosinal<strong>do</strong>, fiquei extremamente triste com a sua situação. Ele não era da igreja,<br />

mas isso não fazia a menor diferença em relação ao que eu sentia por ele. Eu aprendera a amá-lo<br />

com muita ternura, enquanto ele dirigia meus programas de TV.<br />

Rosinal<strong>do</strong> estava estudan<strong>do</strong> inglês e por isso gostava de me chamar de Shepard: <strong>pastor</strong> de<br />

ovelhas.<br />

Orei com ele e fui para casa. À noite não consegui <strong>do</strong>rmir. O fato de Rosinal<strong>do</strong> ser tão cheio<br />

de vida e de repente estar seduzi<strong>do</strong> pela morte deixou-me aterra<strong>do</strong>.<br />

Aí por volta da meia-noite eu continuava a rolar na cama. Então me pus de joelhos e orei<br />

incessantemente por ele. Às cinco da manhã eu ainda estava acorda<strong>do</strong>. Então fui até meu<br />

escritório, no cômo<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong>, abri a janela, olhei na direção da casa dele e tive uma visão<br />

fantástica.<br />

Era a árvore. A mesma jaqueira que eu vira pintada de prata seis anos antes, na noite em que<br />

decidi me tornar um discípulo de Cristo, estava lá. Só que agora eu a via da janela de minha casa,<br />

construída ao seu la<strong>do</strong>, no terreno vizinho à casa de meus pais, de onde eu a percebera naquela<br />

noite de julho de 1973.


A jaqueira estava matizada pelo nascer <strong>do</strong> sol. Estava linda. Divina. Minha alma se encheu de<br />

alegria. Ajoelhei-me ali e falei com o Cria<strong>do</strong>r. Pedi que Ele enviasse um anjo até a casa de<br />

Rosinal<strong>do</strong>, pois sabia que ele saíra <strong>do</strong> hospital na noite anterior.<br />

Foi a mais extraordinária oração que já fiz na vida. Fechei os olhos e vi o rapaz deita<strong>do</strong> em sua<br />

cama, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Então, como que em minha imaginação, entrei nos sonhos dele. Pedi a Jesus<br />

para fazê-lo sonhar com o texto de Mateus 7: os <strong>do</strong>is caminhos — o largo que conduz à morte e o<br />

estreito que conduz à vida. Depois, pedi ao Senhor que lhe mostrasse os obstáculos que ele<br />

enfrentaria se quisesse andar com Cristo e que desafiasse meu amigo a continuar, apesar de<br />

tu<strong>do</strong>. A seguir, roguei ao Espírito de Jesus que fizesse Rosinal<strong>do</strong> perceber o conforto e a paz de<br />

repousar nas águas de descanso que estão à nossa disposição em Deus.<br />

Fiquei sobre os meus joelhos até às sete horas da manhã. Quan<strong>do</strong> Alda acor<strong>do</strong>u, eu já estava<br />

me preparan<strong>do</strong> para sair.<br />

— Onde você vai? — perguntou-me ela.<br />

— Vou ver o que Deus fez na vida <strong>do</strong> Rosinal<strong>do</strong> — respondi.<br />

Quan<strong>do</strong> cheguei à casa dele, para minha surpresa, fui informa<strong>do</strong> que ele saíra de casa às sete<br />

da manhã e que fora para a TV Educativa, onde, agora, trabalhava como diretor de programação e<br />

arte.<br />

Corri até lá.<br />

— Shepard, bom dia. Algo inacreditável aconteceu comigo — falou assim que me viu.<br />

— Foi um sonho, não foi? — perguntei.<br />

— Como é que você sabe? — indagou surpreso.<br />

— Quer que eu conte ou você conta? — devolvi com absoluta certeza. — Você sonhou com<br />

<strong>do</strong>is caminhos, com obstáculos, com um convite de Cristo e com águas de descanso, não foi? —<br />

perguntei como se estivesse contan<strong>do</strong> um filme.<br />

Os olhos dele se encheram de lágrimas. Nós <strong>do</strong>is sabíamos que havíamos esta<strong>do</strong> dentro de<br />

uma conspiração divina de amor e que nossas vidas mudariam depois disso. Não que daí para a<br />

frente algo sobrenatural viesse a nos fazer viver numa outra dimensão, suspensa sobre as<br />

ambigüidades de nossas existências eivadas de relatividade. Mas acontecesse o que acontecesse<br />

conosco no futuro, nós poderíamos saber que o divino nos tocara e nos conectara de um mo<strong>do</strong><br />

especial. O Espírito Santo fizera-me visitar os sonhos dele e me deixara, naquela madrugada,<br />

assumir um papel de condutor de seus desejos na direção de Cristo.<br />

Rosinal<strong>do</strong> jamais se tornou um evangélico, porém nunca mais, depois daquela madrugada,<br />

conseguiu ser o mesmo. Eu também, dali para a frente, aprendi a força conspiratória que existe<br />

na oração objetiva e apaixonada.<br />

“Graças a Deus esse poder não está à disposição de gente mal-intencionada. Há outros<br />

poderes que agem em gente má. Este aqui só está disponível em Cristo e para o bem <strong>do</strong><br />

próximo”, pensei muitas vezes, choca<strong>do</strong> com o que acontecera.<br />

A vida continuou e minhas viagens também. Era tanta viagem, que Alda e eu começamos a<br />

achar que não dava mais para continuar moran<strong>do</strong> no Amazonas. O duro, entretanto, era deixar o<br />

convívio <strong>do</strong>s pais, da igreja, da cidade e <strong>do</strong>s cheiros <strong>do</strong> Amazonas.<br />

A reflexão era sobre que decisão haveríamos de tomar: se ficaríamos em Manaus ou<br />

mudaríamos para o Rio de Janeiro. Em meio a isso, aconteceu algo que me assentou o sentimento<br />

de que nossa eventual saída de terra natal poderia estar ten<strong>do</strong> repercussões no mun<strong>do</strong> espiritual.<br />

Naquelas bandas <strong>do</strong> Brasil, era comum quem tinha carro ir almoçar em casa com a família.<br />

Assim, eu sempre saía da Vinde aí pelo meio-dia e só retornava às duas da tarde, depois de uma<br />

gostosa refeição e uma sonequinha de 15 minutos. Num daqueles dias, voltava para o escritório<br />

em companhia de Heral<strong>do</strong> Rocha, um funcionário de nossa organização que me ajudava na


produção <strong>do</strong> programa de televisão, quan<strong>do</strong> algo inusita<strong>do</strong> aconteceu.<br />

Meu carro era uma Brasília vermelha, cain<strong>do</strong> aos pedaços. Sob meus pés era possível ver o<br />

asfalto passan<strong>do</strong>, tamanho era o rombo no chão <strong>do</strong> carro. Vínhamos descen<strong>do</strong> a rua Tefé, que, de<br />

tão íngreme, dá vontade de deixar o carro descer livre. Quan<strong>do</strong> cruzamos a avenida Castelo<br />

Branco, já estávamos a uns oitenta quilômetros de velocidade. De repente, percebi que um jipe<br />

vinha em alta velocidade na mão oposta à nossa. Subitamente ele saiu de seu la<strong>do</strong> e veio sobre<br />

nós. A velocidade com a qual tu<strong>do</strong> aconteceu foi tão grande, que não pude esboçar nenhuma<br />

reação, a não ser fechar os olhos, proteger a face e preparar-me para a batida:<br />

— Jesus! — gritamos juntos.<br />

Bum, foi o estron<strong>do</strong>.<br />

O choque havia aconteci<strong>do</strong>. Fomos joga<strong>do</strong>s para o outro la<strong>do</strong> da rua. Quan<strong>do</strong> abrimos os<br />

olhos, estávamos sobre a calçada. Olhei para mim e constatei que estava intacto. Heral<strong>do</strong><br />

também. Estávamos apenas completamente brancos de susto. Do outro la<strong>do</strong> da rua estava o jipe.<br />

O motorista nos olhava com os olhos estatela<strong>do</strong>s. Tentei abrir a porta <strong>do</strong> carro e sair na sua<br />

direção, mas ele ligou o carro e partiu cantan<strong>do</strong> pneu, viran<strong>do</strong> à direita na primeira rua e<br />

sumin<strong>do</strong>. Heral<strong>do</strong> e eu saímos <strong>do</strong> carro e ficamos procuran<strong>do</strong> o lugar da batida. Naquela lata<br />

velha, até um vento mais forte poderia deixar a marca. Nada. Não encontramos nada.<br />

— Pastor, que bateu, bateu. Eu senti. A gente foi joga<strong>do</strong> de lá pra cá. Como é que pode não<br />

ter aconteci<strong>do</strong> nada nem com o carro, nem com a gente e nem com o outro cara? —<br />

perguntou-me Heral<strong>do</strong> perplexo, fazen<strong>do</strong> a mesma pergunta que eu não cessava de fazer a mim<br />

mesmo desde que saíra <strong>do</strong> carro e constatara aquela coisa estranha.<br />

— Meu irmão, acho que Deus man<strong>do</strong>u Seu anjo. Acho que o barulho que a gente ouviu foi o<br />

<strong>do</strong>s carros se chocan<strong>do</strong> com a mão <strong>do</strong> anjo <strong>do</strong> Senhor — falei, fazen<strong>do</strong> uma confissão de fé que<br />

para a maioria das pessoas modernas pareceria um delírio alucina<strong>do</strong>. Para mim, entretanto, não<br />

havia dúvida. As forças <strong>do</strong> mal haviam tenta<strong>do</strong> barrar o meu caminho, mas o Senhor estendera a<br />

mão para nos proteger e nos fazer chegar a um outro chão, onde Seus propósitos teriam<br />

continuidade nas nossas existências. Isto porque, quan<strong>do</strong> se anda na presença de Deus, pode-se<br />

contar com a conspiração <strong>do</strong>s anjos e isso não só pára os carros, mas nos capacita a passar sobre o<br />

dia da morte na direção de novas fronteiras de vida e possibilidades.


Capítulo 35<br />

“Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o<br />

sabias, mas não o indicaste nem a mim nem à minha mãe, que chorou atrozmente<br />

minha partida, seguin<strong>do</strong>-me até ao mar.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

— Papai, não sei como lhe dizer, mas estou pensan<strong>do</strong> seriamente em sair de Manaus e<br />

voltar para o Rio. Estou viajan<strong>do</strong> muito e acho que não está certo ficar tanto tempo longe de casa e<br />

da igreja. Não posso criar meus filhos longe de mim e Alda não vai suportar a situação por muito<br />

tempo. As distâncias são longas, por isso em cada viagem eu me ausento por muitos dias. Acho<br />

que Deus está me dizen<strong>do</strong> que devo sair daqui — disse a ele, enquanto aquele velho biquinho de<br />

constrangimento se formava em sua boca. — O que o senhor acha? — perguntei.<br />

— Eu acho ridículo. Acho um absur<strong>do</strong>. Mas que autoridade eu tenho para falar de atitudes e<br />

decisões ridículas e absurdas? Eu também tomei decisões ridículas um monte de vezes. Mesmo o<br />

fato de ter volta<strong>do</strong> para o Amazonas como <strong>pastor</strong>, a fim de viver como eu vivo, foi uma loucura.<br />

Então, filho, eu não quero que você vá. Mas se você for, que Deus abençoe a sua decisão —<br />

disse-me com duas grossas lágrimas rolan<strong>do</strong> pelo seu rosto.<br />

A decisão de sair de lá era, todavia, dificílima. Alda e eu oramos muito buscan<strong>do</strong> ouvir a voz de<br />

Deus.<br />

— Eu só saio daqui se Deus me falar de mo<strong>do</strong> audível — foi o que eu disse a Alda. — Vou<br />

pedir a papai para não falar com ninguém sobre o assunto. Vou pedir a Deus que fale com as<br />

pessoas e diga a elas que nós devemos ir daqui — combinei com minha esposa. — Quero três<br />

sinais. O primeiro é o de ir ao Rio e conseguir dinheiro, em apenas trinta telefonemas, para botar<br />

nosso programa de TV no ar. O outro é o nosso sustento financeiro como família, já que eu não<br />

ganho nada da Vinde. E o último é a comunicação de Deus com nossos amigos, falan<strong>do</strong>-lhes<br />

sobre nossa saída.<br />

Os <strong>do</strong>is primeiros sinais foram rápi<strong>do</strong>s. Vim ao Rio, fiz as trinta ligações telefônicas para<br />

velhos amigos, e na vigésima sétima já tinha o dinheiro to<strong>do</strong> para pagar ao SBT pelo espaço de<br />

<strong>do</strong>mingo, às oito da manhã, que eles nos venderam. Conversei com meu amigo, o reveren<strong>do</strong><br />

Antônio Elias, e ele me chamou para vir sucedê-lo à frente da igreja de minha a<strong>do</strong>lescência, a<br />

Igreja Betânia, em São Francisco, Niterói. Mas e o último sinal? Esse não dependia de mim, mas<br />

de Deus falar ao inconsciente coletivo. Dei duas semanas de prazo para o Espírito Santo fazer<br />

aquele comunica<strong>do</strong>. Caso contrário, eu não sairia <strong>do</strong> Amazonas.<br />

Nas duas semanas seguintes, eu ouviria uma sucessão de narrativas de sonhos, visões,


evelações, impressões e de certezas indubitáveis.<br />

— Sonhei que você estava in<strong>do</strong> <strong>do</strong> nosso meio — um disse.<br />

— Fechei os olhos para orar e vi você de mudança para o Rio — falou um outro.<br />

— Li um livro que falava de um rapaz que se converteu aos 18 anos, foi ordena<strong>do</strong> aos 21 e<br />

mu<strong>do</strong>u para uma cidade grande aos 26 para expandir seu ministério. Você está com 26 anos<br />

agora, não está? — perguntou-me o <strong>pastor</strong> Alcebiades Vasconcelos, da Assembléia de Deus.<br />

Enfim, foram exatamente duas semanas de histórias assim. Treze narrativas, ao to<strong>do</strong>. Então,<br />

os comunica<strong>do</strong>s cessaram de uma vez.<br />

Após aquela sucessão de coisas, Alda e eu viemos ao Rio ver onde iríamos morar. Ela desejava<br />

ficar perto da família, no Méier. Eu preferia ficar perto da igreja, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da baía de<br />

Guanabara. No fim, decidimos juntos por Niterói. Mas no processo de decisão, algo estranho<br />

aconteceu.<br />

Havia um <strong>pastor</strong> presbiteriano muito conheci<strong>do</strong> no Rio àquela altura. E quan<strong>do</strong> eu morava em<br />

Manaus, sempre que vinha para as bandas <strong>do</strong> sudeste eu pregava na igreja dele, em Copacabana.<br />

Ele, o <strong>pastor</strong>, era um homem estranho. Parecia místico, mas ao mesmo tempo mostrava-se<br />

completamente cético em relação a quase tu<strong>do</strong>. Só andava vesti<strong>do</strong> com aparatos religiosos, mas ao<br />

mesmo tempo era um ferrenho crítico da religião. “Eu não sei qual é a desse cara”, Alda dizia.<br />

Num daqueles dias, ele nos convi<strong>do</strong>u para ir até o seu encontro para um almoço e, em<br />

seguida, para uma reunião na qual eu falaria. Tu<strong>do</strong> aconteceu conforme o previsto. Quan<strong>do</strong> já<br />

estávamos sain<strong>do</strong>, ele nos levou até a porta <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s da igreja, que dava para uma rua lateral.<br />

Ele estava vestin<strong>do</strong> um paletó preto sobre uma camisa de colarinho clerical de tom azul-claro.<br />

Seus olhos castanho-amarela<strong>do</strong>s, expostos à claridade, brilhavam de mo<strong>do</strong> sedutor e penetrante.<br />

Enquanto ele falava, fixei-me no movimento <strong>do</strong> vasto bigode que ele usava.<br />

— Meu irmão, você poderia vir trabalhar aqui comigo. Você tem coisas que eu não tenho e eu<br />

tenho coisas que você não tem. Juntos, você e eu, podemos balançar esta cidade. Pense nisso e<br />

veja se quer vir se juntar a mim aqui em Copacabana — falou-me com aquela voz de sotaque<br />

diferente e tom nitidamente sacer<strong>do</strong>tal.<br />

Saí dali e fui pregar em São Paulo. Falei quatro noites na quadra da Associação Cristã de<br />

Moços. No <strong>do</strong>mingo à tarde, fomos almoçar com o <strong>pastor</strong> Valter Rodrigues, organiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

evento. Após o almoço, ele me chamou num canto e disse que queria me contar um sonho que ele<br />

tivera na noite anterior e que o deixara muito angustia<strong>do</strong>.<br />

— Eu vi você e Alda em pé na frente de uma casa com cara de igreja. Falan<strong>do</strong> com vocês,<br />

estava um homem moreno, de olhos claros e de bigode, que usava uma roupa preta de religioso.<br />

Ele estava com a mão no seu ombro, dizen<strong>do</strong>: “Venha trabalhar comigo. Nós podemos nos ajudar<br />

muito. Juntos nós vamos fazer coisas grandes.” Olha, irmão, no meu sonho uma voz dizia pra<br />

você ficar longe dele, pois ele está envolvi<strong>do</strong> com coisas estranhas que logo virão à tona, e se você<br />

estiver perto, elas vão destruir você e seu futuro. Houve alguma coisa assim com você,<br />

ultimamente? — perguntou ele, enquanto eu não acreditava no nível de detalhamento daquela<br />

revelação.<br />

— É, houve sim. Há poucos dias — falei assusta<strong>do</strong>, e contei a história toda para ele. Oramos<br />

juntos e agradecemos a Deus por ter me livra<strong>do</strong> daquela cilada espiritual.<br />

Eu e Alda retornamos e começamos a fazer as malas. Um pouco antes de sair de Manaus, vi<br />

meu amigo de outros tempos, Neto. Agora, sete anos depois de nossas aventuras, ele também<br />

havia passa<strong>do</strong> por processos de conversão. Mesmo que ainda praticasse jiu-jítsu, estava<br />

inteiramente dedica<strong>do</strong> à política. Após concluir brilhantemente o curso para diplomata, havia<br />

decidi<strong>do</strong> ingressar no Itamarati. Entretanto, não demorou a descobrir que o germe da política<br />

habitava seu sangue.


— Sabe quem está aí? — perguntou-me um <strong>do</strong>s membros de nossa igreja. — É o Artur Neto<br />

— respondeu sem nem me deixar perguntar quem era.<br />

Mencionei o nome dele à igreja, abracei-o à porta e nunca mais o vi. Apenas acompanhei sua<br />

carreira política à distância, como faço até hoje.<br />

Conforme se aproximava o momento da partida, nossa saudade antecipada crescia, sem cura<br />

ou remédio. Choramos seis meses nos despedin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s amigos e partimos para o Rio de Janeiro<br />

no dia 4 de fevereiro de 1981.<br />

A vida em Niterói era infinitamente mais tranqüila que em Manaus, espiritualmente falan<strong>do</strong>.<br />

Perto de <strong>do</strong>is grandes aeroportos, eu podia me movimentar com desenvoltura, ainda que nos<br />

primeiros seis meses eu tenha fica<strong>do</strong> mais concentra<strong>do</strong> no crescimento da minha igreja local,<br />

que, ao final daquele perío<strong>do</strong>, já estava pequena para o público que afluía, razão pela qual<br />

começamos a pensar em fazer três cultos por <strong>do</strong>mingo: um de manhã e <strong>do</strong>is à noite. Minha<br />

ênfase, naquele perío<strong>do</strong>, era no aconselhamento psicoterapêutico das ovelhas. Estava len<strong>do</strong><br />

muitos livros sobre a alma humana e descobri um profun<strong>do</strong> e <strong>do</strong>loroso prazer em ouvir pessoas e<br />

suas <strong>do</strong>res. Quan<strong>do</strong> alguém saía de um buraco escuro, eu me alegrava imensamente, mas,<br />

enquanto isso não acontecia, muitas vezes eu mergulhava junto.<br />

No segun<strong>do</strong> semestre de 1981, as viagens reiniciaram. Eu viajava duas vezes por semana.<br />

Corria o Brasil pregan<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s os lugares. Multidões reuniam-se para ouvir a mensagem. A<br />

sensação que eu tinha era a de que estávamos fazen<strong>do</strong> história de fé onde quer que fôssemos.<br />

Em meio a tu<strong>do</strong> isso, Alda ficou grávida pela quarta vez. No dia 10 de janeiro de 1983, nasceu<br />

Lukas, nosso quarto filho. Entretanto, com o seu nascimento, possivelmente associa<strong>do</strong> ao<br />

excitamento de nosso estilo de vida — bem mais equilibra<strong>do</strong> <strong>do</strong> que em Manaus, mas ainda<br />

intenso demais —, Alda entrou num processo de depressão. Não conseguia sair da cama.<br />

Pendurava Lukas em seu seio e os <strong>do</strong>is <strong>do</strong>rmiam de dia e de noite. Graças a Deus o menino era<br />

quietíssimo, pois <strong>do</strong> contrário Alda teria sofri<strong>do</strong> muito mais. Não é fácil precisar cuidar de uma<br />

criança quan<strong>do</strong> se está viven<strong>do</strong> em depressão. O problema foi que não somente ela experimentou<br />

aquele quadro de mergulho abissal na alma, mas eu, inexplicavelmente, sofri algo semelhante.<br />

Temor e tremor, Conceito de angústia e O desespero humano era a trilogia existencial de Sören<br />

Kierkegaard que eu estava len<strong>do</strong> naquele início de ano. Aquele mergulho na condição existencial<br />

<strong>do</strong> ser humano que me foi induzida pelo filósofo dinamarquês puxou-me para uma região de<br />

tamanha escuridão e angústia, que eu quis morrer. Tanta foi a <strong>do</strong>r daquele encontro com os<br />

enervamentos de minha alma, que numa noite quentíssima, naquele mês de janeiro, achei que a<br />

morte estava ao meu la<strong>do</strong>. Nosso apartamento dava de frente para a praia das Flechas e de lá se<br />

tinha o que os cariocas dizem ser a melhor coisa de Niterói: a vista <strong>do</strong> Rio. Mas naquela<br />

madrugada tu<strong>do</strong> estava sem cor e beleza. Minha angústia de ser um humano assentou-se tanto,<br />

que fiquei com me<strong>do</strong> de ser puxa<strong>do</strong> pelo vácuo que me seduzia para além da janela. Pulei de costa<br />

no sofá macio e marrom que havia ali e me agarrei a ele. “Jesus, eu não sei o que está acontecen<strong>do</strong><br />

comigo. Mas seja o que for, eu repreen<strong>do</strong> em Teu nome. Se for coisa da minha alma, cura-me. Se<br />

for ataque satânico, livra-me disso agora, pois não agüento mais”, orei em agonia.<br />

Depois daquela noite, aproveitan<strong>do</strong> o sentimento que me havia visita<strong>do</strong> e imaginan<strong>do</strong> a<br />

quantidade enorme de cristãos que possivelmente estavam passan<strong>do</strong> por coisas semelhantes,<br />

decidi publicar um livro que eu havia inicia<strong>do</strong> em Manaus, mas que havia deixa<strong>do</strong> na gaveta.<br />

Enchi o livro de respostas à angústia humana e lancei-o. Viver: desespero ou esperança? foi o<br />

título que escolhi.<br />

Aquela angústia, entretanto, saiu de mim na semana seguinte. A de Alda, no entanto,<br />

prolongou-se por cerca de três meses e foi diminuin<strong>do</strong> aos poucos, até que desapareceu<br />

completamente. Refeitos de alma, começamos a correr outra vez. E a agitação foi tão grande, que


em 1982 falei durante o ano para aproximadamente meio milhão de pessoas, de norte a sul <strong>do</strong><br />

Brasil, nos eventos onde pregava. Contu<strong>do</strong>, isso começou a me causar problemas na igreja<br />

Betânia. Uns por excesso de amor, outros por mero egoísmo de não dividir o <strong>pastor</strong> com mais<br />

ninguém, e outros ainda por razões de puro tradicionalismo — o fato é que comecei a ser<br />

pressiona<strong>do</strong> a não viajar tanto. “Se me pressionarem, eu jogo tu<strong>do</strong> para o alto”, dizia a Alda.<br />

“Gosto de ser <strong>pastor</strong> de uma comunidade, mas sempre disse a eles como é que eu vivo e como as<br />

coisas seriam entre nós. Não enganei ninguém. Agora, não podem querer mudar as regras <strong>do</strong><br />

jogo”, eu insistia.<br />

Nunca havia viaja<strong>do</strong> e prega<strong>do</strong> tanto em toda a minha vida como o fiz em 1983. Foram<br />

centenas de viagens, cerca de três por semana, e mais de seiscentas pregações, quase todas<br />

diferentes, o que demandava enorme variedade de sermões e muito estu<strong>do</strong>. Além disso, houve a<br />

<strong>do</strong>ença de Elisa. Filha de amigos meus, ela a<strong>do</strong>eceu aos 15 anos de idade, vítima de um câncer<br />

que provocou sua morte aos 18. Eu a acompanhei durante os três anos e sofri muito a <strong>do</strong>r de sua<br />

partida.<br />

Em razão de tu<strong>do</strong> isso, quan<strong>do</strong> entramos em 1984, minha saúde começou a ficar abalada.<br />

Tive uma sucessão de arritmias que, à medida que se repetiam, ficavam cada vez mais longas. Até<br />

que tive uma tão forte, que me levou para um CTI. Passei o ano to<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> fibrilações atriais,<br />

conforme me foi explica<strong>do</strong>, que pioraram tanto, que precisei fazer uma pesquisa profunda, a fim<br />

de que sua causa pudesse ser identificada. O estresse contribuía, mas a causa podia ser outra.<br />

Depois de uma peregrinação por muitos médicos, a origem foi diagnosticada como congênita. Eu<br />

tinha mais condutos elétricos no coração <strong>do</strong> que precisava. E agora, sob permanente tensão,<br />

aquilo se manifestara. Dava curto-circuito, o coração fibrilava, e eu me sentia como se estivesse<br />

morren<strong>do</strong> cada vez que a coisa chegava.<br />

No meio daquele ano, o médico me disse que, se eu continuasse a viver daquele jeito, poderia<br />

morrer a qualquer momento.<br />

— Os candidatos a governo fazem isso de quatro em quatro anos e, ainda assim, só no esta<strong>do</strong><br />

onde vivem. Você parece que é candidato à presidência da República, viajan<strong>do</strong> o país to<strong>do</strong>, só que<br />

com o agravante de que a campanha parece não acabar nunca — disse-me o Dr. Ivan.<br />

Os amigos me telefonavam e pediam para eu cortar alguma coisa. “Mas o quê?”, eu queria<br />

saber. Depois de muito ponderar, discutir e orar, decidi que deixaria de ser <strong>pastor</strong> local e me<br />

dedicaria exclusivamente às atividades nacionais da Vinde, pois as viagens me cansavam, mas era<br />

na igreja local que eu tinha de lidar com a beleza e a complexidade da condição humana, e como<br />

eu não tinha o tempo to<strong>do</strong> para dar, sofria imensamente por não poder dar continuidade de<br />

atendimento às pessoas.<br />

Em janeiro de 1985 eu deixei de ser pároco comunitário e disse para alguns amigos,<br />

parafrasean<strong>do</strong> o prega<strong>do</strong>r inglês John Wesley: “O mun<strong>do</strong> é minha única paróquia.”<br />

Naquele mesmo ano, numa ida de manhã ce<strong>do</strong> ao aeroporto <strong>do</strong> Galeão, olhei para o la<strong>do</strong> e<br />

levei um susto. Era meu amigo Pinho, aquele a quem eu havia traí<strong>do</strong> 12 anos antes, ainda em<br />

Manaus, nos dias de minhas grandes loucuras. Conversamos rapidamente. A aparência dele era a<br />

mesma, mas dava a sensação de que ele ficara lá, finca<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>, sem conseguir construir um<br />

caminho para fora daquelas lembranças da juventude.<br />

— É, bicho, tô aí. Parei de exercer a engenharia e tô aí. Só isso — disse-me ele.<br />

Abraçamo-nos e despedimo-nos. Nunca mais o vi até hoje.


Capítulo 36<br />

“A alma manda na proporção <strong>do</strong> querer, e enquanto não quiser, suas ordens não<br />

são executadas, porque é a vontade que dá a ordem de ser uma vontade que nada<br />

mais é que ela própria. Logo, não manda plenamente, e esta é a razão por que não<br />

faz o que manda. Porque, se estivesse em sua plenitude, não mandaria que fosse,<br />

porque já seria.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Em maio de 1984, em meio a fibrilações e muitas dúvidas sobre o caminho a seguir, eu ia<br />

entran<strong>do</strong> no escritório da Vinde, no centro de Niterói, quan<strong>do</strong> vi uma senhora que conosco<br />

trabalhava em pé na fila <strong>do</strong> eleva<strong>do</strong>r.<br />

— Bom dia, <strong>do</strong>na Mariana — saudei-a.<br />

— O dia num tá bom não <strong>pastor</strong> — respondeu ela, fugin<strong>do</strong> à sua característica de pessoa<br />

sempre muito positiva.<br />

— Mas o que houve, <strong>do</strong>na Mariana? — quis saber de pronto.<br />

— É que tem uma nenenzinha de três meses lá pertinho de casa que está morren<strong>do</strong>.<br />

Elazinha é linda <strong>pastor</strong>. Se eu já num tivesse cria<strong>do</strong> oito, eu ia pegá elazinha pra mim. Mas num<br />

dá. Tô velha e muito cansada. Mas dói o coração. Dói mais ainda porque tem uma macumbeira lá<br />

perto que disse que cria a menina, se ela for consagrada prus espírito — esclareceu a mulher de<br />

Deus.<br />

— Não entendi. Por que elazinha tá assim, aban<strong>do</strong>nada? — perguntei.<br />

— É que a mãe sumiu e o pai num quer criar. Diz que ele num sabe se é o pai. Entregaram<br />

pruma mulhé que tá crian<strong>do</strong>. Mas é pobre, coitada. Sai de manhã, dá araruta pra bichinha, e só<br />

volta de noite. À tarde tem uma menina que vai lá, dá mais comida. Mas a bichinha tá morren<strong>do</strong><br />

— falou com lágrimas nos olhos.<br />

Subimos juntos no eleva<strong>do</strong>r, absolutamente cala<strong>do</strong>s. Ela chorava. Eu me angustiava. Eu sabia<br />

que havia crianças aban<strong>do</strong>nadas por toda parte. Nós mesmos, lá na Vinde, já tínhamos um<br />

trabalho social na favela <strong>do</strong> Sabão, que Silvia e Cintia, nossas filhas-adultas <strong>do</strong> coração, tocavam<br />

com toda paixão. E eu conhecia o esta<strong>do</strong> daquelas crianças de favela. Mas é diferente quan<strong>do</strong><br />

alguém vem, mostra uma criança com endereço e diz que ela está morren<strong>do</strong>.<br />

“Ela não tem nada e já criou oito. Eu não tenho muito, mas tenho bem mais que ela, e só me<br />

arrisquei a ter meus próprios filhos”, pensei entristeci<strong>do</strong>.<br />

Entrei na minha sala, ajoelhei-me, orei e levantei com uma decisão. “Se a Alda topar, a gente<br />

pega ela agora mesmo”, pensei sem avaliar que eram nove horas da manhã e que havíamos


amanheci<strong>do</strong> com três filhos e estávamos corren<strong>do</strong> o risco de, na hora <strong>do</strong> almoço, já termos um<br />

quarto, agora uma filha. Seria uma gravidez de três horas. “Mas e os outros filhos? Será que<br />

aceitarão? E Lukinhas, será que ele vai assimilar uma maninha que chegue tão de repente?”,<br />

foram questões que me visitaram com intensidade, mas que descartei de imediato.<br />

— Aldinha, tem uma menina morren<strong>do</strong> lá no Rio. Uma macumbeira quer criá-la dedicada<br />

aos espíritos. O que você acha da gente a<strong>do</strong>tá-la? — perguntei assim, de chofre.<br />

Alda e eu já havíamos fala<strong>do</strong> em a<strong>do</strong>ção muitas vezes. Três meses antes eu havia até mesmo<br />

dito a um casal de amigos, Dr. Benjamim e <strong>do</strong>na Nelci, para nos avisar, caso encontrassem no<br />

Hospital Evangélico alguma criança órfã. Mas jamais pensei que a coisa fosse acontecer de fato,<br />

principalmente assim, de supetão.<br />

— Se você quiser a<strong>do</strong>tar, eu estou totalmente aberta — Alda falou com extrema segurança.<br />

— Então, olha, seu Manelzinho tá in<strong>do</strong> aí te pegar pra levar lá na favela onde ela está. Dona<br />

Mariana e ele passarão aí dentro de uma hora. Fica pronta — falei sem me<strong>do</strong> de que estivéssemos<br />

toman<strong>do</strong> uma decisão errada. Ao contrário, aquela era uma decisão para a qual, naquela hora, eu<br />

não sentia nenhuma necessidade de orar ou de pedir sinais a Deus. O sinal era o fato em si.<br />

Quan<strong>do</strong> eles chegaram lá, encontraram uma garotinha inchada e com fortíssima dificuldade<br />

de respiração. Ela tinha uma hérnia umbilical muito grande, seu umbigo estava completamente<br />

para fora, e algumas feridas na cabeça. E a pobre menina estava enrolada numa camisa <strong>do</strong><br />

Flamengo, se pelo menos fosse <strong>do</strong> Botafogo, já seria bem melhor.<br />

A senhora que tomava conta dela mostrou a neném e depois perguntou:<br />

— Gostou?<br />

— Olhe, minha senhora, eu quero essa criança pra mim. Mas eu só vou levar se a senhora me<br />

disser que ela vai ser minha pra sempre. Eu vou amá-la como amo os filhos que saíram de mim. O<br />

futuro deles será o dela. O que eles tiverem, ela também terá. Mas não tem volta. A senhora tem<br />

certeza que a mãe e o pai não a querem? — perguntou Alda nervosa.<br />

— A mãe sumiu. O pai disse pra eu nem dizê pra ele o que aconteceu. Então pode levá. Se<br />

ficá aqui, morre — ela respondeu em cima da bucha.<br />

— Meu mari<strong>do</strong> é uma pessoa fácil de ser identificada, mas a senhora vai me prometer que<br />

nunca vai tentar ir atrás de nós. Certo? — insistiu Alda.<br />

— Pode levá, minha senhora. Esta criança precisa de um lar e nós não temos condições de<br />

cuidar dela — falou.<br />

Silvia e Cintia eram duas jovens que Alda e eu havíamos conheci<strong>do</strong> em São Paulo, em 1979,<br />

quan<strong>do</strong> ainda eram a<strong>do</strong>lescentes. Com a nossa mudança para o Rio, elas vieram trabalhar no<br />

projeto social da Vinde na favela. Como nosso amor por elas era muito forte e os cuida<strong>do</strong>s que<br />

lhes dispensávamos eram paternais, elas acabaram nos chaman<strong>do</strong> de “papai e mamãe”, ainda que<br />

muita gente achasse aquilo sem cabimento. Nós e elas, contu<strong>do</strong>, não dávamos a menor<br />

importância.<br />

— Papai, você não vem conhecer sua filha caçula — Silvia brincou comigo ao telefone, mas<br />

somente às quatro da tarde consegui correr para casa para ver o bebê.<br />

O esta<strong>do</strong> físico da criança era dramático.<br />

Ciro e Davi vibraram com a chegada de Juliana, como a chamamos. Lukas, entretanto, com<br />

seus <strong>do</strong>is aninhos, ficou morto de ciúmes. Ela chegou e levou o quarto e o bercinho dele, que<br />

foram pinta<strong>do</strong>s de rosa. Além disso, tomou-lhe o privilégio de ser o caçula da família.<br />

Três dias depois de estar conosco, Juliana começou a morrer. A respiração foi cessan<strong>do</strong> e o<br />

quadro se agravou. Nós a internamos com urgência.<br />

— É bronquiolite aguda — decretou Ângelo, nosso médico e amigo.


Durante dez dias ela ficou entre a vida e a morte. Alda esteve os dez dias ao pé de sua cama.<br />

Silvia e Cintia também se revezavam durante a noite, enquanto eu cuidava <strong>do</strong>s três meninos.<br />

Enfim, nossa princesa sobreviveu. Demos graças a Deus e entendemos que havia um lin<strong>do</strong><br />

propósito divino na existência dela.<br />

Lukinhas, entretanto, começou a aprontar tu<strong>do</strong> que podia. Pegava os peixinhos vermelhos <strong>do</strong><br />

aquário, jogava no vaso sanitário e fazia caquinha em cima <strong>do</strong>s bichinhos. Às vezes os deixava lá,<br />

atola<strong>do</strong>s naqueles icebergs marrons, outras vezes, dava a descarga. Apanhava o coelhinho dele,<br />

colocava dentro da geladeira e depois perguntava: “Cadê o coelhinho?”, até que alguém o<br />

encontrasse quase morto de frio. Uma vez Alda o viu entran<strong>do</strong> pela casa com um gatinho<br />

recém-nasci<strong>do</strong> to<strong>do</strong> enfia<strong>do</strong> na boca. Freqüentemente ele pulava de cima de lugares altos,<br />

quebrava a cabeça, o queixo, rasgava-se to<strong>do</strong>. Até desaparecer de casa por quase duas horas ele<br />

conseguiu, deixan<strong>do</strong> Alda desarvorada de angústia.<br />

Tu<strong>do</strong> aquilo tinha a ver com a chegada súbita de Juju, e nós sabíamos disso. Assim,<br />

investimos tempo nele e nos concentramos na intenção de demonstrar o compromisso de nosso<br />

amor para com ele. Eu mesmo, como demonstração disso, cancelei 50% de minha agenda de<br />

1985 para dar atenção a Luke-Luke, como o chamava.<br />

Aproveitei a necessidade que estava ten<strong>do</strong> de ficar mais na cidade em função de meu filho e<br />

parti para tentar organizar a Vinde como instituição. Até o ano anterior, como eu dividia meu<br />

tempo com a igreja, não me havia sobra<strong>do</strong> uma folga para me concentrar efetivamente na<br />

intenção de fazer a Vinde crescer. Agora, entretanto, chegara a hora. Saben<strong>do</strong> que eu estava<br />

procuran<strong>do</strong> gente para trabalhar conosco, muitos se apresentaram como voluntários ou como<br />

pessoas que me garantiam já ter seu próprio sustento e que queriam apenas trabalhar ao meu<br />

la<strong>do</strong>.<br />

Poucas vezes me arrependi tanto na vida. A maioria <strong>do</strong>s voluntários eram pessoas loucas,<br />

desequilibradas, escondidas atrás da religião para disfarçar sua <strong>do</strong>ença de piedade e justificar<br />

suas esquisitices com o álibi de que eram guiadas pelo Espírito Santo, daí serem tão imprevisíveis<br />

e estranhas. Agüentei aquilo uns <strong>do</strong>is anos e então dispensei aquele tipo de ajuda para sempre.<br />

No início de 1986, voltei a viajar com mais intensidade. O problema é que, como eu já era<br />

bastante conheci<strong>do</strong> no meio evangélico, acabei me tornan<strong>do</strong> peru de festa cristã. Não parava de<br />

correr, mas meu universo foi se tornan<strong>do</strong> cada vez mais “religioso”. Falava para <strong>pastor</strong>es e líderes<br />

umas cem vezes por ano e pregava em igrejas ou cidades, mas sempre com maioria evangélica<br />

nos eventos. Em 1988 eu estava muito frustra<strong>do</strong>. De ponta a ponta <strong>do</strong> Brasil meu nome era<br />

conheci<strong>do</strong>, fosse pelos livros cristãos que escrevia em grande quantidade e que eram muito li<strong>do</strong>s,<br />

fosse pelo fato de que minha presença era obrigatória em qualquer coisa de peso que fosse<br />

acontecer no meio evangélico. Eu, entretanto, sentia saudade da vida de aventuras e desafios que<br />

vivera no início de meu ministério no Amazonas, pois, sem querer e de mo<strong>do</strong> imperceptível, a<br />

igreja havia me <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>. Eu corria muito, mas era uma movimentação entre os mesmos e<br />

sempre para dentro das paredes da instituição.<br />

— Você é uma unanimidade nacional — diziam-me dezenas de pessoas.<br />

— Você não pode comprar idéias e causas controvertidas — diziam-me outros.<br />

— Você tem que ser o grande concilia<strong>do</strong>r evangélico <strong>do</strong> Brasil — afirmavam, com claras<br />

intenções de me transformar em ponte política, alguns outros.<br />

Minha <strong>do</strong>r, contu<strong>do</strong>, tinha a ver com o fato de que eu não crera no evangelho por causa de<br />

nenhuma promessa de estabilidade, mas justamente em razão de seu apelo livre e revolucionário.<br />

Essas idéias todas estavam dentro de mim e eu ainda as ensinava. Na prática, entretanto,<br />

tornara-me animal de estimação da Igreja Evangélica Brasileira. E naquela condição, eu não<br />

estava disposto a viver e muito menos morrer.


O único chão onde me dava prazer viver era naquele lugar em que se anda sobre algo real e<br />

sóli<strong>do</strong>, porém de onde se pode ver o perigo. E era para longe desse chão, que existe apenas na<br />

beira <strong>do</strong> caos, que sutilmente eu tinha si<strong>do</strong> leva<strong>do</strong>. E distante dali, o único prazer que me fora<br />

deixa<strong>do</strong> era o de ensinar que esse lugar existe. Entretanto, o sentimento de afastamento de sua<br />

fronteira me frustrava e me a<strong>do</strong>ecia.<br />

Assim, apesar de tanto sucesso religioso, eu andava triste.


Capítulo 37<br />

“Não houve, pois, tempo algum em que nada fizeste, pois o próprio tempo é obra<br />

Tua. E nenhum tempo Te pode ser coeterno, porque és imutável; se o tempo<br />

também o fosse, não seria tempo.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Eu estava receben<strong>do</strong> centenas de convite por ano para viajar. Saía de manhã e voltava à noite.<br />

Muitas vezes os filhos nem ficavam saben<strong>do</strong> que durante o dia eu tinha i<strong>do</strong> a Belém <strong>do</strong> Pará e<br />

volta<strong>do</strong> ainda a tempo de colocá-los na cama. E assim o ritmo se acelerava, inclusive com viagens<br />

freqüentes para outros países. Convites para ser paraninfo de turmas de seminário e para dar<br />

aulas de abertura em cursos teológicos amontoavam-se na mesa de minha secretária. Mas alguma<br />

coisa em mim se sentia profundamente desconfortável com tu<strong>do</strong> aquilo. A sensação que me dava<br />

era que o melhor de minha vida ficara no meio da floresta. No Rio de Janeiro, eu me tornara<br />

filosoficamente mais profun<strong>do</strong>, mais equilibra<strong>do</strong>, mais politiza<strong>do</strong>, mais crítico e mais refina<strong>do</strong>. E<br />

era só. Mas isso apenas me colocava na vitrine da igreja, não no campo mina<strong>do</strong> de batalhas pelas<br />

quais vale a pena viver e morrer. Eu me sentia como um ser desenha<strong>do</strong> para existir entre a<br />

estabilidade e o caos. No chão <strong>do</strong> estável eu me angustiava, com me<strong>do</strong> de perder a criatividade.<br />

Na beirada <strong>do</strong> caos eu me continha, temen<strong>do</strong> uma ação de natureza suicida. Mas se eu tivesse de<br />

escolher entre um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is cenários, sem dúvida eu diria que preferiria a proximidade criativa e<br />

lúcida <strong>do</strong> caos que a necrosante estabilidade <strong>do</strong>s terrenos planos e estáveis.<br />

Eu estava daquele jeito não por falta <strong>do</strong> que fazer. Projetos sempre havia. Tinha cria<strong>do</strong> uma<br />

editora para publicar meus livros e estávamos lançan<strong>do</strong> um curso pioneiro, o VindeSat, por meio<br />

<strong>do</strong> qual instalaríamos centenas de antenas parabólicas nos telha<strong>do</strong>s das igrejas e passaríamos a<br />

transmitir uma aula semanal de duas horas de duração, ao vivo, e com direito a interatividade, via<br />

telefone.<br />

— Alda, não dá pra gente continuar aqui <strong>do</strong> jeito que as coisas estão. Sinto que estou<br />

desperdiçan<strong>do</strong> minha vida. Se for pra viver assim, é melhor voltar pra Manaus — falei com<br />

angústia no peito. — Acho que a gente tem de sair <strong>do</strong> Brasil por um tempo. Vamos estudar nos<br />

Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Eu preciso ficar fluente em inglês a ponto de poder pregar na língua — disse<br />

decidi<strong>do</strong>, como quem já ia sair dali para comprar passagens de avião e visitar os possíveis lugares<br />

de pouso para nossa família.<br />

Naquela época, eu já podia pensar em fazer isso sem susto, pois desde janeiro <strong>do</strong> ano anterior<br />

eu havia consegui<strong>do</strong> reunir um time base de assistentes que me dava a certeza de que poderia ir e<br />

voltar sem que tu<strong>do</strong> estivesse arruina<strong>do</strong>.


Henrique Ziller era o diretor executivo. Sério, coerente e comprometi<strong>do</strong>, ele me passava a<br />

idéia de continuidade e honestidade. Tissiani Cavalcante era o homem <strong>do</strong> marketing. E Cristina<br />

Christiano a mais dedicada secretária que eu já tivera e que poucos poderiam almejar ter igual.<br />

Além disso, eu tinha três amigos que estavam dispostos a financiar parte <strong>do</strong>s meus estu<strong>do</strong>s e<br />

pagar as despesas da folha de pagamento <strong>do</strong>s vinte funcionários que tínhamos na época, os custos<br />

de satélite e a conta da televisão, visto que as demais atividades eram auto-sustentáveis.<br />

Daniel Vera e Alípio Gusmão eram empresários bem-sucedi<strong>do</strong>s. Baltazar, o artilheiro de<br />

Deus, não era rico, mas extremamente generoso, e também fazia parte daquele trio que criou as<br />

possibilidades que me puseram fora <strong>do</strong> país.<br />

Avalian<strong>do</strong> as circunstâncias, Alda e eu decidimos que não haveria outra chance melhor para<br />

realizarmos aquele projeto. Assim, depois de visitar amigos em diversos esta<strong>do</strong>s americanos,<br />

escolhemos a cidade de Claremont, na Califórnia.<br />

Nos primeiros quatro meses não fiz outra coisa a não ser estudar inglês 17 horas por dia. Nos<br />

fins de semana gravava meus programas de televisão, as aulas <strong>do</strong> curso via satélite, escrevia os<br />

artigos de jornais e revistas cristãos e fazia outras pequenas coisas.<br />

Ao término <strong>do</strong> curso de inglês, decidimos ficar pelo menos mais <strong>do</strong>is anos, manten<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> no<br />

Brasil <strong>do</strong> jeito que estávamos fazen<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> que eu voltaria a cada cinco meses. Deu certo.<br />

A vida na América era confortável, porém tediosa. No Fuller Theological Seminary, em<br />

Pasadena, o ambiente acadêmico era intelectualmente sofistica<strong>do</strong>, mas muito lento para o meu<br />

gosto. Os cursos que fiz não me motivavam o suficiente para me manter com a adrenalina no nível<br />

ideal. Estava sempre queren<strong>do</strong> mais excitment. O que quebrava a mesmice <strong>do</strong> ambiente<br />

supercontrola<strong>do</strong> da vida em Claremont eram os terremotos que aconteciam de vez em quan<strong>do</strong><br />

para a suprema excitação das crianças e para embalar as conversas na vizinhança.<br />

A falta de mais desafio foi o que me levou a decidir fazer um curso paralelo, autodidata, sobre<br />

a obra <strong>do</strong> filósofo, mestre em direito romano e história, o francês Jaques Ellul. Eram 45 livros<br />

grossos e densos. Mergulhei neles e nos seus mais diversos temas. Eram trabalhos sobre<br />

urbanidade, ideologia, sociologia, política, dinheiro, modernidade, tecnologia, angústia, perversão<br />

<strong>do</strong> cristianismo e um leque imenso de outros atrativos. Ellul encheu minha vida naquele perío<strong>do</strong>.<br />

Enquanto isso, os quatro filhos, perfeitamente integra<strong>do</strong>s na escola e se sentin<strong>do</strong> confortáveis<br />

na língua inglesa, já não queriam mais voltar. Alda, como sempre, dizia que queria fazer a vontade<br />

de Deus. Eu, mesmo que dividi<strong>do</strong> por causa das crianças, estava começan<strong>do</strong> a ficar desespera<strong>do</strong><br />

para retornar.<br />

Minha decisão, entretanto, era a de que, se voltássemos, não seria mais para ser patina<strong>do</strong>r de<br />

elite na arena da Igreja Evangélica. Caso contrário, era melhor ficar lá e fazer uma carreira como<br />

conferencista internacional. Convites <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> é que não me faltavam. Cheguei a receber<br />

mais de cinqüenta convites de diferentes países naquele perío<strong>do</strong>. Aceitei apenas cinco, sen<strong>do</strong> um<br />

deles para a antiga União Soviética.<br />

Os dias que passei pregan<strong>do</strong> em Moscou acentuaram meu desejo de fazer algo realmente<br />

importante no Brasil. Lá, tive a oportunidade de constatar, como anos e anos de <strong>do</strong>utrinação<br />

ideológica não tiveram o poder de realizar nada dramaticamente significativo nas vidas das<br />

pessoas. E eu me sentia exatamente envolto pelas mesmas teias ideológicas que lá não haviam<br />

gera<strong>do</strong> nada, além de paralisia econômica e social.<br />

— Se a gente voltar, eu quero fazer algo forte na área social. Não agüento mais ver tanta<br />

miséria, enquanto ficamos filosofan<strong>do</strong> sobre mudanças políticas e reestruturação <strong>do</strong> sistema.<br />

Uma coisa eu sei: político eu jamais serei. O que eu quero é integrar a fé aos temas de natureza<br />

social. Sem teologia da libertação — eu já vinha dizen<strong>do</strong> há algum tempo a Lácio Pontes e<br />

Antonio Carlos Barros, meus melhores amigos naquele perío<strong>do</strong> americano.


A tentação quanto a não voltar tinha a ver com o fato de que alguns amigos prudentes me<br />

diziam que se eu pusesse minha base na América, teria todas as condições de me tornar um <strong>do</strong>s<br />

dez cristãos neste século a falar para mais gente no mun<strong>do</strong> inteiro. Afinal, no fim de 1989, cerca<br />

de sete milhões de pessoas já tinham vin<strong>do</strong> participar das pregações que eu fazia em estádios,<br />

praças e outros lugares públicos. De acor<strong>do</strong> com o raciocínio daqueles amigos, se apenas no<br />

Brasil eu já tinha alcança<strong>do</strong> aquele sucesso, o que não aconteceria se eu me atirasse ao mun<strong>do</strong><br />

to<strong>do</strong>? Alguma coisa, entretanto, deep inside, dizia-me que aquele não era o caminho de Deus para<br />

mim. De fato, preferia alcançar menos gente, mas ser capaz de “fazer diferença” nas vidas de tais<br />

pessoas, <strong>do</strong> que ser mundialmente conheci<strong>do</strong> no meio cristão, mas não afetar dramaticamente a<br />

vida de ninguém.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, tem uns negócios esquisitos acontecen<strong>do</strong> por aqui — dizia-me Cristina<br />

Christiano. — Tem um tal de Edir Mace<strong>do</strong> botan<strong>do</strong> pra quebrar. O senhor precisa ver. Não sei,<br />

não. Acho que a coisa ainda acaba mal — ela me falou mais de uma vez, para depois me dizer que<br />

havia manda<strong>do</strong> uns recortes de jornal para eu saber o que era.<br />

Em março de 1990, entretanto, o recém-eleito presidente Collor de Mello determinou,<br />

pessoalmente, a minha volta ao Brasil. Confiscan<strong>do</strong> a poupança de to<strong>do</strong>s, deixou a Vinde em<br />

esta<strong>do</strong> crítico.<br />

— Ou você volta, ou a gente quebra — disse-me Tissiani, aflito, ao telefone.<br />

Fizemos as malas e retornamos.


PARTE III<br />

<strong>Confissões</strong> de Desespero<br />

e Esperança


Capítulo 38<br />

“Falo em memória e sei <strong>do</strong> que falo; mas de onde o sei, senão da própria memória?<br />

Acaso também ela está presente a si própria por meio de sua imagem, e não por si<br />

mesma?”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Para mim, até aquele momento, o Rio de Janeiro era apenas a cidade <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da baía de<br />

Guanabara, onde eu pegava os aviões e para onde eu ia obriga<strong>do</strong>. Os traumas da a<strong>do</strong>lescência<br />

fizeram o lugar tornar-se para mim a Cidade Tenebrosa. “Eu não quero criar meus filhos no Rio<br />

de jeito nenhum”, dizia repetidas vezes, sempre que alguém perguntava por que eu morava em<br />

Niterói.<br />

Mas havia algo mais profun<strong>do</strong> que os meus traumas da infância para me afastar da cidade de<br />

São Sebastião. Eram alguns cristãos evangélicos <strong>do</strong> Rio. Em 1981, quan<strong>do</strong> cheguei de Manaus,<br />

tive vontade de me enturmar com os líderes evangélicos da cidade. E foi fácil. Conheci muita<br />

gente boa e choveram convites de todas as igrejas, tanto das chamadas históricas, como das<br />

pentecostais e, sobretu<strong>do</strong>, das independentes, para pregações e conferências.<br />

O problema é que eu vinha de uma experiência de fé muito singela e calcada em valores<br />

bíblicos ti<strong>do</strong>s como inegociáveis. Mas quan<strong>do</strong> comecei a conhecer alguns líderes <strong>do</strong> Rio, percebi<br />

que não era em to<strong>do</strong>s que havia o mesmo espírito que meu pai me ensinara, conforme a Bíblia.<br />

— Dinheiro pra ajudar seu programa de televisão? Claro que <strong>do</strong>u. Mas você tem que me dar<br />

um recibo com o valor três vezes maior. Topa, irmão? — perguntou-me um grande empresário<br />

local, famoso por sua caridade cristã dedutível no imposto de renda.<br />

— De um outro líder a gente nunca fala nada. Nunca. Ele pode estar completamente erra<strong>do</strong>.<br />

Se levantar a voz, a gente se queima e eles continuam intocáveis — ensinou-me outro cacique,<br />

tentan<strong>do</strong> conter uma opinião que eu emitira sobre a conduta pública de uma certa celebridade<br />

evangélica.<br />

— Ele é um homem de caráter ruim, mas é um excelente comunica<strong>do</strong>r da mensagem. Então<br />

a gente deixa ele ir. Se fosse ruim de fala, é claro, já tinha si<strong>do</strong> tira<strong>do</strong> de ação — informou-me um<br />

executivo de uma instituição religiosa, para minha perplexidade.<br />

Além disso, no mesmo perío<strong>do</strong>, comecei também a ver quão estreito era o atrelamento que<br />

havia, especialmente no Rio, entre certos <strong>pastor</strong>es e o regime militar. Alguns <strong>do</strong>s figurões<br />

evangélicos locais se orgulhavam de ser amigos de generais e dita<strong>do</strong>res. “Se fosse para<br />

evangelizá-los, que deles se aproximassem — eu pensava —, tu<strong>do</strong> bem.” Mas não. Era,<br />

sobretu<strong>do</strong>, para estar perto <strong>do</strong> poder que os salvara da ameaça comunista ou lhes garantia alguns


favores especiais, símbolo de importância e legitimidade religiosa.<br />

Enfim, foi por tu<strong>do</strong> isso que de 1981 a 1990 eu rodava o Brasil to<strong>do</strong> pregan<strong>do</strong> em praças,<br />

estádios, ginásios de esportes, escolas, universidades e falan<strong>do</strong> para <strong>pastor</strong>es, exceto no Rio de<br />

Janeiro. “O quê? Convite? Do Rio, não! Pode responder que não dá”, eu dizia sistematicamente à<br />

minha secretária até 1988, quan<strong>do</strong> fui estudar nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />

Mas depois de quase <strong>do</strong>is anos na América <strong>do</strong> Norte, voltei decidi<strong>do</strong> a plantar uma base forte<br />

de ações na capital cultural <strong>do</strong> Brasil. Além disso, estava certo de que aquela experiência de dez<br />

anos antes fora ruim porque eu ainda era muito inexperiente, daí o meu excesso de pu<strong>do</strong>r e pouco<br />

jogo de cintura.<br />

Os planos que eu trazia comigo eram três, to<strong>do</strong>s bem objetivos:<br />

1. Incrementar as ações da Vinde e fazê-la crescer para ser a maior organização<br />

paraeclesiástica e não-governamental <strong>do</strong> país, no meio evangélico. Sobretu<strong>do</strong>, queria<br />

transformá-la em uma grande gera<strong>do</strong>ra de informação entre os cristãos <strong>do</strong> Brasil.<br />

2. Usar o capital relacional que eu tinha desenvolvi<strong>do</strong> em toda a nação para promover a<br />

criação de uma entidade que representasse os evangélicos preocupa<strong>do</strong>s com a ética e, se possível,<br />

envolver o máximo possível de líderes e igrejas, tentan<strong>do</strong> ser maioria.<br />

3. Envolver-me o máximo possível com iniciativas de natureza social e assim demonstrar a<br />

séria preocupação <strong>do</strong>s cristãos com a coletividade.<br />

O primeiro objetivo foi fácil de alcançar. Precisei apenas começar a investir pesa<strong>do</strong> e<br />

estrategicamente em televisão, rádio, muito mailing e eventos. O segun<strong>do</strong> objetivo também não<br />

foi difícil de atingir no que dizia respeito à deflagração <strong>do</strong> processo. Devia ser uma ação muito<br />

mais sutil, mas foi implementada com rapidez. Assim, no dia 17 de maio de 1991 a Associação<br />

Evangélica Brasileira foi criada em São Paulo, com a presença de representantes <strong>do</strong>s setenta<br />

principais grupos evangélicos nacionais, e eu fui eleito seu primeiro presidente.<br />

Atingir o terceiro objetivo, entretanto, era muito mais difícil. A razão era simples: o imenso<br />

preconceito da mídia e <strong>do</strong>s forma<strong>do</strong>res de opinião pública quanto a quem eram os evangélicos, pois<br />

o estereótipo relaciona<strong>do</strong> aos <strong>pastor</strong>es nos colocava a to<strong>do</strong>s no plano <strong>do</strong>s aproveita<strong>do</strong>res,<br />

picaretas, estelionatários, fanáticos, aliena<strong>do</strong>s, truculentos, intolerantes e oportunistas.<br />

Entre 1990 e 1991 era difícil você se apresentar como <strong>pastor</strong>. A sensação que dava era a de que<br />

a categoria estava em pé de igualdade com bicheiros, traficantes e os piores políticos e policiais. E<br />

quanto mais próximo da classe média se andasse, mais forte era o clima de rejeição que se<br />

experimentava. Não havia apedrejamento, nem qualquer violência, como houve quan<strong>do</strong> da<br />

chegada protestante ao Brasil. Entretanto, levei muita pedrada de olhares e sofri muito<br />

enforcamento psicológico em lugares sofistica<strong>do</strong>s.<br />

Nunca botei a culpa daquilo no diabo ou em qualquer tipo de conspiração católica contra nós.<br />

Desde ce<strong>do</strong> percebi que nosso problema tinha a ver, sobretu<strong>do</strong>, com as coisas erradas que alguns<br />

ditos evangélicos faziam e que se tornavam a referência a partir da qual to<strong>do</strong> o grupo era julga<strong>do</strong>.<br />

E a única forma possível de enfrentar a situação exigia uma ação com duas faces: alguém ou<br />

alguns teriam de correr o risco de denunciar aquele modelo pseu<strong>do</strong>-evangélico e, ao mesmo<br />

tempo, perder a discrição e deixar a sociedade ver as coisas boas que os evangélicos faziam. Mas<br />

como eu na prática não sabia o mo<strong>do</strong> de iniciar aquela guerrilha de redenção da nossa imagem,<br />

resolvi apenas orar e pedir que Deus levantasse alguém para fazer aquilo.<br />

Conheci Rubem César Fernandes em 1970 quan<strong>do</strong> o vi senta<strong>do</strong> na sala da casa de seus pais,<br />

na estrada Froes, em Niterói. Os pais de Rubem freqüentavam a mesma igreja que os meus e<br />

eram muito amigos. Eu apenas ouvia falar <strong>do</strong> “filho de <strong>do</strong>na Idalete” que estava fora <strong>do</strong> país


fugi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s militares, acusa<strong>do</strong> de ser comunista. Naqueles dias, ele era o herói revolucionário da<br />

garotada de nossa igreja. Rubem tinha volta<strong>do</strong> da Polônia e estava no Brasil discretamente, apenas<br />

por alguns dias. Daí aquela reunião de fim de tarde com o nosso mito. Estavam to<strong>do</strong>s ali,<br />

capitanea<strong>do</strong>s por Lucilia Elias, filha <strong>do</strong> <strong>pastor</strong>, ouvin<strong>do</strong> embeveci<strong>do</strong>s os relatos daquele moço<br />

moreno, de cabelos longos pentea<strong>do</strong>s para trás, que davam a ele uma pinta de apache urbaniza<strong>do</strong>.<br />

Fiquei senta<strong>do</strong>, ouvin<strong>do</strong>-o em silêncio. Contentei-me, ao fim da reunião, em apertar-lhe a mão,<br />

enquanto me recolhia à minha total alienação política.<br />

Em 1982 Rubem já estava de volta ao Brasil há sete anos e começou a me procurar para<br />

conversarmos sobre religião, antropologicamente falan<strong>do</strong>, é claro. Daquelas conversas de<br />

natureza investigativa, nasceu uma amizade que se remontava aos vínculos fortes entre os nossos<br />

pais, mas que também encontrava raízes no presente, na crescente afinidade de nossas almas.<br />

— O Rubem se diz ateu, mas é emocionalmente crente — eu dizia a muitos evangélicos que<br />

perguntavam como eu me relacionava tão bem com um ateu confesso. O fato é que eu via nele<br />

muito mais cristianismo <strong>do</strong> que em alguns líderes de igreja, que às vezes se mostravam pessoas<br />

ruins de coração. Foi aquele antropólogo de berço presbiteriano quem começou a me dar umas<br />

dicas de como furar aquele bloqueio de preconceito contra os evangélicos.<br />

— Você tem que levantar a bandeira da ética e associar isso a questões de hoje. Senão vira<br />

moralismo, e tá to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de saco cheio disso — ele me falou ainda em 1990.<br />

O problema é que o nosso telha<strong>do</strong> era de vidro. “Como é que a gente vai falar de ética, se to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> pensa que nossa postura ética é aquela representada pela imagem pública <strong>do</strong> Edir<br />

Mace<strong>do</strong>?”, perguntei a mim mesmo inúmeras vezes.<br />

— Cristina, acha o telefone <strong>do</strong> Edir Mace<strong>do</strong> e diz que eu quero conhecê-lo — pedi à minha<br />

secretária.<br />

O problema é que Mace<strong>do</strong> não queria nem ver evangélico. Ten<strong>do</strong> saí<strong>do</strong> da Igreja de Nova<br />

Vida — denominação criada pelo missionário canadense Roberto MacLister —, Edir tinha cria<strong>do</strong><br />

a Igreja Universal <strong>do</strong> Reino de Deus — IURD, que era uma espécie de síntese entre várias<br />

químicas religiosas. Havia de tu<strong>do</strong> um pouco: um grito de guerra (Jesus Cristo é o Senhor!) e um<br />

fervor na ação (Vamos ganhar o mun<strong>do</strong> para Jesus!), que eram genuinamente evangélicos;<br />

combina<strong>do</strong>s a uma teologia católico-medieval (Deus não faz nada de graça, sem sacrifício, e o<br />

dinheiro é a moeda de troca entre o homem e as bênçãos divinas) e a uma simbologia<br />

afro-ameríndia, com farta utilização de elementos mágicos das religiões populares, tais como sal<br />

grosso, ramo de arruda, óleo sagra<strong>do</strong>, caminhos físicos pavimenta<strong>do</strong>s com sal, que abençoam<br />

aqueles que por eles caminham, e o oferecimento de dezenas de outros objetos feitos santos, que<br />

iam desde o estilingue de Davi até uma lavagem das mãos com o sangue de Cristo numa bacia.<br />

Todas essas coisas eram consideradas por eles como pontos de contato entre a pregação da<br />

Universal e a necessidade mística <strong>do</strong>s brasileiros. Do ponto de vista meramente marketeiro, era<br />

fantástico, mas visto sob o ponto de vista <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s da fé evangélica, era um escândalo de<br />

promiscuidade <strong>do</strong>utrinária.<br />

E para aumentar a hostilidade de Mace<strong>do</strong> com os evangélicos, houve ainda <strong>do</strong>is episódios.<br />

Conta-se que quan<strong>do</strong> da inauguração da TV Rio, o <strong>pastor</strong> Nilson Fanini, um <strong>do</strong>s maiores nomes<br />

<strong>do</strong>s batistas no Brasil e no mun<strong>do</strong>, pediu a ajuda <strong>do</strong> então já controvertidíssimo Mace<strong>do</strong>, a fim de<br />

encher o Maracanã para uma festa da emissora. Edir teria dito que iria, mas sob a condição de<br />

que ele pudesse dar uma rosa ungida para cada pessoa e também dizer uma palavra no evento.<br />

O Maracanã ficou quase totalmente lota<strong>do</strong> com o povo da Universal. To<strong>do</strong>s falaram durante a<br />

programação, menos Mace<strong>do</strong>. Ao fim de tu<strong>do</strong>, o locutor anunciou que o culto estava encerra<strong>do</strong> e<br />

que, dali para frente, eles “não assumiriam mais nenhuma responsabilidade pelo que<br />

acontecesse”.


— Com a palavra o bispo Edir Mace<strong>do</strong> — teria, então, dito o apresenta<strong>do</strong>r.<br />

Mace<strong>do</strong> tomou a palavra e disse que estava muito triste. Esculachou to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e pediu ao<br />

povo que o ajudasse a expulsar os demônios dali.<br />

— Xô, xô, xô, sai daqui, sai, Satanás — era mais ou menos o cântico que os milhares de<br />

universais, comanda<strong>do</strong>s por seu líder, entoaram no estádio.<br />

E não pararam de cantar até que to<strong>do</strong>s os convida<strong>do</strong>s de Fanini tivessem se retira<strong>do</strong> da<br />

plataforma. Quan<strong>do</strong> saiu o último deles, o povo explodiu em delírio. O Maracanã estava<br />

exorciza<strong>do</strong>, conforme a visão de Edir.<br />

Injuria<strong>do</strong> com a humilhação sofrida no Maracanã e zanga<strong>do</strong> com a briga entre a Universal e a<br />

umbanda, que estava acirradíssima naqueles dias, o <strong>pastor</strong> Nilson Fanini convocou a imprensa<br />

para dar uma declaração sobre aquela guerra religiosa. Os jornais declararam que Evangélicos<br />

dão apoio à umbanda contra a Igreja Universal. Foi um escândalo. Mesmo o evangélico mais<br />

ferreamente contrário a Mace<strong>do</strong> jamais admitiria que para os evangélicos aquilo pudesse ser<br />

verdade. “Mace<strong>do</strong>, não! Umbanda, nunca!”, era o que se ouvia em muitos círculos.<br />

Naquele perío<strong>do</strong> que antecedeu meu primeiro encontro com Mace<strong>do</strong>, estive falan<strong>do</strong> em<br />

Brasília num grande encontro carismático.<br />

— Cê vai encontrar com o Mace<strong>do</strong>? — perguntou-me Robson Ro<strong>do</strong>valho, líder <strong>do</strong> encontro.<br />

— Eu e o César estivemos lá com ele. O cara é meio louco. Ele disse pra gente que, por Jesus, ele<br />

faz qualquer coisa: dá cheque sem fun<strong>do</strong>, emite duplicata fria, enfim, qualquer coisa, até gol de<br />

mão. A gente saiu de lá escandaliza<strong>do</strong>.<br />

— Eu preciso saber quem é ele, e não pode ser por terceiros. Vou lá sim! Quero senti-lo —<br />

argumentei.<br />

Minha secretária me informou que ele iria me receber ainda em abril, portanto, alguns dias<br />

antes da criação da Associação Evangélica Brasileira (AEVB). Fiquei preocupa<strong>do</strong> que alguém<br />

pensasse que eu estava in<strong>do</strong> vê-lo em busca de apoio para a formação da AEVB.<br />

O encontro seria no escritório de Edir, na recém-adquirida TV Record, agora de propriedade<br />

da Igreja Universal, dirigida por Mace<strong>do</strong>. Esperei 15 minutos e fui recebi<strong>do</strong> numa ampla sala,<br />

com tapetes cheiran<strong>do</strong> a novo e os móveis ainda com o o<strong>do</strong>r <strong>do</strong> plástico que os embrulhara até<br />

bem pouco. A mobília era cara, e embora o lugar não fosse de extremo bom gosto, também não<br />

era brega. Para um gabinete de bispo, contu<strong>do</strong>, o ambiente era excelente e longe <strong>do</strong>s padrões<br />

escuros da religiosidade. Uma senhora de uns sessenta anos estava passan<strong>do</strong> pano nos móveis.<br />

Quan<strong>do</strong> o bispo entrou, ela olhou para ele como se São Pedro tivesse irrompi<strong>do</strong> porta adentro.<br />

— Posso continuar a limpar os móveis, bispo? — ela indagou reverente.<br />

Ele deu com a mão, dizen<strong>do</strong> que ela podia sair. Em seguida, entretanto, falou com voz de<br />

anjo.<br />

— Vai, minha filha! Pode ir, minha filha!<br />

E a velhinha foi, como se instruída por um profeta da Bíblia.<br />

— Você deve estar pensan<strong>do</strong> o que eu estou fazen<strong>do</strong> aqui, não é? — perguntei. — É que eu<br />

tenho ouvi<strong>do</strong> falar de você pela mídia e vim conferir.<br />

— Pela mídia? Então você só deve ter ouvi<strong>do</strong> coisas ruins. Pra mídia eu sou ladrão! —<br />

interrompeu ele.<br />

— O que me impressiona não é o que a mídia diz, mas o que você faz para só aparecer<br />

negativamente — afirmei. — Mas eu não quero pensar que sei quem você é pelo que a mídia diz.<br />

Eu quero conhecer você — disse. — Dá pra você me dizer como você chegou a se converter e se<br />

tornar evangélico?<br />

— Eu não sei se eu quero ser visto como evangélico. Eu prefiro ser visto como outra coisa.<br />

Fiquei muitos anos com os evangélicos e só perdi tempo — ele iniciou num tom rabugento,


amargura<strong>do</strong>, quase agressivo. — Os evangélicos são to<strong>do</strong>s como aquele tal de Fanini. Que cara<br />

ignorante! Foi dizer que preferia a Umbanda a mim. Com gente como ele eu não quero nada —<br />

confessou ressentidíssimo.<br />

— Francamente, eu enten<strong>do</strong> o seu ressentimento. Mas me fale de sua conversão? — insisti.<br />

— Eu vim da bruxaria e me converti na Igreja de Nova Vida. Fiquei muito tempo lá. Depois, a<br />

Nova Vida perdeu a visão. Virou quase uma Igreja Católica, fria, sem briga, sem vontade de<br />

crescer. Então procurei os líderes de lá e falei que estava sain<strong>do</strong>. “Vocês ainda vão ouvir falar de<br />

mim”, foi o que eu disse pra eles. Aí comecei o meu trabalho e cresci. Não sou uma igreja. Sou<br />

uma cruzada, um movimento de guerra contra o diabo. Mas não me <strong>do</strong>u bem com os evangélicos.<br />

Só me perseguem. Não me entendem — desabafou.<br />

Depois dele, foi minha vez. Contei como me tornara um cristão e quais eram os meus<br />

compromissos de vida.<br />

— Mas por que você faz coisas tão estranhas? E por que tanto misticismo e tanta ênfase em<br />

coisas controvertidas? — perguntei a Mace<strong>do</strong>.<br />

— Olha, cada um pesca com o que tem e como sabe. Você pesca com camarão. Fala bem, é<br />

prepara<strong>do</strong> e ganha gente preparada. Outro pesca com pão. Outro com minhoca. E tem peixe que<br />

só gosta de minhoca. E tem outros que pescam como eu, com fezes. Tem gente que só gosta <strong>do</strong><br />

que eu ofereço. O povo que eu quero não vai te ouvir. É gente que ninguém quer. Eu quero. É o<br />

pessoal que eu consigo pescar <strong>do</strong> meu jeito, com as coisas que eu ofereço — ele falou quase como<br />

se estivesse filosofan<strong>do</strong> sobre algo absolutamente novo.<br />

— Mas você não acha que dizen<strong>do</strong> que cada um dá o que tem e o que as pessoas querem,<br />

você está dizen<strong>do</strong> que o evangelho não tem conteú<strong>do</strong>? E que a gente pode adulterar a mensagem<br />

como quiser pra atender aos gostos deste mun<strong>do</strong>? É isso que você tá dizen<strong>do</strong>? — indaguei sem<br />

querer ser rude, mas achan<strong>do</strong> crucial a resposta dele. Afinal, era a primeira vez que eu ouvia um<br />

líder religioso ocidental confessar com sinceridade e honestidade que os fins justificavam os<br />

meios. Muitos agiam segun<strong>do</strong> a mesma filosofia, mas maquiavam muito bem suas ações.<br />

Mace<strong>do</strong>, entretanto, era honesto em suas convicções e não tentava me iludir a respeito.<br />

— Eu não tenho paciência pra filosofia. Aqui a gente não tá queren<strong>do</strong> pensar muito nessas<br />

coisas. A Nova Vida parou porque ficou com essas perguntas todas. O negócio é ganhar gente.<br />

Também não gosto desse negócio de Escola Bíblica Dominical e nem de seminário. Teologia tira<br />

a garra <strong>do</strong> obreiro. Eu não tenho essas coisas na Universal — declarou e já foi logo pegan<strong>do</strong> o<br />

telefone e dizen<strong>do</strong> que “o pessoal” poderia entrar. — Eu queria que vocês conhecessem o <strong>Caio</strong><br />

<strong>Fábio</strong> — disse para Renato Suhett, Didini e Gonçalves, que acabavam de entrar. Conversamos<br />

generalidades por mais uns trinta minutos.<br />

— Olha, no dia 17 de maio nós vamos estar crian<strong>do</strong> uma associação de igrejas evangélicas.<br />

Por que vocês não mandam um observa<strong>do</strong>r pra ver como é? — disse.<br />

— Eu já pensei em fazer uma coisa dessas pra mim. Depois desisti. Com evangélico não dá,<br />

é tu<strong>do</strong> muito difícil. Só quero é que me deixem em paz — ele falou já me estenden<strong>do</strong> a mão para<br />

a despedida.<br />

— Como foi o encontro? — foi a pergunta que eu ouvi de to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a começar por minha<br />

esposa.<br />

— O Edir Mace<strong>do</strong> é uma figura estranha, que causa impacto. Está disposto a morrer pelo<br />

que crê, mas também está disposto a tu<strong>do</strong>. É sincero e é perigoso porque há um sentimento<br />

messiânico nele. Ele não é um picareta em busca de dinheiro. Acha que dinheiro é parte essencial<br />

da vida espiritual, e que Deus dá valor muito especial ao dinheiro como elemento de sacrifício<br />

para a aquisição de bênçãos, mas não quer dinheiro por dinheiro. O que ele quer é o poder que o<br />

dinheiro dá. Eu estou impressiona<strong>do</strong> com o homem. Não sei o que pensar dele além disso —


afirmei com excitação e perplexidade, certo de que jamais havia encontra<strong>do</strong> ninguém como<br />

Mace<strong>do</strong>.<br />

No dia 17 de maio estávamos reuni<strong>do</strong>s no Centro <strong>do</strong> Professora<strong>do</strong> Paulista, crian<strong>do</strong> a AEVB.<br />

— Estão aí fora <strong>do</strong>is <strong>pastor</strong>es da Universal dizen<strong>do</strong> que você man<strong>do</strong>u eles virem — falou-me<br />

um <strong>do</strong>s introdutores <strong>do</strong> evento. Eram Laprovita Vieira e Didini que lá estavam.<br />

— O bispo man<strong>do</strong>u a gente aqui pra entrar pra Associação e pra gente dizer lá na frente que<br />

toda a estrutura da Universal é de vocês. Mas eu tenho que falar isso agora, no microfone —<br />

informou-me Laprovita, o presidente legal da Igreja Universal.<br />

Expliquei que estava honra<strong>do</strong> com a presença deles, mas que não podia interromper a ordem<br />

das coisas.<br />

— Não existe ainda a AEVB. Estamos crian<strong>do</strong>. Como é que eu posso dar a palavra a vocês, se<br />

nós ainda estamos votan<strong>do</strong> os estatutos? Fiquem e participem. Quem sabe à tarde já dá pra vocês<br />

falarem alguma coisa? — afirmei.<br />

O problema é que a mera menção da presença deles lá já havia altera<strong>do</strong> os ânimos de muitos.<br />

Pedi a Deus que nos iluminasse no caso deles virem à tarde, pois naquele contexto, se eles<br />

falassem alguma coisa, seria um desastre. Nesse caso, como quase toda boa “associação” de<br />

evangélicos, a AEVB já nasceria dividida. Eles não voltaram à tarde, mas também não se<br />

ofenderam.<br />

O problema foram as entrevistas à imprensa de São Paulo que eu tive que conceder naquela<br />

mesma tarde, já como presidente eleito. Quase todas as perguntas tinham a ver com Mace<strong>do</strong>.<br />

— A AEVB vai regular o levantamento de dinheiro nas seitas evangélicas? — perguntaram<br />

sem saber que nos ofendiam duplamente, primeiro nos chaman<strong>do</strong> de seitas e depois pela<br />

ignorância de pensar que no meio evangélico as coisas pudessem ser normatizadas, “reguladas”.<br />

— O bispo Mace<strong>do</strong> vai poder entrar na entidade? — outros indagaram.<br />

— É verdade que o senhor já iniciou conversações a fim de obter o apoio da TV Record? —<br />

perguntaram ainda.<br />

— Não estamos crian<strong>do</strong> esta entidade para nenhum <strong>do</strong>s fins apresenta<strong>do</strong>s por vocês.<br />

Também não é para lutarmos contra o Mace<strong>do</strong> e nem para nos aliarmos a ele. Nós estamos<br />

crian<strong>do</strong> a AEVB para termos uma referência ética para os evangélicos. Chega de tanto escândalo<br />

feito em nosso nome — afirmei.<br />

— Mas se é pra combater escândalos, então vocês vão ter que enfrentar o Edir Mace<strong>do</strong>! —<br />

provocou-me uma repórter.<br />

— Olha, eu não tenho nada a declarar sobre Mace<strong>do</strong> e a igreja dele. Nem bom, nem mau.<br />

Estou tentan<strong>do</strong> conhecê-los — disse com contundência.<br />

Os meses seguintes foram de articulação político-eclesiástica para fortalecer a AEVB. Tive<br />

dezenas de encontros e expliquei nossos objetivos para líderes de igrejas em inúmeras ocasiões.<br />

— Veja se você me arranja um encontro com <strong>do</strong>m Luciano Mendes — pedi à minha<br />

secretária.<br />

— Ele disse que vem aqui no escritório e que o senhor não precisa mandar buscá-lo —<br />

respondeu-me Cristina sobre o encontro já marca<strong>do</strong> com o presidente da CNBB.<br />

Admirou-me imensamente ver <strong>do</strong>m Luciano entran<strong>do</strong> no meu escritório absolutamente<br />

sozinho e mostran<strong>do</strong> total abertura de mente e incrível simplicidade em sua atitude. Fiquei<br />

perplexo olhan<strong>do</strong> para ele e imaginan<strong>do</strong> se algum líder evangélico que eu conhecia, estan<strong>do</strong> na<br />

posição dele, exporia a si mesmo daquele mo<strong>do</strong>, in<strong>do</strong> a um território desconheci<strong>do</strong> com tamanha<br />

tranqüilidade e boa vontade. À minha mente vieram apenas uns poucos nomes de gente que<br />

agiria daquela forma no meio da liderança evangélica. Por isto, concluí que havia algo estranho<br />

com a espiritualidade de nossos líderes, visto que, entre nós, quanto mais influente uma pessoa


se tornava mais parecida com um chefe de Esta<strong>do</strong> ela se mostrava, na maioria das vezes mediante<br />

acessos de importância pessoal completamente desproporcionais à realidade <strong>do</strong> que sua vida e<br />

posição representavam, às vezes exageran<strong>do</strong>, inclusive, na segurança pessoal.<br />

Expus a <strong>do</strong>m Luciano os objetivos da AEVB. Disse também que não tínhamos nenhuma<br />

intenção de promover qualquer tipo de ação ecumênica em relação à Igreja Católica, mas que<br />

gostaríamos de estabelecer uma relação cristã de diálogo, especialmente em questões de<br />

natureza social e de cidadania, onde pudéssemos trabalhar juntos para o bem <strong>do</strong> Brasil. Dom<br />

Luciano me ouviu, agradeceu o convite para o encontro, desejou-me felicidades, falou um pouco<br />

sobre sua postura de abertura para o diálogo e partiu quarenta e cinco minutos depois.<br />

— Este homem me deixou pensan<strong>do</strong> sobre os pressupostos da espiritualidade de muitos de<br />

nós, líderes evangélicos. Os católicos têm um papa, mas os evangélicos têm centenas de papas e<br />

candidatos a papa. Dom Luciano, entretanto, é maior que o papa em sua simplicidade e maior<br />

que a maioria de nós, seduzi<strong>do</strong>s pelo sonho de sermos papas ao nosso próprio mo<strong>do</strong>, incapazes de<br />

nos entregarmos a uma vida mais simples — disse aos líderes da AEVB numa reunião em São<br />

Paulo, relatan<strong>do</strong> meu primeiro encontro com o então presidente da CNBB.<br />

No dia 22 de novembro de 1991, em Brasília, capital da República, eu estava senta<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> presidente Fernan<strong>do</strong> Collor de Mello, toman<strong>do</strong> café da manhã no hotel Nacional. Conversei<br />

cerca de uma hora com Collor, enquanto passávamos manteiga em torradinhas e ouvíamos<br />

cantores evangélicos se exibirem para o presidente da República. Em seguida, preguei uma<br />

mensagem sobre a reconstrução de nações em caos, basea<strong>do</strong> no salmo 126. Collor ficou me<br />

olhan<strong>do</strong> com extrema atenção. Depois me disse que havia fica<strong>do</strong> impressiona<strong>do</strong> com a<br />

mensagem.<br />

— Quan<strong>do</strong> estiver em Brasília, visite-me, reveren<strong>do</strong>! — disse ele.<br />

Termina<strong>do</strong> o encontro, Laprovita Vieira, também presente ao evento, me procurou.<br />

— Olha, precisamos unir forças. Você tem coisas que não temos, e nós temos coisas que você<br />

não tem — ele me disse, enquanto dava uma meia rodada sobre o calcanhar e causava em mim<br />

uma dupla sensação de tontura: pelo movimento brusco e, sobretu<strong>do</strong>, por proferir as mesmas<br />

palavras que eu ouvira em 1981, quan<strong>do</strong> Deus me salvara de ir trabalhar com aquele <strong>pastor</strong> de<br />

Copacabana. — A Rede Record está às ordens. Temos que nos unir! — repetiu.<br />

Voltei ao Rio pensan<strong>do</strong> em tu<strong>do</strong> aquilo. Então decidi que a AEVB não deveria aceitar nada de<br />

graça da Universal até que nós soubéssemos muito bem quem eles eram e quais os seus<br />

objetivos. A Vinde, entretanto, imaginei, poderia comprar espaço da emissora, assim como fazia<br />

em várias outras redes de televisão. Imaginei que fazen<strong>do</strong> assim, duas coisas estariam garantidas:<br />

nossa independência na relação com eles e, ao mesmo tempo, nossa disposição de conhecê-los<br />

melhor, sem preconceitos quanto ao diálogo.<br />

Marquei outro encontro e fui a São Paulo comprar horário na televisão de Mace<strong>do</strong>. Polícia<br />

descobre placa fria em carro de “bispo” Mace<strong>do</strong> — dizia a manchete <strong>do</strong>s principais jornais<br />

ofereci<strong>do</strong>s dentro <strong>do</strong> avião da ponte aérea.<br />

— Que qui eu tô fazen<strong>do</strong> aqui, meu Deus? — falei comigo mesmo e com Deus dentro de um<br />

táxi na porta da TV Record. Havia vários repórteres de plantão no lugar. — Volte para o aeroporto<br />

— disse ao chofer <strong>do</strong> táxi que me conduzia, que ficou sem entender nada. Esperei a coisa acalmar<br />

e fui de novo ao encontro de Mace<strong>do</strong> no dia 19 de maio de 1992.


Capítulo 39<br />

“Às vezes também me entristeço com os elogios que fazem de mim, quan<strong>do</strong><br />

louvam em minha pessoa qualidades que me desagradam, ou quan<strong>do</strong> dão muita<br />

importância a qualidades medíocres e insignificantes.<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Mace<strong>do</strong> me deu um chá de cadeira de quase uma hora. Achei estranho. Naquele<br />

meio-tempo, Renato Suhett, que ainda era o muso da Universal, e Mariléia, secretária de Edir,<br />

me fizeram sala, meio sem graça, não entenden<strong>do</strong> a razão de tamanha demora.<br />

— O bispo está dizen<strong>do</strong> pro senhor entrar — disse Mariléia.<br />

— Oi, que é que você está fazen<strong>do</strong> aqui? — foi logo me perguntan<strong>do</strong> o reveren<strong>do</strong> Isaias de<br />

Souza Maciel, presidente da Ordem <strong>do</strong>s Ministros Evangélicos <strong>do</strong> Brasil, que estava lá dentro<br />

com Mace<strong>do</strong> e Washington de Souza.<br />

— Ó, Ó, esse aí é outro trai<strong>do</strong>r. Veio aqui pedir apoio, e eu dei. Depois, disse no jornal que<br />

não tem nada nem de bom nem de mau pra falar sobre mim. É assim que me tratam. E o senhor<br />

ainda quer me levar pra essa arapuca? Já disse que com o Fanini eu não vou pra nada — falou<br />

Mace<strong>do</strong> com os lábios brancos, o queixo trêmulo e o de<strong>do</strong> em riste apontan<strong>do</strong> para mim.<br />

— Olha bem pros meus olhos! Vê aqui no meu rosto se há algum movimento de agitação ou<br />

nervosismo. Eu estou em paz com a minha consciência. Nunca enganei você. Disse desde o início<br />

que estou tentan<strong>do</strong> conhecer você. Não pedi nada e só estou aqui hoje porque vocês disseram que<br />

tinham horário na TV pra vender pra mim. É melhor você se acalmar, pois essa sua atitude faz a<br />

coisa aqui dentro ficar cheia de espíritos maus — falei sério, fazen<strong>do</strong> alusão à permanente<br />

preocupação de Mace<strong>do</strong> na luta contra os demônios.<br />

— Tá bom. Tá bom. A gente conversa depois. — E, dirigin<strong>do</strong>-se a um homem que havia si<strong>do</strong><br />

chama<strong>do</strong>, pediu: — Gonçalves, conversa com o <strong>Caio</strong> sobre a venda <strong>do</strong> horário pra ele. — Eu e<br />

Gonçalves nos retiramos para uma sala ao la<strong>do</strong> e em 15 minutos acertamos tu<strong>do</strong>. Seria um<br />

programa de uma hora, aos sába<strong>do</strong>s, das nove às dez da manhã, e eu pagaria 20 mil dólares por<br />

mês.<br />

Quan<strong>do</strong> estava voltan<strong>do</strong> à sala de Mace<strong>do</strong>, ouvi o reveren<strong>do</strong> Isaias conversan<strong>do</strong>, nervoso, com<br />

Mace<strong>do</strong>.<br />

— Pelo amor de Deus, bispo. Agora o senhor está me ofenden<strong>do</strong>. Vim aqui a convite <strong>do</strong><br />

Washington dar ao senhor a chance de participar de um evento de to<strong>do</strong>s os evangélicos. Mas o<br />

senhor está o tempo to<strong>do</strong> fazen<strong>do</strong> acusações a pessoas que eu respeito. Eu já não tenho idade pra<br />

ouvir ofensas como essas. O <strong>pastor</strong> Túlio é um homem bom e inatacável, e o <strong>pastor</strong> Fanini não


iria fazer isso que o senhor está dizen<strong>do</strong> — ele dizia.<br />

— Desculpa, gente, mas ainda estão na mesma? O que é que está acontecen<strong>do</strong> aqui? Pensei<br />

que a coisa aqui já estivesse resolvida? — perguntei intriga<strong>do</strong>.<br />

— É que o bispo disse que não vai e nem deixa a Universal ir ao evento <strong>do</strong> dia 6 de junho na<br />

Cinelândia porque o Fanini vai pregar e vai colocá-lo numa arapuca. Mas eu disse a ele que o<br />

Fanini jamais faria isso e também que você vai pregar lá e que nada disso vai acontecer. Mas ele<br />

continua baten<strong>do</strong> nessa tecla — explicou o reveren<strong>do</strong> Isaias. — Ele disse que vamos usá-lo e<br />

depois humilhá-lo, como fizeram no Maracanã — concluiu.<br />

— Então, pronto. Por que é que ele tem que ir? Se não quer ir, que não vá! — falei.<br />

O Celebran<strong>do</strong> Deus com o Planeta Terra era o evento que os evangélicos <strong>do</strong> Rio estavam<br />

organizan<strong>do</strong> por ocasião da Eco 92 (Earth Summit, para o resto <strong>do</strong> planeta), a fim de mostrar ao<br />

mun<strong>do</strong> a nossa força. A expectativa era reunir cerca de um milhão de evangélicos nas ruas <strong>do</strong><br />

centro da cidade.<br />

— Não vou, de jeito nenhum. A Universal também não vai. Estou apenas consideran<strong>do</strong> se<br />

man<strong>do</strong> nossos quatro mil obreiros. Eles têm fé pra ser humilha<strong>do</strong>s e agüentar — falou com um<br />

misto de raiva e consentimento, revelan<strong>do</strong> uma lógica que eu não consegui entender.<br />

Os ânimos se exaltaram mais uma vez.<br />

— Em nome de Jesus, vamos parar com isto, irmãos — eu disse. — A gente fala que conhece<br />

o diabo e que o expulsa. Mas eu acho que ninguém aqui conhece o diabo bem, não. Só<br />

conhecemos aqueles demônios óbvios, que se manifestam nas pessoas em reuniões de exorcismo<br />

coletivo. Mas o diabo está aqui, nessa briga, e parece que ninguém aqui consegue discernir —<br />

disse eu, olhan<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s.<br />

Estranhamente, Mace<strong>do</strong> nada me respondeu. Pareceu ter me da<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>s. Mas continuei<br />

esperan<strong>do</strong> uma resposta forte, <strong>do</strong> tipo “eu sei o que estou falan<strong>do</strong>”, ou ainda algo como “deixe o<br />

diabo fora disto”.<br />

— Vamos dar as mãos e orar. Depois, vamos embora. Olha Mace<strong>do</strong>, se você quiser ir ao<br />

evento, vá. Se não, não vá — arrematei, aproveitan<strong>do</strong> o clima menos tenso. Comecei a fazer uma<br />

oração espontânea, em voz alta, enquanto to<strong>do</strong>s nós na sala dávamos as mãos.<br />

Vista de fora, por gente que não tem familiaridade com as coisas da Igreja Evangélica, aquela<br />

seria uma cena cômica. Alguns homens brigam, se ofendem, se insultam, levantam suspeições,<br />

tremem de raiva e depois dão as mãos e oram. “Coisa de loucos!”, alguém diria. Mas para<br />

<strong>pastor</strong>es, aquela era a única maneira de voltar à civilidade antes de nos despedirmos.<br />

No dia 24 de maio Mace<strong>do</strong> foi preso por charlatanismo, estelionato e curandeirismo.<br />

— <strong>Caio</strong>, vê se ajuda a gente. O Mace<strong>do</strong> tá na cadeia. Isso é coisa da Igreja Católica. Dá pra<br />

ajudar? — perguntou-me Laprovita ao telefone no mesmo dia da prisão.<br />

Pedi que ele me enviasse as acusações via fax. Li-as e orei muito, perguntan<strong>do</strong> a Deus o que<br />

fazer. “Meu Deus, eu acho que isso só está acontecen<strong>do</strong> porque eles estão abusan<strong>do</strong> <strong>do</strong> direito<br />

que têm de professar a fé. Tornaram-se agressivos e obceca<strong>do</strong>s pela idéia de ter poder. Não<br />

concor<strong>do</strong> com o que eles fazem, mas a natureza da acusação é muito subjetiva. Dá-me<br />

discernimento quanto ao que fazer”, falei com Deus.<br />

Dois dias depois a AEVB iria se engajar na campanha pela Ética na Política e,<br />

coincidentemente, naquele mesmo dia iniciaram-se as discussões sobre a abertura da CPI da<br />

corrupção, que veio a ser conhecida como a CPI <strong>do</strong> PC. O debate seria sobre ética na gestão<br />

pública, no auditório Petrônio Portela, no Sena<strong>do</strong>, em Brasília. Convidamos para falar no evento<br />

os líderes <strong>do</strong>s principais parti<strong>do</strong>s. A maioria se fez representar, inclusive Lula, bicho-papão entre<br />

os evangélicos.<br />

Muitos se manifestaram. Lula foi o penúltimo e, depois de falar, preparou-se para sair. Eu


seria o último.<br />

“Por favor não vá embora. Fique para ouvir o <strong>pastor</strong>”, dizia uma nota enviada da audiência às<br />

mãos de Lula. Ele atendeu.<br />

Falei sobre o tema da corrupção durante uns quinze minutos. Depois de concluir minha fala,<br />

pedi licença ao grupo e mudei de assunto. Puxei <strong>do</strong> bolso <strong>do</strong> paletó umas quatro páginas e li um<br />

discurso impensável para uma pessoa como eu, com os escrúpulos que até então eu manifestara.<br />

Eis aqui parte <strong>do</strong> que eu disse naquela manhã:<br />

“Qual é a diferença entre o misticismo <strong>do</strong>s fiéis da Igreja Universal <strong>do</strong> Reino de Deus e<br />

o daqueles que vão às procissões de Aparecida ou <strong>do</strong> Círio de Nazaré? Qual é a diferença<br />

entre as empresas <strong>do</strong> Vaticano (compradas também com dinheiro <strong>do</strong> povo) e as empresas<br />

da Igreja Universal <strong>do</strong> Reino de Deus? Qual é a diferença entre uma santa de gesso que<br />

chora e os alega<strong>do</strong>s milagres de cura da IURD? Qual é a diferença entre os milhões de<br />

dólares da Igreja Católica e os milhões de dólares da IURD? Por acaso não são ambos<br />

dinheiro <strong>do</strong> povo? Por acaso não é também dinheiro que resulta de <strong>do</strong>ações movidas pela<br />

crença? Por acaso não é também, muitas vezes, dinheiro usa<strong>do</strong> para adquirir propriedades<br />

cuja administração nem sempre está aberta a auditorias públicas e nem ao gerenciamento<br />

<strong>do</strong>s fiéis?”<br />

Depois de dizer que a prisão de Mace<strong>do</strong> evocava também outras questões, mostrei as<br />

preocupações que tínhamos com a possibilidade de que aqueles critérios subjetivos de<br />

julgamento prevalecessem. E prossegui:<br />

“Ora, tu<strong>do</strong> o que tenho dito até aqui não tem a finalidade de defender a IURD, que<br />

nem é associada à AEVB. Nossa intenção é mostrar apenas três aspectos básicos da atual<br />

situação de perseguição que sofre a Igreja Universal:<br />

1. A prevalecerem tais critérios, o princípio de liberdade religiosa no Brasil sofrerá<br />

ameaças terríveis. Especialmente quan<strong>do</strong> se sabe que quem deflagrou a acusação de<br />

charlatanismo, curandeirismo e estelionato contra a IURD foi uma outra entidade religiosa<br />

(A Associação <strong>do</strong>s Umbandistas).<br />

2. A prevalecerem tais critérios de julgamento, a fim de que houvesse justiça prática e<br />

objetiva, to<strong>do</strong>s os grupos religiosos <strong>do</strong> Brasil, incluin<strong>do</strong> a Igreja Católica e todas as<br />

denominações evangélicas, deveriam ser processadas e seus líderes leva<strong>do</strong>s às barras <strong>do</strong><br />

tribunal, porque o que para uns é fé, para outros é balela e charlatanismo.<br />

3. Se a IURD e seu líder espiritual, Edir Mace<strong>do</strong>, são passíveis de alguma punição da<br />

lei, tal punição deve acontecer nos níveis da justiça, e de acor<strong>do</strong> com a Constituição, em<br />

áreas mensuráveis de mo<strong>do</strong> prático: sua contabilidade, seu patrimônio e seus impostos, e<br />

não nas áreas subjetivas, nas quais só Deus pode fazer diferença entre o charlatão e o<br />

homem de Deus, entre o curandeiro e o homem de fé ousada, entre o salafrário e o profeta.”<br />

Até aí estava tu<strong>do</strong> bem e Mace<strong>do</strong> e seus comanda<strong>do</strong>s estariam satisfeitos. O problema, no<br />

entanto, foi a proposta que eu fiz a seguir:<br />

“A Associação Evangélica Brasileira se propõe a intervir neste caso, pedin<strong>do</strong> à IURD<br />

que abra sua contabilidade a uma auditoria independente, contratada pela AEVB, e que<br />

posteriormente venha a público trazer os resulta<strong>do</strong>s de tal auditoria. Com isso se pretende<br />

que o caso da IURD e o bispo Edir Mace<strong>do</strong> sejam julga<strong>do</strong>s com os mesmos critérios


objetivos com os quais a justiça brasileira venha a julgar os muitos corruptos que<br />

encontram guarida à sombra <strong>do</strong> poder.”<br />

As seiscentas pessoas presentes ao evento, para minha surpresa, puseram-se em pé e<br />

explodiram num interminável aplauso. Olhei em volta e vi que to<strong>do</strong>s estavam aplaudin<strong>do</strong>,<br />

inclusive o supostamente renitente Lula. Termina<strong>do</strong> o evento, Lula veio falar comigo. “Olha, eu<br />

quero me encontrar com você. Liga pra minha casa. Temos coisas muito sérias pra tratar”,<br />

disse-me e desapareceu cerca<strong>do</strong> por vários repórteres.<br />

Dei várias entrevistas sobre a prisão de Mace<strong>do</strong> e sempre fiz questão de repetir: “Não estou<br />

defenden<strong>do</strong> um homem chama<strong>do</strong> Mace<strong>do</strong>. Estou defenden<strong>do</strong> um princípio chama<strong>do</strong> liberdade<br />

de fé.”<br />

Mace<strong>do</strong> ficou agradeci<strong>do</strong>, mas não completamente satisfeito. Afinal, eu o estava defenden<strong>do</strong>,<br />

porém minha defesa não era incondicional. E para ele, aparentemente, to<strong>do</strong> e qualquer<br />

relacionamento tinha de ser incondicional. E incondicionalidade era algo que eu tinha si<strong>do</strong><br />

ensina<strong>do</strong> a dar apenas a Deus.<br />

No dia 6 de junho de 1992, cerca de 12 dias após a prisão de Mace<strong>do</strong>, pelo menos meio milhão<br />

de pessoas estavam nas ruas <strong>do</strong> Rio e caminharam até a Cinelândia, que não agasalhou nem<br />

mesmo 15% <strong>do</strong>s presentes ao ato. Foi uma festa fantástica, cuja preparação já vinha sen<strong>do</strong> feita<br />

há mais de <strong>do</strong>is anos sob a presidência <strong>do</strong> <strong>pastor</strong> Túlio Barros e com a direção executiva <strong>do</strong><br />

reveren<strong>do</strong> Guilhermino Cunha. Mas como o bispo Edir Mace<strong>do</strong>, posto em liberdade no dia<br />

anterior, também foi ao evento fazer uma oração de intercessão, a mídia entendeu que aquilo<br />

tu<strong>do</strong> tinha aconteci<strong>do</strong> como ato de desagravo pela prisão <strong>do</strong> líder da Universal. E não deixou de<br />

haver elementos de ligação entre as duas coisas.<br />

— Nunca mais vão prender <strong>pastor</strong> no Brasil. Nunca mais — gritou o <strong>pastor</strong> Fanini de cima<br />

de um trio elétrico no meio da avenida Presidente Vargas, fazen<strong>do</strong> meu estômago gelar.<br />

— Isso não vai dar certo. A mídia vai pensar que estamos aqui em desagravo à prisão de<br />

Mace<strong>do</strong> — falei ao reveren<strong>do</strong> Guilhermino enquanto andávamos apressa<strong>do</strong>s, tentan<strong>do</strong> passar<br />

pela multidão em direção ao palanque.<br />

— Só a TV Record tem o direito de gravar este evento. A TV Globo não — disse,<br />

desautorizadamente, o <strong>pastor</strong> Washington de Souza, inician<strong>do</strong> uma polarização entre redes de<br />

televisão que a ninguém interessava. Era grande o constrangimento de toda a comissão<br />

organiza<strong>do</strong>ra com tu<strong>do</strong> o que estava acontecen<strong>do</strong>.<br />

— Eu nunca pensei que depois de tu<strong>do</strong> o que eu disse sobre os evangélicos, eles ainda<br />

fossem se solidarizar comigo assim — disse o próprio Mace<strong>do</strong> para um <strong>do</strong>cumentário que a Rede<br />

Record colocou no ar três dias após a concentração da Cinelândia, dizen<strong>do</strong> que aquele havia si<strong>do</strong><br />

um ato de desagravo pela prisão de seu <strong>do</strong>no.<br />

Os prega<strong>do</strong>res daquela tarde fomos Fanini, Gesiel Gomes e eu. Cada um falou vinte minutos.<br />

Hinos tradicionais foram entoa<strong>do</strong>s e o povo evangélico cantou a uma só voz suas convicções<br />

básicas:<br />

— Castelo forte é o nosso Deus; Os guerreiros se preparam para a grande luta; Vencen<strong>do</strong> vem<br />

Jesus.<br />

Mace<strong>do</strong> ficou em pé ao meu la<strong>do</strong>, no máximo a um metro de distância, durante to<strong>do</strong> o evento,<br />

mas não falou comigo. Achei estranho. Afinal, eu havia puxa<strong>do</strong> o coro pela libertação dele.<br />

— Mace<strong>do</strong>, estamos felizes que você esteja em liberdade. Quero reafirmar meu desejo de<br />

conhecer você melhor. Não esqueça disso — disse a ele, que mu<strong>do</strong>u de expressão, deixan<strong>do</strong> de<br />

la<strong>do</strong> o sorriso e franzin<strong>do</strong> gravemente o rosto tão logo viu que não tinha como me evitar na saída<br />

<strong>do</strong> palanque.


Edir apenas abanou a cabeça e foi passan<strong>do</strong>. Enquanto isso, eu via seu namoro com Silas<br />

Malafaia, Fanini, Washington, <strong>pastor</strong> Manoel Ferreira e outros.<br />

— O que será que está acontecen<strong>do</strong>? Não quero ser amigo dele, mas quero honestamente<br />

conhecê-lo melhor. O que será que eu causo nele? — perguntei a um irmão que também<br />

conhecia o bispo Mace<strong>do</strong>.<br />

— É que ele sabe que os outros o tratam olhan<strong>do</strong> para cima, para o bispo. Mas você o olha no<br />

mesmo nível. Ele lhe chama de <strong>Caio</strong>, e você o chama de Edir. Você o defende hoje, mas não faz<br />

pacto de defender sempre. Para o bispo, isso é muito inseguro. Quem tá com ele tem que estar<br />

sempre. Com você não é assim, é? — informou-me aquele irmão que tinha acesso à mesa de Edir<br />

e que pediu para não ser identifica<strong>do</strong>.<br />

Insatisfeito com o tratamento que me fora dispensa<strong>do</strong>, liguei para a casa de Mace<strong>do</strong> em São<br />

Paulo ainda naquela mesma noite.<br />

— Estou ligan<strong>do</strong> apenas para saber se está tu<strong>do</strong> bem com você? Estou achan<strong>do</strong> você<br />

distante! — falei.<br />

— Tu<strong>do</strong> bem, não faltará oportunidade pra nos encontrarmos — disse de mo<strong>do</strong> frio,<br />

calan<strong>do</strong>-se em seguida. Não haven<strong>do</strong> mais nada a tratar, desliguei.<br />

Alguns dias depois, Laprovita ligou-me da casa de seu filho, dizen<strong>do</strong> que ele e Didi, apeli<strong>do</strong><br />

de Mace<strong>do</strong> na intimidade, estavam crian<strong>do</strong> uma entidade para defesa de <strong>pastor</strong>es.<br />

— Mas já existe a AEVB. Pra que outra? — perguntei.<br />

— É que a AEVB é muito elitista. Vamos criar uma coisa nossa, com o <strong>pastor</strong> Manoel<br />

Ferreira, da Assembléia de Deus de Madureira. Mas não fique preocupa<strong>do</strong> que não vamos<br />

competir com a AEVB. Quer falar com o Didi? — perguntou.<br />

— Quero sim — respondi.<br />

— Alô, Mace<strong>do</strong>? Vocês vão criar uma entidade nova? — perguntei.<br />

— Não sei se vamos. Estamos aqui conversan<strong>do</strong> com o <strong>pastor</strong> Manoel — parecia sem<br />

vontade de continuar a conversa.<br />

— Espero que Deus abençoe vocês — falei com tristeza.<br />

— Obriga<strong>do</strong> — disse Edir Mace<strong>do</strong> com firmeza.<br />

Desde então orei por ele com regularidade, visto que, mesmo não concordan<strong>do</strong> com seus<br />

méto<strong>do</strong>s, mantinha no coração a forte esperança de que ele reconhecesse um dia que para ganhar<br />

o mun<strong>do</strong> para Cristo ele não precisava tentar recriar o evangelho de Jesus, adaptan<strong>do</strong>-o a algo que<br />

é, em muitos aspectos, a antítese de tu<strong>do</strong> aquilo que foi o ideal de Jesus de Nazaré.


Capítulo 40<br />

“Bastava-me, pois, este argumento contra aqueles homens para lançá-los<br />

completamente de meu peito angustia<strong>do</strong>, porque, sentin<strong>do</strong> e dizen<strong>do</strong> de Ti tais<br />

coisas, não tinham outra saída que um horrível sacrilégio de coração e de língua.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No final de 1992, a campanha pelo impeachment <strong>do</strong> presidente Collor agitava as ruas e os<br />

meios de comunicação. Como contribuição ao debate no meio evangélico, e na intenção de dar<br />

base teológica para aqueles que gostariam de subverter um governo acusa<strong>do</strong> de corrupção, mas<br />

que não tinham coragem de se insurgir contra a autoridade constituída por temor de que isso<br />

fosse contrário à Bíblia, escrevi em seis dias — e publiquei em 15 — o livro A Bíblia e o<br />

impeachment. Vendemos duas edições em menos de um mês.<br />

Desde o início a AEVB havia toma<strong>do</strong> posição clara pelo impeachment de Collor, caso as<br />

acusações fossem comprovadas ou mesmo se o presidente não conseguisse se explicar à nação.<br />

Nossa tese era que ele não poderia governar sob tão terrível suspeição, independentemente de<br />

ser ou não culpa<strong>do</strong>.<br />

— Ei, <strong>Caio</strong>. Olha, você precisa me ajudar. Você tem que parar de falar sobre impeachment —<br />

disse-me Laprovita ao telefone, a propósito de um comercial de meu livro que havia si<strong>do</strong><br />

censura<strong>do</strong> dentro de meu próprio horário compra<strong>do</strong> na TV Record.<br />

— Por que foi que vocês cortaram o comercial de meu livro, Laprovita? — perguntei.<br />

— Olha, nós estamos numa situação difícil. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> quer pegar a gente. E se a gente<br />

falar em impeachment pode ficar ruim pra nós — respondeu o deputa<strong>do</strong> da Universal.<br />

— Mas Laprovita, o horário é compra<strong>do</strong>. Basta vocês dizerem que não assumem<br />

responsabilidade pelo que é dito naquele horário, como acontece no mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> — respondi.<br />

— Não dá. A gente fez um acerto com o Collor. Olha, num dá nem pra acreditar. Ele man<strong>do</strong>u<br />

chamar “aquela pessoa”, sabe? O Didi veio de Nova York e ele man<strong>do</strong>u nos pegar num jatinho.<br />

Depois, fomos de helicóptero encontrar o homem. É um macumbeiro. Tá cheio de demônio. Mas<br />

tem poder. Falou pra “aquela pessoa” que se nós puséssemos o povo na rua contra o<br />

impeachment, se não falássemos no assunto na Record e se fizéssemos os evangélicos ficarem<br />

cala<strong>do</strong>s, incluin<strong>do</strong> a Associação Evangélica e os deputa<strong>do</strong>s crentes no Congresso, teríamos tu<strong>do</strong> o<br />

que pedíssemos — disse-me Laprovita com um tom de voz ofegante.<br />

— Escuta, você não tem me<strong>do</strong> que essa conversa esteja sen<strong>do</strong> gravada? — perguntei.<br />

— Que se dane. Se estiverem gravan<strong>do</strong>, que gravem. Se quiser contar, pode contar também<br />

— respondeu ele com irritação.


— Mas o que o “homem que tem poder” ofereceu a vocês? — perguntei.<br />

— Disse que passa a TV pro nosso nome, valida a compra de nossas rádios todas, facilita<br />

crédito bancário e outras coisas — falou sem hesitação.<br />

— Mas que outras coisas são essas? — indaguei.<br />

— Olha, “te darei tu<strong>do</strong>”, foi o que o homem disse. “Te darei tu<strong>do</strong>”, ouviu? — ele repetiu,<br />

sem nenhuma preocupação entre a semelhança daquela frase e uma outra que havia si<strong>do</strong> dita<br />

para Jesus <strong>do</strong>is mil anos antes por um príncipe cheio de poder.<br />

— E você nunca ouviu essa frase antes? — perguntei a Laprovita.<br />

— Qual? — ele indagou.<br />

— Essa última. “Te darei tu<strong>do</strong>”; nunca ouviu isso antes?<br />

— Não, onde?<br />

— Lá no deserto da Judéia. Jesus havia jejua<strong>do</strong> quarenta dias e noites e o diabo veio tentá-lo,<br />

lembra? Na terceira tentação, a <strong>do</strong> poder, Satanás disse isso a Ele: “Tu<strong>do</strong> eu te darei, se<br />

prostra<strong>do</strong> me a<strong>do</strong>rares”, lembra? — perguntei com provocação.<br />

— Olha, pra Jesus vale gol até de mão. Eu sei que o cara é mau. Tenho provas de que ele é<br />

tu<strong>do</strong> o que falam dele. E até pior. Mas nós precisamos dele agora. Depois tem a Record e as<br />

rádios. Nós precisamos disso tu<strong>do</strong> pra Jesus. Então eu faço qualquer coisa. Só não dá é pra botar o<br />

povo na rua. Eu já falei pro Mace<strong>do</strong>: “Não toma compromisso de botar o povo na rua porque o<br />

povo não vai.” Mas o resto a gente faz por amor ao reino de Deus — disse-me com convicção.<br />

Eu nunca achei que Laprovita e Mace<strong>do</strong> fossem pessoas mal-intencionadas. Ao contrário, a<br />

julgar pela maioria <strong>do</strong>s objetivos espirituais, eu poderia me aliar ao empreendimento deles sem<br />

susto. O problema eram os meios. O messianismo religioso de Mace<strong>do</strong> dava a ele e a seus<br />

lidera<strong>do</strong>s a sensação de que valia tu<strong>do</strong>, desde que fosse para Jesus. E com isso eu não podia<br />

concordar jamais. Não que eu fosse melhor <strong>do</strong> que eles ou de quem quer que fosse. Essa<br />

auto-exaltação jamais me atingira. Entretanto, algo mais profun<strong>do</strong>, dentro de mim, dizia-me que<br />

se aceitássemos os pressupostos éticos de Mace<strong>do</strong>, estaríamos colocan<strong>do</strong> a igreja de vez dentro da<br />

escuridão na qual ela se colocou a maior parte <strong>do</strong> tempo nesses últimos <strong>do</strong>is mil anos de história.<br />

E, para mim, aqueles desvios eram muito mais sérios <strong>do</strong> que se fossem apenas de natureza<br />

individual, eticamente falan<strong>do</strong>. Mas como eram práticas de natureza coletiva, meu temor crescia<br />

muitíssimo.<br />

— Olha, eu enten<strong>do</strong> a angústia de vocês. Com toda sinceridade. Mas pra Jesus não vale gol<br />

de mão, não. Gol de mão nunca é pra Jesus, é sempre contra Ele, mesmo que a gente diga que tá<br />

fazen<strong>do</strong> isso pra Ele. Desculpa, mas não dá pra aceitar essa coisa. Tenho pena da situação de<br />

vocês, mas não posso concordar. No que me diz respeito, você aumentou minha convicção pra<br />

continuar falan<strong>do</strong> a favor <strong>do</strong> impeachment. Além disso, o evangelho chegou até os nossos dias sem<br />

rede de televisão e rádios. A TV Record e as rádios são importantes, mas por elas não vale vender<br />

a alma. Vale? — perguntei angustia<strong>do</strong>.<br />

O clima ficou pesa<strong>do</strong>. Laprovita fez silêncio por uns dez longos segun<strong>do</strong>s, então recomeçou.<br />

— Eu tô preocupa<strong>do</strong> com essa votação. Cê já pensou se eu tiver que ir lá no microfone dizer<br />

pra toda a nação que sou contra o impeachment? Sabe, o que eu queria era que o voto fosse<br />

secreto. Pede a Deus pro voto ser secreto — confessou-me o deputa<strong>do</strong> federal <strong>do</strong> PMDB,<br />

também solicitan<strong>do</strong> minhas preces.<br />

— Laprovita, se você quiser a minha oração, vou pedir a Deus que revele a verdade. Serve? —<br />

indaguei.<br />

Ele não disse nada. Então orei ao telefone, pedin<strong>do</strong> a Deus que não deixasse que uma causa<br />

que se dizia ser <strong>do</strong> interesse <strong>do</strong> reino de Deus se tornasse mais importante <strong>do</strong> que os princípios<br />

<strong>do</strong> evangelho, e que o deputa<strong>do</strong> tivesse coragem de agir conforme a sua consciência. Alguns dias


depois ouvi ao vivo pela TV o nome de Laprovita ser chama<strong>do</strong> para o microfone <strong>do</strong> Congresso a<br />

fim de votar. “Sim”, foi o voto dele, ajudan<strong>do</strong> a selar a sorte <strong>do</strong> ex-caça<strong>do</strong>r de marajás. Percebi,<br />

naquele momento, que depois de ter consegui<strong>do</strong> que Collor assinasse o <strong>do</strong>cumento de<br />

transferência da concessão da TV Record para o nome <strong>do</strong>s representantes legais de Mace<strong>do</strong>, o<br />

deputa<strong>do</strong> estava fazen<strong>do</strong> algo ainda mais complexo: dan<strong>do</strong> uma volta no próprio presidente que<br />

os havia beneficia<strong>do</strong>. Fiquei gela<strong>do</strong>. Se tinham feito aquilo com o Collor, o que não fariam com<br />

quem quer que fosse? Percebi ali quão obstinadamente comprometi<strong>do</strong>s com seus objetivos eles<br />

estavam, e que para atingi-los, realmente, valia tu<strong>do</strong>, ou quase tu<strong>do</strong>.<br />

Aquele episódio afetou-me profundamente. Mesmo não ten<strong>do</strong> nada a ver com o que<br />

acontecera e ten<strong>do</strong> aconselha<strong>do</strong> Laprovita a tomar outro caminho, minha consciência não me<br />

deixou em paz. Sabia que aquilo estava sen<strong>do</strong> feito em nome <strong>do</strong>s evangélicos e me sentia numa<br />

relação de concubinato pelo mero fato de saber o que estava acontecen<strong>do</strong>.<br />

Saí com minha família para uma fazenda nas montanhas. Não falei com ninguém o que estava<br />

se passan<strong>do</strong> dentro de mim. Fiquei horas a fio em profunda solidão. Andava sozinho pelas trilhas<br />

<strong>do</strong> lugar, sentin<strong>do</strong> um estranho desassossego me <strong>do</strong>minar. Nem o maravilhoso cheiro de<br />

eucalipto eu conseguia saborear como de costume. O delicioso o<strong>do</strong>r de capim com estrume de<br />

ga<strong>do</strong>, aromas que me fazem bem à alma, não puderam ser senti<strong>do</strong>s por mim. Estava em grande<br />

agonia de coração. Iniciava-se ali uma viagem extremamente <strong>do</strong>lorosa para dentro de minha alma.<br />

Quan<strong>do</strong> me apercebi, já estava mergulha<strong>do</strong> nas regiões abissais de meu ser, e aquele era para<br />

mim um lugar de profunda depressão.<br />

Durante duas semanas fiquei com a sensação de que estava cain<strong>do</strong> dentro de um poço escuro,<br />

no fun<strong>do</strong> de mim mesmo. Perdi completamente a vontade de continuar. A sensação que me deu<br />

foi a de que estavam malhan<strong>do</strong> em ferro frio. Afinal, a história inteira da humanidade tinha si<strong>do</strong> a<br />

de vitoriosos que usavam quaisquer meios para atingir seus fins, e aqueles que se opuseram a<br />

isso sempre foram os esmaga<strong>do</strong>s de cuja memória a história veio a lembrar-se apenas quan<strong>do</strong><br />

suas idéias já não ameaçavam os interesses pessoais daqueles que um dia os haviam elimina<strong>do</strong>. E<br />

mais: a própria Igreja, enquanto instituição, jamais fora melhor em seus méto<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que os<br />

sistemas pagãos mais perversos, que ela, presunçosamente, havia tenta<strong>do</strong> <strong>do</strong>minar para Deus.<br />

“Senhor, me ajuda a não perder meu ser, minha alma. Estou com me<strong>do</strong> de ficar próximo de<br />

tanta coisa estranha. Estou com me<strong>do</strong> de perder a esperança. Ajuda-me a descobrir o que vale a<br />

pena no meio de tu<strong>do</strong> isso. Sei que Tu não estás em muitas dessas coisas que são feitas em Teu<br />

nome. Tu não me salvaste das angústias da juventude pra eu cair no chão lodacento de um<br />

caminho onde Teu nome aparece a to<strong>do</strong> instante, mas onde Tu quase nunca Te fazes presente”,<br />

orei muitas vezes, em profunda angústia de espírito.<br />

Foi só quan<strong>do</strong> reconheci que a grande maioria de meus irmãos de caminhada eram pessoas<br />

de fé genuína e simples, e também só depois de ter prometi<strong>do</strong> a mim mesmo que aquele caminho<br />

de conquista a qualquer preço jamais seria o meu, que tive paz na mente para voltar a trabalhar.<br />

Aprendi ali que o mun<strong>do</strong> político, seja ele secular ou religioso, chamava de esperteza e visão<br />

estratégica exatamente aquilo que tinha o poder de secar a minha alma, e que Jesus chamara de<br />

tentação.<br />

Nunca mais falei com Laprovita. Apenas orei por ele com muita freqüência, o que ainda faço.<br />

E continuo a pensar dele o que sempre pensei: ele tem boas intenções. Apenas recorre a meios<br />

nem sempre recomendáveis na sua ânsia por fazer a vontade de Deus.


Capítulo 41<br />

“Meus bens já não os buscava mais à luz deste sol, com olhos carnais, porque os<br />

que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e se derramam pelas<br />

coisas visíveis e temporais, lamben<strong>do</strong> com o pensamento faminto apenas as<br />

aparências.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Comecei 1993 na lagoa de Uruaú, no Ceará, escreven<strong>do</strong> um livro sobre oração, enquanto<br />

descansava com a família. Tão logo voltei de lá, fui encontrar Lula em seu escritório, em São<br />

Paulo. Conversamos cerca de seis horas com a porta fechada. Fomos interrompi<strong>do</strong>s apenas para<br />

comer um frango à cubana. Nosso assunto girou em torno de tu<strong>do</strong>, menos de política. Falei sobre<br />

a conversão de meu pai e sobre meu encontro com Cristo. Contei minha história até aquele dia, e<br />

ele me contou a dele. Falamos de como os evangélicos estavam crescen<strong>do</strong> e por que aquele<br />

crescimento estava acontecen<strong>do</strong>. Depois ele me disse que não sabia por que havia tanta<br />

hostilidade da parte <strong>do</strong>s evangélicos em relação a ele.<br />

— Quer anotar as razões? — perguntei brincan<strong>do</strong>. — Olha, as causas são muitas, mas a<br />

maioria tem a ver com a ignorância de vocês em relação aos evangélicos e <strong>do</strong>s evangélicos em<br />

relação a vocês — respondi. — Os evangélicos ouvem dizer que, se eleito presidente <strong>do</strong> Brasil,<br />

você vai perseguir as igrejas, vai caçar suas concessões de rádio, vai favorecer a Igreja Católica<br />

acima de tu<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s e vai botar fiscalização sobre o crescimento das igrejas — essas são<br />

apenas algumas das acusações.<br />

— Deus me livre — disse Lula. — Eu jamais faria isso. Olha, no sindicato tá cheio de<br />

evangélico. Tenho até um irmão <strong>pastor</strong>. Como é que eu faria uma coisa dessa?!<br />

— O problema é que realmente há petistas que dizem coisas assim em alguns lugares, e<br />

essas declarações radicais são espalhadas por toda a igreja, como se fossem políticas nacionais de<br />

seu parti<strong>do</strong>. Tá cheio de gente radical no PT, não está? — falei.<br />

Aí, então, Lula me deu uma aula de como seu parti<strong>do</strong> era democrático, mas disse que,<br />

possivelmente, havia gente por lá que ousava fazer declarações daquele teor.<br />

— Com relação à Igreja Católica, a gente não tem nenhuma relação institucional. Temos<br />

apenas muitos companheiros católicos que são militantes <strong>do</strong> PT. Mas é só — disse.<br />

— Pra mim você não precisa explicar. Eu não sou petista e não sou liga<strong>do</strong> a nenhum parti<strong>do</strong>,<br />

mas sei como as coisas acontecem dentro de seu parti<strong>do</strong>. Meu conselho, entretanto, é que se você<br />

deseja aumentar sua relação com os evangélicos, você deve saber exatamente como você é visto e


deve saber por que a sua imagem é tão distorcida. Por que você não começa a chamar os<br />

evangélicos pra conversar com você? — sugeri.<br />

— Você não pode fazer isso pra mim? — perguntou.<br />

— Se eu fizer isso, vão pensar que estou fazen<strong>do</strong> campanha política. E não é o caso. Mas<br />

posso passar pra você o nome <strong>do</strong>s líderes evangélicos mais estratégicos em to<strong>do</strong> o Brasil, e você<br />

pessoalmente pode abordá-los.<br />

— Olha, sabe o que foi que me atraiu em você? Quan<strong>do</strong> eu vi você falar naquele dia e depois<br />

fazer aquela prece a Deus, eu fiquei pensan<strong>do</strong>: “Quan<strong>do</strong> ele falou sobre o Brasil, falou como<br />

quem conhece esse país, mas quan<strong>do</strong> fechou os olhos e falou com Deus, falou como quem<br />

conhece a Deus.” Olha, eu conheço muita gente que conhece o Brasil, mas que não fala com<br />

Deus daquele jeito. E conheço um monte de gente que me diz que conhece a Deus, mas que não<br />

entende o Brasil daquele jeito. Foi isso que me chamou a atenção em você. Acho uma pena que<br />

você seja conheci<strong>do</strong> só entre os evangélicos. Você tinha que ser uma figura nacional — ele me<br />

falou com muito carinho. — Você se importaria se eu recomendasse você pra falar sobre<br />

cidadania fora da igreja? — indagou.<br />

Respondi que seria um prazer, mas que eu já corria muito por to<strong>do</strong> o Brasil. Pouco depois<br />

daquilo, Rubem César Fernandes estava ao telefone para me dizer que Herbert de Souza, o<br />

Betinho, em franco processo de canonização social, estava me convidan<strong>do</strong> para uma reunião por<br />

causa de uma recomendação de Lula. Não demorou, e eu estava no Palácio <strong>do</strong> Planalto, junto com<br />

uma fantástica constelação de celebridades, guinda<strong>do</strong> à posição de membro <strong>do</strong> Conselho de<br />

Segurança Alimentar da Presidência da República.<br />

Na volta para casa, vim conversan<strong>do</strong> com Betinho, a quem alguns chamavam de o santo ateu.<br />

Falamos de tu<strong>do</strong> e também de Deus. Descobri então que o ateísmo de Betinho não era filosófico,<br />

mas apenas psicológico, como o da maioria das pessoas que assim se assumem. Tinha a ver<br />

apenas com seus traumas infantis e fora o conselho de um analista que fizera Betinho sossegar<br />

sua atormentada alma católica, esquecen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> Deus e <strong>do</strong> Jesus que ele aprendera dentro das<br />

paredes da religião.<br />

Voltei com a corda toda. Criei imediatamente uma organização chamada Atitude &<br />

Solidariedade. Conversei com Eduar<strong>do</strong> Men<strong>do</strong>nça, <strong>do</strong>no de uma empresa de ônibus, e ele<br />

colocou à minha disposição um de seus 32 ônibus, para que nele servíssemos sopa todas as noites<br />

para cerca de mil mendigos que <strong>do</strong>rmiam nas marquises <strong>do</strong> centro de Niterói. Dei um monte de<br />

entrevistas para jornais, revistas, rádios e televisões e senti que minha vida estava enfim sain<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

terreno da religião e entran<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> mais amplo, que em Manaus eu conhecera muito bem,<br />

mas que desde a minha mudança para o Rio, em 1981, havia fica<strong>do</strong> para trás.<br />

Naquele agosto de 1993 algo horrível aconteceria em Vigário Geral, uma das mais de<br />

seiscentas áreas faveladas da Cidade Maravilhosa: 21 pessoas foram mortas, entre elas oito<br />

membros de uma família de evangélicos.<br />

Eu estava no meio de uma reunião de negócios quan<strong>do</strong> os jornais foram postos na minha<br />

frente, com aquela terrível foto <strong>do</strong>s corpos enfileira<strong>do</strong>s em seus caixões no chão de terra da favela.<br />

Tão logo fiquei saben<strong>do</strong> da história da família de evangélicos, peguei uma câmera de nosso<br />

estúdio e corri para lá. Gravei um programa em Vigário Geral e coloquei-o no ar no sába<strong>do</strong><br />

seguinte. Foi uma hora de <strong>do</strong>cumento apaixona<strong>do</strong> sobre a situação de insegurança <strong>do</strong>s que vivem<br />

na favela, entre o poder arbitrário, perverso e esmaga<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s traficantes de drogas e as ações<br />

violentas, desrespeitosas e, muitas vezes, homicidas de certos policiais.<br />

— Tem um repórter <strong>do</strong> jornal O Globo, chama<strong>do</strong> Otávio Guedes, que quer fazer uma<br />

entrevista com o senhor. Marco ou não? — indagou Cristina.<br />

Otávio chegou com uma carinha de menino, mas no meio da entrevista percebi sua


sagacidade e sua imensa capacidade de provocar. Ágil, ferino e delica<strong>do</strong>; foi assim que vim a<br />

perceber o estilo <strong>do</strong> repórter.<br />

— Pô, legal. Gostei de conhecer o senhor. É difícil a gente encontrar líderes religiosos que<br />

falem abertamente sobre as coisas. Gostei — falou Otávio ao final da entrevista.<br />

Foi só quan<strong>do</strong> li O Globo <strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo seguinte que entendi o que ele queria dizer. Minhas<br />

declarações sobre o papel da polícia e a presença evangélica nas favelas estavam dentro de um<br />

contexto bem amplo, onde havia a suspeita <strong>do</strong> envolvimento de igrejas evangélicas acobertan<strong>do</strong><br />

criminosos. A matéria de Otávio era, entretanto, completamente favorável, e a única coisa que<br />

pegava era a manchete de primeira página com uma alusão ao fato de que O presidente da<br />

Associação Evangélica diz que policiais são bandi<strong>do</strong>s farda<strong>do</strong>s.<br />

— Esse negócio vai pegar. Dentro está ótimo, mas a manchete tá ruim pra você.<br />

Generalizaram algo que você relativizou. A polícia vai ficar zangada — disse Gerson Pacheco, um<br />

amigo bem chega<strong>do</strong>.<br />

Eu sabia que aquilo acontece sempre. Às vezes o editor pega uma declaração e joga como<br />

manchete. Falei com Otávio e ele disse para eu mandar uma reparação que eles publicariam.<br />

Mandei, e eles publicaram. O resulta<strong>do</strong> daquilo foi que se iniciou ali uma boa relação de amizade<br />

com o repórter, mas começou também um relacionamento tenso com a polícia. Recebi grupos de<br />

PMs evangélicos indigna<strong>do</strong>s, cartas, e até <strong>do</strong>is telefonemas com ameaças. Um deles dizia que se<br />

eu fosse fazer o casamento de Benedita da Silva e Antônio Pitanga na catedral Presbiteriana, seria<br />

alvo de alguma violência. Fui, e nada aconteceu. Apenas bem mais tarde perceberia as<br />

implicações daquelas declarações à luz de uma sucessão de outros incidentes.<br />

Houve, entretanto, <strong>do</strong>is episódios, separa<strong>do</strong>s por cerca de um ano, que se encadearam quase<br />

como numa conspiração e mudaram completamente a minha vida em razão de seus muitos<br />

des<strong>do</strong>bramentos: o incêndio de uma fábrica e uma visita a um secretário de Justiça.<br />

Um ano antes, no dia 30 de outubro de 1992, a Formiplac, fábrica de lamina<strong>do</strong> técnico,<br />

conheci<strong>do</strong> como fórmica, pegou fogo. Meu amigo, Alípio Gusmão me telefonou e perguntou: “O<br />

senhor viu uma fábrica pegan<strong>do</strong> fogo no Jornal Nacional da TV Globo? É Minha. Comprei há<br />

alguns meses. Dá pro senhor ir até lá ver o que aconteceu?”, pediu-me com objetiva simplicidade<br />

empresarial.<br />

Em setembro de 1993 o <strong>pastor</strong> Washington de Souza, da Assembléia de Deus, me convi<strong>do</strong>u<br />

para ir visitar o vice-governa<strong>do</strong>r Nilo Batista, também secretário de Justiça e de Polícia, a fim de<br />

propor uma parceria com o esta<strong>do</strong> para incrementar o trabalho de capelanias nos presídios <strong>do</strong><br />

Rio.<br />

Em 1992 , a visita ao prédio da Formiplac tinha si<strong>do</strong> rápida. Nem sequer entrei. Fiquei em pé<br />

à porta da fábrica e de lá fui à Delegacia de Polícia na Pavuna, acompanha<strong>do</strong> de um policial<br />

federal evangélico, e fiquei saben<strong>do</strong> da história <strong>do</strong> incêndio: um rapaz de Acari, envolvi<strong>do</strong> com o<br />

tráfico de drogas local, transformara-se na chamada bola da vez. Temen<strong>do</strong> a execução, fugiu para<br />

o prédio central da fábrica e conseguiu chegar despercebi<strong>do</strong> ao terceiro andar, onde ateou fogo no<br />

que encontrou, na intenção de chamar a atenção da polícia ou <strong>do</strong> corpo de bombeiros e ser salvo<br />

<strong>do</strong>s seus executores. A sala onde ele iniciou o fogo ficava ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> laboratório químico, e o<br />

prédio foi pelos ares daquele andar para cima.<br />

Um ano depois, já em setembro de 1993, Alípio me chamaria outra vez, a fim de dizer que<br />

“Deus lhe falara ao coração” que aquela propriedade seria uma “obra para a Glória de Deus, uma<br />

coisa social”.<br />

— O senhor quer ficar com a fábrica pra fazer algo pro benefício daquela população? —<br />

perguntou-me Alípio.<br />

Como eu o conhecia havia anos, e como ele nunca brincara comigo, especialmente usan<strong>do</strong> o


nome de Deus, imediatamente levei suas palavras a sério.<br />

— Mas <strong>do</strong> que você está falan<strong>do</strong>? De entregar aquilo tu<strong>do</strong> pra gente ajudar as pessoas <strong>do</strong><br />

lugar? É isso? — perguntei apenas para me certificar de que havia entendi<strong>do</strong> bem o que ele<br />

dissera.<br />

— Olhe, vá lá com olhos de <strong>do</strong>no. Veja o lugar como se aquilo tu<strong>do</strong> estivesse ao seu inteiro<br />

dispor daqui pra frente. Depois me ligue de volta — disse ele com a objetividade empresarial que<br />

fez com que se transformasse em um <strong>do</strong>s maiores fabricantes de fórmica <strong>do</strong> Brasil.<br />

Reuni Alda, minha esposa; João Bezerra, meu companheiro de muitos anos de trabalho;<br />

Cristina, minha secretária executiva; Sônia, nossa diretora financeira, e Edival<strong>do</strong>, nosso curinga<br />

tecnológico. Andamos por ali, nos desvian<strong>do</strong> de ferros e colonas retorci<strong>do</strong>s pelo fogo, pulan<strong>do</strong><br />

fora de águas que escorriam pelo teto e subin<strong>do</strong> e descen<strong>do</strong> pelo chão sob nossos pés,<br />

completamente ondula<strong>do</strong>, com desníveis de até cinqüenta centímetros, tamanha fora a ação <strong>do</strong><br />

fogo sobre a estrutura. Os 17 galpões <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s estavam intactos. Lá o fogo não chegara.<br />

— Pastor, sinceramente acho que isso aqui é presente de grego — disse-me Cristina. — Se<br />

eu fosse o senhor, não pegava isso aqui não — concluiu, contrarian<strong>do</strong> o estilo positivo e<br />

esperançoso que sempre a caracterizara.<br />

— Não sei, não. Só pra manter isso aqui, a gente iria precisar de uma grana. Acho que temos<br />

que considerar muito bem até que ponto vale a pena — disse João, confirman<strong>do</strong> seu gênero<br />

prudente.<br />

— Eu gostei. Dava pra trazer a Vinde todinha pra cá — falou Sônia, contrarian<strong>do</strong> seu estilo<br />

de economista sempre preocupada com mudanças e despesas.<br />

Edival<strong>do</strong> an<strong>do</strong>u cala<strong>do</strong>. Pensou e olhou em silêncio para tu<strong>do</strong>.<br />

— É grande à beça. Dá pra pôr tu<strong>do</strong> aqui. Vai dar um trabalhão, mas dá — disse finalmente.<br />

Alda, minha esposa, em geral é muito cautelosa. De temperamento melancólico, ela sempre<br />

tende a fazer julgamentos mais tími<strong>do</strong>s a priori. Só depois de sentir e racionalizar os processos é<br />

que ela parte pra dentro. Naquele dia, entretanto, ela agiu diferente.<br />

— Olha, isso aqui é coisa de Deus. Eu estou com me<strong>do</strong> é das conseqüências. Se a gente<br />

puser a mão aqui, não tem mais volta. Não dá pra dizer que estava engana<strong>do</strong>. Mas eu vejo coisa de<br />

Deus aqui — ela falou com muita convicção.<br />

— Eu não perguntei o que vocês pensavam pra saber se devo ou não aceitar esse desafio.<br />

Queria apenas saber o que vocês pensavam. Mas eu já decidi aceitar essa guerra — falei com um<br />

ar de <strong>do</strong>ce tirania.<br />

— A gente tá junto pro que der e vier — disseram to<strong>do</strong>s.<br />

Naquele mesmo dia, telefonei para Alípio e comuniquei minha decisão.<br />

— Alípio, eu aceito o desafio. E agora? O que a gente faz?<br />

— Bem, agora eu tenho que falar com meus sócios. Eles são socialmente sensíveis, mas<br />

ninguém se acostuma a fazer uma <strong>do</strong>ação dessas. São quase 55 mil metros quadra<strong>do</strong>s de área<br />

construída. Mas se Deus está nisso, eles vão aceitar fazer a <strong>do</strong>ação. Mas ore muito. Eles são<br />

judeus e o senhor é evangélico. Não sei como eles vão reagir.<br />

Durante cerca de três meses nós apenas oramos sobre o assunto. Enquanto isso, eu ia à<br />

Formiplac de vez em quan<strong>do</strong>. Andava em volta, conforme Moisés ordenou que Josué fizesse antes<br />

de tomar posse da Terra Prometida. “Onde as plantas de teus pés pousarem, esse chão será teu”,<br />

era a mesma promessa que eu reivindicava quase três mil e quinhentos anos depois.<br />

Num daqueles dias, quan<strong>do</strong> estacionava meu carro em frente ao prédio da Vinde em Niterói,<br />

veio um homem na minha direção.<br />

— Irmão, eu tive um sonho profético com você — disse ele. — Eu vi você numa reunião com<br />

uns judeus. E nessa reunião você vai ter uma surpresa. Os judeus vão lhe dar um presente que vai


mudar sua vida. Não passa de fevereiro. É daqui até lá. Espere. Deus tá falan<strong>do</strong> — disse o<br />

desconheci<strong>do</strong> e foi embora.<br />

Fiquei embasbaca<strong>do</strong> com o sonho <strong>do</strong> homem. Guardei no coração e me calei, como tinha<br />

feito a Virgem Maria, mãe de Jesus, ajuntan<strong>do</strong> os pedaços das profecias que ouvia.<br />

Em setembro de 1993, quan<strong>do</strong> entrei no gabinete de Nilo Batista, fiquei surpreso com<br />

amistosidade com a qual ele nos recebeu. Embora houvesse outras pessoas no lugar, ele foi claro,<br />

direto e aberto. Falou <strong>do</strong> interesse dele em estreitar a parceria <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> com os evangélicos,<br />

mencionou uma pesquisa interna que apontava a conversão religiosa como sen<strong>do</strong> o fator mais<br />

eficaz na regeneração de detentos e disse que dentre tais conversões a evangélica era a mais<br />

freqüente.<br />

— Eles sabem como falar com o pessoal. Os evangélicos sacam muito melhor que os outros<br />

como se comunicar — falou, olhan<strong>do</strong> para a Dra. Julita Lemgruber, então coordena<strong>do</strong>ra geral <strong>do</strong><br />

Desipe, também presente ao encontro.<br />

Depois de todas as amenidades, o reveren<strong>do</strong> Washington mencionou um assunto que no<br />

sistema carcerário era ainda totalmente fecha<strong>do</strong>: o presídio de segurança máxima Bangu I, onde<br />

os 48 criminosos mais temi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> estavam presos.<br />

— E essa parceria se estenderia a Bangu I? Será que daria pra gente evangelizar lá? É lá que<br />

estão os presos mais inteligentes <strong>do</strong> sistema. Ganhá-los pode fazer diferença — disse ele,<br />

pensan<strong>do</strong> estrategicamente.<br />

— É claro que sim! Vamos providenciar um credenciamento imediato para o senhor e para o<br />

reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong>, certo? — afirmou Nilo.<br />

Aproveitan<strong>do</strong> a deixa, falei um pouco porque eu cria que evangelizar aqueles homens não era<br />

perda de tempo. Contei minha história, que nem de longe se comparava à deles, mas que,<br />

existencialmente, fora tão complicada quanto a de qualquer um daqueles homens.<br />

— Jesus veio ao mun<strong>do</strong> salvar os peca<strong>do</strong>res, mas especialmente os mais perdi<strong>do</strong>s — falei<br />

com paixão.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, o senhor sabe, eu não enten<strong>do</strong> o que acontece comigo. Não consigo me<br />

entregar à fé e nem deixá-la de vez. Fora uns poucos momentos de ateísmo, tenho si<strong>do</strong> sempre<br />

um ser persegui<strong>do</strong> pela fé. Não gosto de coisas da instituição, mas não consigo me livrar da<br />

religiosidade. Quem sabe uma hora dessas a gente conversa — falou Nilo, tragan<strong>do</strong> gostosamente<br />

seu cigarro, talvez já o terceiro em pouco mais de quarenta minutos de conversa.<br />

Como sentisse que era hora de terminar nosso encontro, pedi então licença para fazer uma<br />

oração. Aproximamo-nos uns <strong>do</strong>s outros e orei por to<strong>do</strong>s os presentes, pela nossa parceria, pelos<br />

detentos e pelo esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro.<br />

— Puxa, a Verinha tinha que conhecer você — disse Nilo depois da oração, já com mais<br />

intimidade.<br />

— Diz pra ela que você esteve com o <strong>Caio</strong> e que eu mandei um beijão pra ela — falei.<br />

— O quê? Você conhece a Vera? — perguntou surpreso.<br />

— Sim, há uns vinte anos, talvez. Desde o tempo que ela namorava o João Paulo, com quem<br />

se casou. O João era meu conheci<strong>do</strong> desde a a<strong>do</strong>lescência — completei.<br />

Senti que ele ficou emociona<strong>do</strong> com o fato de eu saber que ele era divorcia<strong>do</strong> e que estava<br />

viven<strong>do</strong> com uma mulher também separada e, mesmo assim, não ter muda<strong>do</strong> minha postura<br />

espiritual em relação a ele.<br />

— O cardeal não me serviu a eucaristia na última vez que fui à missa. Depois me deu um<br />

cartão vermelho. Estou “excomunga<strong>do</strong>”. Já pensou? Cartão vermelho pra sempre — disse com<br />

um certo ar de <strong>do</strong>r e decepção no olhar.<br />

— É por isso que eu detesto a frieza da religião. Tentam ser mais santos que Deus. Jesus foi


diferente disso tu<strong>do</strong>. Olha, Jesus não cabe na instituição religiosa. Se estivesse aqui hoje, teria<br />

que pregar na rua porque dentro das igrejas não deixariam — falei. — As companhias dele eram<br />

ruins demais pros santos da igreja.<br />

— A gente tem que se encontrar — disse Nilo muito sério.<br />

Quinze dias depois, Nilo, Verinha e os filhos estavam lá em casa para um churrasco.<br />

Conversamos sobre as chacinas da Candelária e de Vigário Geral e outros casos. Depois falamos<br />

de fé e de mudança de vida. E para terminar, a filha de Nilo me perguntou sobre o assunto <strong>do</strong><br />

momento nas telenovelas: espíritos e possessão de demônios. Contei um monte de histórias,<br />

enquanto as crianças, os a<strong>do</strong>lescentes e os adultos ouviam com atenção. Depois demos as mãos e<br />

oramos juntos.<br />

Ali, sem nenhuma liturgia, eu orei abençoan<strong>do</strong> a união de Nilo e Verinha, em nome de Jesus.<br />

No fim de tu<strong>do</strong>, eles foram para casa felizes.<br />

Daquele dia em diante, Nilo e eu nos encontramos pelo menos duas vezes por semana e<br />

conversamos muito sobre Jesus e os evangelhos. Falei-lhe bastante sobre os pressupostos<br />

teológicos da reforma protestante e a centralidade da salvação pela Graça exclusiva de Cristo. Ou<br />

seja: não é o que fazemos ou somos o que nos salva, mas a nossa fé no que Jesus fez por nós o que<br />

faz a diferença.<br />

— Era só isso que faltava pra minha conversão — disse Nilo a uma amiga comum, Lucilia,<br />

após me ver toman<strong>do</strong> gostosamente um copo de vinho. — Só um <strong>pastor</strong> capaz de apreciar um<br />

bom Porto teria autoridade pra me batizar — afirmou brincan<strong>do</strong>, mas talvez falan<strong>do</strong> mais sério <strong>do</strong><br />

que nunca na vida.<br />

— Quan<strong>do</strong> você quiser, meu irmão — respondi ao ouvir sua declaração.<br />

— Deixa passar só um pouquinho mais pra gente encontrar uma hora mais calma — disse<br />

ele. A hora mais calma jamais chegaria.<br />

O Natal de 1993 foi muito especial para mim. Celsinho, meu amigo de primeira juventude, a<br />

quem eu não via desde 1973, estava no Rio fazen<strong>do</strong> uma especialização em oftalmologia.<br />

— Celso, é <strong>Caio</strong>. Quero ver você. Cê num quer vir passar o Natal com minha família? —<br />

perguntei ao telefone, vinte anos depois, para alguém que no passa<strong>do</strong> me fora muito importante.<br />

Quan<strong>do</strong> nos vimos em frente ao Niterói Plaza Shopping, na tarde <strong>do</strong> dia 24 de dezembro,<br />

instintivamente levantamos o braço direito e fizemos com os de<strong>do</strong>s da mão o V de paz e amor com<br />

o qual nos saudáramos centenas de vezes na juventude.<br />

Só que agora eu era <strong>pastor</strong>, estava casa<strong>do</strong>, tinha quatro filhos e pesava cerca de cem quilos.<br />

Ele, por sua vez, estava calvo, se vestia com discrição inconcebível no passa<strong>do</strong> e mostrava um ar de<br />

profunda circunspecção.<br />

Passamos o Natal nos reapresentan<strong>do</strong> um ao outro e às nossas famílias. E a pergunta que<br />

mais nos fizemos foi: “Lembra de...?”<br />

Sim, nós nos lembrávamos de tu<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s.


Capítulo 42<br />

“Sem dúvida o permitiste Senhor apenas para que... começasse já a aprender que<br />

ao julgar outro homem, ninguém deve condenar ninguém levianamente, e com<br />

temerária crueldade.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

O dia 16 de dezembro de 1993 amanheceu com sabor de adrenalina.<br />

— Quem é que o senhor vai batizar?<br />

— O senhor tem certeza de que eles mudaram de vida?<br />

— Mas esses homens são bandi<strong>do</strong>s. Como é que o senhor pode querer convertê-los?<br />

Eram essas as perguntas que choviam sobre mim de toda parte à porta de Bangu I.<br />

— No fim de tu<strong>do</strong> eu falo, gente. Agora vamos nos preparar para os batismos — respondi<br />

com um me<strong>do</strong> dana<strong>do</strong> de que aquele ato fosse virar escândalo nos telejornais <strong>do</strong> dia e nos jornais<br />

<strong>do</strong> dia seguinte.<br />

— Eles vão entrar pelos fun<strong>do</strong>s — disse o administra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> presídio.<br />

Gregório, o Gor<strong>do</strong>, veio na frente de to<strong>do</strong>s, com um sorriso estampa<strong>do</strong> no rosto, de orelha a<br />

orelha, carregan<strong>do</strong> uma Bíblia no peito. Atrás dele vinham outros detentos famosos na cidade.<br />

Tu<strong>do</strong> o que eu sabia sobre Gregório era o que a mídia dizia. Ele era inteligente, fora o maior<br />

ladrão de carros da história <strong>do</strong> Brasil e um <strong>do</strong>s principais estrategistas <strong>do</strong> Coman<strong>do</strong> Vermelho,<br />

considera<strong>do</strong> o mais organiza<strong>do</strong> cartel <strong>do</strong> crime no Brasil. Além disso, Gor<strong>do</strong> era também o gênio<br />

que fugira <strong>do</strong> presídio da Ilha Grande e voltara de helicóptero para pegar o lendário Escadinha, na<br />

época encarcera<strong>do</strong> na ilha e agora preso em Bangu I, na galeria D.<br />

— Washington, cê tem certeza que esse pessoal sabe o que está fazen<strong>do</strong>? — perguntei ao<br />

capelão que estava encarrega<strong>do</strong> daquele ato, referin<strong>do</strong>-me à conscientização <strong>do</strong>s batizan<strong>do</strong>s<br />

quanto à seriedade <strong>do</strong> sacramento <strong>do</strong> batismo.<br />

— Eles sabem sim! — respondeu Washington.<br />

Quan<strong>do</strong> tomei a palavra para pregar naquela manhã em Bangu I, a primeira passagem que me<br />

veio à mente foi a de Jesus morren<strong>do</strong> entre <strong>do</strong>is ladrões.<br />

— A Cruz se ergueu em Bangu I. O monte Calvário era o Bangu I de Jerusalém. Era o lugar<br />

da morte, da execução. Lá era uma morte rápida, mais misericordiosa. Aqui é lenta, disfarçada de<br />

civilidade, mas é morte ainda — falei sem saber que aquelas palavras estavam sen<strong>do</strong><br />

interpretadas por dezenas de policiais como denúncias de natureza política. — Jesus morreu<br />

entre ladrões, mas não os livrou da execução. Ele ofereceu salvação e perdão ao homicida que se<br />

arrependeu ao la<strong>do</strong> dele. Mas, ainda assim, o homem sofreu a execução. Assim, aprende-se que a


conversão nos salva espiritualmente, mas não nos livra de pagar o que devemos aos homens —<br />

afirmei, já perceben<strong>do</strong> as perguntas que me fariam depois.<br />

Após a cerimônia, os repórteres voaram em cima de mim.<br />

— Não. Não estamos en<strong>do</strong>ssan<strong>do</strong> o crime. Estamos, sim, é denuncian<strong>do</strong> o crime. Batismo é<br />

ato de arrependimento. O que estamos fazen<strong>do</strong> é ajudar esse pessoal a dizer que a vida anterior<br />

deles foi um grande equívoco — respondi. — Não. Não estamos dizen<strong>do</strong> que agora a sociedade<br />

tem que per<strong>do</strong>á-los. Só Deus per<strong>do</strong>a peca<strong>do</strong>s. Quem cometeu crimes contra a sociedade deve<br />

pagá-los até o fim. As leis sociais não se baseiam em perdão, mas em justiça. Só as leis de Deus é<br />

que se baseiam em Graça, em perdão. E isso só Deus tem pra dar, pois só Ele conhece o coração<br />

— respondi outra vez.<br />

— Mas não fica fácil demais ficar converti<strong>do</strong> aí dentro? — perguntou-me um repórter.<br />

— Você quer trocar de posição com eles? Tá com inveja deles? — perguntei com ironia,<br />

começan<strong>do</strong> a ficar meio cansa<strong>do</strong> <strong>do</strong> simplismo de algumas perguntas.<br />

Depois que to<strong>do</strong>s haviam saí<strong>do</strong>, eu entrei na galeria C para batizar o Isaías <strong>do</strong> Borel,<br />

traficante temi<strong>do</strong> na cidade, que estava preso e <strong>do</strong>ente, contamina<strong>do</strong> pelo vírus HIV.<br />

— Na frente da mídia, não. Eles vão me sacanear! — dizia ele. Peguei água de um balde e<br />

pedi a ele que se ajoelhasse e confessasse a Deus que era peca<strong>do</strong>r e que estava arrependi<strong>do</strong>.<br />

— Isaías, eu te batizo em Nome <strong>do</strong> Pai, <strong>do</strong> Filho e <strong>do</strong> Espírito Santo para arrependimento e<br />

para perdão de peca<strong>do</strong>s — pronunciei sobre ele. Levantei-o e vi que seus olhos estavam<br />

mareja<strong>do</strong>s. — Leia a Bíblia. Nela você vai aprender a viver — falei a ele, lembran<strong>do</strong> o conselho<br />

que meu pai me dera muitos anos antes e que eu repetira para milhares de pessoas desde então.<br />

Naquela noite, as imagens <strong>do</strong> batismo estavam em todas as redes de televisão. E, no dia<br />

seguinte, os jornais de to<strong>do</strong> o Brasil estampavam aquele ato sacramental. Para minha surpresa, as<br />

matérias beiravam o irônico, mas ao mesmo tempo sempre mostravam o la<strong>do</strong> sério daquele ato.<br />

Ora, uns <strong>do</strong>is meses antes daquilo tu<strong>do</strong> acontecer, Rubem César havia me telefona<strong>do</strong><br />

dizen<strong>do</strong> que a casa da família evangélica da chacina de Vigário Geral estava à venda.<br />

— Eu compro, Rubem. Eu compro — falei excita<strong>do</strong>.<br />

— Eu sei. É isso que eu quero falar. Tem um rapaz lá, teu xará, <strong>Caio</strong> Ferraz, que fala à beça,<br />

mas é um cara superinteressante. É sociólogo, mas nasceu e foi cria<strong>do</strong> na favela. Ele tá<br />

trabalhan<strong>do</strong> lá com os a<strong>do</strong>lescentes <strong>do</strong> lugar. Foi ele que me falou da casa. Eu acho que vocês<br />

podiam se conhecer — falou Rubem com calma, mas achan<strong>do</strong> engraça<strong>do</strong> que eu tivesse logo<br />

pula<strong>do</strong> <strong>do</strong> assento dizen<strong>do</strong> que comprava a casa.<br />

— Diz pra ele que tenho total interesse naquela casa. A Vinde compra, e a gente faz lá a Casa<br />

da Paz — falei pro Rubem assim de chofre.<br />

Dias depois, recebi um telefonema <strong>do</strong> próprio <strong>Caio</strong> Ferraz.<br />

— Pastor, eu sou o <strong>Caio</strong>. A gente precisa conversar — disse-me ele pelo celular, pegan<strong>do</strong>-me<br />

na avenida Brasil, perto de Vigário Geral, quan<strong>do</strong> eu estava voltan<strong>do</strong> de uma pregação numa igreja<br />

evangélica de Bangu.<br />

— Olha, vem ao meu escritório amanhã. Mas traz logo tu<strong>do</strong> sobre a casa. A gente compra e<br />

você faz lá a Casa da Paz — falei com excesso de objetividade.<br />

— É, o Rubem me falou <strong>do</strong> nome. Gostei. Amanhã estarei em Niterói.<br />

Conversamos muito, <strong>Caio</strong>, Rubem e eu. Depois de muito assunto, cheguei à conclusão de<br />

que minha participação na Casa da Paz seria apenas formal.<br />

— Olha, eu compro a propriedade, a casa, o bar da frente etc., mas a Vinde não pode ficar na<br />

administração da casa. Não precisa. Eu fico apenas no conselho. O <strong>Caio</strong> toca sozinho — falei<br />

muito seguro.<br />

— Mas por quê? Vocês podem fazer uma parceria no gerenciamento — sugeriu Rubem.


— Aqui, ó, não me levem a mal, mas é que eu detesto confusão. Onde eu estou com a mão,<br />

ou eu man<strong>do</strong> ou eu só aju<strong>do</strong>. Mas onde eu man<strong>do</strong>, eu man<strong>do</strong>. Esse negócio de ficar sem saber o<br />

que é de quem num negócio não é comigo, não. O <strong>Caio</strong> é uma bombinha de energia social. Ele é<br />

agita<strong>do</strong> e é <strong>do</strong> tipo que vai fazen<strong>do</strong> as coisas. Se ele trabalhasse comigo e agisse assim, não daria<br />

certo. Ele é inadministrável. É melhor ele tocar a coisa e a gente só aconselhar, se der tempo —<br />

falei, enquanto Rubem e <strong>Caio</strong> Ferraz caíam na gargalhada.<br />

Daquele dia em diante, foi assim que aconteceu. Perceben<strong>do</strong> o desconforto de <strong>Caio</strong> Ferraz<br />

com a idéia de que a Casa da Paz pudesse ser vista como um projeto social evangélico,<br />

mantive-me presente, financeiramente falan<strong>do</strong>, mas à distância. Eu queria que ele se sentisse<br />

bem à vontade.<br />

O plano, entretanto, era que no dia 24 de dezembro nós iríamos inaugurar a Casa da Paz <strong>do</strong><br />

jeito que desse. Corremos como pudemos. Pusemos dinheiro lá e também recebemos ajuda da<br />

Caixa Econômica Federal. No dia combina<strong>do</strong> estaríamos prontos para a celebração-denúncia que<br />

ali haveria.<br />

Eu disse a Nilo que a casa da chacina se transformaria em casa da paz. E como ele tinha ti<strong>do</strong><br />

ação mais que firme na tentativa de resolver logo aquele crime pavoroso e no processo, pôde<br />

também ajudar bem de perto a alguns <strong>do</strong>s sobreviventes da matança que eram membros da<br />

família ali sacrificada, e não hesitou em afirmar que no dia 24 ele e Verinha estariam lá.<br />

— Vem pra rua da Relação, na Polícia Civil, que a gente vai de helicóptero pra lá. E de lá<br />

vamos juntos a Bangu I — falou Nilo.<br />

Não durou mais <strong>do</strong> que cinco minutos a viagem <strong>do</strong> heliporto da Polícia Civil até uma pracinha<br />

próxima de Vigário. De lá fomos de carro. Quan<strong>do</strong> íamos inician<strong>do</strong> a subida da passarela Verde<br />

que dá acesso à favela, vi <strong>Caio</strong> Ferraz corren<strong>do</strong> agita<strong>do</strong> em nossa direção e percebi que havia<br />

problema no lugar.<br />

— Assim não dá. Vou declarar Nilo Batista persona non grata em Vigário Geral — foi logo<br />

dizen<strong>do</strong> <strong>Caio</strong>, muito nervoso, sem explicar por que estava falan<strong>do</strong> aquilo.<br />

— Calma. O que está acontecen<strong>do</strong>? — perguntei.<br />

— Ele encheu a favela de ninjas <strong>do</strong> Bope, com metralha<strong>do</strong>ras. Hoje é dia de paz e ele está<br />

estragan<strong>do</strong> a nossa celebração. Se quer participar com a gente, ele tem que tirar essa humilhação<br />

daqui — falou, metralhan<strong>do</strong> em todas as direções mais uma vez.<br />

— Olha, eu vou ver o que está acontecen<strong>do</strong>. Pode ficar tranqüilo que eu não quero prejudicar<br />

a celebração de ninguém. Estou aqui com o <strong>pastor</strong> e a convite dele. Mas constrangimentos eu não<br />

quero causar — disse Nilo em resposta à pergunta de Zuenir Ventura, muito presente na<br />

localidade em razão de estar fazen<strong>do</strong> pesquisa para escrever seu livro Cidade partida, que<br />

indagara se Nilo tinha ciência daquela operação policial tão ostensiva.<br />

Nilo chamou o comandante <strong>do</strong> Bope (Batalhão de Operações Especiais) e pediu que se<br />

retirassem da favela.<br />

— Mas é pra sua proteção que nós estamos aqui — disse o oficial.<br />

— Eu assumo a responsabilidade. Podem ficar de longe. Mas assim desse jeito, tá muito<br />

ostensivo — disse Nilo.<br />

Fomos com aquele batalhão de repórteres até a entrada da Casa da Paz. Preocupa<strong>do</strong> com o<br />

que poderia acontecer e com eventuais constrangimentos que Verinha e Nilo pudessem sofrer, e<br />

já me sentin<strong>do</strong> culpa<strong>do</strong> por tê-los convida<strong>do</strong> para um ambiente que poderia se tornar pesa<strong>do</strong> para<br />

eles, tratei logo de iniciar a celebração.<br />

Josué Rodrigues, Graça e Paz e Vanda Sá cantaram músicas cristãs. <strong>Caio</strong> Ferraz falou e<br />

desceu a lenha em Nilo, que ouviu tu<strong>do</strong> cala<strong>do</strong>. Depois foi a vez <strong>do</strong> presidente da Associação de<br />

Mora<strong>do</strong>res descascar. E mais outro, e mais outro. Cada um tirava uma casquinha da presença <strong>do</strong>


vice-governa<strong>do</strong>r. Alguns dizen<strong>do</strong> coisas interessantes; outros, nem tanto. Perguntei a Nilo se ele<br />

desejava falar alguma coisa. Ele disse que não. Foi aí que tomei a palavra e falei que aquela guarda<br />

estava ali não para proteger Nilo da favela, mas para protegê-lo de alguns maus policiais, <strong>do</strong>s<br />

mesmos que estavam com raiva dele por ter coloca<strong>do</strong> seus companheiros tão rapidamente na<br />

cadeia.<br />

Aí o povo aplaudiu e percebi que era a hora de passar por sobre aquele assunto e entrar na<br />

verdadeira mensagem que ali nos reunira: esperança. Como era Natal, lembrei que no advento de<br />

Cristo também houvera uma chacina: a morte <strong>do</strong>s inocentes.<br />

— Aqui, neste Natal, nós estamos próximos de um <strong>do</strong>s muitos aspectos <strong>do</strong> Natal: a tragédia.<br />

No primeiro Natal, sangue inocente também foi derrama<strong>do</strong>. Mas mesmo assim, a vida continuou.<br />

Aqui em Vigário Geral, apesar de tu<strong>do</strong>, a vida se manifestará vitoriosa. Nós estamos aqui pra dizer<br />

que Herodes pode até matar inocentes, mas nós somos daqueles que sobrevivem ao seu ódio e<br />

encontram o caminho da vida desarmada, e que realizam a paz — eu disse em meio a muitas<br />

outras coisas.<br />

Acabada a cerimônia, saí logo com Alda, Verinha e Nilo. As duas foram de carro para casa.<br />

Nilo e eu fomos de helicóptero para Bangu I. Chegan<strong>do</strong> lá, examinamos juntos to<strong>do</strong>s os sistemas<br />

da prisão: as câmeras de vigilância, as escutas e os fun<strong>do</strong>s falsos de onde cada detento é visto e<br />

ouvi<strong>do</strong>.<br />

— Teoricamente falan<strong>do</strong>, é impossível fugir daqui — comentei com Nilo.<br />

— Isso aqui é uma vergonha. É uma prisão nazista. É coisa <strong>do</strong> Moreira — disse Nilo,<br />

aludin<strong>do</strong> à construção <strong>do</strong> presídio, realizada durante o governo linha-dura de Moreira Franco, no<br />

fim da década de 80.<br />

Entramos e fomos direto para a galeria A. Depois visitamos a B. E então chegamos à C.<br />

Cantávamos com os presos e depois eu pregava uma mensagem de Natal de no máximo dez<br />

minutos. Orávamos juntos e íamos adiante. O problema era que ao final eles se amontoavam<br />

sobre Nilo com toda sorte de reivindicações e queixas sobre o sistema. To<strong>do</strong>s foram ouvi<strong>do</strong>s com<br />

extrema paciência.<br />

Na galeria C, entretanto, o clima foi diferente.<br />

— Olha gente, não é to<strong>do</strong> dia que nós temos um Natal como esse. O Dr. Nilo aqui com a<br />

gente e o nosso reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong>. Vamos aproveitar bem o tempo. Por isso, antes de tu<strong>do</strong> eu quero<br />

passar às mãos de Dr. Nilo as reivindicações <strong>do</strong> nosso grupo. Ele lê em casa, depois. Aqui nós<br />

vamos nos congratular — disse Gregório, o Gor<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong> um envelope às mãos <strong>do</strong><br />

vice-governa<strong>do</strong>r e secretário de Justiça.<br />

Como não perdemos tempo, pude me alongar bem mais em minha pregação na galeria C.<br />

— Vocês já ouviram a fábula <strong>do</strong> elefante e <strong>do</strong> escorpião? Pois bem, havia um elefante que<br />

estava atravessan<strong>do</strong> para o outro la<strong>do</strong> de um rio, quan<strong>do</strong> chegou um escorpião e pediu carona.<br />

“Tá louco? Dou nada”, disse o elefante. “Cê pode me enfiar esse ferrão nas costas.”— Mas o<br />

escorpião perguntou se o elefante não percebia que ele jamais faria aquilo. Afinal, se ele ferrasse o<br />

elefante, morreria afoga<strong>do</strong> junto com ele. Convenci<strong>do</strong> de que o amor à sobrevivência era maior<br />

que o amor ao crime, o elefante deixou o venenoso escorpião subir pelo seu rabo e acomodar-se<br />

em seu lombo. No meio <strong>do</strong> rio, no entanto, o elefante sentiu aquela <strong>do</strong>r aguda lhe penetrar a<br />

carne. “Que foi que você fez, escorpião? Assim eu morro e você morre também”, falou o<br />

agonizante elefante. “Desculpe, eu não resisti. Ferrar é minha natureza”, falou o escorpião,<br />

afundan<strong>do</strong> junto com o elefante — contei-lhes. — Muitos de vocês têm dito a mesma coisa: que<br />

vocês estão aqui porque essa é a natureza de vocês. E é mesmo. A natureza humana, de um mo<strong>do</strong><br />

geral, é cheia de perversidade e de autodestruição. Eu sou assim. A diferença é que vocês foram<br />

pegos, e eu não. É assim porque muitas vezes a gente faz aquilo que nos mata. Mas Jesus veio ao


mun<strong>do</strong> pra tirar essa natureza de escorpião da gente e nos dar uma natureza de paz e vida. Mas<br />

esse milagre só o Espírito Santo opera. Isso não existe em nós. Tem que vir de Deus, e só vem<br />

quan<strong>do</strong> deixamos o Espírito de Cristo crescer em nós — falei com a certeza de quem conhecia<br />

tanto a natureza humana quanto a graça regenera<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> evangelho.<br />

Enquanto pregava, vi claramente que todas aquelas mensagens caíam fun<strong>do</strong> no coração de<br />

Nilo. Ele se emocionou várias vezes na medida em que caminhávamos de galeria em galeria. Ali,<br />

bem diante <strong>do</strong>s meus olhos, o homem estrategicamente mais importante <strong>do</strong> governo de Leonel<br />

Brizola estava amolecen<strong>do</strong> seu coração para Deus.<br />

— Aqui, Dr. Nilo, de homem pra homem. Me tira daqui que eu num vou nunca voltar pro<br />

crime — disse Gregório, vividamente emociona<strong>do</strong>, apontan<strong>do</strong> para sua filhinha que se enroscava<br />

entre as pernas dele.<br />

“Senti que ele nunca falou tão sério na vida. Creio que o Gor<strong>do</strong> não está brincan<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong><br />

eu deixar a minha posição atual, vou dar uma força a ele como advoga<strong>do</strong>”, disse Nilo, promessa<br />

que cumpriu em março de 1995, três meses depois de deixar o governo, quan<strong>do</strong>, em minha<br />

companhia, visitou o juiz da Vara de Execuções, Dr. Leomil, a fim de se inteirar da situação <strong>do</strong><br />

Gregório e sugerir caminhos legais que pudessem ajudá-lo.<br />

Passamos o resto <strong>do</strong> dia 25 em presídios. Ainda de helicóptero, voamos de Bangu I para o<br />

complexo penitenciário da rua Frei Caneca, onde nossas famílias já nos aguardavam para um<br />

almoço com os detentos. No dia seguinte, alguns jornais fizeram pouco-caso <strong>do</strong> vice-governa<strong>do</strong>r<br />

ter decidi<strong>do</strong> passar o dia entre os presos. Eu, entretanto, achei que aquele era um <strong>do</strong>s lugares<br />

onde to<strong>do</strong>s os governantes deveriam passar o Natal, pois numa cidade como o Rio de Janeiro a<br />

penitenciária é um lugar de muito poder e, portanto, precisa ser estrategicamente entendi<strong>do</strong>.<br />

Não que lá haja a força <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> crime organiza<strong>do</strong>. O poder que opera ali é o de inspirar<br />

milhares de pessoas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora, nas favelas, a pensarem em muitos daqueles prisioneiros não<br />

como criminosos atrás das grades, mas como exila<strong>do</strong>s políticos. É daí que vem o poder de muitos<br />

deles. Para mim, foi chocante descobrir, à medida que conversava com os detentos de Bangu I,<br />

que a tal organização chamada de Coman<strong>do</strong> Vermelho nada mais era que uma grife, uma espécie<br />

de fraternidade criminal, que funcionava muito mais como uma filosofia de gerenciamento de<br />

presídio <strong>do</strong> que como uma estrutura criminosa em operação <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora.<br />

Para terminar aquele estranho ano, ainda me aventurei à criação de mais um evento: A<br />

Guerra da Paz, uma vez que o recém-cria<strong>do</strong> movimento Viva Rio queria terminar o ano com uma<br />

grande celebração fraterna no Aterro <strong>do</strong> Flamengo. Como parte de tu<strong>do</strong> aquilo, nos mobilizamos<br />

como pudemos, mesmo sem tempo. O show foi lin<strong>do</strong>, mas foi um fiasco de público. Na<br />

concentração <strong>do</strong>s evangélicos havia apenas umas oito mil pessoas e ao evento <strong>do</strong> Viva Rio não<br />

compareceram mais <strong>do</strong> que umas cinco mil pessoas.<br />

Eu, entretanto, estava mais que feliz. Enfim, pela Graça de Deus, nós, os evangélicos,<br />

estávamos deixan<strong>do</strong> de ser vistos como um ban<strong>do</strong> de reacionários religiosos e estávamos<br />

passan<strong>do</strong> a ser percebi<strong>do</strong>s como um segmento que participava da vida da cidade. E isso, para<br />

mim, era um sonho de muitos anos. O que eu não sabia era que haveria um altíssimo preço a<br />

pagar. Isso, entretanto, era parte de minha ingenuidade <strong>pastor</strong>al e de minha ignorância em<br />

relação às forças que se movem perversamente nos intestinos das elites enciumadas.


Capítulo 43<br />

“Encontrei Alípio em Roma, onde se uniu a mim com estreito vínculo de<br />

amizade... Também ficou provada sua integridade não só contra os atrativos da<br />

cobiça, mas também contra o aguilhão <strong>do</strong> me<strong>do</strong>.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

O movimento Viva Rio foi cria<strong>do</strong> no segun<strong>do</strong> semestre de 1993 com a finalidade declarada<br />

de ser um agente social aberto, suprapartidário e cidadão. No início, ajudei a iniciativa apenas<br />

porque me pareceu interessante e, sobretu<strong>do</strong>, por causa de minha amizade com Rubem César<br />

Fernandes, um <strong>do</strong>s idealiza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> projeto, mas foi somente em 1994 que me tornei mais<br />

próximo da coordenação <strong>do</strong> movimento.<br />

Como de costume, passei o mês de janeiro fora <strong>do</strong> Brasil, nas montanhas de Connecticut, nos<br />

Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, onde Rose, irmã de Alda, mora com o mari<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> retornei em fevereiro,<br />

Alípio Gusmão informou-me que poderíamos nos encontrar com seus sócios judeus e a diretoria<br />

da empresa nos próximos dias, a fim de conversarmos sobre a fábrica de Acari.<br />

O sonho — profecia <strong>do</strong> homem desconheci<strong>do</strong> — estava se cumprin<strong>do</strong>. Afinal, ele dissera:<br />

“Antes de fevereiro o senhor vai estar em volta de uma mesa com alguns judeus.” Assim, fui a São<br />

Paulo para a reunião da esperança!<br />

Além de Alípio e eu, estavam presentes à reunião <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s sócios judeus, Salo Seibel e seu<br />

irmão Hélio; além de João, irmão de Alípio; Kalil, o advoga<strong>do</strong>, e outras pessoas que eu não<br />

conhecia.<br />

— Bom gente, eu convidei o <strong>pastor</strong> aqui porque ele tem uma proposta a nos fazer — disse<br />

Alípio, passan<strong>do</strong>-me a palavra.<br />

— Eu conheci a fábrica que vocês têm em Acari e constatei que está situada num lugar ideal<br />

para se transformar no maior projeto social não-governamental <strong>do</strong> Brasil — falei e fui<br />

distribuin<strong>do</strong> cópias <strong>do</strong> projeto que minha amiga Dilma D’Avila havia prepara<strong>do</strong>, com gráficos da<br />

população, faixas etárias, necessidades, oferta de escolas, déficit educacional, número de<br />

empresas na região, e quantidade de desemprega<strong>do</strong>s etc. — São 18 favelas em volta e um <strong>do</strong>s<br />

tráficos de drogas mais bem arma<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rio. Dá para transformar a fábrica numa cidade de<br />

refúgio. Já ouviram falar em cidade de refúgio? — perguntei olhan<strong>do</strong> para o Dr. Salo.<br />

— Não, o que é isso? — ele indagou.<br />

— É uma idéia social que um <strong>do</strong>s patrícios <strong>do</strong> senhor desenvolveu. É um lugar para onde<br />

fogem to<strong>do</strong>s os que derramaram sangue involuntariamente, os que estão sob a ameaça <strong>do</strong><br />

vinga<strong>do</strong>r, e to<strong>do</strong>s os que praticaram pequenos crimes, mas que querem uma chance de


ecomeçar na vida — falei como se aquilo tu<strong>do</strong> fosse óbvio.<br />

— Quem foi o judeu que desenvolveu esse conceito? — perguntou mais uma vez Dr. Salo.<br />

— Moisés. O Moisés <strong>do</strong> Êxo<strong>do</strong>. Foi ele. Está num <strong>do</strong>s livros <strong>do</strong> Pentateuco, no Velho<br />

Testamento — mencionei a referência bíblica.<br />

Eles riram gostosamente e me motivaram a continuar. Expliquei tu<strong>do</strong>. Seria um projeto com<br />

muitas facetas. Ao to<strong>do</strong>, cerca de setenta programas sociais existiriam ali.<br />

— O senhor quer o prédio que pegou fogo? — indagou Salo outra vez.<br />

— Não senhor. Aquele ali é bom, mas ainda é pequeno — respondi.<br />

— Mas são cerca de sete mil metros quadra<strong>do</strong>s — ele esclareceu.<br />

— Eu sei, por isso mesmo é que digo que é pequeno. Se o senhor não se ofender, eu quero<br />

mesmo é a coisa toda, com os 17 galpões — falei como quem estava pedin<strong>do</strong> um pirulito.<br />

— O senhor é engraça<strong>do</strong>, <strong>pastor</strong>. Vem aqui e nos pede uma fortuna como se fosse nada —<br />

falou Hélio Seibel.<br />

To<strong>do</strong>s rimos muito. Então contei a história de quatro leprosos judeus que tinham vivi<strong>do</strong> nos<br />

dias <strong>do</strong> profeta Eliseu, há cerca de três mil anos.<br />

— Eles estavam morren<strong>do</strong> de fome. A cidade em que viviam estava sitiada pelos inimigos.<br />

Como não tinham comida, pensaram: “Vamos pedir comida ao inimigo. Se nos matarem, nós<br />

morreremos. Afinal, aqui senta<strong>do</strong>s é que nós vamos morrer de qualquer jeito. Mas se nos derem<br />

alguma coisa, nós viveremos.” E foram. Quan<strong>do</strong> chegaram lá, encontraram o acampamento<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, pois um anjo <strong>do</strong> Senhor assustara os inimigos, que haviam fugi<strong>do</strong>. Assim, os quatro<br />

leprosos comeram até se fartar e depois foram chamar a cidade para se alimentar. Aqui, eu sou<br />

como aqueles quatro leprosos. Pior <strong>do</strong> que está, não pode ficar. Eu só tenho uma chance aqui:<br />

ganhar. Estou encurrala<strong>do</strong> na possibilidade de ser bem-sucedi<strong>do</strong>. Perder eu não posso. Perder o<br />

quê? O que eu não tenho? — finalizei.<br />

Rimos de novo.<br />

— E como é que o senhor pensa em manter aquela fábrica? Olha, o senhor sabe quanto custa<br />

manter a porta aberta lá? — perguntou-me Salo.<br />

— Bem, o Alípio me disse que custa uns trinta mil dólares só pro básico. Mas se o senhor<br />

quiser nos ajudar financeiramente, eu também aceito — disse brincan<strong>do</strong>, mas no fun<strong>do</strong> falan<strong>do</strong><br />

sério.<br />

— Olha aqui, <strong>pastor</strong>, com to<strong>do</strong> respeito. O senhor é o maior cara-de-pau que já conheci. O<br />

senhor vem aqui me pedir uma fábrica que vale milhões de dólares e ainda me pede dinheiro? —<br />

disse ele, também se divertin<strong>do</strong>. — Agora, falan<strong>do</strong> sério. Como é que o senhor pensa em<br />

sustentar a fábrica e depois o projeto to<strong>do</strong>? Serão milhões de dólares.<br />

Eu vi a parede envidraçada que corria paralela a boa parte da sala de reuniões e fiquei olhan<strong>do</strong><br />

a linha <strong>do</strong> horizonte. Então meus olhos se encheram de lágrimas e o peito de fogo.<br />

— O senhor vê a linha <strong>do</strong> horizonte e tu<strong>do</strong> o que está aí embaixo, para além <strong>do</strong> vidro? Onde<br />

seus olhos alcançarem, podem olhar. É tu<strong>do</strong> propriedade de meu Parceiro. Ele cuida de mim há<br />

muito tempo. Eu só estou aqui porque Ele está prometen<strong>do</strong> que vai caminhar comigo pelo<br />

caminho. É Nele que eu confio. Tenho muitos amigos, contatos, relacionamentos e sei vender<br />

idéias. Mas é no meu Parceiro que eu confio — disse com fé.<br />

O ambiente ficou silencioso! Convidaram-me para almoçar, mas declinei, visto que tinha de<br />

sair dali para o aeroporto, pois ainda ia pregar numa outra cidade naquela noite.<br />

— É nossa. É nossa. Aleluia! — vibrava Alípio, no dia seguinte, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha, como<br />

se a fábrica jamais tivesse si<strong>do</strong> dele. — Vamos preparar os <strong>do</strong>cumentos agora. Como é que<br />

faremos isso? — disse com extrema felicidade.


— Pode mandar preparar o contrato de comodato que eu assino. As condições, seu advoga<strong>do</strong><br />

pode estabelecer que eu aceito — falei.<br />

Alípio e os irmãos Seibel não apenas nos entregaram a propriedade num comodato sem custo<br />

para nós, como ainda se dispuseram a reconstruir o prédio central, que fora to<strong>do</strong> destruí<strong>do</strong> pelo<br />

fogo. Puseram to<strong>do</strong> o seguro <strong>do</strong> incêndio na reconstrução da estrutura, e Alípio ainda tirou <strong>do</strong><br />

próprio bolso e investiu na complementação da obra. Ao to<strong>do</strong>, foram gastos um milhão e<br />

oitocentos mil dólares.<br />

Um milagre!<br />

Para aquele primeiro momento de assentamento das bases da cidade de refúgio, eu precisava<br />

de uma pessoa de confiança. Por isso, chamei Lídia Mello, que já trabalhara comigo durante<br />

cerca de oito anos e agora estava de volta à Vinde.<br />

A notícia de que eu havia ganha<strong>do</strong> a Formiplac de presente espalhou-se como um incêndio<br />

em depósito de pólvora. A mídia correu em cima. To<strong>do</strong>s queriam saber o que faríamos ali.<br />

“Cidade de refúgio é um bom conceito, mas não é um bom nome. Isso aqui não é uma cidade.<br />

É uma fábrica, pensei.” Fui para a esquina lateral da fábrica, de onde ainda se podia ver as letras<br />

de aço escova<strong>do</strong> com o nome Formiplac, e fiquei contan<strong>do</strong> as letras. “Qualquer que seja o nome,<br />

é bom que se utilizem letras já existentes. Nessa dureza que nós estamos não podemos gastar<br />

dinheiro à toa”, ponderei outra vez. “Como isso aqui é uma fábrica e nós vamos criar melhores<br />

condições de vida para as pessoas, e consideran<strong>do</strong> as letras de aço de Formiplac, podemos<br />

chamar o empreendimento de Fábrica de Esperança” — concluí sozinho, em pé na esquina da<br />

favela de Acari.<br />

— Olha, o nome que vamos usar é Fábrica de Esperança — falei aos que trabalhavam<br />

comigo.<br />

— Mas não era bom a gente fazer um brainstorm — sugeriu alguém.<br />

— Desculpem, mas agora é a hora de meu <strong>do</strong>ce despotismo se manifestar. O assunto não<br />

está mais aberto para discussão. Já registrei o nome no banco de logos e patentes de meu coração.<br />

Não tem mais volta — falei e tomei todas as providências para que nosso empreendimento social<br />

fosse conheci<strong>do</strong> com aquele nome.<br />

Os meses seguintes foram de muitas visitas a presidentes de multinacionais, a fim de<br />

convencê-los a entrar no projeto da Fábrica de Esperança conosco. A Xerox foi a primeira a<br />

aderir, e com o capital moral que ela nos “emprestou”, aju<strong>do</strong>u-nos imensamente a atrair outros<br />

parceiros.<br />

Minha agenda pessoal, no entanto, estava mais louca <strong>do</strong> que nunca. Continuava viajan<strong>do</strong> para<br />

pregar em to<strong>do</strong> o Brasil semanalmente, dirigia empreendimentos que cresciam, presidia<br />

entidades que demandavam tempo para articulações diversas, estava mais que envolvi<strong>do</strong> nos<br />

assuntos de natureza social da cidade, despendia tempo com as várias situações que a amizade<br />

<strong>pastor</strong>al com Nilo foram também crian<strong>do</strong> e, ainda, de quebra, me comprometera a visitar Bangu I<br />

pelo menos uma vez a cada 15 dias.


Capítulo 44<br />

“Quan<strong>do</strong> Deus manda algo contra os costumes ou pactos, sejam eles quais forem,<br />

deve ser obedeci<strong>do</strong>, embora o que mande nunca tenha si<strong>do</strong> feito antes; e se se<br />

deixou de fazer, deve ser restaura<strong>do</strong>, e se não estava estabeleci<strong>do</strong>, deve ser<br />

estabeleci<strong>do</strong>.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Parazão não conversa. Parazão mata, era o que dizia a placa que o Jornal Nacional<br />

mostrou pendurada na frente de uma grade de ferro.<br />

Parazão era um traficante que lutava pelo <strong>do</strong>mínio da favela de Acari, então sob o controle de<br />

Jorge Luís. E pior: a placa estava sobre treze corpos aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s em frente à Fábrica de<br />

Esperança.<br />

— Você viu? É lá na frente da fábrica — disse Alda, desvian<strong>do</strong> o olhar da televisão e me<br />

olhan<strong>do</strong> assustada.<br />

— Meu Deus, onde é que nós fomos nos meter? Mas como você disse, não tem mais volta —<br />

falei para minha esposa.<br />

Como estava profundamente dedica<strong>do</strong> à evangelização <strong>do</strong>s presos de Bangu I, e como lá<br />

dentro conhecera pessoas que <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora tinham fama pior <strong>do</strong> que o tal Parazão, preferi<br />

pensar que talvez por trás daquele bicho houvesse um homem, e assim prossegui sem me<strong>do</strong>.<br />

As idas ao presídio de segurança máxima eram incríveis sob to<strong>do</strong>s os aspectos. Primeiro,<br />

porque ali cheguei mais perto <strong>do</strong> que nunca da ambigüidade humana; tanto a minha quanto a <strong>do</strong>s<br />

outros. Conhecer um criminoso temi<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s e de repente perceber a humanidade dele mais<br />

que viva foi algo esmaga<strong>do</strong>r para mim. Não podia mais tratar aquelas pessoas, e ninguém mais<br />

dali para a frente, apenas como caricaturas de jornal.<br />

No início, eu achava que lá havia apenas bandi<strong>do</strong>s manti<strong>do</strong>s atrás das grades. Depois é que vi<br />

que havia gente nas celas de Bangu I. E tais pessoas, antes de estarem presas dentro <strong>do</strong>s cárceres<br />

de cimento, estavam confinadas dentro de seus próprios corpos, os quais, às vezes, estavam<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s por monstros ou apenas por fantasmas de um momento, que fizeram vítimas de tempos<br />

e circunstâncias históricas, feitas crônicas. Mas foi só depois de constatar a prisão <strong>do</strong>s corpos que<br />

percebi a prisão nos corpos. E isso me liberou para visitar não apenas o presídio, mas a prisão<br />

mais profunda, onde aqueles espíritos humanos se encontravam.<br />

A experiência ali também me revelou o poder enorme que a mídia tem de estabelecer a<br />

existência referencial de certos monstros, cuja existência passa a ser uma necessidade social. O<br />

Rio não tem como viver sem a presença histórica daqueles bichos. Eles são fundamentais quanto


a afirmarem a bondade <strong>do</strong> carioca, cuja sociedade estaria como está, não por causa de milhares<br />

de desencontros coletivos, mas em razão da existência de apenas alguns seres perversos, que<br />

destroem as esperanças coletivas e a boa intenção <strong>do</strong>s governantes e das elites. As elites soltas<br />

precisam criar elites presas, a fim de maquiarem a realidade coletiva. É mais simples e mais<br />

barato. Por isso, passei a ver Bangu I como um lugar que ocupava um papel de natureza<br />

psicopolítico-religiosa. Não tinha o poder de redimir a sociedade <strong>do</strong>s seus peca<strong>do</strong>s, mas dava a ela<br />

certeza de onde poder encontrá-los e explicá-los.<br />

Ali também pude perceber que o poder que aqueles homens presos exercem <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora é<br />

exatamente proporcional ao poder que aqueles que, estan<strong>do</strong> fora, com força para governar<br />

legitimamente, deixam de exercer para o bem comum. Ou seja: eles não tinham poder. Eles eram<br />

ungi<strong>do</strong>s pela omissão das forças constituídas e pela sua incapacidade de agir consistentemente a<br />

favor <strong>do</strong>s desgraça<strong>do</strong>s deste mun<strong>do</strong>.<br />

Além disso, constatei a conexão que havia entre aquelas criaturas e o poder constituí<strong>do</strong>. Ali<br />

dentro podiam-se ouvir histórias incríveis de como, em outros tempos, governantes se serviram<br />

politicamente da ajuda de alguns deles e <strong>do</strong> quanto seus vínculos <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora atingiam pessoas<br />

aparentemente acima de qualquer suspeita. Havia quem afirmasse ter ti<strong>do</strong> até caso com grandes<br />

mandatários <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> político. Algumas das histórias que ouvi eram claramente fantasiosas.<br />

Outras, todavia, tinham to<strong>do</strong>s os contornos e detalhes da verdade. Depois de ouvi-las, às vezes<br />

não podia <strong>do</strong>rmir à noite.<br />

Até março de 1994 eu pregava em todas as galerias de Bangu I, menos na D, onde estavam<br />

Escadinha, Japonês, Paulo Maluco, Adão de Vigário e outros.<br />

— Hoje eu vou lá — disse assim que botei os pés no presídio naquela tarde.<br />

— Cuida<strong>do</strong>, que a barra aí é pesada — disse o agente carcerário que estava abrin<strong>do</strong> as três<br />

portas de barras de ferro que dão acesso ao interior de cada galeria.<br />

Bati palmas e pedi um pouquinho de atenção. Paulo Maluco, irmão de Escadinha, gritava<br />

num <strong>do</strong>s cantos.<br />

— Eu quero é o diabo. Eu odeio Deus — dizia aos berros.<br />

Pastor Washington e outro rapaz iniciaram os cânticos. Apenas uns seis <strong>do</strong>s <strong>do</strong>ze homens que<br />

ali estavam vieram para junto de nós.<br />

— Gente, quero contar uma história sobre um homem que dava pinote de todas as prisões. É<br />

sobre um cara que abria todas as cadeias e fugia — eu disse com um sorriso sério na face.<br />

— Essa história eu tô precisan<strong>do</strong> ouvir — disse Escadinha, enquanto os outros davam uma<br />

gargalhada coletiva.<br />

O grupo aumentou substancialmente. Apenas Paulo Maluco continuou distante, gritan<strong>do</strong><br />

suas provocativas invocações ao diabo.<br />

— Havia um homem que morava numa cidade chamada Geresa. Ele era o Geraseno. Um dia,<br />

aquele homem se percebeu cheio de vontades ruins dentro dele. No início, ele apenas notava<br />

aqueles desejos. Depois, os desejos cresceram tanto, que o <strong>do</strong>minaram. Então, ele ficou possuí<strong>do</strong><br />

pelos desejos. Eram mais de <strong>do</strong>is mil desejos que possuíam o homem a só um tempo. Cada um o<br />

impulsionava numa direção. A força <strong>do</strong> homem era tão grande, que ele quebrava as correntes que<br />

nele eram postas, arrebentava todas a grades das prisões e fugia de qualquer cadeia — falei.<br />

— Iiiii cara! O bicho era muito <strong>do</strong>i<strong>do</strong> — alguém falou rin<strong>do</strong>.<br />

— Traz um desses pra cá, reveren<strong>do</strong>! — falou outro. Outra gargalhada.<br />

— Jesus atravessou o mar da Galiléia e foi até Geresa libertar o homem da tirania <strong>do</strong>s desejos<br />

<strong>do</strong> mal. “Saiam dele, espíritos imun<strong>do</strong>s”, disse Jesus quan<strong>do</strong> viu o homem <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is mil desejos<br />

ruins. “Não mande a gente pro abismo”, disseram os desejos <strong>do</strong> inferno. “Como é o nome de<br />

vocês”, indagou Jesus. “Nosso nome é Legião”, falaram os espíritos.


— Eu não quero Deus. Eu quero é o diabo. Meu Deus é dólar no bolso — gritou mais uma<br />

vez Paulo Maluco, interrompen<strong>do</strong> minha história. Escadinha e Japonês olharam para ele com<br />

firmeza. Escadinha fez um gesto com a mão mandan<strong>do</strong> ele se calar, e Maluco sossegou na hora.<br />

— Os demônios saíram <strong>do</strong> homem e entraram nos porcos que estavam ali. Então, os <strong>do</strong>is mil<br />

porcos se jogaram de um abismo e morreram afoga<strong>do</strong>s no lago de Genezaré — falei, enquanto<br />

eles e o carcereiro, que mostrava apenas a metade <strong>do</strong> rosto atrás da porta, me fitavam sem piscar.<br />

— Os demônios saíram <strong>do</strong> homem e ele ficou senta<strong>do</strong> aos pés de Jesus, em perfeita paz —<br />

concluí.<br />

— É, cara, tem muita coisa ruim no ar — falou um deles.<br />

— Mas o que quero falar aqui é o seguinte, gente. Jesus libertou esse homem de <strong>do</strong>is<br />

poderes. O primeiro foi o poder <strong>do</strong>s demônios, <strong>do</strong>s desejos invisíveis <strong>do</strong> mal. Esse poder é fácil de<br />

sair. “Sai dele”, a gente diz, e ele sai, porque o nome de Cristo tem poder sobre as forças<br />

invisíveis da maldade. O difícil é a libertação de um outro poder — falei.<br />

— E que outro poder é esse? — perguntou Japonês, sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> silêncio e entran<strong>do</strong> na<br />

conversa como quem não quer nada.<br />

— Ora, o nome da cidade <strong>do</strong> homem era Geresa. Esse nome vem de uma palavra hebraica<br />

que significa “o expulso” ou “o possuí<strong>do</strong>”. Então, até a cidade estava possuída pela “idéia da<br />

possessão”. Durante mais de trezentos anos eles tinham si<strong>do</strong> possuí<strong>do</strong>s por exércitos de<br />

inimigos. Naquela época, os romanos e suas legiões estavam lá. Por isso os demônios disseram a<br />

Jesus que o nome deles era Legião — falei fazen<strong>do</strong> uma pausa para me certificar de que estavam<br />

me entenden<strong>do</strong>.<br />

— Que barato, cara. Que barato! — disse Escadinha.<br />

— Mas olha, alguém aqui acredita que seja possível construir uma corrente que nenhum ser<br />

humano possa quebrar ou fazer uma cadeia que ninguém possa arrebentar? — indaguei.<br />

— É claro. Tem corrente tão forte que nem com o diabo no couro a gente consegue quebrar<br />

— alguém comentou e os outros riam.<br />

— É isso aí. O limite de um demônio num corpo é o próprio corpo. Se eu fizer mais força<br />

com meu braço <strong>do</strong> que o meu osso agüenta, o braço quebra — falei.<br />

— Mas e daí? O que o senhor tá queren<strong>do</strong> dizer? — indagou Adão.<br />

— O que eu estou dizen<strong>do</strong> é que se aquele homem quebrava tu<strong>do</strong> e fugia sempre, era porque<br />

o pessoal da cidade queria que ele fizesse aquilo. Caso contrário, fariam uma prisão da qual o<br />

homem jamais fugiria — afirmei.<br />

— E como é que o senhor sabe que eles não queriam que o cara ficasse preso? — indagaram.<br />

— Quan<strong>do</strong> Jesus libertou o homem, os mora<strong>do</strong>res da cidade foram ver o que estava<br />

acontecen<strong>do</strong> e não gostaram de ver o homem livre, são. Então, pediram a Jesus pra ir embora de<br />

lá. Dá pra entender um negócio desses? — perguntei.<br />

— Que é isso, bicho? Que negócio maluco — falaram entreolhan<strong>do</strong>-se.<br />

— Pois é, mas aconteceu. E sabem por quê? Porque a cidade precisa de seus malucos. Ela<br />

precisa <strong>do</strong> Escadinha para se sentir melhor. Precisa <strong>do</strong> Japonês pra se sentir mais humana. O Rio<br />

precisa <strong>do</strong>s “desencontros” de vocês pra ficar com a sensação de ser um lugar de gente<br />

equilibrada. Vocês são tão malucos e fazem coisas tão incríveis, que acabam sen<strong>do</strong> úteis aos<br />

demais. Perto de vocês, to<strong>do</strong>s os loucos se sentem sãos e to<strong>do</strong>s os malandros se sentem honestos<br />

— falei sem certeza de que estava sen<strong>do</strong> entendi<strong>do</strong>. — E mais: como os crimes de vocês são<br />

crimes <strong>do</strong>s pobres, vocês servem para fazer com que o banditismo <strong>do</strong> rico se torne civiliza<strong>do</strong>,<br />

entenderam? — acrescentei.<br />

— É isso aí. Os caras não querem que a gente se recupere, não. Quan<strong>do</strong> a gente fala em<br />

regeneração, eles brincam com a gente. Num dá pra entender. O que eles querem? Que a gente


morra bandi<strong>do</strong>? — perguntou Escadinha, chegan<strong>do</strong> exatamente onde eu queria que to<strong>do</strong>s<br />

chegassem.<br />

— Das forças <strong>do</strong>s desejos malignos, Jesus liberta vocês. Mas das forças <strong>do</strong>s desejos loucos da<br />

sociedade, só vocês mesmos podem se libertar. E vocês se libertarão disso quan<strong>do</strong>, em vez de<br />

fugirem de cadeias e quebrarem correntes, vocês se assentarem aos pés de Jesus. Se vocês<br />

começarem a buscar sanidade andan<strong>do</strong> com Jesus, o Rio vai entrar em crise. E essa crise será<br />

boa, pois obrigará os cariocas a ficarem cara a cara com suas próprias loucuras e culpas. Afinal,<br />

vocês já não estarão aí pra carregar as sombras, as loucuras e as feiúras de to<strong>do</strong>s — acrescentei<br />

com força.<br />

— É, a culpa é <strong>do</strong>s caras e eles querem jogar na gente — disse um deles.<br />

— Não! A culpa é de vocês. Ou vocês estão aqui de graça? Ninguém aqui aprontou à beça pra<br />

estar aqui? É claro que sim. O que eu estou dizen<strong>do</strong> é que, além da culpa de vocês, que existe e é<br />

real, vocês também estão carregan<strong>do</strong> uma culpa coletiva, que é de muitos — afirmei com me<strong>do</strong><br />

que alguém ali achasse que eu estava alisan<strong>do</strong> a cabeça deles. Afinal, eu sabia que estava sen<strong>do</strong><br />

ouvi<strong>do</strong> e grava<strong>do</strong>.<br />

— Tá na hora, reveren<strong>do</strong> — falou o carcereiro mostran<strong>do</strong>-me o relógio.<br />

— Tá ce<strong>do</strong>, gente boa — eles responderam quase em coro.<br />

— O senhor volta quan<strong>do</strong>? — indagou Escadinha.<br />

— Semana que vem — respondi.<br />

— Aí ó, posso dá um abraço no senhor, reveren<strong>do</strong>? — indagou o famoso José Carlos <strong>do</strong>s Reis<br />

Encina.<br />

— Claro — consenti. Ele me abraçou com extrema ternura.<br />

Depois veio o Japonês. Não pediu para abraçar. Apenas abraçou com os músculos <strong>do</strong> peito<br />

retesa<strong>do</strong>s como uma tábua. Em seguida, olhou-me profundamente os olhos.<br />

— O senhor é gente boa. Vem aqui com a gente sempre, certo? — disse.<br />

Um a um, to<strong>do</strong>s fizeram questão de me abraçar.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, num leva a mal o meu irmão, não. Ele é ruim da cabeça — falou Escadinha, se<br />

desculpan<strong>do</strong> pelas provocações de Paulo Maluco.<br />

— Fica tranqüilo. Eu tô acostuma<strong>do</strong> — falei e desapareci no labirinto de corre<strong>do</strong>res,<br />

enquanto ouvia o bater forte das portas de ferro que iam sen<strong>do</strong> irremediavelmente trancadas<br />

atrás de mim.<br />

Durante to<strong>do</strong> o ano de 1994 visitei aqueles homens quase todas as semanas. Ouvi suas<br />

histórias e contei-lhes histórias <strong>do</strong> evangelho. Orei com eles e ouvi sobre suas memórias de<br />

arrependimento. Para mim, eles deixaram de ser apenas bandi<strong>do</strong>s e passaram também a ter<br />

nome e humanidade. Alguns, eu sabia, estavam buscan<strong>do</strong> cura para a vida. Outros me recebiam<br />

bem apenas porque não havia razão para me receber mal. Eu, entretanto, perdi completamente<br />

qualquer temor deles.<br />

Depois de muitas visitas e muitas orações, tive a suprema declaração de sua simpatia para<br />

comigo.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, eu não tenho nada além de muita coragem. Se alguma vez na vida o senhor<br />

precisar de um homem pra oferecer o peito pra levar uma bala pelo senhor, é só me chamar. Pelo<br />

senhor, eu morreria com prazer — disse Japonês numa das muitas vezes em que me despedi<br />

deles naquelas tardes de quinta-feira.


Capítulo 45<br />

“Não obstante isto, o menor de Teus Apóstolos, por cuja boca pronunciaste essas<br />

palavras, quan<strong>do</strong> suas armas venceram o orgulho <strong>do</strong> procônsul Sérgio Paulo,<br />

quan<strong>do</strong>, sujeitan<strong>do</strong>-o ao leve jugo de Teu Cristo, elas fizeram dele um súdito <strong>do</strong><br />

grande Rei.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Na véspera da posse de Nilo Batista como governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, o jornal O<br />

Globo amanheceu com uma matéria devasta<strong>do</strong>ra. A fortaleza <strong>do</strong> banqueiro <strong>do</strong> bicho Castor de<br />

Andrade havia si<strong>do</strong> estourada, e lá haviam encontra<strong>do</strong> uma lista com nomes de pessoas<br />

importantes <strong>do</strong> cenário político carioca. Na tal lista havia as iniciais N.B., que foram<br />

imediatamente interpretadas como sen<strong>do</strong> as de Nilo Batista. No mesmo caderno de anotações<br />

havia valores que, presumivelmente, corresponderiam a investimentos <strong>do</strong> banqueiro em<br />

campanhas políticas.<br />

— Verinha, tá tu<strong>do</strong> bem? — perguntei à esposa de Nilo ao telefone.<br />

— Que nada. Que barra-pesada, <strong>Caio</strong>. Esse pessoal é mau. Querem destruir a gente. Você<br />

quer falar com o Nilo? Ele tá no telefone vermelho com o governa<strong>do</strong>r. Ele te liga em cinco<br />

minutos — falou Verinha com a voz agitada, como era de se esperar.<br />

Não demorou nem cinco minutos e Nilo me ligou de volta.<br />

— Olha, eu te conto tu<strong>do</strong> depois. Mas é suficiente apenas dizer que não é nada disso. Estão<br />

queren<strong>do</strong> me incriminar e sujar meu nome. Faço questão de lhe contar tu<strong>do</strong> com calma — Nilo<br />

falou com sinceridade na voz.<br />

— Olha, eu não preciso saber de nada. Eu acredito em você. E mesmo que tivesse aconteci<strong>do</strong><br />

alguma coisa, e daí? To<strong>do</strong>s cometemos equívocos. Não haveria nada de extraordinário nisso, não<br />

fosse sua posse amanhã — falei com carinho <strong>pastor</strong>al.<br />

— Eu sei. Mas o fato é que eu não estou nessa lista. Não <strong>do</strong> jeito que eles querem me fazer<br />

aparecer. Se estivesse, eu falaria. Quero ser tu<strong>do</strong>, menos hipócrita — reafirmou Nilo sem<br />

qualquer titubeio.<br />

Pedi para fazer uma oração por ele ao telefone e depois subi ao escritório de minha casa para<br />

escrever um fax com uma palavra <strong>pastor</strong>al para Nilo, Verinha e as crianças. E daquele dia em<br />

diante, eu lhes enviaria dezenas de outros fax com textos bíblicos e palavras de conforto e<br />

estímulo.<br />

No dia seguinte, Lucilia, amiga de Verinha e minha amiga desde a infância, foi comigo à<br />

posse de Nilo. O corre<strong>do</strong>r polonês estava monta<strong>do</strong>. Ele teria de passar por dentro dele, com


políticos e repórteres para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Eu e Lucilia ficamos de longe.<br />

— Que massacre, <strong>Caio</strong>. Que horror será essa posse! — disse Lucilia preocupada com o<br />

clima.<br />

Nilo veio entran<strong>do</strong> sob as luzes e os microfones. Eram perguntas de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. As vozes<br />

se misturavam de tal mo<strong>do</strong>, que nem dava para entender direito o que a multidão dizia.<br />

— Nilão, meu irmão — falei sem esperança de ser ouvi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ele passou a uns cinco<br />

metros de nós. Nilo parou e me procurou no meio da multidão. Saiu de seu caminho e veio em<br />

minha direção. Abraçamo-nos com fraternidade e compromisso afetivo ali no meio de to<strong>do</strong>s. —<br />

Vai firme, irmão. Vai firme porque Jesus tá contigo — falei discretamente, mas sem sussurrar.<br />

A posse aconteceu e o massacre continuou. Depois fiquei saben<strong>do</strong> que a história <strong>do</strong> nome de<br />

Nilo na lista <strong>do</strong> bicho poderia ter relação com uma <strong>do</strong>ação feita por um banqueiro à ABIA,<br />

instituição de apoio a aidéticos da qual Nilo era conselheiro e Betinho o funda<strong>do</strong>r. Mas como a<br />

explicação envolvia Herbert de Souza, uma das figuras mais inatacáveis da nação, em vez de<br />

esclarecer os fatos, apenas os turvou ainda mais.<br />

— Nilo, deixa esse pessoal provar o que está dizen<strong>do</strong>. Você sabe que não recebeu nada. Não<br />

fica se defenden<strong>do</strong>. Olha, o prefeito César Maia e o ex-prefeito Marcello Alencar também têm<br />

seus nomes na tal da lista. Mas como estão cala<strong>do</strong>s, vão ser esqueci<strong>do</strong>s. Não fica aí se defenden<strong>do</strong><br />

por que isso atrapalha você — falei muitas vezes.<br />

Mas o problema era que Nilo sabia que aquilo era uma tremenda injustiça que estavam<br />

fazen<strong>do</strong> com ele e não podia admitir que o nome que ele construíra com tanto esforço fosse<br />

enlamea<strong>do</strong> tão perversamente. Se Nilo fosse um político de carreira, aquilo não o teria<br />

machuca<strong>do</strong> tanto. Mas como ele tinha outra história, ten<strong>do</strong> ganha<strong>do</strong> a vida como um <strong>do</strong>s mais<br />

brilhantes criminalistas <strong>do</strong> Brasil e como intelectual, aquela controvérsia o feriu com um poder<br />

devasta<strong>do</strong>r.<br />

Um grupo de amigos fiéis esteve sempre presente, dan<strong>do</strong> a ele e a Verinha a certeza de que<br />

não estavam sós. Com pressões de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, Nilo encontrou na leitura da Bíblia e nas<br />

orações seu refúgio pessoal. Começou a ir aos cultos da Catedral Presbiteriana <strong>do</strong> Rio e decidiu<br />

instituir um culto semanal no palácio, todas as segundas-feiras. Além disso, achou que não era<br />

justo que o cardeal <strong>do</strong>m Eugênio Salles fosse o único líder religioso com acesso à rede <strong>do</strong> telefone<br />

vermelho pelo qual ele podia chamar o governa<strong>do</strong>r e to<strong>do</strong>s os secretários de esta<strong>do</strong> a hora que<br />

quisesse. “Vou instalar telefones vermelhos na AEVB e no Rabinato também”, disse ele e fez o<br />

que prometeu alguns dias depois.<br />

Em maio de 1994 batizei o governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, Nilo Batista, e sua esposa, Vera Malagute<br />

Batista, na sala de sua casa, no morro de Santa Teresa. Foi uma cerimônia simples, presenciada<br />

apenas por uns poucos amigos de fé. Depois conversamos até de madrugada e fizemos votos de<br />

felicidade uns aos outros. Enquanto isso, a luta continuava em todas as frentes. A campanha<br />

presidencial se acirrava, a violência no Rio era maximizada e já se falava em intervenção militar no<br />

esta<strong>do</strong>.<br />

Quanto a mim, estava tão “toma<strong>do</strong> de coisas”, que a sensação que me dava era a de que eu<br />

estava viven<strong>do</strong> dentro de uma câmara de lapso de tempo. A cada dia acontecia de tu<strong>do</strong>. Eram<br />

repórteres queren<strong>do</strong> ver se chegavam ao governa<strong>do</strong>r por meu intermédio; outros queriam que eu<br />

os ajudasse a entrevistar Gregório, o Gor<strong>do</strong>, ou Escadinha; outros, ainda, desejavam saber se eu<br />

era alia<strong>do</strong> político de Lula ou Brizola. E ainda havia o contingente que desejava me entrevistar em<br />

razão de temas diversos, com os quais me envolvi sem nem bem perceber: arbitrariedade da<br />

polícia, direitos <strong>do</strong>s favela<strong>do</strong>s, situação da população carcerária, crescimento da violência urbana,<br />

liberação ou não das drogas e, de quebra, o tema <strong>do</strong> crescimento vertiginoso <strong>do</strong>s evangélicos.<br />

Naqueles dias, lançamos também a Cartilha evangélica <strong>do</strong> voto ético. A tal cartilha gerou mais


um monte de entrevistas. E a Fábrica de Esperança, que começava a se desenhar como um<br />

megaprojeto social, também atraía imensa curiosidade. Em meio a tu<strong>do</strong> aquilo, Edir Mace<strong>do</strong> e a<br />

Universal eram temas que estavam sempre presentes em todas aquelas entrevistas diárias tanto<br />

da mídia nacional quanto da internacional. Eu falava de tu<strong>do</strong>, mas fugia como podia <strong>do</strong>s assuntos<br />

relaciona<strong>do</strong>s a Mace<strong>do</strong> e sua igreja.<br />

A grande questão para a mídia a partir de julho de 1994 eram as eleições para presidente e<br />

governa<strong>do</strong>r. Assim, de repente eu me vi no meio de uma briga que não era minha. A Universal<br />

dizia que apoiava Orestes Quércia, mas fazia pactos com Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so. E para<br />

ficar mais à vontade, dizia que eu e a AEVB estávamos comprometi<strong>do</strong>s com o PT de Lula. Assim,<br />

a fofoca política corria solta no meio evangélico. No Rio, a briga pelo governo <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> era entre<br />

Marcello Alencar e Garotinho, o candidato de Brizola.<br />

— É verdade que nas eleições nacionais o senhor é Lula e nas estaduais é Garotinho? — foi a<br />

pergunta que ouvi até não agüentar mais naqueles dias, o que me fez desejar ardentemente que<br />

as eleições acabassem logo. Até ali, contu<strong>do</strong>, minhas relações com Mace<strong>do</strong> e a Universal<br />

mantinham-se controladamente distantes, porém sem confrontação.<br />

Como Nilo e Verinha levaram Brizola lá em casa para comermos um gostoso tambaqui<br />

amazônico e passamos a tarde numa saborosa conversa sobre a história política <strong>do</strong> Brasil neste<br />

século, com direito a viagens íntimas pelas nossas percepções espirituais e leituras de fé sobre a<br />

realidade que nos cercava, correu também que eu estava costuran<strong>do</strong> uma possível aliança entre os<br />

evangélicos e o PDT ou, quem sabe, um acor<strong>do</strong> entre Brizola e Lula para um eventual segun<strong>do</strong><br />

turno das eleições presidenciais. Tu<strong>do</strong> invenção!<br />

— Meu nome é Sérgio Rodrigues e eu queria fazer uma entrevista com o senhor para a capa<br />

da Vejinha desta semana — disse-me o repórter naquela terça-feira.<br />

Três dias nos encontran<strong>do</strong> para conversar. No <strong>do</strong>mingo, dia 7 de agosto, passei na banca de<br />

revista da entrada <strong>do</strong> con<strong>do</strong>mínio onde moro em Itaipu e vi minha foto na capa.<br />

— O senhor saiu na capa da Vejinha — disse o jornaleiro.<br />

A capa era singela. O bom <strong>pastor</strong>. Subtítulo: Líder evangélico acusa bispo Mace<strong>do</strong> de<br />

mercantilismo e prega ação social. As palavras que introduziam a matéria diziam o seguinte: “O<br />

homem que converteu o governa<strong>do</strong>r Nilo Batista e o presidiário Gor<strong>do</strong> ao protestantismo não é<br />

famoso como o vilaniza<strong>do</strong> bispo Mace<strong>do</strong>, mas está a caminho disso. E pelo la<strong>do</strong> bom. Líder <strong>do</strong>s<br />

evangélicos éticos, o <strong>pastor</strong> <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, da Igreja Presbiteriana, luta para erguer numa antiga<br />

fábrica em Acari a maior obra social <strong>do</strong> país.”<br />

No texto havia uma referência a mim como sen<strong>do</strong> o anti-Mace<strong>do</strong>, e a afirmação de que eu o<br />

acusara de fetichismo e mercantilismo religioso me fizeram gelar o estômago.<br />

— Mas você disse isso? — perguntou-me Alda com desconforto, como quem dizia: “você<br />

está procuran<strong>do</strong> sarna pra se coçar”.<br />

— Falei e não falei — disse. — Descrevi os méto<strong>do</strong>s deles e disse que eram mercantilistas e<br />

fetichistas. Mas não fiquei falan<strong>do</strong> deles. Foi mais <strong>do</strong>s conceitos. Mas se saiu na capa que falei, tá<br />

fala<strong>do</strong>. É isso que eu penso mesmo — disse como quem estava cansa<strong>do</strong> de fugir <strong>do</strong> assunto.<br />

— Mas o repórter não podia ter escrito isso se pra você não era importante — disse Alda com<br />

uma certa ingenuidade jornalística e com seu habitual senso de justiça.<br />

— Mas eu falei. Só não falei como a coisa mais importante da entrevista e nem fiquei pisan<strong>do</strong><br />

nessa tecla. Mas falei sim. Em três dias de papo, mencionei o assunto uma vez e de passagem. O<br />

editor lá deve ter acha<strong>do</strong> que a chamada estava aí. O que eu posso fazer? Com a mídia a gente só<br />

tem uma opção se não quiser correr nenhum risco: não dar a entrevista. Mas se der, tem que<br />

arcar com as conseqüências — falei sem ressentimento. Afinal, eu havia fala<strong>do</strong> algo sobre


Mace<strong>do</strong>, sem dúvida.<br />

De fato, o trabalho jornalístico de Sérgio Rodrigues havia si<strong>do</strong> limpo, sensível e até poético.<br />

No encontro das contas, eu estava feliz com a matéria, e não somente eu, mas dezenas de líderes<br />

evangélicos, que me telegrafaram ou telefonaram dizen<strong>do</strong>-me orgulhosos de que enfim nós<br />

estivéssemos sen<strong>do</strong> vistos como gente séria pela imprensa.<br />

A matéria da Vejinha foi a gota d’água para deflagrar meu confronto com Mace<strong>do</strong> e seus<br />

lidera<strong>do</strong>s. Dali em diante, a Universal entrou na briga para valer, e eu iria sentir o poder de sua<br />

fúria.<br />

— O Quércia e o FHC não virão ao debate da AEVB com os presidenciáveis — foi o que o<br />

reveren<strong>do</strong> Luís Wesley, secretário executivo da Associação Evangélica, me disse com um tom de<br />

angústia na voz, e eu corri para o escritório de Quércia em São Paulo.<br />

— Desculpa, reveren<strong>do</strong>. Houve uma confusão na agenda. Não poderei ir ao Rio amanhã —<br />

disse-me o candidato <strong>do</strong> PMDB.<br />

Expliquei que a ausência dele seria desastrosa. Tiraria o equilíbrio <strong>do</strong> evento e daria a<br />

impressão de ser um debate tendencioso.<br />

— Farei o possível para comparecer — disse-me.<br />

Eu, entretanto, sabia que ele não iria ao hotel Glória, onde aconteceria o debate evangélico<br />

brasileiro com os presidenciáveis.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, lamento muito, mas não será possível que o sena<strong>do</strong>r esteja aí para o debate de<br />

amanhã — disse-me Pimenta da Veiga, coordena<strong>do</strong>r da campanha de FHC.<br />

Botei to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em cima dele: deputa<strong>do</strong>s, sena<strong>do</strong>res e assessores, mas ninguém conseguiu<br />

recolocar Fernan<strong>do</strong> Henrique em nossa agenda.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, o sena<strong>do</strong>r Fernan<strong>do</strong> Henrique está na linha — disse-me Cristina.<br />

— Sena<strong>do</strong>r, sua presença aqui é imprescindível — falei em tom de súplica.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, houve uma confusão aqui na agenda e não poderei ir. Lamento muito. Não<br />

quero que a AEVB me entenda mal. Estou mandan<strong>do</strong> uma carta para o senhor. Espero<br />

encontrá-lo em breve — disse aquele que viria a ser o próximo presidente <strong>do</strong> Brasil.<br />

A carta veio. Mas FHC não apareceu!<br />

Quércia man<strong>do</strong>u um preposto. Foi um fiasco. Lula veio e roubou a cena toda. Brizola foi<br />

singelo e acabou participan<strong>do</strong> de uma sessão de nostalgia metodista, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s tempos em que<br />

foi evangélico e freqüentou aquela igreja em Porto Alegre.<br />

Foi só depois que fiquei saben<strong>do</strong> o que aconteceu. Amigos de São Paulo, bem próximos à<br />

liderança da Universal, disseram-me que “os bispos” puseram pressão nos coordena<strong>do</strong>res<br />

políticos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is candidatos ameaçan<strong>do</strong> retirar o apoio da igreja, caso eles fossem ao debate. E<br />

como demonstração da validade de seu pedi<strong>do</strong>, teriam manda<strong>do</strong> uma cópia da Vejinha daquela<br />

semana.<br />

— A questão era: quem fosse estaria trocan<strong>do</strong> o certo pelo duvi<strong>do</strong>so. Vocês são muitos<br />

também, mas não dão apoio formal a ninguém. Os candidatos teriam que conquistar o voto de<br />

vocês. A IURD não. Eles podiam dizer pra eles: “Nós apoiamos mesmo e vestimos a camisa.”<br />

FHC e Quércia escolheram o certo ao invés <strong>do</strong> duvi<strong>do</strong>so — foi o que me disse um irmão de São<br />

Paulo.<br />

À medida que chegávamos à reta final das eleições, eu pedia a Deus que o ano acabasse logo.<br />

A pressão de candidatos era imensa e o assédio da mídia era muitíssimo intenso não só em<br />

relação àquele assunto, mas no que se referia a to<strong>do</strong>s os outros temas também. Eu já não podia<br />

trabalhar de tanto dar entrevista.<br />

— Você precisa decidir o que vai fazer da vida <strong>Caio</strong>. Esses repórteres não deixam você em


paz o dia inteiro. Assim seu ministério vai passar a ser o de “entrevista<strong>do</strong> de Deus”, não o de<br />

ministro <strong>do</strong> evangelho — disse-me Alda, irritan<strong>do</strong>-me de início, mas depois me fazen<strong>do</strong> perceber<br />

onde eu havia me meti<strong>do</strong>.


ministro <strong>do</strong> evangelho — disse-me Alda, irritan<strong>do</strong>-me de início, mas depois me fazen<strong>do</strong> perceber<br />

onde eu havia me meti<strong>do</strong><br />

Capítulo 46<br />

“Mas longe de mim pensar que na Tua casa são mais aceitas as pessoas <strong>do</strong>s ricos<br />

que a <strong>do</strong>s pobres, e as <strong>do</strong>s nobres mais que as <strong>do</strong>s plebeus, porque preferiste<br />

escolher os fracos segun<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> para confundires os fortes; o que é vil e<br />

desprezível segun<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, o que nada é, para aniquilar o que é.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

— <strong>Caio</strong>, estou nomean<strong>do</strong> você para uma comissão de investigação desse episódio de Nova<br />

Brasília — disse-me o governa<strong>do</strong>r Nilo Batista pelo telefone vermelho que estava instala<strong>do</strong> em<br />

meu escritório em Niterói. Ele se referia a uma operação legítima das polícias civil e militar<br />

naquela favela <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Complexo <strong>do</strong> Alemão, mas que acabara sen<strong>do</strong> prejudicada pela ação<br />

livre e extermina<strong>do</strong>ra de alguns policiais. No final da noite, havia mais de dez jovens mortos,<br />

alguns deles com clara indicação de terem si<strong>do</strong> executa<strong>do</strong>s sumariamente com tiros nos <strong>do</strong>is<br />

olhos e em outras áreas <strong>do</strong> corpo que indicavam uma ação meticulosamente estudada pelo<br />

executor.<br />

— O que a gente vai fazer com essas meninas? — perguntou-me Arthur Lavigne, secretário<br />

de Justiça, fazen<strong>do</strong> referência às três garotas que tinham si<strong>do</strong> usadas sexualmente por alguns <strong>do</strong>s<br />

extermina<strong>do</strong>res e que haviam testemunha<strong>do</strong> algumas das execuções.<br />

Acompanhavam as três jovens <strong>do</strong>is advoga<strong>do</strong>s da favela. Um deles era magro e bastante<br />

articula<strong>do</strong> no mo<strong>do</strong> de se expressar. Disse que era advoga<strong>do</strong> de bandi<strong>do</strong> porque encontrava mais<br />

humanidade neles que nos policiais. Contou-nos histórias bárbaras sobre suas negociações com<br />

alguns policiais, para os quais havia passa<strong>do</strong> dinheiro <strong>do</strong>s bandi<strong>do</strong>s nas famosas maneiras, a fim<br />

de que seus clientes pudessem ser libera<strong>do</strong>s após o resgate.<br />

— Eu choro de amargura quan<strong>do</strong> meu filho diz que quer ser policial. “Pelo amor de Deus,<br />

menino, vai ser qualquer outra coisa”, é o que eu digo pra ele. “Polícia, não” — contou Dr. Paulo<br />

com lágrimas nos olhos, mostran<strong>do</strong> um sentimento que até ali eu não sabia que existia em<br />

profissionais que ganham a vida como ele.<br />

O outro advoga<strong>do</strong> era uma figura inconfundível. Falava através de um aparelho especial que<br />

ele posicionava num pequeno orifício existente em seu pescoço, o que dava à sua voz um tom<br />

metálico, como se um computa<strong>do</strong>r multimídia estivesse conversan<strong>do</strong> com você. Esse outro falava<br />

pouco, mas parecia saber muito.<br />

Depois de longa sessão de depoimentos toma<strong>do</strong>s pela Dra. Marta Rocha e outro profissional


da Correge<strong>do</strong>ria de Polícia, chegamos de novo à questão crucial.<br />

— Onde é que a gente vai colocar essas meninas? — perguntou Lavigne olhan<strong>do</strong> para mim.<br />

— O esta<strong>do</strong> não tem como protegê-las? — indaguei.<br />

— Onde?, se os acusa<strong>do</strong>s são policiais? É muito perigoso. O caso é sério. Elas podem morrer<br />

— concluiu.<br />

— Então deixe-as comigo. Vou guardá-las — disse.<br />

— Ninguém aqui precisa saber. Pode levá-las. Eu aviso quan<strong>do</strong> a gente vai ouvi-las outra vez<br />

— falou o secretário de Justiça que, por acaso, era meu primo de quinto grau, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo<br />

tronco <strong>do</strong>s Lavigne <strong>do</strong> qual procedera minha avó Zezé.<br />

Alda, minha esposa, estava viajan<strong>do</strong>. Tentei colocar as garotas numa casa evangélica em São<br />

Gonçalo, mas não deu certo.<br />

— É quieto demais lá, tio — disse uma delas.<br />

O jeito foi levá-las para minha casa.<br />

Cilene, morena, magra, de rosto fino, tinha 18 anos e era uma mulher já de certa experiência.<br />

Aninha, entretanto, era uma a<strong>do</strong>lescente de apenas 16 anos, falante, alegre, charmosa em sua<br />

pobreza e <strong>do</strong>na de uma apuradíssima inteligência. Tinha resposta para tu<strong>do</strong> e estava sempre à<br />

frente de to<strong>do</strong>s durante as entrevistas. Martinha, no entanto, não passava de uma criança.<br />

Grande, meio gordinha, tinha todas as formas de uma mulher bem desenvolvida, mas idade e<br />

coração de uma menina. Apenas treze anos. Sen<strong>do</strong> a mais nova, foi, no entanto, a mais<br />

traumatizada de todas na chacina de Nova Brasília.<br />

— Eles me abusaram. Enfiaram tu<strong>do</strong> que quiseram em mim. Puseram até faca dentro das<br />

minhas partes. Fizeram tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> jeito que quiseram. Me arrombaram. O negão ficava rin<strong>do</strong><br />

enquanto o outro derramava o gozo dele na minha cara — disse ela entre muitas outras<br />

declarações chocantes.<br />

As três tinham “enviuva<strong>do</strong>”. Seus homens, to<strong>do</strong>s rapazes de idades varian<strong>do</strong> entre 17 e 19<br />

anos, haviam si<strong>do</strong> executa<strong>do</strong>s na mesma noite e praticamente <strong>do</strong> mesmo jeito. Os “meninos”<br />

eram <strong>do</strong> tráfico e andavam arma<strong>do</strong>s. Apenas um deles tinha envolvimento secundário no<br />

“movimento”.<br />

— Eles levaram o Biriba para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> quintal algema<strong>do</strong> e depois eu vi o corpo dele sem<br />

algemas e com <strong>do</strong>is tiros nos olhos — disse Aninha acerca de seu “homem”, como elas os<br />

definiam.<br />

Fui e voltei daquelas sessões de interrogatório com elas algumas vezes, talvez três ao to<strong>do</strong>. No<br />

fim <strong>do</strong> processo, percebi que minha chegada ao local <strong>do</strong>s interrogatórios causava agitação. Era<br />

como se o inimigo tivesse chega<strong>do</strong>. Depois de alguns dias, as meninas desapareceram. Cheguei a<br />

pensar que tivessem si<strong>do</strong> mortas. Apenas <strong>do</strong>is meses depois foi que as encontrei vivas na favela de<br />

Nova Brasília, numa das “invasões noturnas de paz” que fazia na cidade, e fiquei saben<strong>do</strong> que<br />

elas haviam fugi<strong>do</strong> porque preferiam o risco da morte na favela <strong>do</strong> que a confortável reclusão de<br />

minha casa.<br />

— Aquele seu loirinho é um gato. Mas tá amarra<strong>do</strong>, né? Se tivesse livre, eu pegava pra mim.<br />

Mas homem <strong>do</strong>s outros a gente tem que respeitar — disse Aninha, fazen<strong>do</strong> alusão ao fato de meu<br />

filho Davi ter namorada.<br />

O episódio de Nova Brasília foi segui<strong>do</strong> de um outro em Vigário Geral. A denúncia foi feita<br />

por <strong>Caio</strong> Ferraz, mas eu fui outra vez o media<strong>do</strong>r da situação. O clima ficou pesa<strong>do</strong>, pois, numa<br />

incursão legal na favela, os policiais pegaram um rapaz. O moço tinha carteira de trabalho e a<br />

multidão dizia que ele era “trabalha<strong>do</strong>r”, palavra mágica naqueles contextos, só superada pelo<br />

elogio “otário”, especialmente quan<strong>do</strong> pronuncia<strong>do</strong> por um bandi<strong>do</strong> em favor de uma pessoa<br />

honesta. Mesmo assim, o moço foi leva<strong>do</strong> pela polícia para a beira <strong>do</strong> rio que passa atrás da favela


e encapuza<strong>do</strong> com um saco plástico, após o que foi vira<strong>do</strong> de cabeça para baixo e enfia<strong>do</strong> dentro<br />

d’água. A intenção alegada era fazer o rapaz falar onde estavam as armas que os policiais estavam<br />

procuran<strong>do</strong>. Repetiram tantas vezes essa “ação de convencimento”, que o moço faleceu dentro <strong>do</strong><br />

rio. O corpo foi então posto num puçá e guinda<strong>do</strong> pelo helicóptero da polícia. A multidão correu<br />

pela favela olhan<strong>do</strong> para cima, na direção onde o corpo estava sen<strong>do</strong> leva<strong>do</strong> pelo meio <strong>do</strong> céu. O<br />

helicóptero, então, parou em cima <strong>do</strong> CIEP local e, de uma altura de cerca de cinco metros, abriu<br />

a rede e deixou o corpo cair na quadra da escola.<br />

— Chegou a quicar no chão. O som foi horrível. Nunca vou esquecer — disse-me a mãe <strong>do</strong><br />

rapaz.<br />

Falei com Nilo e ele disse para eu levar as testemunhas ao palácio. Depois de ouvi-las,<br />

encaminhou-as para a Correge<strong>do</strong>ria de Polícia, onde a Dra. Marta Rocha iria interrogá-las. Eu<br />

havia aprendi<strong>do</strong> na prática, desde o outro episódio, que Marta era gente com quem nós podíamos<br />

contar. Mas quan<strong>do</strong> deixei <strong>Caio</strong> Ferraz e as testemunhas na porta da Polícia Civil, deu para ver os<br />

olhares incendia<strong>do</strong>s de ódio que recebi <strong>do</strong>s guardas <strong>do</strong> portão. Fiquei ali apenas um pouco e tive<br />

de me ausentar para o aeroporto, a fim de viajar.<br />

No dia seguinte eu estava de volta ao Rio.<br />

— Nós não ficamos lá não, <strong>pastor</strong>! — disse-me <strong>Caio</strong> Ferraz. — Os caras começaram a<br />

ameaçar a gente. Até a mulher <strong>do</strong> cafezinho disse que a gente tava fazen<strong>do</strong> besteira, que o garoto<br />

que foi afoga<strong>do</strong> pela polícia era traficante e que nós estávamos prejudican<strong>do</strong> a carreira de policiais<br />

pra defender bandi<strong>do</strong> — continuou. — Depois disso e de muitas outras ameaças, até a mãe <strong>do</strong><br />

garoto estava queren<strong>do</strong> ir embora e retirar a queixa — terminou <strong>Caio</strong> com seu estilo nervoso de<br />

quem fala mais palavras ao mesmo tempo que a maioria <strong>do</strong>s mortais que conheço.<br />

Não deu em nada. Aqueles <strong>do</strong>is episódios me ensinaram duas lições. Tínhamos tu<strong>do</strong> para ver<br />

as coisas andarem. Um governa<strong>do</strong>r humano e disposto ao sacrifício para fazer a Justiça<br />

prevalecer, um secretário de Justiça socialmente comprometi<strong>do</strong> com causas justas, uma<br />

correge<strong>do</strong>ra de Justiça amiga e bem-intencionada, mas nem assim conseguíamos ir a lugar<br />

algum.<br />

Por quê?<br />

Primeiramente porque o corporativismo da instituição policial só funciona eficientemente<br />

quan<strong>do</strong> se trata de proteger os maus-elementos dentro da corporação, mas é completamente<br />

incapaz de agir para proteger a corporação <strong>do</strong>s maus-elementos. Além disso, também ficou claro<br />

para mim que qualquer tentativa de se exercer uma política de direitos humanos que<br />

eventualmente aconteça contra membros da instituição policial, estan<strong>do</strong> esta instituição no Rio<br />

de Janeiro, será sempre entendida como ação a favor de criminosos. O clima de enfrentamento<br />

entre policiais e bandi<strong>do</strong>s ganhou tal grau de rivalidade marginal, que o espírito que prevalece já<br />

não é mais o da cidadania fardada contra a criminalidade perversa. O que se tem é apenas a<br />

guerra <strong>do</strong> nós contra eles. E quem quer que pleiteie que a nossa ação seja feita de mo<strong>do</strong><br />

diferencia<strong>do</strong> da ação deles, vai ser julga<strong>do</strong> como alguém que está <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de lá.<br />

Meu compromisso com os direitos humanos colocaram-me na pior lista em que estive em<br />

toda a minha vida: a lista negra de alguns maus policiais <strong>do</strong> Rio.


Capítulo 47<br />

“Tinhas feri<strong>do</strong> nosso coração com Teu amor, e lá levávamos Tuas palavras<br />

cravadas em nossas entranhas; reuniam-se no fun<strong>do</strong> de nosso ser numa espécie de<br />

fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para que o vento da contradição<br />

das línguas <strong>do</strong>losas não apagasse a chama em nós, antes nos incendiasse mais<br />

ardentemente.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Em setembro de 1994 a mídia começou a falar mais explicitamente em “intervenção federal<br />

no Rio”. O assunto era, no mínimo, confuso e profundamente controverso. Para uns, soava como<br />

a grande chance de desmoralizar o governo <strong>do</strong> PDT, de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Para<br />

outros, era apenas uma questão de simplismo pragmático, calça<strong>do</strong> na idéia de que o Exército<br />

tinha consegui<strong>do</strong> acalmar o Rio durante a conferência internacional Eco 92, razão pela qual<br />

poderia voltar a fazê-lo. Tolice.<br />

— Gregório, o que você acha disso? — perguntei ao Gor<strong>do</strong>, agora preso no complexo da rua<br />

Frei Caneca.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, eles estão loucos. Fazen<strong>do</strong> assim eles correm o risco de desmoralizar as<br />

forças armadas e ainda sofisticar o crime. Os “meninos” vão ficar mais espertos, os solda<strong>do</strong>s vão<br />

ser corrompi<strong>do</strong>s, os “grupos” que estão organiza<strong>do</strong>s em uma ou duas favelas numa região vão<br />

acabar fican<strong>do</strong> uni<strong>do</strong>s a outros grupos espalha<strong>do</strong>s pela cidade. Não sei, não. Vai ser pior — disse o<br />

Gor<strong>do</strong>.<br />

Rubem César não queria a intervenção, mas apenas uma ação coordenada das várias polícias<br />

trabalhan<strong>do</strong> juntas, especialmente nas divisas, coibin<strong>do</strong> a entrada de drogas e armas. Entretanto,<br />

no Viva Rio havia também visões pessoais diferentes da dele. E alguns <strong>do</strong>s que pensavam com<br />

outros interesses emitiam suas opiniões na mídia não em nome <strong>do</strong> Viva Rio, mas a partir de suas<br />

bases de operação, fossem políticas, comerciais ou empresariais. Assim, ficava a impressão de<br />

que a intervenção era uma bandeira <strong>do</strong> movimento.<br />

Conversas freqüentes com Artur Lavigne deixaram Rubem César completamente<br />

convenci<strong>do</strong> de que a interpretação que Nilo tinha <strong>do</strong>s fatos estava correta. Desde o início daquele<br />

ano Rubem vinha conversan<strong>do</strong> regularmente com o então secretário de Justiça, de quem ouvira<br />

coisas que estavam totalmente de acor<strong>do</strong> com a ordem <strong>do</strong>s fatos, ou seja: ações meramente<br />

repressivas nas favelas não passavam de um cansativo, humilhante e custoso mo<strong>do</strong> de enxugar<br />

gelo. Era preciso reprimir o crime, mas era mais imperativo ainda fazê-lo nas suas causas<br />

gera<strong>do</strong>ras e no seu modus operandi, e não apenas na ponta pobre <strong>do</strong> processo: a favela.


O problema, contu<strong>do</strong>, era que certas ações e declarações de alguns membros <strong>do</strong> movimento<br />

suprapartidário Viva Rio muitas vezes se manifestavam de mo<strong>do</strong> bastante ideológico e partidário<br />

ou, então, posicionavam-se justamente na direção das forças que tendiam a favor de uma possível<br />

intervenção federal geran<strong>do</strong>, assim, um terrível mal-estar no palácio das Laranjeiras, onde Nilo<br />

agonizava ao ver, “gente de tradição democrática se alian<strong>do</strong> à causa da remilitarização <strong>do</strong> Rio”.<br />

Não é preciso dizer o quanto tais fatos e predisposições magoaram Nilo. E some-se a isso o<br />

episódio da lista <strong>do</strong> bicho que, para além de to<strong>do</strong> o desconforto público que havia causa<strong>do</strong> na vida<br />

<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r, tivera ainda o poder de afastá-lo de Betinho, que também era membro <strong>do</strong> Viva Rio.<br />

Eu estava no meio da briga. Nilo era meu amigo e, além disso, eu também tinha com ele um<br />

vínculo <strong>pastor</strong>al. Era tu<strong>do</strong> e era só. Não havia de minha parte qualquer tipo de engajamento<br />

político partidário com o PDT, como também jamais houvera com qualquer outra agremiação<br />

política. Rubem César, por seu turno, era meu amigo de outras jornadas. E ambos mantiveram<br />

uma boa amizade entre si até que o Viva Rio começou a ser identifica<strong>do</strong> com um movimento<br />

intervencionista. Então Nilo e Rubem passaram a ser vistos como estan<strong>do</strong> em la<strong>do</strong>s separa<strong>do</strong>s. O<br />

clima ficou tão difícil, que cheguei a pensar que minha posição de “neutralidade fraterna e cristã”<br />

poderia ser interpretada por gente mais radical como sen<strong>do</strong> acomodação interesseira e<br />

conveniente. Minha interpretação <strong>do</strong>s fatos e fenômenos sociais, no que dizia respeito à violência<br />

no Rio, estava em total sintonia com a leitura que Nilo e Lavigne faziam da situação. Além <strong>do</strong> que,<br />

minha ação <strong>pastor</strong>al nos presídios deixara-me muito bem-informa<strong>do</strong> sobre os grandes esquemas<br />

de “fabricação política de violências artificiais”. Gregório me dissera muitas vezes como no<br />

passa<strong>do</strong> ele fora convida<strong>do</strong> por representantes <strong>do</strong>s interesses de alguns candidatos a “infernizar a<br />

cidade”, a fim de que o poder em exercício fosse prejudica<strong>do</strong> no ano das eleições.<br />

— Olha, reveren<strong>do</strong>, tem uma violência aí que é real. Mas tá haven<strong>do</strong> muito duelo de São<br />

Pedro também. Muito tiro pro céu — contara-me ele.<br />

No auge da tensão, Rubem estava muito angustia<strong>do</strong>. Às vezes me telefonava depois de<br />

meia-noite e eu podia ouvir o som pesa<strong>do</strong> de sua respiração. Falava-se cada vez mais em<br />

intervenção federal ou em operação militar. Rubem queria uma ação conjunta coordenada pelas<br />

forças estaduais, mas envolven<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os recursos <strong>do</strong> nível federal. Para Nilo, entretanto, a<br />

posição que Rubem assumira se confundia com os interesses daqueles que desejavam ver seu<br />

governo naufragan<strong>do</strong> nas vésperas das eleições, favorecen<strong>do</strong> outras candidaturas.<br />

Aí pelo final de setembro, nas vésperas da decisão de se haveria ou não o tal golpe, Rubem me<br />

pediu para marcar um encontro dele com Nilo.<br />

— Não vejo necessidade. Nós estamos em times diferentes. Mas em consideração ao seu<br />

pedi<strong>do</strong> e ouvin<strong>do</strong>-o como meu <strong>pastor</strong>, vou atendê-lo — disse o governa<strong>do</strong>r.<br />

Eles se encontraram e conversaram. O resulta<strong>do</strong> imediato da conversa foi bom e acabou num<br />

clima fraterno. No dia seguinte, entretanto, o rolo compressor <strong>do</strong>s acontecimentos, envolven<strong>do</strong> a<br />

própria interpretação da mídia sobre o tal encontro, não permitiu que aquele clima de<br />

amistosidade pudesse tê-los reaproxima<strong>do</strong> de vez.<br />

As forças armadas foram para as ruas, e o melhor que Nilo conseguiu negociar foi que o<br />

governo <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> estivesse incumbi<strong>do</strong> da gestão das operações, pelo menos no nível da<br />

hierarquia confessada pelos responsáveis pelo golpe.<br />

Para quem quer que tenha li<strong>do</strong> os jornais e acompanha<strong>do</strong> os meus passos naqueles dias,<br />

apesar de toda confusão, uma coisa estava clara: eu era completamente contrário à Operação Rio,<br />

pois achava que aquilo era apenas um show de malabarismo militar fada<strong>do</strong> ao ridículo. A minha<br />

façanha, contu<strong>do</strong>, foi ter fica<strong>do</strong> numa posição que coincidia com a interpretação de Nilo, mas que<br />

entendia também a situação na qual Rubem César se pusera em relação às percepções mais<br />

magoadas daqueles que se sentiam atingi<strong>do</strong>s pelo clima de humilhação para as instituições <strong>do</strong>


esta<strong>do</strong>. Ao mesmo tempo, pude separar as ações mais radicais de membros <strong>do</strong> Viva Rio mais à<br />

direita das verdadeiras motivações da maioria <strong>do</strong>s que ali estavam, que, se eventualmente se<br />

mostravam equivoca<strong>do</strong>s, não estavam, entretanto, mal-intenciona<strong>do</strong>s.<br />

Dias difíceis foram aqueles. Pedia a Deus to<strong>do</strong>s os dias que me fizesse um pacifica<strong>do</strong>r de<br />

irmãos ao perceber o profun<strong>do</strong> desencontro de pessoas a quem eu amava fraternalmente, mas<br />

que estavam fican<strong>do</strong> cada vez mais distantes umas das outras. Não adiantava chorar mais sobre os<br />

fatos e suas conseqüências. Na minha maneira de viver, sempre que o inexorável e o irreversível<br />

se estabelecem com a força <strong>do</strong>s carmas, tento usar sua própria força contra eles mesmos. É um<br />

princípio de jiu-jítsu que aplico freqüentemente à vida.<br />

— Nilo, você já imaginou se em vez de simplesmente promover o enfrentamento <strong>do</strong> tráfico<br />

com a polícia fosse possível estimular a própria favela a convencer o tráfico a se desarmar? Porque<br />

<strong>do</strong> jeito que eles estão, arma<strong>do</strong>s até os dentes, quem paga o preço é a comunidade. A polícia<br />

invade atiran<strong>do</strong>, e inocentes morrem numa guerra que não é deles. E agora com o Exército a coisa<br />

pode ficar feia — falei ao governa<strong>do</strong>r depois de um <strong>do</strong>s nossos cultos de segunda-feira no palácio.<br />

Nilo tragou profundamente a fumaça <strong>do</strong> cigarro e me disse que estava cansa<strong>do</strong> de enxugar gelo.<br />

— Quanto vale cada gota de sangue derrama<strong>do</strong>? Como é que devemos calcular? Em relação<br />

aos salários <strong>do</strong>s policiais ou em relação ao preço <strong>do</strong> grama da cocaína? — disse Nilo, começan<strong>do</strong> a<br />

mostrar lágrimas nos olhos. — Eu recebo to<strong>do</strong>s os dias o relatório das mortes. Não tem fim. E as<br />

peças de reposição são infindáveis. Morre um, vem outro. São cada vez mais jovens e não pára de<br />

se apresentar gente pra morrer. Quanto vale cada vida? — falou, já com grossas lágrimas rolan<strong>do</strong><br />

pela face.<br />

Eu não disse mais nada. Não tinha o que dizer. Então, saí dali e fui ao Nordeste para uma<br />

rápida conferência. Na noite daquele mesmo dia, no hotel em Recife, não pude <strong>do</strong>rmir. Minha<br />

mente viajava a mil por hora. Eram imagens de gente morren<strong>do</strong> e de crianças choran<strong>do</strong>. A<br />

intervenção militar já tinha data marcada para começar.<br />

“Senhor, eu não sei o que está acontecen<strong>do</strong> comigo. Mas minha mente está cheia dessas<br />

imagens de morte. O que é que podemos fazer para impedir que haja uma grande chacina nas<br />

favelas <strong>do</strong> Rio? Fala comigo, Senhor”, orei sozinho no quarto <strong>do</strong> hotel.<br />

Na manhã seguinte, voltei bem ce<strong>do</strong> para o Rio e fui direto ao palácio falar com o governa<strong>do</strong>r.<br />

— Nilo, tive uma idéia. Vou lançar uma campanha pelo desarmamento <strong>do</strong> Rio. Muita gente<br />

não vai acreditar, mas, ainda assim, pode criar um clima mais consciente na cidade. O que você<br />

acha? — perguntei.<br />

— Pensan<strong>do</strong> com categorias humanas, eu diria que é loucura. Esse pessoal não quer paz. É<br />

guerra o que as elites querem. Além disso, não há meios de se operacionalizar uma campanha de<br />

desarmamento. Pensan<strong>do</strong> assim, é um devaneio e uma insanidade. Mas estou falan<strong>do</strong> como um<br />

homem de justiça e como governa<strong>do</strong>r. Se você me pergunta como homem de fé, eu digo: “Vá em<br />

frente e que Deus o abençoe.” Conte comigo pro que precisar — disse-me ele já me conduzin<strong>do</strong><br />

para a porta a fim de voltar para uma reunião que eu havia interrompi<strong>do</strong>.<br />

— <strong>Caio</strong>, corre aqui. Tem algo acontecen<strong>do</strong> — disse Verinha no celular no dia seguinte.<br />

Como eu estava mesmo a caminho <strong>do</strong> palácio, não demorei mais de dez minutos para chegar.<br />

— O helicóptero está esperan<strong>do</strong>. Vamos lá. Te conto no caminho — disse-me Nilo assim<br />

que cheguei. Enquanto voávamos para a favela de Parada de Lucas, fiquei saben<strong>do</strong> que <strong>do</strong>na<br />

Santusa, presidente da Associação de Mora<strong>do</strong>res da localidade, havia telefona<strong>do</strong> dizen<strong>do</strong> que os<br />

“meninos” estavam queren<strong>do</strong> entregar umas armas.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos, a multidão já estava presente. A mídia também já se aglomerava,<br />

esperan<strong>do</strong> a comitiva descer <strong>do</strong> helicóptero.


— Governa<strong>do</strong>r, o que o senhor acha que está acontecen<strong>do</strong>? É estratégia de provocação? —<br />

perguntavam uns.<br />

— O senhor acredita nisso? Não acha que é brincadeira? — questionou outro.<br />

— Por que o senhor veio pessoalmente? Não é se expor demais? — indagavam outros ainda.<br />

Nilo foi cauteloso. Disse que saudava com bom coração a iniciativa, mencionou a conversa<br />

comigo e falou que era preciso dar uma chance à paz. A mídia ridicularizou o gesto como um<br />

to<strong>do</strong>. “As armas eram poucas e velhas.” “O governa<strong>do</strong>r não deveria ter i<strong>do</strong>.” “Os bandi<strong>do</strong>s estão<br />

fican<strong>do</strong> mais ousa<strong>do</strong>s.” Essas foram as interpretações divulgadas nos meios de comunicação.<br />

— Nilo, agora é que estou mais anima<strong>do</strong>. Vou tocar pra frente a idéia de desarmamento —<br />

disse a ele.<br />

— Você viu o que acontece? Esses caras só querem é sacanear a gente. Até da paz eles fazem<br />

gozação. Mas se você quer ir, vá. Estou contigo — ele me disse outra vez.<br />

Quan<strong>do</strong> eu estava no processo de instalação da Fábrica de Esperança em Acari, havia<br />

conheci<strong>do</strong> um “gerente <strong>do</strong> movimento” na localidade.<br />

— O Gerê quer falar com o senhor — dissera-me um funcionário da Fábrica. Marcamos o<br />

encontro e eu fui.<br />

— Qual é a sua, seu reveren<strong>do</strong>? — perguntara-me Gerê, naquela ocasião. Expliquei quais<br />

eram os nossos objetivos no lugar e disse que éramos pessoas de paz, mas que, entretanto, não<br />

fazíamos acor<strong>do</strong>s com coisas ilícitas.<br />

— A Fábrica de Esperança vai ser tu<strong>do</strong> isso que o senhor tá falan<strong>do</strong>? Quantas pessoas cês vão<br />

atender aí? — indagou com os olhos bem postos em mim.<br />

— Cem mil por mês daqui a três anos. A maioria será de jovens e a<strong>do</strong>lescentes — falei como<br />

quem fazia uma declaração religiosa.<br />

— Então o senhor é meu pior inimigo, sabia?<br />

— Sim, sabia.<br />

— Mas num faz mal, não. Se eu perder essa guerra pro senhor, fico feliz. Eu perco, mas<br />

graças a Deus que meus filhos vão tá ganhan<strong>do</strong> — concluíra Gerê para minha total perplexidade.<br />

Pois bem, naquele dia, depois da entrega de armas em Parada de Lucas, fui para Acari e pedi<br />

para alguém localizar Gerê e dizer que eu precisava falar com ele.<br />

— O que o senhor quer, reveren<strong>do</strong>? — foi logo perguntan<strong>do</strong>, superdesconfia<strong>do</strong>. Expliquei<br />

que havia fortes indícios de que o Exército iria ocupar as favelas <strong>do</strong> Rio e que, a menos que a<br />

atitude <strong>do</strong>s traficantes mudasse, haveria um banho de sangue, numa guerra na qual poucos<br />

bandi<strong>do</strong>s morreriam, mas que poderia atingir centenas de inocentes.<br />

— Mas e daí? O que o senhor quer que a gente faça? A gente tá aqui pro que der e vier. Num<br />

temos nada a perder — disse Gerê.<br />

— Eu acho que vocês poderiam ser só um pouquinho menos egoístas e ajudar esse povo<br />

daqui a não sofrer por algo que eles não fizeram. Vocês poderiam entregar as armas para as<br />

autoridades e poderiam tirar to<strong>do</strong> o armamento de vocês de circulação. Do jeito que está, vocês<br />

provocam a polícia o tempo to<strong>do</strong> — falei como um bobo para ver qual seria o resulta<strong>do</strong>. Afinal, eu<br />

havia aprendi<strong>do</strong> com Jesus que a melhor maneira de enfrentar o lobo é in<strong>do</strong> como ovelha. “Eis<br />

que vos envio como ovelhas para o meio de lobos”, disse Jesus.<br />

— Qui é isso, reveren<strong>do</strong>? A gente se desarmar? O senhor tá brincan<strong>do</strong> — replicou o gerente.<br />

— Não estou falan<strong>do</strong> em entregar todas as armas. Estou apenas falan<strong>do</strong> em dar um sinal de<br />

boa vontade. A atitude de vocês tem que mudar, senão inocentes vão pagar a conta — falei.<br />

Ele saiu na carreira. Dois dias depois, no dia 9 de novembro de 1994, recebi o reca<strong>do</strong> de que


nos fun<strong>do</strong>s da favela de Acari, na praça Roberto Carlos, iria haver uma entrega de armas. Quan<strong>do</strong><br />

cheguei lá, a mídia já estava presente. Foram 29 armas. Entre elas uma AR 15.<br />

— <strong>Caio</strong>, a gente precisa conversar urgente — disse Rubem César. No dia seguinte,<br />

sexta-feira à noite, nos encontramos na casa <strong>do</strong> primo de Rubem, Ernan Caldeira, que também<br />

trabalha como meu assessor jurídico.<br />

— Essa ação <strong>do</strong> Exército não vai dar certo. Tínhamos sugeri<strong>do</strong> ao ministro da Justiça uma<br />

ação de inteligência das forças armadas e das polícias no senti<strong>do</strong> de controlar fronteiras. Mas eles<br />

estão partin<strong>do</strong> para uma ação de invasão de favelas. Pode ser trágico. Mas agora não tem mais<br />

volta. Esse negócio de desarmamento pode ser a única coisa a impedir enfrentamentos<br />

sangrentos — disse Rubem.<br />

— Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. O problema é que ninguém acredita nisso. A<br />

mídia nos trata como imbecis quan<strong>do</strong> a questão é levantada. Não creio que possamos desarmar o<br />

Rio, mas podemos ajudar a impedir um banho de sangue — respondi.<br />

— Só gente de Deus pode ter coragem para fazer isso. Ninguém mais. Como é que você<br />

manda um traficante entregar armas? Com que autoridade? Só se for coisa da fé — falou o meu<br />

amigo e coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Viva Rio, arrancan<strong>do</strong> <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da alma suas reminiscências de neto de<br />

<strong>pastor</strong> e filho de presbítero.<br />

— A minha idéia é uma invasão de paz. A gente tem que fazer uma operação por terra, mar e<br />

ar. Cercar o Rio com a idéia <strong>do</strong> desarmamento. Enquanto isso, vamos subir as favelas e pedir que<br />

as comunidades pressionem os que usam armas a fazerem, pelo menos, “gestos de<br />

desarmamento”. Pode ser pouco, mas pode ajudar — concluí.<br />

Na segunda-feira, reuni os principais líderes da Associação Evangélica no Rio no meu<br />

escritório e expus o plano. A adesão foi total. Dividimos o grupo em diversas comissões e criamos<br />

um contingente especial de inteligência forma<strong>do</strong> por oficiais evangélicos da Aeronáutica, Corpo<br />

de Bombeiros e Polícia Militar, além de <strong>pastor</strong>es que trabalhavam em zonas de extrema violência.<br />

Dez ao to<strong>do</strong>. Solicitamos autorização ao Ministério <strong>do</strong> Exército para receber armas, entregá-las à<br />

polícia e depois reavê-las, a fim de usá-las na construção de um monumento à paz. Conseguimos<br />

permissão escrita. Uma tenda de oração foi armada no centro <strong>do</strong> Rio, onde pessoas se revezavam<br />

dia e noite fazen<strong>do</strong> preces pela cidade. Mandamos imprimir cerca de cinqüenta mil adesivos de<br />

carro com a frase Rio, Desarme-se.<br />

Gravamos uma fita de TV com Gregório, o Gor<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong> o Rio à paz, fizemos com que<br />

circulasse ao máximo nos meios de comunicação e convocamos uma coletiva com a imprensa<br />

para a Fábrica de Esperança. Naquele dia, às nove da manhã, Nilo inaugurou o primeiro projeto<br />

social instala<strong>do</strong> nas dependências da Fábrica: o Centro Comunitário de Defesa da Cidadania,<br />

idéia dele, que presta serviços de <strong>do</strong>cumentação e assistência jurídica básica à população. Às onze<br />

horas a mídia estava toda lá. Rubem apresentou a campanha e depois eu expliquei como cada<br />

coisa iria acontecer e apresentei os responsáveis por cada área.<br />

— Nosso objetivo é tríplice: criar um espírito de desarmamento na cidade, estimular os<br />

mora<strong>do</strong>res de favela a usarem seu capital moral para pedir aos que entre eles promovem a<br />

violência armada para que façam gestos de desarmamento e, por último, construir, com a<br />

eventual coleta de armas, um monumento à paz, no Rio — esclareci.<br />

Choveram perguntas de to<strong>do</strong>s os tipos e respondi ao maior número possível. Ali, entretanto,<br />

já era possível perceber que a maioria das pessoas não acreditava no que estávamos propon<strong>do</strong>.<br />

Quase todas as questões apontavam para uma indisposição em aceitar a operacionalidade daquele<br />

tipo de ação.<br />

— Mas os senhores pensam em desarmar a cidade? — era o que mais se ouvia.


— Não. Somos idealistas, mas não chegamos a ser estúpi<strong>do</strong>s. Desarmar o Rio é tarefa para<br />

Deus, e eu não sou Ele e nem secretário Dele. Apenas achamos que é possível fazer gestos de<br />

desarmamento que afetem a atitude mental das pessoas na sociedade — repeti inúmeras vezes.<br />

Organizamo-nos em grupos de invasão de paz e partimos para o ataque. Em cerca de 45 dias<br />

visitamos mais de trinta favelas. A primeira subida foi ao morro Dona Marta e quase não<br />

aconteceu, pois na hora de subir chegaram três pessoas dizen<strong>do</strong> que alguns irmãos tinham ti<strong>do</strong><br />

visões de que eu morreria naquela favela.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, ligaram de São Paulo dizen<strong>do</strong> que alguém teve uma visão <strong>do</strong> senhor coberto<br />

de sangue. O senhor acha que deve subir aí hoje? — perguntou-me minha secretária às 17 horas<br />

pelo celular.<br />

— Se hoje for dia, será — respondi. Mas os que estavam comigo não estavam tão certos de<br />

que deveríamos subir.<br />

— Olha, eu acredito em profecias, mas não dirijo minha vida por elas. Se eu aceitar a tirania<br />

das profecias, estou perdi<strong>do</strong>, não faço mais nada na vida. Profecia é pra se cumprir, não para<br />

impedir o caminho da gente. Mas essa profecia vai ser mudada. Vamos orar e vamos subir. Nós<br />

servimos a Deus, não aos profetas — falei.<br />

— A gente vai contigo até o fim — disse o <strong>pastor</strong> Ezequiel Teixeira.<br />

Subimos e foi uma bênção. Descemos exaustos e felizes por volta da meia-noite. O me<strong>do</strong><br />

desapareceu e as invasões passaram a ser uma grande festa. Eram grupos que iam de 12 até mil<br />

pessoas, como foi o caso da Rocinha. Sempre fomos recebi<strong>do</strong>s com extremo carinho. Íamos de<br />

casa em casa, cantávamos nas ruelas e becos, orávamos com os <strong>do</strong>entes, ensinávamos canções às<br />

crianças, dávamos as mãos aos bêba<strong>do</strong>s em bares e nos confraternizávamos com eles, parávamos<br />

em lugares marca<strong>do</strong>s por crimes, mortes, chacinas e sombras e pedíamos a Deus que libertasse<br />

as pessoas de suas lembranças <strong>do</strong>lorosas e de seus fantasmas.<br />

Houve de tu<strong>do</strong> naquelas invasões. No morro Dona Marta, encontrei uma moça encostada a<br />

um poste, às dez horas da noite, choran<strong>do</strong>, com o rosto incha<strong>do</strong>, quase a ponto de explodir, tanto<br />

era o pus que havia sob a pele dela.<br />

— Meu Deus! Que é isso menina? — perguntei. Ela só gemia. Quis levá-la ao médico.<br />

— Tô vin<strong>do</strong> de lá. Ele não sabe o que fazer — ela me respondeu entre gemi<strong>do</strong>s.<br />

— Então, deixa eu botar a mão na tua cabeça e pedir a Jesus pra curar você. Posso? —<br />

perguntei, movi<strong>do</strong> de compaixão por ela. Ela apenas confirmou com os olhos.<br />

— Senhor Jesus. Sei que Tu estás aqui no Dona Marta. Vê a <strong>do</strong>r desta moça e tira dela esse<br />

mau. Cura esta garota, Jesus — orei rapidamente, mas com fé e intensidade. Havia umas<br />

quarenta pessoas olhan<strong>do</strong> o que estava acontecen<strong>do</strong>. Prosseguimos no nosso caminho. No dia<br />

seguinte, André Fernandes, nosso companheiro de aventura, me contou que a moça estava<br />

totalmente curada. O pus desaparecera de sua face. Demos glória ao nome de Deus e nos<br />

animamos em relação à nossa missão.<br />

O chocante era constatar como, à medida que a mídia divulgava nossas incursões, duas coisas<br />

aconteciam mais e mais freqüentemente.<br />

A primeira era que nossa popularidade e respeito nas favelas alcançava níveis inimagináveis.<br />

— Pára de beber. O <strong>pastor</strong> tá passan<strong>do</strong> — eu ouvia.<br />

— Fecha a boca. Tem gente de Deus no pedaço — falavam outros.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, o senhor é sangue bom — gritavam “os meninos”.<br />

— Tira tu<strong>do</strong> que é bebida com álcool daqui. O reveren<strong>do</strong> vai entrar pra tomar um guaraná —<br />

disse um certo rapaz que só depois fiquei saben<strong>do</strong> que era o segun<strong>do</strong> na hierarquia <strong>do</strong> tráfico de<br />

uma importante favela.<br />

A segunda percepção era a de que nossas intenções não estavam sen<strong>do</strong> bem entendidas.


Onde íamos, o Exército chegava junto.<br />

— Que negócio é esse, gente? — comecei a perguntar.<br />

— É que nossa agenda está sen<strong>do</strong> divulgada pelos jornais, rádios e pela TV Globo, no Bom<br />

dia Rio, todas as manhãs — disse-me André Fernandes.<br />

— Então, de hoje em diante, a gente não divulga mais. Vamos ver o que acontece — falei.<br />

Melhorou. Não encontramos mais o Exército com a freqüência anterior. — Pode ser apenas<br />

coincidência, mas vamos deixar assim. Caso contrário, vai ter gente pensan<strong>do</strong> que nós<br />

trabalhamos para as forças armadas.<br />

— Nós estamos sen<strong>do</strong> vigia<strong>do</strong>s — diziam-me os membros <strong>do</strong> nosso “serviço de<br />

inteligência”. Continuamos as invasões assim mesmo. Como não estava acostuma<strong>do</strong> a tanto<br />

sacrifício físico, as subidas levavam até seis horas. Muitas vezes subimos às cinco da tarde e<br />

descemos por volta da meia-noite. Em muitas daquelas subidas, levei comigo minha filha,<br />

Juliana, naquele tempo com apenas dez anos.<br />

— Papai, eu nasci num lugar assim? — ela me perguntou mais de uma vez.<br />

— Foi, amor. Você nasceu num lugar como este — eu respondia.<br />

Depois de já ter i<strong>do</strong> comigo a mais de cinco favelas, numa noite, por volta de uma da<br />

madrugada, ela veio até o meu quarto com o cabelo molha<strong>do</strong> de um bom banho que acabara de<br />

tomar.<br />

— Move over, Dad. Let me be here with you just a bit — ela me disse. Cheguei para o la<strong>do</strong>, e<br />

ela deitou. Fitou-me profundamente os olhos e depois disse ainda em inglês: — Papai, obrigada<br />

por me deixar ir às favelas com você, porque agora eu sei como a minha vida seria se Deus não<br />

tivesse me ama<strong>do</strong> tanto que man<strong>do</strong>u você e mamãe pra me darem a vida maravilhosa que eu<br />

tenho.<br />

Eu não consegui nem responder. Ela foi embora para o quarto dela. Eu fiquei na cama e<br />

chorei até às três da manhã. Era a maior recompensa paterna que eu poderia almejar da parte<br />

dela.


Capítulo 48<br />

“Sou uma criança, mas meu Pai vive eternamente, e é o tutor que me convém; Ele<br />

é ao mesmo tempo o que me gerou e o que me protege.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No início de dezembro de 1994, eu estava no morro Dona Marta, numa tarde ensolarada,<br />

trocan<strong>do</strong> armas de brinque<strong>do</strong> por brinque<strong>do</strong>s de paz. O lugar já me era muito familiar desde a<br />

primeira vez que havia subi<strong>do</strong> a favela, seis meses antes, para orar com um grupo de setenta<br />

<strong>pastor</strong>es que atenderam ao meu convite para abençoar o Rio desde o cume daquela montanha.<br />

Depois daquele dia, eu voltei várias vezes ao Dona Marta. Naquela tarde, entretanto, era<br />

diferente. Estávamos no meio da campanha Rio, Desarme-se, e onde íamos havia repórteres de<br />

jornais, rádios e televisões. A garotada ficava agitada, os adultos, perplexos, e os traficantes, de<br />

plantão.<br />

— Ei, moçada. Nós estamos aqui para trocar armas de brinque<strong>do</strong> por brinque<strong>do</strong>s de Natal.<br />

Quem quiser é só chegar junto — eu gritava no alto-falante que levávamos e o lugar ficava<br />

inflama<strong>do</strong> de crianças.<br />

De repente, André Fernandes, o jovem guerreiro <strong>do</strong> evangelho que havia larga<strong>do</strong> o conforto<br />

de sua casa de classe média para ir viver naquela favela a fim de melhor pregar o evangelho, me<br />

disse:<br />

— Há três traficantes nos olhan<strong>do</strong>, senta<strong>do</strong>s ali embaixo naquela casa, e eles mandaram<br />

dizer que querem conversar com o senhor.<br />

— Então vamos lá — eu falei.<br />

Aproximamo-nos <strong>do</strong> lugar e vimos <strong>do</strong>is rapazes senta<strong>do</strong>s no chão e um outro numa mesa,<br />

com as pernas balançan<strong>do</strong> irrequietamente. Os três pareciam ter a mesma idade. Eu daria, no<br />

máximo, uns 22 anos. O rapaz sobre a mesa perguntou se eu queria beber um pouco <strong>do</strong><br />

refrigerante dele. Aceitei e dei uma golada.<br />

— Escuta aqui, qual é a tua de ficar trocan<strong>do</strong> armas de brinque<strong>do</strong> por brinque<strong>do</strong>s de paz? Cê<br />

acha que vai acabar com a violência fazen<strong>do</strong> isso? — perguntou-me o rapaz agita<strong>do</strong>, assenta<strong>do</strong><br />

sobre a mesa.<br />

— Sou <strong>pastor</strong>, mas não sou idiota — respondi. Então mostrei que aquela “troca” era apenas<br />

um mecanismo através <strong>do</strong> qual se pretendia mexer com a fantasia das crianças e com a sociedade<br />

como um to<strong>do</strong>, levantan<strong>do</strong> a questão de como nossos brinque<strong>do</strong>s são violentos.<br />

— É, grande sacada. Sua campanha é mais profunda <strong>do</strong> que pensei — falou, dan<strong>do</strong> um<br />

risinho maroto, o rapaz senta<strong>do</strong> sobre a mesa. — Mas me disseram que a sua ousadia vai mais


longe. É verdade que cê quer desarmar a gente, os traficantes? — perguntou com um tom<br />

provocativo. Respondi que não era tão ingênuo assim e que sabia que os traficantes jamais<br />

entregariam todas as suas armas.<br />

— Então, qual é a tua? U quê qui cê qué? — perguntou um rapazinho negro que estava<br />

senta<strong>do</strong> no chão, intriga<strong>do</strong> com minha aparente firmeza e frieza.<br />

— Os traficantes podem iniciar um processo de diálogo com a sociedade se começarem<br />

entregan<strong>do</strong> algumas armas — disse como quem não queria nada. Aí olhei direto para ele e<br />

demonstrei que o fato dele ser traficante não me dizia nada. — A vida de vocês é burra. Tenho<br />

visto vocês morrerem to<strong>do</strong>s os dias. Quem não morre, vai pra Bangu I, o que é morte também.<br />

Por que vocês não se perguntam a quem é que a vida de vocês está sen<strong>do</strong> útil? Vocês são<br />

instrumentos úteis nas mãos de um pessoal que nunca é apanha<strong>do</strong> e que mantém essa porcaria<br />

sempre funcionan<strong>do</strong> — disse com raiva.<br />

Foi quan<strong>do</strong> ele me fez confissões seriíssimas de como o Exército era ineficaz no combate às<br />

drogas e de como a polícia estava nas mãos deles.<br />

— O Exército, a gente passa bati<strong>do</strong>, não sabem de nada. E a polícia a gente compra. Eu an<strong>do</strong><br />

com cem mil real pra dar pros homem. Não adianta. Eles prende a gente e a gente dá grana pra<br />

eles. Aí a gente sai da cana ainda na rua. É tu<strong>do</strong> podre. Os cara são pior que a gente. Também,<br />

ganhan<strong>do</strong> aquele salário miserável. Eu tenho até pena <strong>do</strong>s cara — falou o garoto da mesa, com um<br />

ar misto, onde o bandi<strong>do</strong> e o cidadão frustra<strong>do</strong> se encontravam numa síntese perversa. — Cê já<br />

ouviu falar no Nem Maluco? — perguntou em seguida.<br />

— Já, várias vezes. Ele tá sempre nos jornais. Dizem que é um rapaz bem jovem e até bonito.<br />

Mas é uma pena, pois vai morrer a qualquer momento — falei como um mensageiro de Deus. A<br />

essa altura da conversa, já desconfiava a identidade <strong>do</strong> traficante senta<strong>do</strong> na mesa, que<br />

monopolizara quase inteiramente a conversa.<br />

— Vira essa boca pra lá. Qui morrê nada — disse. — Muito prazer, Nem Maluco —<br />

complementou, estenden<strong>do</strong>-me a mão.<br />

Aí então eu fui fun<strong>do</strong>. Ven<strong>do</strong> que a máscara fora tirada, entrei com vontade. Disse que vinha<br />

acompanhan<strong>do</strong> os movimentos dele no Complexo <strong>do</strong> Alemão e que, pra mim, estava claro que, se<br />

a polícia ou o Exército não o pegassem, os rivais o pegariam.<br />

— É, podem até pegá, mas vão cumê muita bala — disse com uma gargalhada.<br />

— Que idade você tem, filho? — indaguei.<br />

— Dezenove. Parece? — ele devolveu bem-humora<strong>do</strong>.<br />

Fiquei surpreso. Tinha a idade de meu filho mais velho. Dentes lin<strong>do</strong>s. Sorriso aberto.<br />

Desinibi<strong>do</strong>. Desgraçadamente cheio de vida. Nossa conversa prosseguiu. Contei-lhes de minha<br />

conversão e falei que Jesus dava a chance de uma vida nova. Eles ouviram atentos. A seguir, disse<br />

a Nem Maluco que desejava fazer uma prece por eles. Fiz uma oração com meus olhos abertos na<br />

direção deles. Apenas estendi minha mão e liguei a conversa com eles à fala de uma oração,<br />

pedin<strong>do</strong> que Deus desse luz para que eles (especialmente Nem), não fossem apanha<strong>do</strong>s pelas<br />

“trevas totais”.<br />

Saí dali deixan<strong>do</strong>-os no mesmo lugar. Alguns repórteres chegaram nesse ínterim e ficaram<br />

queren<strong>do</strong> saber com quem eu estivera conversan<strong>do</strong>. A alma de evangelizar figuras públicas<br />

(sejam homens de bem ou bandi<strong>do</strong>s) é a total discrição. Por isto, disse apenas que eram uns<br />

“meninos da favela”.<br />

— Pastor, os outros <strong>do</strong>is são o Raimundinho e o Ronaldinho. Eles são os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> tráfico<br />

aqui no Dona Marta — informou-me André.<br />

Alguns poucos dias depois desse episódio, um repórter telefonou-me bem ce<strong>do</strong> para dizer<br />

que o Nem Maluco tinha si<strong>do</strong> brutalmente assassina<strong>do</strong> pelos homens <strong>do</strong> Uê naquela madrugada.


O corpo foi esfola<strong>do</strong> e arrasta<strong>do</strong> pelas ruas <strong>do</strong> Complexo <strong>do</strong> Alemão. Nem Maluco foi decapita<strong>do</strong>.<br />

Que desperdício!<br />

Dias depois, Ronaldinho e Raimundinho se desentenderam. Eram irmãos. Mas Ronaldinho<br />

man<strong>do</strong>u dar um tiro na cabeça de Raimundinho. Ronaldinho está preso em Bangu I: a última<br />

parada antes da sepultura.<br />

Nós continuamos nossas incursões nas favelas. Mangueira, Rocinha e Borel foram as mais<br />

marcantes das mais de 45 que visitamos. No Borel, Rubem César Fernandes subiu conosco. O<br />

Exército tinha acaba<strong>do</strong> de realizar duas ações ali: tiraram a cruz que havia no alto <strong>do</strong> monte,<br />

alegan<strong>do</strong> que o Coman<strong>do</strong> Vermelho era o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> símbolo, e tomou uma Igreja Católica que fica<br />

no alto da favela, já na outra comunidade fronteiriça ao Borel, chamada Chácara <strong>do</strong> Céu, e<br />

transformou-a em sala de interrogatório de suspeitos. Encontraram sangue dentro <strong>do</strong> templo. As<br />

“irmãs católicas” disseram que haviam tortura<strong>do</strong> pessoas no lugar de culto. Foi um escândalo.<br />

Nós fomos subin<strong>do</strong> o Borel entre canções e preces. Às cinco da tarde, quan<strong>do</strong> iniciamos,<br />

éramos no máximo trinta pessoas. À meia-noite, quan<strong>do</strong> chegamos à igreja, que fica quase no<br />

topo <strong>do</strong> monte, já éramos mais de trezentas. À nossa frente, como guia local, ia o tempo to<strong>do</strong><br />

Pedro <strong>do</strong> Borel, missionário de não mais que trinta anos de idade, com cara de garotão de praia e<br />

que, à semelhança de André Fernandes, compõe o grupo cada vez mais apaixona<strong>do</strong> de jovens<br />

cristãos de classe média que saem de suas casas, alugam barracos, e vão servir a Deus na favela.<br />

Pedro estava to<strong>do</strong> remenda<strong>do</strong>. Sua canela tinha si<strong>do</strong> severamente ferida por chutes e botinadas<br />

que recebera de solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Exército, quan<strong>do</strong> da recente invasão da favela.<br />

— Qui é isso, moço? Num faz isso não, moço! Sou missionário. Trabalho aqui e tenho<br />

carteira de trabalho — dizia Pedro, enquanto o pau cantava na canela dele.<br />

— Que missionário que nada, seu safa<strong>do</strong>! Tu tem cara de bandi<strong>do</strong>. Tá é disfarça<strong>do</strong>. Vai<br />

apanhar sim — respondiam os soldadinhos, enquanto descascavam o osso da canela de Pedro,<br />

que apanhou até que o povo <strong>do</strong> local chegou para socorrê-lo.<br />

— Ele é <strong>pastor</strong> sim. Ele é da Jocum. Num faz isso, não. O Pedro ajuda a gente — disseram<br />

muitas vozes em seu favor, fazen<strong>do</strong> os militares pararem de bater no irmão.<br />

As estações da subida eram tantas quantas a vida nos oferecesse: um <strong>do</strong>ente numa casa, um<br />

velho choran<strong>do</strong> numa cadeira de rodas, crianças se agarran<strong>do</strong> às nossas pernas, jovens na esquina<br />

sorrin<strong>do</strong> para nós e nos chaman<strong>do</strong> de sangue bom, uma “mãe de santo” local que estava <strong>do</strong>ente e<br />

queria receber uma oração <strong>do</strong> “<strong>pastor</strong> <strong>Caio</strong>”. Enfim, tu<strong>do</strong> era pretexto para nós pararmos.<br />

Entretanto, o mais significativo de to<strong>do</strong>s os momentos foi uma parada no lugar que tinha si<strong>do</strong> a<br />

casa de invocação de espíritos de Isaías <strong>do</strong> Borel, preso em Bangu I.<br />

— Aqui é o lugar mais temi<strong>do</strong> <strong>do</strong> morro — disse-me uma pessoa <strong>do</strong> local.<br />

— Por quê? — indaguei.<br />

— É que o Isaías “chamava” os espírito aí. Pra nós, é um lugar mal-assombra<strong>do</strong> — explicou.<br />

— O Isaías agora não invoca mais espíritos malignos. Eu o batizei na prisão e ele agora lê a<br />

Bíblia e deseja mudar seus caminhos — falei, enquanto uma multidão <strong>do</strong> lugar se juntava ao<br />

nosso grupo aumentan<strong>do</strong> bastante a audiência. Os olhos da maioria estavam arregala<strong>do</strong>s. Havia<br />

temor no ar. Então constatei a profundidade <strong>do</strong> poder de Isaías sobre os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Borel.<br />

Além de ser considera<strong>do</strong> pelos habitantes o bandi<strong>do</strong> mais temi<strong>do</strong> e justo que entre eles já vivera,<br />

Isaías também tinha sobre si a mística <strong>do</strong>s bruxos e <strong>do</strong>s feiticeiros. Ele carregava sobre sua<br />

imagem duas grandes forças: a militar e a religiosa, e ambas eram, no seu caso, combinações de<br />

poder incomparável: o traficante-militariza<strong>do</strong> e o bandi<strong>do</strong>-sacer<strong>do</strong>taliza<strong>do</strong>. Naquele lugar, a força<br />

da presença de Isaías, mesmo estan<strong>do</strong> preso, era incomparável. Ele tinha muito mais força no


Borel <strong>do</strong> que qualquer outra autoridade <strong>do</strong> país. Tornara-se religião e esta<strong>do</strong> para o inconsciente<br />

coletivo. — Gente, vamos nos reunir aqui nas proximidades da laje <strong>do</strong> lugar de “invocação de<br />

mortos” <strong>do</strong> Isaías, porque nós vamos desmanchar isso agora, em nome de Jesus Cristo — disse<br />

eu diante de um público perplexo.<br />

— O senhor tem certeza? — foi a pergunta assustada que ouvi de alguém atrás de mim.<br />

— O Isaías não vai ficar com raiva. Se ele se tornou cristão pra valer, ele vai aceitar o que nós<br />

vamos fazer. Além disso, a autoridade de Jesus é maior que a de Isaías. E eu sou ministro de<br />

Cristo. Vamos desfazer a consagração desse lugar aos espíritos e vamos dedicá-lo ao Espírito de<br />

Jesus — falei com autoridade.<br />

Cantamos hinos de vitória, que afirmavam a soberania de Cristo sobre to<strong>do</strong>s os principa<strong>do</strong>s e<br />

potestades espirituais, e fizemos uma oração intrépida.<br />

— Jesus, nós desfazemos to<strong>do</strong>s os vínculos desse lugar com forças negativas de<br />

espiritualidade e ligamos esse espaço a Ti. Tira daqui as forças da morte e <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Põe Tua luz<br />

aqui, Senhor Jesus — eu orei em companhia <strong>do</strong>s que ali estavam.<br />

Continuamos a viagem para o topo da montanha. No alto <strong>do</strong> Borel há uma fronteira. Quem<br />

mora <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de cá da linha nunca passa para o outro la<strong>do</strong> e vice-versa. Os traficantes <strong>do</strong> Borel<br />

vivem em pé de guerra com os da Chácara <strong>do</strong> Céu. Por isso, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Borel parou a alguns<br />

poucos metros da linha imaginária.<br />

— O que foi gente? — perguntei.<br />

— Daqui a gente não passa — falaram.<br />

— Por quê? — insisti como quem não sabia de nada.<br />

— É que quem passou, morreu. A Chácara <strong>do</strong> Céu começa ali — disse-me uma garotinha de<br />

uns 11 anos, agarran<strong>do</strong>-se às minhas pernas e apontan<strong>do</strong> para um lugar no chão escuro a não<br />

mais que três metros adiante de nós.<br />

— Hoje pode. Nós estamos aqui em paz e essa caravana traz amor — gritei em voz bem alta,<br />

quase discursan<strong>do</strong>, na certeza de que por trás <strong>do</strong>s capins e muretas arruinadas havia um pequeno<br />

exército nos vigian<strong>do</strong>. — Não tenham me<strong>do</strong>. Venham to<strong>do</strong>s. Em nome de Jesus, eu assumo a<br />

responsabilidade — gritei fazen<strong>do</strong> sinal de avançar com a mão e inician<strong>do</strong> imediatamente a<br />

caminhada para cruzar a “fronteira”.<br />

— Ai, ai, ai — diziam as crianças esfregan<strong>do</strong> as mãos com excitação e me<strong>do</strong>. Era como se<br />

estivessem entran<strong>do</strong> em Marte ou num outro planeta.<br />

Então, os habitantes <strong>do</strong> Borel que conosco estavam ficaram bem juntinhos, fazen<strong>do</strong><br />

exatamente o que não deveria ser feito. Fui entran<strong>do</strong> à frente com Pedro.<br />

— O senhor tá ven<strong>do</strong> a moçada aí <strong>do</strong> la<strong>do</strong>, com as AR 15 e as máscaras na cara? —<br />

perguntou-me Pedro, num sussurro.<br />

— Tô sim. Vamos em frente — falei, ven<strong>do</strong> umas silhuetas humanas e as pontas das armas<br />

de porte viradas para o alto.<br />

Era meia-noite quan<strong>do</strong> cruzamos a fronteira. Chegamos, enfim, ao lugar onde as freiras<br />

católicas moravam. Cantamos hinos evangélicos e acordamos as irmãs. Elas saíram e nos<br />

abraçaram. Oramos juntos e celebramos algo que tínhamos em comum muito mais forte que<br />

nossas diferenças religiosas: nosso amor à paz e nosso desejo sagra<strong>do</strong> de pacificar o Rio.<br />

À uma da manhã estávamos no cruzeiro, sob a nova cruz que o Exército havia posto no mesmo<br />

lugar, em reparação ao erro anterior. Afinal, frei Olinto, sacer<strong>do</strong>te sério, lúci<strong>do</strong> e planta<strong>do</strong><br />

missionariamente há anos no chão <strong>do</strong> Borel, viera a público dizer que a igreja, e não o CV, é que<br />

havia finca<strong>do</strong> o símbolo cristão naquelas alturas. Aquela noite será inesquecível para to<strong>do</strong>s os que<br />

se sentaram no chão, em volta da cruz, e se deixaram aban<strong>do</strong>nar em canções e preces pela Cidade<br />

Maravilhosa. Lá de cima, o Rio é ainda mais lin<strong>do</strong>.


— Eu não sou evangélica, mas se tivesse que ser, eu queria ser uma cristã como você. Assim<br />

vale a pena ser de Cristo — disse-me, em inglês, a repórter <strong>do</strong> Miami Herald que estava andan<strong>do</strong><br />

comigo há uma semana, preparan<strong>do</strong> uma matéria para o jornal americano.


Capítulo 49<br />

“Em todas essas coisas que percorro não encontro segurança para minha alma<br />

senão em Ti: Tu és o lugar onde se reúnem meus sentimentos esparsos, sem que<br />

nada se parta em mim.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

— Reveren<strong>do</strong>, o Caco gostaria de conhecer o senhor. Quan<strong>do</strong> é que a gente pode ir<br />

encontrá-lo? — perguntou Cadu, da produção <strong>do</strong> Fantástico.<br />

— Amanhã de manhã na Fábrica de Esperança — falei, sem nem entender direito <strong>do</strong> que se<br />

tratava, pois o barulho <strong>do</strong> trânsito na avenida Rio Branco estava insuportável.<br />

No dia seguinte, Caco Barcelos chegou com extrema pontualidade. Conversamos sobre a<br />

Operação Rio que o Exército estava realizan<strong>do</strong> e o ouvi dizer que desejava fazer exatamente o que<br />

nenhum repórter que eu havia conheci<strong>do</strong> até então, naquele contexto, tivera peito para fazer.<br />

— Eu quero ficar dentro da favela de Acari, escondi<strong>do</strong>, com uma câmera. Quan<strong>do</strong> eles<br />

entrarem, eu não quero entrar com eles. Eu quero estar lá dentro. Quan<strong>do</strong> a gente vai com eles,<br />

acaba só ven<strong>do</strong> o que eles deixam. Eu quero vê-los em ação antes deles saberem que tem mídia lá<br />

— disse-me aquele que para muitos, se não para a maioria, é o melhor e mais sensível repórter<br />

social <strong>do</strong> Brasil.<br />

Arranjamos uma casa de uma evangélica para ele ficar dentro da favela e fizemos contatos<br />

com a Associação de Mora<strong>do</strong>res para ninguém pensar que ele era X-9: olheiro da polícia. Caco,<br />

Cadu e o cameraman, entretanto, preferiram ficar <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> na laje <strong>do</strong> sexto andar <strong>do</strong> prédio<br />

central da Fábrica de Esperança.<br />

— Daqui a gente tem uma visão melhor. E ainda dá tempo de entrar antes deles na favela, se<br />

eles vierem — disseram.<br />

Como o Exército não invadia Acari e a Globo cobrava resulta<strong>do</strong>s rápi<strong>do</strong>s para a matéria de<br />

Caco, eles ficaram desanima<strong>do</strong>s.<br />

— Acho que a gente não vai conseguir nada. Os rumores é de que vão invadir Acari a<br />

qualquer momento. Mas quan<strong>do</strong>? O Caco tá cheio de outras pautas. Acho que não vai dar pra<br />

esperar mais — disse Cadu.<br />

— Quan<strong>do</strong> é que o senhor vai subir outro morro, reveren<strong>do</strong>? — indagou Caco Barcelos.<br />

— Hoje eu vou subir o Juramento, a favela que fica na região onde Escadinha foi cria<strong>do</strong> —<br />

falei sem maiores excitamentos. Afinal, naquele mês de dezembro, “subir favela” era meu middle<br />

name, como diriam os americanos.<br />

— A gente pode ir com o senhor? — perguntou Caco.


— Olha, a Globo anda meio queimada nas favelas. A maioria das matérias são muito “chapa<br />

branca” e os mora<strong>do</strong>res ficam magoa<strong>do</strong>s. Cê viu aquela menina da Globo na frente da Mangueira,<br />

apontan<strong>do</strong> para a favela e dizen<strong>do</strong>: “Agora o Exército está cercan<strong>do</strong> os bandi<strong>do</strong>s?” Meu Deus,<br />

Caco, ela estava apontan<strong>do</strong> pra favela e lá há milhares de cidadãos honestos, viven<strong>do</strong> sob o terror<br />

de apenas alguns bandi<strong>do</strong>s. Ela não podia falar assim — comentei com tom de discurso.<br />

— É, infelizmente isso às vezes acontece — disse Cadu.<br />

— Mas dá pra gente ir com o senhor? — insistiu Caco com perseverança jornalística.<br />

— Vamos sim, e seja o que Deus quiser — falei.<br />

Naquele fim de tarde caiu um pé d’água de assustar. Não pudemos reunir quase ninguém<br />

para ir conosco. Os que apareceram foram apenas os <strong>do</strong> time base que andava comigo naquele<br />

dia: Marcos Batista, <strong>pastor</strong> Samuel Brum e Edinal<strong>do</strong>, um evangelista da Assembléia de Deus local<br />

que nos acompanhava. Os demais eram membros das duas equipes de televisão que vieram<br />

conosco: o Fantástico e o Pare & Pense. Municiamo-nos de folhetos com mensagens de<br />

desarmamento e fomos entran<strong>do</strong>. Não havia ninguém nas ruas. To<strong>do</strong>s estavam em casa ou<br />

soca<strong>do</strong>s nos ínfimos bares que havia no caminho.<br />

E a água não parava de cair em profusão. Batíamos nas portas <strong>do</strong>s barracos e entrávamos.<br />

Falávamos de paz, perguntávamos se havia alguma necessidade espiritual na casa que nós<br />

pudéssemos atender, fazíamos preces e depois íamos adiante.<br />

— Paz seja nesta casa — gritei com os braços abertos para um grupo de mulheres que estava<br />

no fun<strong>do</strong> de uma viela. Eu vestia branco de alto a baixo. Atrás de mim, estavam as luzes da<br />

televisão e a chuva caía forte, dan<strong>do</strong> ao ambiente um clima de filme Blade runner.<br />

— Meu Deus, meu Deus, não meu Deus! — gritaram as mulheres, para em seguida pararem<br />

congeladas, umas com as mãos na boca, outras ainda tentan<strong>do</strong> sair na carreira para dentro de<br />

casa.<br />

— Calma gente, calma gente! — gritei perceben<strong>do</strong> que algo muito estranho estava<br />

acontecen<strong>do</strong>.<br />

— Ai, meu Deus, que susto. Assim o senhor mata a gente. Eu pensei que fosse o anjo da<br />

morte que tinha vin<strong>do</strong> buscar a gente — falou com a respiração ofegante e a mão na frente na<br />

testa uma senhora gordinha de uns quarenta anos.<br />

Foi então que eu percebi que a cena fora de fato apavorante. Com o Exército nas ruas, as<br />

quadrilhas <strong>do</strong> Juramento em guerra contra as de outras regiões, a chuva torrencial com seus<br />

trovões e relâmpagos apavorantes e as conversas sobre possíveis conflitos arma<strong>do</strong>s, a atmosfera<br />

psicológica <strong>do</strong>s habitantes era de total suspense. E lá estava eu: falan<strong>do</strong> de paz, com os braços<br />

abertos, na escuridão, no meio da chuva e com minha silhueta desenhada de maneira surrealista<br />

pelas luzes <strong>do</strong>s refletores que estavam nas minhas costas. Eu era, naquela noite, a visagem<br />

perfeita para aquelas apavoradas senhoras da favela.<br />

— Perdão. Eu não quis assustar vocês. Será que dá pra gente conversar um pouco? —<br />

perguntei. Não deu para conversar. As mulheres riam tanto e nós também, que não houve clima<br />

para reflexões de natureza espiritual. Rimos, rimos e rimos. Depois partimos, na escuridão,<br />

morro acima, pela lama.<br />

A favela <strong>do</strong> Juramento é maior no imaginário <strong>do</strong>s cariocas <strong>do</strong> que no chão de sua geografia. Na<br />

verdade, trata-se de um morro não tão alto, onde se abrigam alguns milhares de pessoas, mas que<br />

está longe de ser grande. Grande é a sua fama. É o morro <strong>do</strong> Escadinha, <strong>do</strong> bandi<strong>do</strong> herói que<br />

protagonizou cenas criminosas que entraram para a história marginal <strong>do</strong> Brasil. A mãe de José<br />

Carlos <strong>do</strong>s Reis Encina ainda hoje mora numa rua que dá acesso à favela, lá embaixo, no asfalto.<br />

— A senhora está com me<strong>do</strong> da intervenção <strong>do</strong> Exército? — perguntava Caco às mulheres<br />

que cruzavam nosso caminho. — O senhor crê que as coisas vão melhorar? — indagava de outros.


“O que vocês acham da visita <strong>do</strong> <strong>pastor</strong> aqui na comunidade? — perguntava ainda.<br />

— Vira essa luz pra lá. A Globo num entra aqui — falou um moço que vestia uma jaqueta<br />

preta de couro, para<strong>do</strong> na chuva, no alto de um platô que dava acesso a mais um lance de casas da<br />

favela.<br />

— Ele é da Globo, mas não vai prejudicar você! — falei.<br />

— Eu falei pra não me filmar — disse o homem, começan<strong>do</strong> a engrossar.<br />

— Meu senhor, nós estamos aqui para orar, e eles estão filman<strong>do</strong> a gente. Eles não estão<br />

fazen<strong>do</strong> nada que prejudique a vocês — falei, colocan<strong>do</strong> a mão no ombro <strong>do</strong> homem. — Vem cá!<br />

Deixa eu te dar um abraço — prossegui.<br />

— Güenta aí que eu tenho que proteger o trabuco aqui debaixo da capa — falou o solda<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

tráfico comanda<strong>do</strong> por Uê. Então, abraçou o rifle de um la<strong>do</strong> e me abraçou <strong>do</strong> outro.<br />

— Fique tranqüilo que a gente não mostra o seu rosto. Eu vou cobrir você com aqueles<br />

xadrezinhos, sabe? Não aparece nada — disse Caco Barcelos.<br />

— Mas os homens podem ir lá e ver a cara da gente — falou o “solda<strong>do</strong>”, olhan<strong>do</strong> para o<br />

outro la<strong>do</strong>, mas já sem oferecer resistência.<br />

— A gente está te dan<strong>do</strong> a palavra de que ninguém vai pegar esse material. Certo? — falou<br />

Cadu. O homem não respondeu nada e nós prosseguimos subin<strong>do</strong>.<br />

Naquela noite eu caí na lama, me atolei em cocô de porco, me cortei em pedaços de alumínio,<br />

rasguei as calças, molhei minha Bíblia. Nós to<strong>do</strong>s nos encharcamos até a alma. Enfim, chegamos<br />

à caixa-d’água, no topo <strong>do</strong> Juramento. A chuva havia diminuí<strong>do</strong>. Apenas uma garoa nos mantinha<br />

úmi<strong>do</strong>s. As luzes <strong>do</strong> Rio piscavam aos milhares. A visão da Zona Norte da Cidade Maravilhosa era<br />

fantástica.<br />

— Senhor, abençoa esta cidade — começou a orar em voz alta o <strong>pastor</strong> Samuel Brum. Então,<br />

to<strong>do</strong>s nós estendemos os braços sobre aquela vista exuberante e clamamos a Deus, pedin<strong>do</strong> que<br />

tivesse piedade de lugar tão lin<strong>do</strong>. Ficamos ali em cima fazen<strong>do</strong> orações pela cidade, suas<br />

autoridades, seus habitantes e seus conflitos por uns quarenta minutos. Enquanto isso, Caco e<br />

Danille Franco gravavam suas “cabeças” para as matérias que estavam preparan<strong>do</strong> para seus<br />

respectivos programas.<br />

Obviamente descemos o morro bem mais rapidamente que subimos.<br />

— Pastor, o senhor não sabe como me fez bem ter vin<strong>do</strong> aqui hoje — falou-me Caco<br />

Barcelos quan<strong>do</strong> nos despedimos lá embaixo, no asfalto.<br />

Assim findava a sexta-feira. No <strong>do</strong>mingo, o Fantástico mostrou uma linda matéria sobre<br />

nossa invasão noturna ao Juramento. Mas na segunda-feira, duas coisas totalmente opostas<br />

aconteceram em relação à matéria <strong>do</strong> Fantástico.<br />

— O Zuenir, o Walter de Matos e eu vamos visitar o general Mei e o general Câmara Sena.<br />

Eu queria que você fosse com a gente — disse Rubem César, bem cedinho, chaman<strong>do</strong>-me em<br />

casa.<br />

Corri para o Coman<strong>do</strong> Militar <strong>do</strong> Leste, na Central <strong>do</strong> Brasil, a tempo de encontrá-los. O<br />

lugar estava apinha<strong>do</strong> de repórteres. Entrei pelos fun<strong>do</strong>s, mas eles me viram e me chamaram pelo<br />

celular. Queriam uma declaração.<br />

— Agora não. Depois — falei e corri para o eleva<strong>do</strong>r.<br />

Logo chegaram Rubem e Zuenir Ventura. Esperamos uns 15 minutos. Os generais estavam<br />

numa outra reunião.<br />

— Tá ven<strong>do</strong> ali embaixo? — perguntou-me Zuenir, apontan<strong>do</strong> para o pátio imenso <strong>do</strong> fun<strong>do</strong><br />

daquele imponente prédio. — Em 1968, eu fiquei aqui, sen<strong>do</strong> interroga<strong>do</strong>. Foi uma coisa — falou<br />

o repórter, jornalista e autor <strong>do</strong>s livros 1968: o ano que não terminou e Cidade partida.<br />

— Veja você como a história é irônica. Você esteve aqui sen<strong>do</strong> interroga<strong>do</strong> e hoje está aqui


para aconselhar as forças armadas — brinquei.<br />

— O general vai receber os senhores — disse o ordenança. Rubem entrou na frente, segui<strong>do</strong><br />

de Zuenir.<br />

— Eu estou acompanhan<strong>do</strong> o senhor — foi logo dizen<strong>do</strong> o general Mei e apontan<strong>do</strong> para<br />

mim, que vinha atrás <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is amigos. — Ele sobe os morros de noite, sem segurança. Não tem<br />

me<strong>do</strong>. Estou impressiona<strong>do</strong> — prosseguiu Mei. — Ontem eu vi o senhor no Fantástico. Escute,<br />

aquele homem que parou vocês e não queria ser filma<strong>do</strong>. Ele estava arma<strong>do</strong>, não? É um deles, não<br />

é? — indagou o general sem nem nos deixar sentar.<br />

— Estava sim, mas não nos ofereceu maiores resistências — falei.<br />

— Eu tenho uma proposta a lhe fazer. Será que o senhor não poderia usar a sua rede de<br />

igrejas para mapear essas favelas pra nós? Vocês entram, olham tu<strong>do</strong> e depois contam pra gente<br />

— disse o general de mo<strong>do</strong> tão direto, franco, simples e ingênuo, que me assustou. Fiquei mu<strong>do</strong><br />

uns dez segun<strong>do</strong>s. Quem me conhece bem sabe que, para mim, tal fração de tempo é uma<br />

eternidade quan<strong>do</strong> significa prazo para responder qualquer coisa.<br />

— Não daria não, general. O <strong>pastor</strong> perderia completamente a isenção e o respeito se ele<br />

fizesse isso. São ações diferentes. A <strong>do</strong> senhor tem um objetivo, a dele tem outro — disse Rubem<br />

César, livran<strong>do</strong>-me pessoalmente <strong>do</strong> embaraço de ter de dizer ao general a mesma coisa.<br />

— Não daria certo, com certeza — disse o general Sena, comandante da Operação Rio. Daí<br />

em diante, entramos no assunto que ali nos levara.<br />

— General, invadir as favelas não dá nenhum resulta<strong>do</strong>. É só festa pra mídia. O que poderia<br />

ajudar seria uma operação de reforço de policiamento nas ruas, mas, sobretu<strong>do</strong>, se as forças<br />

armadas pudessem exercer um papel de articulação entre as diversas polícias <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong> nível<br />

federal. Tá tu<strong>do</strong> aberto. As drogas e as armas entram pelos imensos buracos que existem nas<br />

divisas, e o aeroporto <strong>do</strong> Rio é um queijo suíço — disparou Rubem.<br />

— Eu também não acredito nessa pirotecnia. Isso é apenas parte de uma estratégia. Mas sei<br />

que não dá resulta<strong>do</strong>s em si — disse o general Sena.<br />

— O problema, general, é que essas ações são tão enfatizadas pelos senhores, que dá a<br />

impressão de que são as únicas coisas que os senhores têm pra fazer em relação ao combate ao<br />

tráfico de drogas e armas — falei com igual intensidade.<br />

— O agravante é que a mídia está gostan<strong>do</strong> disso no início, mas logo vai começar a cobrar<br />

resulta<strong>do</strong>s mais objetivos. E a operação, até aqui, não tem muito a mostrar — disse Zuenir <strong>do</strong> alto<br />

de sua vastíssima experiência como repórter.<br />

— Os senhores estão bem com a mídia. Poderiam pedir para que fossem mais pacientes com<br />

a gente — pediu com um tom impositivo o general.<br />

— Eles estão aí embaixo e esperam que na saída a gente diga alguma coisa. O que é que a<br />

gente pode dizer, general? — perguntou Rubem César.<br />

Daquele ponto em diante, a conversa ficou mais objetiva. Conversamos por mais de uma hora<br />

e fizemos inúmeras sugestões no senti<strong>do</strong> de tirar a Operação Rio <strong>do</strong> nível <strong>do</strong> humilhante show<br />

militar para algo mais prático e inteligente.<br />

Depois, descemos ao pátio e conversamos com os repórteres, mas não havia muito a dizer.<br />

— O general vai estudar a possibilidade de impedir a entrada de armas compradas em<br />

Miami, que chegam aqui sem controle — disse Rubem. — Ah! Anotem. Ele prometeu que não vai<br />

haver o dia D. Não vai haver dia de confronto, que era o que nós to<strong>do</strong>s temíamos — concluiu.<br />

Quanto ao mais, os repórteres queriam saber de mim como as favelas estavam reagin<strong>do</strong> e se<br />

nós já tínhamos recebi<strong>do</strong> armas <strong>do</strong>s bandi<strong>do</strong>s. Desconversei, pois não podia dizer o que estava<br />

acontecen<strong>do</strong> naquele particular. Então, voltei para o meu escritório em Niterói.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, tem um homem na linha que quer falar com o senhor e não quer se


identificar. Tá com a voz estranha. O senhor vai atender? — perguntou-me Cristina.<br />

— Sim, estou às suas ordens — falei ao tal homem.<br />

— Olha aqui, seu reveren<strong>do</strong>. Ninguém deu autorização pro senhor subir o Juramento. Num<br />

aparece mais lá, senão a gente te mata. O senhor pensa que pode ir lá filmá pros homens e ficá<br />

assim mermo? Num fica não. Se der mole, a gente mata. Num abusa de ser homem de Deus. A<br />

gente tá avisan<strong>do</strong> — falou o homem, com voz agressiva, mas nitidamente nervosa.<br />

— Olha aqui. Nós não fomos lá pros homens. Eu não sei quem são os homens. Eu só<br />

trabalho pra Jesus. Pra mais ninguém. Minha consciência tá tranqüila — falei.<br />

— Bom, eu avisei — falou outra vez e bateu o telefone.<br />

No fim da tarde <strong>do</strong> dia seguinte, encontrei com o <strong>pastor</strong> Marcos Batista na Vinde, que estava<br />

perplexo.<br />

— Pastor <strong>Caio</strong>, o senhor não pode imaginar o que aconteceu com aquele irmão da<br />

Assembléia de Deus que estava com a gente no morro <strong>do</strong> Juramento — foi logo me dizen<strong>do</strong>.<br />

— Não me diga que aconteceu algo ruim com ele? — indaguei, já me sentin<strong>do</strong> culpa<strong>do</strong>.<br />

— Os caras <strong>do</strong> Uê o pegaram e levaram para a beira de um riacho que tem por lá. Puseram o<br />

irmão de cara pro chão, a cabeça quase dentro d’água, o pé no pescoço dele e uma AR 15 na<br />

cabeça. Então, começaram a mandar que ele confessasse que estava ali com o senhor trabalhan<strong>do</strong><br />

pro Exército. “A gente vai te matar’’, eles gritavam. O moço pediu pelo amor de Deus pra eles não<br />

fazerem aquilo. Disse que nós estávamos ali pra orar e que era só. Mas eles não se convenciam.<br />

Iam apagar o rapaz. Então chegou um outro corren<strong>do</strong> e falou: “Parem com isso. Ele é de Deus<br />

sim. Os cara são de Deus sim” — contou Marcos, enquanto eu ouvia com extrema ansiedade.<br />

— E o que mais, Marcos? — perguntei.<br />

— O cara disse que quan<strong>do</strong> a gente subiu, ele tinha ordens pra executar a gente se fosse<br />

preciso — disse Marcos.<br />

— Mas ordens de quem? — perguntei.<br />

— Ordens superiores, foi o que ele disse. Mas parece que eles não querem falar o nome da<br />

pessoa — respondeu. — Bom, o cara que veio corren<strong>do</strong> disse que eles foram nos acompanhan<strong>do</strong><br />

pelos becos paralelos até lá em cima. Quan<strong>do</strong> nós chegamos na caixa-d’água, ele estava escondi<strong>do</strong><br />

dentro <strong>do</strong> tanque, com a arma na mão para matar to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A ordem era para acabar conosco.<br />

Eles achavam que lá em cima, sem ninguém por perto, nós íamos abrir e falar o que estávamos<br />

fazen<strong>do</strong> lá. No entanto, nada disso tinha aconteci<strong>do</strong>. Nós tínhamos fica<strong>do</strong> só rezan<strong>do</strong> por eles e<br />

tinha gente até choran<strong>do</strong>. Enfim, o cara disse que nós não éramos X-9, mas homens de Deus, e<br />

man<strong>do</strong>u eles soltarem o irmão. — Marcos contou o que ouvira <strong>do</strong> jovem e assusta<strong>do</strong> evangelista<br />

da Assembléia de Deus.<br />

— Faz senti<strong>do</strong>. Ontem eu recebi uma ligação de alguém que se dizia de lá me ameaçan<strong>do</strong> de<br />

morte — disse eu.<br />

— Veja só onde a gente tá meti<strong>do</strong>, <strong>pastor</strong>. Acho que o senhor precisava ir mais devagar —<br />

aconselhou-me Marcos Batista.<br />

Eu, no entanto, estava anestesia<strong>do</strong>. Naqueles meses, tu<strong>do</strong> o que eu não conseguia sentir era<br />

me<strong>do</strong>.


Capítulo 50<br />

“De onde veio este sonho, senão porque tinha os ouvi<strong>do</strong>s atentos a Teu coração, ó<br />

Deus bom e onipotente, que cuidas de cada um de nós como se não tiveras mais<br />

nada que cuidar, cuidan<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s como de cada um!”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Dezembro de 1994 deve ter si<strong>do</strong> o mês mais intenso de minha vida até hoje. Subia morros<br />

três vezes por semana, pregava todas as noites, passava o dia dan<strong>do</strong> entrevistas para repórteres <strong>do</strong><br />

Brasil e de outros países, participava de dezenas de reuniões, visitava Bangu I e o presídio Milton<br />

Dias Moreira todas as semanas, articulava campanhas com o pessoal <strong>do</strong> Viva Rio, buscava<br />

dinheiro para um monte de projetos novos, e corria com os preparativos para a inauguração da<br />

Fábrica de Esperança. Naquele mês, aconteceu de tu<strong>do</strong>.<br />

— Amor, tive uma visão espiritual estranha. Eu estava oran<strong>do</strong> em casa quan<strong>do</strong> tive uma visão<br />

da Fábrica. Era como se eu estivesse num ponto no espaço, sobre ela. De lá, eu via uma luz<br />

<strong>do</strong>urada, um luz líquida, circundan<strong>do</strong> e penetran<strong>do</strong> na Fábrica. Mas dentro dela, havia umas<br />

manchas negras nas quais a luz não conseguia penetrar. Não sei o que é, mas acho que Deus está<br />

falan<strong>do</strong> que tem coisa ruim enterrada lá — disse-me Alda numa daquelas manhãs.<br />

Alda convi<strong>do</strong>u umas amigas e foi até a Fábrica de Esperança. Para quem visse de longe,<br />

poderia parecer que aquelas três mulheres estavam ali usan<strong>do</strong> algum tipo de aparelho detector.<br />

Andavam de um la<strong>do</strong> para o outro, “sentin<strong>do</strong>” as “impressões <strong>do</strong> lugar”.<br />

Depois de passarem um dia inteiro em oração, elas se sentiram satisfeitas.<br />

— Deus vai mostrar o que está acontecen<strong>do</strong> aqui. Mas é bom você mandar vasculhar este<br />

lugar. Tem algo ruim aqui — Alda me falou no fim daquele dia.<br />

Em muitas ocasiões ela tinha ti<strong>do</strong> aquele tipo de premonição espiritual, e todas as vezes que<br />

eu não lhe dera ouvi<strong>do</strong>s, de algum mo<strong>do</strong> eu havia sofri<strong>do</strong> as conseqüências. Assim, depois de<br />

muito penar, aprendi a levar a sério as intuições espirituais de Alda.<br />

— Lidinha, mande passar um pente fino aqui na Fábrica. Alda acha que podem ter posto<br />

alguma coisa ruim aqui. Pode ser desde macumba até drogas. Veja isso — pedi à administra<strong>do</strong>ra.<br />

O problema é que são 55 mil metros quadra<strong>do</strong>s de área, e 45 mil metros quadra<strong>do</strong>s de espaço<br />

construí<strong>do</strong>. Conseguir varrer aquela propriedade toda, com seus múltiplos esconderijos, seria<br />

uma tarefa quase impossível da noite para o dia.<br />

— Pastor, o senhor não vai acreditar. Achamos armas enterradas numa área baldia nos<br />

fun<strong>do</strong>s da Fábrica, bem perto da fronteira com a favela — disse-me Lídia, com voz notadamente<br />

nervosa, no fim da tarde <strong>do</strong> dia seguinte. — O que a gente faz? — perguntou.<br />

Eu chamei Ernan Mafra, assessor jurídico da Fábrica, e contei a história.


— O que a gente faz, Ernan? — perguntei.<br />

— Olha, se você chamar a polícia, eles vão ficar contentes, mas você nunca mais vai ter<br />

sossego ali. Os traficantes vão infernizar a sua vida. Se você fingir que não sabe, é um perigo pois<br />

alguém pode vazar essa história e você vai ficar de cúmplice de uma coisa que você odeia — falou<br />

o advoga<strong>do</strong>.<br />

— Não, nem pensar. Essa segunda opção eu não consideraria nem morto. É contra tu<strong>do</strong> o<br />

que eu creio — falei com contundência.<br />

— Eu sei. Estou apenas colocan<strong>do</strong> as alternativas. O que eu acho que devemos fazer é dar<br />

algumas horas de prazo para o <strong>do</strong>no desse material tirar isso de lá e mandar dizer pra ele que se<br />

isso acontecer outra vez você não vai mais mandar tirar. Você vai chamar a polícia. Mas fazen<strong>do</strong><br />

assim, você dá a eles a chance de nunca mais colocarem esse tipo de coisa aqui — completou<br />

Ernan.<br />

— Tô de acor<strong>do</strong>. Pode mandar fazer exatamente assim.<br />

Naquela mesma noite as armas foram retiradas. A “visão” de Alda estava certa.<br />

— Por que você não entregou direto pra polícia? — perguntou-me Rubem César, único<br />

amigo para quem contei o episódio, enquanto comíamos um sanduíche no Bob’s da avenida<br />

Brasil alguns dias depois. A pergunta de Rubem apontava numa direção legalmente correta, mas<br />

absolutamente suicida para nós, que estávamos lá, na frente de batalha.<br />

— Olha, não existe hoje situação mais complicada que aquela. A gente tem que andar no fio<br />

da navalha. Tem que deixar claro que não aceita intimidação de bandi<strong>do</strong>, mas que não se torna,<br />

de outro la<strong>do</strong>, sócio da polícia. Só Deus pode nos dar sabe<strong>do</strong>ria ali pra fazermos a nossa própria<br />

guerra, sem nos envolvermos na guerra deles — falei, repetin<strong>do</strong> para ele o que eu dizia quase<br />

diariamente àqueles que me faziam perguntas sobre nossa existência em fronteira tão complexa.<br />

A descoberta das armas aconteceu numa sexta-feira, só Deus sabia <strong>do</strong> que Ele estava nos<br />

livran<strong>do</strong>.<br />

— Pastor <strong>Caio</strong>, o Exército invadiu a Fábrica de Esperança — disse-me Lídia Mello, às seis<br />

da manhã, no <strong>do</strong>mingo imediatamente posterior à sexta-feira da nossa varredura.<br />

— Ernan, invadiram a Fábrica — falei ao meu advoga<strong>do</strong>, que nem me deixou terminar a<br />

frase.<br />

— Estou pronto. Me apanha aqui — respondeu ele, quase se enfian<strong>do</strong> pela linha <strong>do</strong> telefone<br />

até a minha casa. — Deus é muito bom, <strong>pastor</strong>. Já imaginou se aquelas porcarias ainda estivessem<br />

lá? Se eles descobrissem, poderiam até pensar que nós tínhamos alguma coisa a ver com aquilo.<br />

Deus é muito bom — disse Ernan.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos ao portão lateral da Fábrica, vimos uma multidão. As duas bandas <strong>do</strong><br />

portão estavam abertas e havia militar arma<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Parecia um Vietnã.<br />

Helicópteros voavam sobre nós, caminhões enormes, jipes e motocicletas entravam e saíam;<br />

enfim, havia uma tremenda agitação no local.<br />

— Quem é o comandante da operação? — perguntei a um solda<strong>do</strong> que usava uma máscara<br />

preta.<br />

— É o coronel. Ele está lá na laje <strong>do</strong> prédio.<br />

Como a casa era nossa e não deles, fomos subin<strong>do</strong>. Os seis andares tinham si<strong>do</strong><br />

transforma<strong>do</strong>s em central de interrogatório. Eram mesas, cadernos e outros materiais postos nos<br />

mais diferentes lugares.<br />

— Bom dia, reveren<strong>do</strong>! Que bom vê-lo nesta manhã. Muito obriga<strong>do</strong> por nos deixar fazer<br />

nossa base de operações aqui na Fábrica. É o lugar ideal — foi logo dizen<strong>do</strong> o simpático coronel.<br />

— Coronel, é uma grande alegria encontrar o senhor também. Só tem uma coisa: eu nunca<br />

autorizei ninguém a usar a Fábrica de Esperança para nada. O que está haven<strong>do</strong> aqui não é uma


utilização, mas sim uma invasão de propriedade particular. O senhor tem alguma autorização<br />

escrita? — perguntei com educação, porém com firmeza.<br />

— Não é possível. Ninguém falou com senhor? — indagou visivelmente constrangi<strong>do</strong>.<br />

— Não, senhor — respondi, e ele imediatamente se dirigiu para o rádio.<br />

— Alô, quem foi que deu a autorização para a utilização da Fábrica? — perguntou a alguém<br />

<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha. — O quê? Não, não é não. O reveren<strong>do</strong> está aqui e não sabe de nada —<br />

falou o comandante.<br />

— Pergunte a ele quem deu a autorização, coronel — insisti.<br />

— Quem? Hã! — resmungou. — Foi um tal de Reginal<strong>do</strong>. O senhor conhece? — perguntou,<br />

dirigin<strong>do</strong>-se novamente a mim.<br />

— É esse moço aqui. E ele diz que o único pedi<strong>do</strong> que lhe fizeram foi para subirem aqui, a<br />

fim de tirarem umas fotos, com o que ele concor<strong>do</strong>u na sexta-feira passada. Só isso. Quanto ao<br />

mais, ele não deu a autorização porque ele não tem autoridade para isso — falei.<br />

Então, o coronel desligou o rádio com raiva, e sua fisionomia mostrara a raiva que estava<br />

sentin<strong>do</strong> de quem armara aquela confusão.<br />

— Esses caras pensam que estão brincan<strong>do</strong>. Eu não trabalho assim. Agora, estamos aqui,<br />

humilhan<strong>do</strong> o senhor, e forçan<strong>do</strong> o senhor a nos humilhar. O que o senhor quer que eu faça? —<br />

indagou o oficial.<br />

— Bom, o senhor só tem duas opções: ou o senhor fica aqui, assume conosco o projeto da<br />

Fábrica de Esperança e implanta to<strong>do</strong>s os programas sociais que nós vamos realizar aqui, pro<br />

resto da vida; ou então o senhor sai em dez minutos. O que eu não posso é deixar o senhor ficar<br />

aqui e continuar a contar com a simpatia <strong>do</strong> povo. Se o senhor ficar, a Fábrica de Esperança vai<br />

virar o Quartel da Esperança, e perderá a sua vocação. O senhor é que sabe, coronel — disse com<br />

um sorriso no rosto, mas falan<strong>do</strong> seriíssimo.<br />

— O senhor tem razão. Eu também trabalho com atividade social e sei que a autoridade de<br />

quem faz essas coisas vem da isenção da pessoa. A gente vai sair — respondeu-me de mo<strong>do</strong><br />

humilha<strong>do</strong> e digno aquele oficial tão diferente.<br />

Àquela altura, olhan<strong>do</strong> lá de cima, vi que o povo estava aglomera<strong>do</strong> em frente à Fábrica para<br />

ver o que aconteceria. Desci e fiquei em pé ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> portão. Dez minutos depois, os caminhões<br />

começaram a sair. O povo aplaudia com a pontinha <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s. Por último, veio o coronel. Parou o<br />

jipe ao meu la<strong>do</strong>, olhou-me sem ressentimento e bateu continência para mim. Respondi<br />

pon<strong>do</strong>-me em posição de senti<strong>do</strong>, como o militar que nunca fui. Então o povo delirou. Ernan e eu<br />

voltamos para casa alivia<strong>do</strong>s.<br />

Chegou o sába<strong>do</strong>, dia 17 de dezembro. Cerca de setecentas pessoas enchiam o sexto andar da<br />

Fábrica. Alípio e Marli Gusmão, Salo Seibel e Clarice Pechman eram os casais de honra daquela<br />

manhã. Os primeiros, por serem os grandes incentiva<strong>do</strong>res daquele empreendimento social. Os<br />

<strong>do</strong>is últimos, por terem se encontra<strong>do</strong> acidentalmente, descoberto seus vínculos com a Fábrica<br />

(Clarice por ser funda<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Viva Rio e minha companheira no movimento de cidadania, e Salo<br />

por ser um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>a<strong>do</strong>res da propriedade) e, em seguida, caí<strong>do</strong> em paixão tão profunda, que os<br />

levou ao casamento.<br />

Declaramos a Fábrica de Esperança inaugurada. Para minha alegria, havia gente de to<strong>do</strong>s os<br />

níveis sociais. A mídia foi extremamente generosa na cobertura <strong>do</strong> evento.<br />

Na semana seguinte veio o Natal, o que nos infiltrou de indizível força espiritual. Subimos<br />

favelas e trocamos mais de dez mil armas de brinque<strong>do</strong> por brinque<strong>do</strong>s de paz. No dia 25 nossa<br />

campanha de desarmamento fazia a primeira página de seis <strong>do</strong>s maiores jornais <strong>do</strong> Rio e <strong>do</strong>s três<br />

maiores de São Paulo, e ganhou repercussão em to<strong>do</strong> o Brasil. Assim, a marca <strong>do</strong> Natal de 1994<br />

foi a loucura cristã de convidar o leão e a ovelha para comerem juntos a refeição <strong>do</strong> amor. E, em


certa medida, aquele milagre aconteceu. Havia muita gente feliz. Outro grupo, contu<strong>do</strong>,<br />

imaginava que por trás de tanto sucesso existiam outras intenções escondidas. E 1995 traria à luz<br />

tais suspeitas.


Capítulo 51<br />

“Não quero estar onde posso e não posso estar onde quero: miséria em ambos os<br />

casos!”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Nos últimos dias de 1994 eu fui a Bangu I visitar os mais estranhos amigos que eu já fizera<br />

na vida. No verão, aquele lugar é o inferno. É mosca para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s e a vida humana se torna<br />

um acontecimento inconcebível naquele calor e com to<strong>do</strong>s aqueles insetos voan<strong>do</strong><br />

incansavelmente sobre você e se agarran<strong>do</strong> ao seu corpo, como se sentissem saudade e fome de<br />

sua pele. É insuportável. Comprei ventila<strong>do</strong>res, alguns presentes, Bíblias e livros, e fui visitar<br />

aqueles que eram considera<strong>do</strong>s os mais perigosos bandi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rio.<br />

— O reveren<strong>do</strong> chegou — eles gritaram, como de costume.<br />

Eu, entretanto, sabia que, provavelmente, aquela era a última vez, em muito tempo, que<br />

aquele ritual seria realiza<strong>do</strong>.<br />

— <strong>Caio</strong>, até o dia 31 de dezembro a gente garante essa política de direitos humanos <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong>. De primeiro de janeiro em diante, eu não posso dizer nada. O seu trabalho nos presídios<br />

pode sofrer mudanças daí em diante. Quer dizer, espero que eles não façam nada, mas não dá pra<br />

garantir — dissera-me Arthur Lavigne cinco dias antes <strong>do</strong> Natal.<br />

O clima na administração já estava diferente. Antes, eu chegava lá como o <strong>pastor</strong> <strong>do</strong><br />

governa<strong>do</strong>r. Agora, eu seria apenas o amigo <strong>do</strong> Nilo. Levei Alda, meu filho Davi e uma amiga<br />

conosco. Queria que os detentos vissem que eu valorizava tanto aquela experiência no meio deles,<br />

que até levava parte de minha família àquele estranho encontro de humanidade e nudez moral.<br />

— Davi, me dá um abraço. Eu sempre quis conhecer você — disse o educadíssimo Carlão,<br />

<strong>do</strong> alto de seu metro e noventa.<br />

— É, reveren<strong>do</strong>, o menino parece o Davi da Bíblia: ruivo e de boa aparência — disse Eucanã,<br />

por muitos considera<strong>do</strong> irrecuperável, demonstran<strong>do</strong> que estava len<strong>do</strong> a Bíblia toda, de cabo a<br />

rabo.<br />

Passamos a tarde toda com eles.<br />

— Dá pro senhor batizar uns meninos aqui? — perguntou-me um <strong>do</strong>s presos.<br />

Batizei seis deles, inclusive o jovem e famoso Polegar, líder <strong>do</strong> tráfico no morro da<br />

Mangueira, recentemente preso em Araruama, quan<strong>do</strong> se divertia num jet-ski.<br />

— Eu encontrei tua mãe quan<strong>do</strong> eu estava subin<strong>do</strong> a Mangueira outro dia. Ela está pedin<strong>do</strong> a<br />

Deus que você mude de vida — falei ao rapaz.<br />

Depois de alguma conversa, ele pediu para ser batiza<strong>do</strong> com os outros. Vacilei. Afinal ele não


tinha si<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>. Mas como eu compreendia que talvez não voltasse mais, estava decidi<strong>do</strong> a<br />

não negar o batismo a ninguém. Além disso, a cada dia mais me convencia que só Deus pode<br />

avaliar o que acontece entre Ele e um ser humano, e eu não queria ficar no meio <strong>do</strong> caminho.<br />

Então, batizei Polegar e os outros rapazes.<br />

— Gente, o governo mu<strong>do</strong>u. Vocês sabem que a minha vinda aqui tinha a ver também com<br />

uma política de governo. O Dr. Nilo acreditava na nossa ação <strong>pastor</strong>al e nos deu acesso a vocês.<br />

Agora não sei o que vai acontecer. Pode ser que nos fechem essa porta. Eu apareci muito na mídia<br />

nos últimos <strong>do</strong>is anos, e o atual governa<strong>do</strong>r pode pensar que isso esconde algum projeto político.<br />

Então, tu<strong>do</strong> pode acontecer. Mas mesmo que eu não venha nunca mais ver vocês, eu vou orar por<br />

vocês para o resto da minha vida. Vocês fizeram muito mal à sociedade, e a sociedade fez muito<br />

mal a vocês. Chega de ficar magoa<strong>do</strong> com a vida. Aproveitem a chance e mudem de vida. A porta<br />

está aberta. Jesus já mostrou isto a vocês — repeti em cada uma das quatro galerias.<br />

Quan<strong>do</strong> as portas de ferro se cerraram atrás de nós naquele fim de tarde, eu sabia que era a<br />

última visita.<br />

Nilo passou o governo para Marcello Alencar no início de 1995. A primeira coisa que o novo<br />

governa<strong>do</strong>r fez em relação a mim foi mandar tirar imediatamente o telefone vermelho que a<br />

administração anterior tinha concedi<strong>do</strong> à Associação Evangélica e que ficava em meu gabinete.<br />

Besteira? Não! Aquilo apenas confirmava que, naquele governo, eu teria que comprar ficha na<br />

esquina para poder telefonar. Para completar as minhas suspeitas, o que não me faltou foi<br />

repórter e amigo para me dizer que a Universal estava forte no governo <strong>do</strong> Marcello.<br />

— O secretário <strong>do</strong> bem-estar social é <strong>pastor</strong> da Universal. A tua vida vai ficar difícil —<br />

disseram-me várias pessoas que freqüentavam o palácio.<br />

— Eu estou em paz. Não precisam nos ajudar. Basta não nos perseguirem — repeti até<br />

cansar.<br />

De 1994 para 1995 as coisas estavam mudan<strong>do</strong> profundamente não apenas fora de mim, mas<br />

sobretu<strong>do</strong> em meu coração, onde as principais transformações estavam sen<strong>do</strong> operadas.


Capítulo 52<br />

“Fazes com que eu conheça uma extraordinária plenitude de vida interior, na qual<br />

experimento misteriosa <strong>do</strong>çura, que, se chegasse à perfeição, não sei o que seria,<br />

porque nesta vida não poderia suportar.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Amanheci o dia 6 de janeiro de 1995 com um estranho pressentimento. A sensação era de<br />

que naquele dia minha vida seria tocada por algo inusita<strong>do</strong>, como se um anjo fosse me encontrar<br />

na rua ou me beijar o rosto.<br />

Cheguei ao meu escritório às oito e meia da manhã e pouco mais de quarenta minutos depois<br />

comecei a sentir algo estranho. Era um calor que eu nunca experimentara. Meus lábios, peito e<br />

alma ardiam com um fogo que jamais me queimara antes. Eu estava a ponto de desmaiar. Minha<br />

cabeça rodava e meu coração galopava. Era como se eu estivesse completamente seduzi<strong>do</strong> por um<br />

amor divino que fora sempre meu, mas que até aquele dia eu não sabia que existia com aquela<br />

intensidade. No entanto, a mera percepção daquela forma de amar o sagra<strong>do</strong> me deprimia, ao<br />

mesmo tempo em que me possuía. Aquilo iria passar. Não era meu privilégio manter aquele fogo<br />

vivo dentro de mim. Ele estava ali, mas não era meu.<br />

“Oh, Deus! Por que Tu me deixas sentir isto e não me dás garantia de que isto viverá pra<br />

sempre em mim?”, orei em <strong>do</strong>ce aflição.<br />

A síntese daquele momento era de pura mística e cheia de indizível complexidade. O que de<br />

mais próximo posso chegar ao tentar descrever aquela hora é da experiência <strong>do</strong> nascimento e da<br />

morte, acontecen<strong>do</strong> ao mesmo tempo. Ou talvez seja como ter o de<strong>do</strong> corta<strong>do</strong> por uma<br />

afiadíssima lâmina, ver o sangue escorrer em profusão, instintivamente levar a língua ao golpe<br />

para lambê-lo, e então sentir que o líqui<strong>do</strong> que de você se derrama tem o <strong>do</strong>ce sabor de sapoti.<br />

Assim me foi aquele momento. Divino e mortal. Eterno e frugal. Experimentei o encontro<br />

com o destampar de meu ser, em profunda reclusão.<br />

Tranquei a porta. Somente eu e a projeção de quem sempre tive saudade poderíamos estar<br />

ali. Queria abraçar o ser para quem eu fora cria<strong>do</strong> e em quem minha existência na Terra<br />

encontrava sua própria explicação.<br />

Derramei-me no sofá preto de minha sala. A vida saiu e entrou em mim duas vezes. Deus<br />

estava ali, e minha mais ambígua condição mortal também ali estava.<br />

Tive me<strong>do</strong> de nunca mais ser o mesmo, mas tive mais me<strong>do</strong> ainda de nunca mais deixar de<br />

poder viver aquilo.<br />

— O senhor está bem? — perguntou Cristina pelo interfone.


— Nunca estive melhor e nunca estive pior — respondi.<br />

Pedi para não ser interrompi<strong>do</strong>. Às onze e meia da manhã vi que não podia mais fazer de<br />

conta que o mun<strong>do</strong> não continuava o mesmo em volta de mim. Era hora de voltar ao inexorável<br />

caminho da vida-morte-vida. Eu desejava morrer ali. Estava satisfeito e, para<strong>do</strong>xalmente,<br />

desgraça<strong>do</strong>. Abençoa<strong>do</strong> e feri<strong>do</strong>. A graça me tocara como nunca antes, mas com ela me veio a<br />

mais profunda revelação que eu já tivera a respeito de minha total relatividade e de minha mais<br />

humana complexidade.<br />

— Você está bem? — perguntou Alda quan<strong>do</strong> me encontrou meio páli<strong>do</strong> por volta <strong>do</strong><br />

meio-dia.<br />

— Muito bem! Aliás, não, não estou bem! Estou in<strong>do</strong> para casa. Preciso ficar sozinho —<br />

respondi de mo<strong>do</strong> estranho.<br />

Ela ficou preocupada. Aquele era, entretanto, um momento que eu não podia compartilhar<br />

com mais ninguém nesta vida. E mesmo agora, nesse imenso esforço que faço para abri-lo, sei<br />

que não estou sen<strong>do</strong> bem-sucedi<strong>do</strong>. Afinal, até o dia de hoje, eu não tenho palavras para descrever<br />

o que me aconteceu. Como é que no passa<strong>do</strong> os antigos descreveram seus encontros com o<br />

mistério na sua forma mais divina e mais esmaga<strong>do</strong>ra? “E Abraão enxotava os abutres até que<br />

passou uma tocha de fogo no meio da noite.” Ou: “E Jacó lutava com o anjo, no meio da noite.” E<br />

ainda: “Eis que <strong>do</strong>is viajantes se aproximaram de Abraão e falou Abraão aos anjos.” Homens e<br />

anjos se confundem à noite ou nas esquinas da alma.<br />

A experiência que tive foi, sem dúvida, religiosa e profana, ao mesmo tempo. Talvez tenha<br />

comi<strong>do</strong> <strong>do</strong> fruto da mangueira mágica da casa de minha avó e tenha senti<strong>do</strong> gostos deste mun<strong>do</strong> e<br />

<strong>do</strong> outro, mas não tenha sabi<strong>do</strong> nem consegui<strong>do</strong> processá-los. Também pode ser que tenha si<strong>do</strong><br />

o saborear de um cacho de uvas encantadas que existiam dentro de mim e eu não conhecia, mas<br />

que naquele dia derramaram seu cal<strong>do</strong> <strong>do</strong>ce na minha boca. Sentirei seu gosto para o resto da<br />

vida. Os judeus falam de sabra: uma fruta cheia de espinhos por fora, mas <strong>do</strong>ce ao extremo por<br />

dentro. Parece com a vida e seus mais fascinantes encontros: espinhosos e, ao mesmo tempo,<br />

irresistivelmente sedutores.<br />

Só sei é que eu mudei. Provavelmente para sempre. Passei a ter um imenso pavor de pensar<br />

de mim mesmo qualquer coisa que não me pusesse na condição <strong>do</strong> mais carente de to<strong>do</strong>s os<br />

humanos e, ao mesmo tempo, <strong>do</strong> mais abençoa<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os peca<strong>do</strong>res. A Graça de Deus me<br />

tocou de uma forma diferente. Revelou minha mais trágica perdição e minha mais feliz salvação.<br />

Mostrou-me o poder e o fogo da paixão que nasce na alma de um homem e me fez ver a força<br />

imorre<strong>do</strong>ura <strong>do</strong> amor de Deus, quan<strong>do</strong> enternece o coração de um mortal.<br />

Decidi ali que, fosse o que fosse, e acontecesse o que acontecesse, eu seria de Jesus até o fim<br />

da vida, e até a vida sem fim. Amém!


Capítulo 53<br />

“As palavras de nossa boca ou as de nossos atos que são conhecidas em público<br />

nos expõem a uma tentação muito perigosa, filha desse amor aos louvores, que,<br />

para nos fazer valer, recolhe e mendiga os pareceres alheios. Essa paixão ainda me<br />

tenta quan<strong>do</strong> eu a critico em mim, e por isso mesmo eu a critico.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

— <strong>Caio</strong>, o Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so está vin<strong>do</strong> ao Rio e a gente está pedin<strong>do</strong> a ele para<br />

ir conhecer a Fábrica de Esperança. Vai ser no dia 20 de janeiro — disse-me Rubem.<br />

— Ih, rapaz! Eu não vou estar no Brasil — falei.<br />

— Não, <strong>Caio</strong>. Não faz isso, irmão.<br />

— É que não dá. Estou com uma viagem agendada com mais de duzentas pessoas que vão<br />

comigo fazer uma peregrinação pelo deserto <strong>do</strong> Sinai. Vamos subir o monte Horebe. Eu os<br />

convidei, e eles aceitaram. Como é que eu posso dizer que não vou? Não tem jeito — expliquei. —<br />

Mas a Fábrica tá aí. Eu não tenho que estar. Você será o cicerone no dia.<br />

Mandamos fazer os preparativos. Quan<strong>do</strong> chegou o dia 15 de janeiro, eu estava em Vigário<br />

Geral. André Fernandes e um grupo de voluntários estavam me acompanhan<strong>do</strong> numa outra<br />

invasão de paz. Meu xará, <strong>Caio</strong> Ferraz, também estava conosco, nos ciceronean<strong>do</strong> em sua<br />

comunidade.<br />

Depois de passarmos um tempo na Casa da Paz numa reunião de orações e preces, <strong>Caio</strong><br />

Ferraz disse que recebera um reca<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>no da favela, o traficante Flávio Negão, dizen<strong>do</strong> que<br />

queria um encontro comigo. Eu já vinha oran<strong>do</strong> por Flávio Negão desde que lera sua entrevista no<br />

livro Cidade partida.<br />

— Manda dizer que eu encontro com ele na hora que ele quiser — falei.<br />

Recebemos ordens de andar pela favela para que desse tempo de irem acordá-lo.<br />

— Gente como ele <strong>do</strong>rme de dia e trabalha de noite — nos informou o rapaz que foi acordar<br />

o Negão na casa de uma de suas esposas.<br />

Depois de quase uma hora de caminhada, dan<strong>do</strong> tempo, paramos num bar para tomar um<br />

refrigerante.<br />

— O Negão chegou — falou <strong>Caio</strong> Ferraz.<br />

Sau<strong>do</strong>u-nos com o cumprimento clássico, tocan<strong>do</strong> a palma da mão na sua, giran<strong>do</strong> a mão<br />

sobre seu polegar e voltan<strong>do</strong> para o aperto final. Perguntei se não havia um lugar mais discreto,<br />

menos exposto que aquele bar, onde pudéssemos sentar e conversar. Ele sugeriu o andar de cima<br />

<strong>do</strong> mesmo bar. Subimos os quatro — ele, <strong>Caio</strong> Ferraz, André Fernandes e eu —, acompanha<strong>do</strong>s


de um cachorro amigo <strong>do</strong> Negão, que não parava de lamber-lhe os pés.<br />

A conversa foi interessantíssima. Ele iniciou dizen<strong>do</strong> que acompanhava meu trabalho<br />

ministerial e, especificamente, meu esforço pela pacificação da cidade.<br />

— Essa campanha Rio Desarme-se foi a melhor coisa que já vi acontecer nessa cidade. Lá<br />

em casa eu dei ordens para que meus filhos entregassem as armas de brinque<strong>do</strong> e que só<br />

brincassem com brinque<strong>do</strong>s de paz — disse com um tom calmo de voz. — Eu vivo assim, <strong>pastor</strong>,<br />

mas não quero que ninguém viva essa vida. É um inferno! — acrescentou o traficante de 24 anos,<br />

idade de ancião para quem vive daquele tipo de negócio.<br />

Eu peguei dali e levei a conversa adiante, dizen<strong>do</strong> que lera sua entrevista no livro <strong>do</strong> Zuenir e<br />

percebera como sua humanidade ainda estava lá, explorável, potencialmente presente. Disse-lhe,<br />

também, o que Jesus ainda poderia fazer por ele e como poderia transformá-lo, se ele quisesse. O<br />

Negão sacudiu a cabeça. Depois, começou a nos contar como a Operação Rio já estava<br />

corrompida.<br />

— Aí, ó. Os “meninos <strong>do</strong> Exército” estão encontran<strong>do</strong> muito mais armas <strong>do</strong> que eles dizem,<br />

cara. Tão achan<strong>do</strong> muita droga escondida também. Mas eles num dizem nada. Escondem e<br />

depois revendem pra gente. Vê se pode. Tá tu<strong>do</strong> corrompi<strong>do</strong> — disse o Negão.<br />

Falou também da corrupção de alguns elementos da polícia e de como agora, com a saída <strong>do</strong>s<br />

traficantes de peso da cidade, havia policiais seqüestran<strong>do</strong> até mulher de bandi<strong>do</strong> para forçar a<br />

mineira, ou seja, a extorsão, como pagamento de resgate. Falou ainda de torturas e extermínios.<br />

— É, reveren<strong>do</strong>, a coisa tá feia, muito feia — repetiu, olhan<strong>do</strong> para o chão.<br />

Eu juntei a conversa daquele ponto e tentei, mais uma vez, trazer o assunto para Jesus. Disse<br />

que o Adão, ex-companheiro dele de tráfico, preso em Bangu I, havia me pedi<strong>do</strong> para batizá-lo.<br />

— É, o cara é maneiro. Batiza sim, <strong>pastor</strong> — falou.<br />

Insisti no fato de que, se ele largasse aquela vida marginal, fosse para um lugar distante e<br />

buscasse socorro em Jesus, a igreja seria, ainda, um “último recurso”. Negão prometeu pensar no<br />

caso. Mas para gente como Flávio Negão, a marginalidade é muito mais que uma maneira ilegal e<br />

bandida de ganhar a vida. É, na maioria das vezes, um caminho sem volta, pois trata-se de um<br />

enraizamento num chão aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pelo esta<strong>do</strong>, no qual eles ganharam usucapião. Por isso,<br />

Negão não sabia pensar na vida sem se ver como aquele sultão favela<strong>do</strong> no qual ele se tornara. A<br />

conversa toda durou uma hora e vinte minutos, mais ou menos. No fim, ele disse que tinha armas<br />

para <strong>do</strong>ar à campanha Rio, Desarme-se.<br />

— Em alguns dias vou fazer contato dizen<strong>do</strong> quantas armas serão <strong>do</strong>adas. Mas vai ser um<br />

montão.<br />

Finalizei dizen<strong>do</strong> que queria orar com ele, pois tinha o terrível pressentimento de que ele iria<br />

morrer logo. Então Negão pegou uma de minhas mãos entre as suas, enquanto eu colocava a outra<br />

mão sobre sua cabeça.<br />

— Jesus, dá luz à alma <strong>do</strong> Flávio. Ele tá viven<strong>do</strong> nesse caminho de morte. Abre sua mente pra<br />

ele ver como esse caminho é perverso. Jesus, salva a alma <strong>do</strong> Flávio antes que ele morra na<br />

escuridão. Tem misericórdia dele, Senhor — orei com emoção. O cachorro ficou ali o tempo<br />

to<strong>do</strong>, lamben<strong>do</strong> o pé <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> traficante mais famoso <strong>do</strong> Rio como se ele fosse um rei ou um<br />

mendigo.<br />

— Valeu, <strong>pastor</strong> — foi o que ele disse quan<strong>do</strong> me levantei para sair. Descemos as escadas até<br />

a rua ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> bar.<br />

— É bandi<strong>do</strong>, mas é gente boa, não é, <strong>pastor</strong>? Tem um bom coração — afirmou Djalma, o<br />

irmão dele, assim que me viu.<br />

— É, sim. Ele é gente. Mas tem que largar essa vida, senão vai morrer — falei de passagem.<br />

Voltei para minha casa, e Flávio Negão voltou para o caminho da morte.


Capítulo 54<br />

“Que me retire em mim mesmo, que levante a Ti cantos de amor, que gema<br />

indizivelmente, durante minha peregrinação terrestre, lembran<strong>do</strong>-me de<br />

Jerusalém, levantan<strong>do</strong> a ela meu coração — Jerusalém, minha pátria, Jerusalém,<br />

minha mãe — e para Ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu<br />

esposo, suas castas e grandes delícias, sua sólida alegria, seu conjunto de to<strong>do</strong>s os<br />

bens inefáveis, porque és o soberano Bem e o Bem verdadeiro.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No dia 17 de janeiro embarquei com um grupo de 210 peregrinos para a minha décima nona<br />

viagem à Terra Santa desde aquela primeira vez, em 1977. Atrás de mim, deixei um grupo de<br />

diretores da Vinde a serviço de Lídia Mello, na Fábrica de Esperança, a fim de que nada saísse<br />

erra<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o presidente Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so chegasse ali para sua primeira visita<br />

oficial ao Rio de Janeiro depois de empossa<strong>do</strong>.<br />

— Pastor <strong>Caio</strong>, fica ruim uma visita <strong>do</strong> presidente à Fábrica sem que o senhor esteja lá! —<br />

disse-me o <strong>do</strong>utor Salo Seibel na sede da Formitex, durante uma visita que fiz aos meus<br />

principais parceiros de obra social antes de minha viagem.<br />

— Deus proverá um mo<strong>do</strong> de que tu<strong>do</strong> saia bem, mesmo que eu não possa estar presente —<br />

falei em consideração ao cuida<strong>do</strong> de Salo com minha pessoa, mas sempre soube que, na prática,<br />

minha presença ou ausência importaria muito pouco ao processo. A Fábrica era apenas o lugar <strong>do</strong><br />

encontro, mas o verdadeiro objetivo era apresentar ao presidente uma lista de demandas que o<br />

movimento Viva Rio desejava ver realizadas na cidade com a ajuda de FHC, visto por to<strong>do</strong>s como<br />

aberto e não-traumatiza<strong>do</strong> com ONGs e nem com ações de parceria com a iniciativa privada.<br />

Deixei um vídeo para FHC e fui para o deserto <strong>do</strong> Sinai. Era uma gravação de três minutos de<br />

saudação, na qual pedia desculpas pela minha ausência, explicava o conceito de funcionamento<br />

da Fábrica de Esperança e passava a palavra a Rubem César Fernandes e Betinho, os anfitriões<br />

daquela tarde.<br />

— Você está se vingan<strong>do</strong> por ele não ter i<strong>do</strong> à sua reunião antes das eleições, não está? —<br />

perguntou-me um amigo.<br />

— Olha, eu jamais faria isso, por duas razões. Primeiro, porque sou cristão, e nesse caso, sou<br />

chama<strong>do</strong> a per<strong>do</strong>ar. Depois, porque não sou burro. Você acha que eu teria meios de me vingar <strong>do</strong><br />

presidente? Quem se vinga de presidente é burro, é otário — falei com prazer.<br />

Chegou o dia 20 de janeiro. O governa<strong>do</strong>r Marcello Alencar estava lá, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> presidente.


Eu, entretanto, estava na companhia de Moisés e <strong>do</strong>s anjos <strong>do</strong> monte Horebe.<br />

A viagem pelo deserto é sempre fascinante para mim. São sons, cores, formas e cheiros que<br />

os cidadãos da urbanidade ocidental desconhecem completamente. Estava muito frio no Sinai:<br />

dez graus de dia e menos de dez à noite. Mas a mística <strong>do</strong> lugar dava um sentir especial ao nosso<br />

culto noturno, a céu aberto, em volta da fogueira, na estreladíssima noite mágica da mesma<br />

abóbada celeste que inspirou Moisés e Elias nas suas falas com o Eterno.<br />

No dia 24 de janeiro já havíamos chega<strong>do</strong> em Eilat, às margens <strong>do</strong> mar Vermelho, quan<strong>do</strong><br />

recebi no hotel um fax com recortes de jornal <strong>do</strong> Brasil. Não havia nenhuma revelação divina<br />

naquela mensagem. Apenas o óbvio sobre a vida de bandi<strong>do</strong>s: Polícia mata Flávio Negão, era a<br />

manchete.<br />

Triste, pois era uma vida. Entretanto, tratava-se de algo totalmente previsível. A<br />

criminalidade carrega em si mesma uma carga profética de cumprimento autônomo. Self-fulling<br />

prophecy — dizem os americanos. Vida de bandi<strong>do</strong> termina muito ce<strong>do</strong>. E o estranho é que<br />

termina sem nunca ter começa<strong>do</strong>. Estava aprenden<strong>do</strong> to<strong>do</strong> dia que bandi<strong>do</strong> apenas existe; nunca<br />

vive.<br />

Mostrei o fax para Marcos Batista, capelão em Bangu I, que estava fazen<strong>do</strong> a viagem em<br />

minha companhia. Tentei esquecer a imagem de Flávio Negão. Afinal, minha viagem continuava<br />

no deserto e na vida. Negão tinha si<strong>do</strong> apenas mais uma estação.<br />

Aquele perío<strong>do</strong> pelo deserto e depois em Israel foi de grande impacto. Ali pude ver que<br />

algumas coisas tinham muda<strong>do</strong> profundamente em mim, mais <strong>do</strong> que jamais poderia imaginar. A<br />

mais forte de todas as percepções foi a de que fora muito mais abala<strong>do</strong> pela experiência <strong>do</strong> dia 6<br />

de janeiro, na solidão de meu escritório, <strong>do</strong> que supusera. Sentimento idêntico me atingiu outra<br />

vez na noite de 29 de janeiro, no hotel Jordan River, na Galiléia.<br />

Subi para o terraço de visão panorâmica, de onde se vê o lago da Galiléia em toda a sua<br />

extensão. Do outro la<strong>do</strong> estão as colinas de Golã. Ao norte, as luzes das cidades que fazem<br />

fronteira com o Líbano. E nas costas de quem olha para o mar <strong>do</strong>s milagres de Jesus estão as<br />

montanhas da Alta Galiléia.<br />

A solidão era total. Estava frio. Talvez dez graus. Eram dez e meia da noite. De repente, a<br />

mesma presença se fez perceber. Senti-me toca<strong>do</strong> no mais íntimo de meu ser. Foi como beijar a<br />

morte e a vida, outra vez. Quase morri com a força daquela visitação de amor e me<strong>do</strong>, conforme<br />

ela se me mostrou em céu aberto, no mesmo cenário bíblico no qual Jesus acolhera a peca<strong>do</strong>res<br />

tão controverti<strong>do</strong>s quanto eu.<br />

Era como a história bíblica de Abraão expulsan<strong>do</strong> os abutres que vieram comer a carne <strong>do</strong><br />

sacrifício que ele oferecera a Deus, no mais importante pôr-<strong>do</strong>-sol de sua vida, horas antes de<br />

receber a promessa de possuir a Terra Prometida. Trevas o acometiam, aves de rapina o<br />

ameaçavam, ele expulsava os abutres, sentia sono e temores, mas desejava a vida com ar<strong>do</strong>r.<br />

Então, Deus selou um pacto de amor e graça com ele. Um anjo tomou uma tocha de fogo,<br />

passou-a entre os pedaços das carnes <strong>do</strong> holocausto que Abraão pusera umas adiante das outras<br />

na presença <strong>do</strong> Eterno, e o Patriarca da Bíblia percebeu naquele símbolo uma aliança de amor<br />

entre o Cria<strong>do</strong>r e a criatura.<br />

Comigo o sentir foi o mesmo. Aquela foi a noite da realização de meu mais íntimo desejo<br />

humano e também a hora da mais profunda agonia. Luz e treva estiveram presentes. Ofertas de<br />

amor e abutres da culpa voaram por ali. Eu enxotei a uns e acolhi a outros. Foram cerca de 45<br />

minutos de profunda ambigüidade. Mas era eu quem estava lá, na companhia de quem em mim<br />

eu mais amo e mais aborreço.<br />

Foi ali, mais <strong>do</strong> que em qualquer outro lugar, que entendi que a árvore <strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong><br />

bem e <strong>do</strong> mal continua a dar seus frutos, bons e maus, e que é somente quan<strong>do</strong> nossa alma se


abre que descobre que o éden da queda ainda existe entre os rios Tigre e Eufrates, na esquina <strong>do</strong><br />

coração de cada ser humano. Cheguei mais perto <strong>do</strong> que nunca da árvore. Apesar de ter revelação<br />

de quem eu era, pude ainda me sentir ama<strong>do</strong> e acolhi<strong>do</strong> por Deus. A despeito das trevas e das<br />

lutas que me visitavam invisivelmente o éden da alma, pude ver que o caminho da Árvore da Vida<br />

continua proibi<strong>do</strong> para aquele que dela quer comer apenas para viver como eternamente caí<strong>do</strong>.<br />

Estamos força<strong>do</strong>s a ser per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s.<br />

“E colocou o Senhor um anjo com uma espada de fogo na mão a fim de proibir o caminho da<br />

Árvore da Vida, porque disse: a fim de que o homem dela não coma a vida eternamente”, diz a<br />

Bíblia. Que <strong>do</strong>ce revelação. O homem estava impedi<strong>do</strong> de viver para sempre perdi<strong>do</strong> em sua<br />

culpa. A morte seria uma porta para fora de sua <strong>do</strong>r de existir longe <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r.<br />

Continuei ali para um segun<strong>do</strong> turno de amor e angústia. Olhei para o outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar da<br />

Galiléia e me lembrei de outro encontro noturno. A cerca de 15 quilômetros dali, em linha reta,<br />

três mil e quinhentos anos antes, um outro ser ambíguo lutara contra suas próprias sombras e<br />

luzes. Jacó enfrentara o anjo <strong>do</strong> Senhor. Não quisera ser venci<strong>do</strong>, e por isso lutara. Mas também<br />

não quisera ser aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pelo anjo, e por isso o segurara e não o deixara fugir.<br />

— Não te deixarei se não me abençoares — dissera Jacó ao anjo em fuga.<br />

— Qual é o teu nome? — perguntara-lhe o anjo.<br />

Certos encontros mudam tanto a gente, que depois de tê-los vivi<strong>do</strong> é melhor mudar<br />

de nome.<br />

— Jacó — que significa o competi<strong>do</strong>r, o dissimula<strong>do</strong>r, o engana<strong>do</strong>r — é o meu<br />

nome — dissera o homem em sua <strong>do</strong>ce agonia.<br />

— Já não te chamarás Jacó, mas Israel, pois com Deus e os homens lutaste e<br />

prevaleceste — dissera o Ser que se atracara ao Patriarca.<br />

Deus gosta <strong>do</strong>s seres que ousam combatê-lo. Os que lutam com Deus são sempre os que<br />

querem amá-lo mais. Por isso o enfrentam. Ficam cara a cara com o divino. Com sede de amor,<br />

luta-se contra Ele e por Ele. Luta-se contra Ele porque se O quer mais, e luta-se por Ele, pois fora<br />

Dele nossa vida perde o ânimo para existir. Aquela foi minha guerra e meu vau de Jaboque, como<br />

o de Jacó não tão distante dali. Ninguém ficou saben<strong>do</strong> o que me aconteceu no alto daquele hotel.<br />

Mas o resulta<strong>do</strong> foi que, daquela noite em diante, minha mensagem mu<strong>do</strong>u. Era possível<br />

ver-me choran<strong>do</strong> quase todas as vezes que abria a boca para falar <strong>do</strong> amor de Deus. Fiquei mais<br />

<strong>do</strong> que nunca toma<strong>do</strong> pela consciência profunda de como a graça divina era a única fonte de<br />

minha existência. Minhas presunções pessoais de natureza moral haviam termina<strong>do</strong><br />

misteriosamente, e eu estava percorren<strong>do</strong> o mais solitário de to<strong>do</strong>s os caminhos: aquele no qual<br />

só Deus pode andar com você, pois somente passeia por esse chão quem tem coragem de andar<br />

nu com o Cria<strong>do</strong>r, e quem conhece a Deus de mo<strong>do</strong> tal que pode crer que o Senhor é aquele que<br />

“conheceu a minha alma e não me desprezou”, como diz a canção.<br />

Trata-se <strong>do</strong> caminho da graça divina, onde você sabe quem é, e justamente por isso chega<br />

diante <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r sem roupa, pois sabe que somente Ele tem vestimentas para vestir sua nudez.<br />

Somente a graça divina pode cobrir as ambigüidades da existência terrena de cada um de nós.<br />

Assim, minha espiritualidade mergulhava numa nova forma de sentir. Jamais desejaria, dali para<br />

a frente, ser o juiz existencial de quem quer que fosse. Minha vida não ficaria destituída de<br />

valores que me permitissem discernir o certo <strong>do</strong> erra<strong>do</strong>, mas eu mesmo não queria estar nunca<br />

mais na posição de juiz <strong>do</strong>s homens, lugar onde até então me encontrara com extrema<br />

regularidade em razão de freqüentes solicitações que me eram feitas, to<strong>do</strong>s os dias, pela religião.<br />

Aquela experiência remeteu-me para o sentir <strong>do</strong>s evangelhos e para a prática da ética <strong>do</strong>


humano, que fora minha herança familiar, conforme o melhor lega<strong>do</strong> de vovô João <strong>Fábio</strong>, e que<br />

havia si<strong>do</strong> corrompida pelo moralismo superficial de invasões religiosas das quais, mesmo<br />

combaten<strong>do</strong>, não havia consegui<strong>do</strong> me livrar.<br />

Tossi até não poder mais quan<strong>do</strong> retornei ao meu quarto naquela noite. Eu havia apanha<strong>do</strong> a<br />

pior de todas as tosses que eu já tivera na vida.<br />

— Você deve ter pega<strong>do</strong> isso nas favelas — disse Alda.<br />

Era estranho. Tossia uma vez, tentava tomar ar e não conseguia. Então ficava cerca de 45<br />

segun<strong>do</strong>s sem tragar oxigênio. Por três ou quatro vezes a sensação foi tão ruim, que pensei que<br />

fosse morrer na Terra Santa. Parecia que estava levan<strong>do</strong> uma gravata invisível, um<br />

estrangulamento de braços espirituais. Foram 21 dias de tormenta. Era como se três vezes ao dia<br />

eu fosse enforca<strong>do</strong>. Sabia, entretanto, que minha luta era contra forças invisíveis. Por isso me<br />

entreguei Àquele que me amava mais <strong>do</strong> que ninguém e pedi que Ele me deixasse lutar apenas<br />

com o Seu anjo, mas que o enfrentamento das outras forças invisíveis de malignidade Ele mesmo<br />

fizesse por mim. Dessa forma, o enforcamento acabou. Fiquei livre e em silêncio. Aquele era um<br />

caminho só meu e eu tinha que andar por ele em profunda solidão.<br />

De Israel fomos para Nova York. Fizemos então outra peregrinação anual: pela Time Square<br />

e pelos musicais da Broadway. Encontrei Nelsinho Motta e conversei longamente com ele sobre<br />

Cristo e música. Na Big Apple, recebi <strong>do</strong>is fax: um perfil de seis páginas que saíra sobre mim no<br />

jornal da Flórida The Miami Herald, e uma entrevista que eu dera para as páginas vermelhas da<br />

revista IstoÉ entre o Natal e o Ano-Novo.<br />

— Isso não vai ficar bom. O bispo Edir Mace<strong>do</strong> vai chegar pesa<strong>do</strong> em você. Você tem certeza<br />

de que precisava falar as coisas que falou? Você é franco demais, <strong>Caio</strong>. Eu temo que isso ainda lhe<br />

traga problemas — disse-me Alda, após ler a entrevista da IstoÉ, da qual transcrevo as duas<br />

perguntas mais significativas sobre a “questão Mace<strong>do</strong>”.<br />

— O que o horroriza nas ações da Igreja Universal <strong>do</strong> Reino de Deus? —<br />

perguntaram Daniel Stycer e Domingos Fraga.<br />

— Em primeiro lugar, esses pedi<strong>do</strong>s ostensivos e esse saqueamento psicológico e<br />

espiritual feito ao bolso das pessoas. É um saqueamento dizer “se você não contribuir, a<br />

maldição vai continuar sobre a sua vida e a única maneira que você tem para prosperar é<br />

dan<strong>do</strong>, e dan<strong>do</strong> aqui”. A maioria das pessoas que está debaixo dessa chantagem é de<br />

pessoas miseráveis, algumas desempregadas, passan<strong>do</strong> por uma situação social pavorosa e<br />

que estão se agarran<strong>do</strong> ali como última tábua de salvação.<br />

— Qual é a sua opinião sobre o bispo Edir Mace<strong>do</strong>? — continuaram.<br />

— Acredito que o Mace<strong>do</strong> está disposto a morrer por aquilo em que ele acredita. Há<br />

um simplismo enorme da mídia em achar que ele é um grande picareta que talvez nem<br />

creia em Deus. Ele crê em Deus. Agora, o Deus no qual ele crê é diferente da maneira que<br />

eu vejo Deus, o Evangelho e Jesus. Ele acredita ser um envia<strong>do</strong> de Deus com uma missão<br />

messiânica. Ele está disposto a morrer em praça pública por isso aí. Ele acredita que o que<br />

ele prega é uma mensagem enviada por Deus a ele, para ele fazer conhecida no mun<strong>do</strong>. E<br />

aí, meu amigo, quan<strong>do</strong> você tem uma finalidade messiânica absurdamente definida na sua<br />

mente, os meios tornam-se relativos.<br />

— A gente tem que orar muito. Eles vão querer nos pegar — repetiu Alda, após ler e reler as<br />

quatro páginas da entrevista.<br />

— Mas o que você quer que eu responda? Eu não sou o juiz de ninguém e não estou<br />

tentan<strong>do</strong> julgar indivíduos. A prova disso é que eu fugi da questão sobre o caráter dele. Eu falei foi


sobre as ações de natureza social, coletivas; sobre as coisas que eles fazem que não têm nada a ver<br />

com o evangelho e que se tornam públicas. São ações que tocam a muitos. Se eles quiserem fazer<br />

o que fazem, é problema deles. Mas têm que parar de dizer que são evangélicos. O que eles fazem<br />

não é evangélico, e se ser evangélico é ser como eles estão fazen<strong>do</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pensar que eles<br />

são, então quem não é evangélico sou eu. Eu não quero ser parte de uma igreja que acha que essa<br />

ação de camelô da fé é algo natural — respondi com certa irritação, mas com muita angústia de<br />

alma.<br />

Afinal, tu<strong>do</strong> que eu havia dito sobre eles fora antes de eu lutar com o anjo de meu ser. Agora,<br />

não queria mais me envolver com aquela polêmica, mas não era mais possível recuar. Além disso,<br />

não estava julgan<strong>do</strong> indivíduos e suas motivações, mas apenas externan<strong>do</strong> uma opinião sobre<br />

ações de natureza social, com implicações profundamente coletivas. E se a luta com o anjo me<br />

tirara o desejo de julgar pessoas, não arrancara de mim, entretanto, a consciência ética sobre o que<br />

era humano ou não era humano. E, para mim, era desumano o que eles estavam fazen<strong>do</strong> em<br />

nome da fé. Depois de alguns dias em Nova York, voltamos ao Brasil.<br />

— Eu sinto que esse vai ser um <strong>do</strong>s anos mais difíceis de nossas vidas — falei para minha<br />

família e para alguns amigos.<br />

— O que é isso! Tá tu<strong>do</strong> dan<strong>do</strong> certo pra você — era o que ouvia como resposta da maioria<br />

das pessoas.<br />

A impressão era tão forte, que escrevi no boletim Vinde Informa, que nós enviamos para nossa<br />

assembléia de cinqüenta mil pessoas, algo que acabaria ten<strong>do</strong> caráter profético para mim: 1995:<br />

Ano das grandes lutas e tentações.<br />

Em meu artigo, dizia que havia esta<strong>do</strong> travan<strong>do</strong> grandes lutas espirituais e experimenta<strong>do</strong><br />

certa depressão, e sabia que isso era porque 1995 seria um ano de imensas tentações para mim.<br />

Sobretu<strong>do</strong> a tentação de entrar em coisas que Deus não nos mandara e lutas contra a<br />

perversidade humana. Entretanto, quan<strong>do</strong> março começou, as atividades esquentaram e veio-me<br />

a sensação de que tu<strong>do</strong> aquilo havia si<strong>do</strong> apenas um pesadelo acorda<strong>do</strong>, um sentir equivoca<strong>do</strong> que<br />

me acometera em razão de no ano anterior eu ter vivi<strong>do</strong> dez anos em um, emocionalmente<br />

falan<strong>do</strong>.<br />

“Não foi um anjo. Foi apenas um estresse”, falei a mim mesmo. Anjos e angústias se parecem<br />

muito em dias de escuridade ou de muita luz. Os fatos, entretanto, mostrariam que eu estava<br />

engana<strong>do</strong>.


Capítulo 55<br />

“O que me mantinha cativo e como que sufoca<strong>do</strong> eram as tais grandes massas, que<br />

pareciam oprimir-me, debaixo de cujo peso, arquejante, me era impossível<br />

respirar a aura pura e simples de tua verdade.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No início de 1995, havíamos lança<strong>do</strong> uma nova campanha para as favelas. Ponha esta idéia<br />

no ar: cerol nem de brincadeira. A idéia nascera num dia em que eu estava andan<strong>do</strong> pela Fábrica<br />

de Esperança e percebera como alguns garotos da favela se arriscavam corren<strong>do</strong> sobre telha<strong>do</strong>s<br />

frágeis, simplesmente porque estavam fascina<strong>do</strong>s por suas pipas.<br />

Passar o cerol é uma expressão usada na favela quan<strong>do</strong> se trata de definir a morte de alguém.<br />

E “cerol” é aquela goma de cola e vidro que os garotos passam nas linhas das pipas para que<br />

possam “guerrear nos ares” contra seus “inimigos”.<br />

A linguagem <strong>do</strong> cerol era perfeita para falar de nossa luta contra a violência nas comunidades<br />

faveladas. A campanha consistia em um concurso da pipa da paz mais criativa. Quem ganhasse,<br />

levaria trezentas pipas com o símbolo <strong>do</strong> desarmamento, que o cartunista Ziral<strong>do</strong> havia feito e<br />

nos oferta<strong>do</strong>. Lançamos a campanha, e muitas comunidades compraram a idéia. Mas como<br />

aquele início de ano foi agitadíssimo, tivemos de adiar o concurso para o início de março.<br />

No dia anterior ao concurso, o cabo Flávio, da Polícia Militar, matou um criminoso a<br />

sangue-frio em frente ao Shopping Rio Sul. A Globo estava lá e registrou tu<strong>do</strong>. Foi um escândalo.<br />

No dia seguinte, nós estávamos no Aterro <strong>do</strong> Flamengo, no meio <strong>do</strong> concurso de pipas, quan<strong>do</strong> as<br />

repercussões começaram.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, a mídia toda está atrás <strong>do</strong> senhor. Querem falar sobre a morte de alguém na<br />

frente <strong>do</strong> Rio Sul. O que é que eu digo? — perguntou-me Cristina pelo celular.<br />

— Pode mandar to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pra cá — falei. Nem to<strong>do</strong>s foram, mas meu celular não parou<br />

mais.<br />

— O que o senhor acha disso? O governa<strong>do</strong>r disse que foi erra<strong>do</strong>, mas que a sociedade<br />

precisa entender. O que o senhor pensa? — era a questão comum a quase to<strong>do</strong>s os que me<br />

procuravam.<br />

— A maior arma que a polícia tem contra os bandi<strong>do</strong>s é a sua diferença cidadã. A polícia tem<br />

que ser a cidadania fardada. Quan<strong>do</strong> a polícia age com os mesmos critérios de crueldade <strong>do</strong>s<br />

bandi<strong>do</strong>s, ela fica pior <strong>do</strong> que eles. Nada é mais perverso <strong>do</strong> que a crueldade feita em nome da lei.<br />

Isso acaba com as instituições. E o governa<strong>do</strong>r sabe disso. Por isso, numa hora dessas, acho que<br />

ele não poderia dizer nenhum mas. Ele não pode desculpar uma ação assim. Falan<strong>do</strong> desse mo<strong>do</strong>,


ele está tentan<strong>do</strong> falar para agradar os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s: a sociedade (dizen<strong>do</strong> que tá erra<strong>do</strong>), e a polícia<br />

(dizen<strong>do</strong> que a gente precisa entender o cabo). Isto é perigoso — respondi, esquecen<strong>do</strong> que 1994<br />

havia acaba<strong>do</strong> e que já estávamos em 1995, tempo no qual já não se podia mais falar à vontade.<br />

Daquele dia em diante, passei a ser um <strong>do</strong>s repercuti<strong>do</strong>res de matéria sobre o governa<strong>do</strong>r e o<br />

prefeito. Falava muitas vezes com tom crítico, mas também elogiava todas as ações que me<br />

pareciam boas. E para provar isto, tenho inúmeros recortes de jornal que evidenciam tanto uma<br />

coisa quanto a outra. Fazen<strong>do</strong> assim, achei que estava apenas sen<strong>do</strong> cidadão. E como não era<br />

partidariamente político, mas apenas um <strong>pastor</strong>, imaginava que não seria jamais visto como<br />

inimigo <strong>do</strong> indivíduo circunstancialmente eleva<strong>do</strong> à posição de autoridade, fosse o governa<strong>do</strong>r ou<br />

o prefeito.<br />

— Sou apenas um cidadão com voz e com capacidade crítica construtiva — disse mais de<br />

uma vez quan<strong>do</strong> me perguntavam acerca de minhas “participações políticas”.<br />

Então começaram a vir os sinais de que eu estava equivoca<strong>do</strong>. O convênio <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> com a<br />

AEVB para a capelania nos presídios foi cancela<strong>do</strong> e nossas carteiras para visitação em<br />

penitenciárias foram invalidadas.<br />

— <strong>Caio</strong>, a gente tem que conversar. E não dá pra ser por telefone. Dá pra ser hoje no almoço?<br />

— perguntou Rubem César em mea<strong>do</strong>s de março. Encontramo-nos num restaurante próximo à<br />

ladeira da Glória. — Eu tenho uma pessoa amiga, que trabalha no palácio <strong>do</strong> governo, que me<br />

disse que os assessores chega<strong>do</strong>s ao Marcello andam dizen<strong>do</strong> que vão pegar você — disse-me<br />

Rubem com ar de muita preocupação.<br />

— Não pode ser. Junto dele também tem gente que me conhece. É o caso <strong>do</strong> coronel Ferraz<br />

e <strong>do</strong> comandante Dorazil, da Polícia Militar, ambos evangélicos. Eles não deixariam o governa<strong>do</strong>r<br />

ficar engana<strong>do</strong> a meu respeito — falei, tentan<strong>do</strong> me convencer de que aquilo tu<strong>do</strong> não passava de<br />

fofoca palaciana.<br />

— Olha, tem mais. O Alfre<strong>do</strong> me telefonou pedin<strong>do</strong> pra eu te dar um reca<strong>do</strong>.<br />

— Ah, é! O quê?<br />

— O César Maia disse a ele que, num papo com o cardeal e o presidente <strong>do</strong> Tribunal, o<br />

governa<strong>do</strong>r Marcello Alencar falou muito mal de você e da Fábrica de Esperança. Disse que você<br />

é um picareta, oportunista, que defende bandi<strong>do</strong>s como parte de uma estratégia política <strong>do</strong><br />

Coman<strong>do</strong> Vermelho e que a Fábrica é uma fachada.<br />

— Diz pro Alfre<strong>do</strong> que eu quero falar com ele.<br />

— Liga pra ele. Foi ele que me pediu pra te falar isso. Eu acho que ele não vai ligar de você<br />

perguntar sobre o assunto.<br />

Dois dias depois, Alfre<strong>do</strong> e eu estávamos almoça<strong>do</strong> no restaurante Alcaparras, no Aterro <strong>do</strong><br />

Flamengo.<br />

— Eu conheço você e sei quais são as suas motivações. Mas fiquei preocupa<strong>do</strong> que num papo<br />

entre o governa<strong>do</strong>r, o prefeito, o cardeal e o presidente <strong>do</strong> Tribunal você tenha si<strong>do</strong> janta<strong>do</strong> de<br />

uma vez. São homens de muito poder e você deveria tentar saber o que está acontecen<strong>do</strong>. Se eu<br />

fosse você, iria falar com o Marcello — disse meu amigo de dentro da Prefeitura.<br />

Eu tinha esta<strong>do</strong> com Marcello Alencar no início <strong>do</strong> ano. Havia encontra<strong>do</strong> com ele na<br />

companhia de meu amigo Eduar<strong>do</strong> Mascarenhas, psicanalista e deputa<strong>do</strong> federal pelo PSDB.<br />

Naquela ocasião, minha visita tivera duplo objetivo: mostrar para ele que eu não mordia e saber se<br />

o esta<strong>do</strong> tinha qualquer interesse em fazer parcerias sociais com a Fábrica. A idéia era que<br />

empresas vinculadas à Fábrica pudessem receber incentivos fiscais especiais <strong>do</strong> governo. Fui<br />

bem-recebi<strong>do</strong>, mas não deu em nada.<br />

— Bom, eu já estive com ele uma vez. Vou tentar marcar outra audiência. Só que agora o<br />

assunto será este — falei a Alfre<strong>do</strong>.


Poucos dias depois, recebi um telefonema de uma amiga que ocupa uma posição<br />

superestratégica num <strong>do</strong>s principais veículos de comunicação <strong>do</strong> país, dizen<strong>do</strong> que precisava<br />

falar comigo com urgência. Eu a encontrei para almoçar no 14 Bis, restaurante <strong>do</strong> aeroporto<br />

Santos Dumont.<br />

— Olha, isso aqui é um tremen<strong>do</strong> off. Meu nome não pode aparecer, OK? — perguntou.<br />

— Claro! Não fique preocupada — garanti.<br />

— Semana passada, eu e <strong>do</strong>is outros profissionais lá da empresa almoçamos com o Marcello<br />

Alencar. No meio da conversa, ele começou a falar mal de você, de graça, sem mais nem menos —<br />

disse a jornalista.<br />

— Ah, é? E o que ele falou? — perguntei como se ainda não soubesse de nada.<br />

— Ele disse que você é o mentor de toda a política de direitos humanos de bandi<strong>do</strong>s no<br />

esta<strong>do</strong>, que o Coman<strong>do</strong> Vermelho e você trabalham juntos, e que a mídia ainda não percebeu<br />

como você é importante no esquema <strong>do</strong>s bandi<strong>do</strong>s. Disse também que a Fábrica é uma fachada<br />

<strong>do</strong> tráfico de drogas e que era uma questão de tempo até tu<strong>do</strong> estar prova<strong>do</strong>.<br />

— Cê tá brincan<strong>do</strong>. Esse negócio é sério, mesmo. Olha, você é a terceira pessoa em uma<br />

semana que me diz a mesma coisa. Agora estou preocupa<strong>do</strong>.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, se eu fosse você, eu iria falar com o governa<strong>do</strong>r o quanto antes. Ele está muito<br />

cheio de sentimentos ruins. Ninguém puxou o assunto, mas ele ficou falan<strong>do</strong> insistentemente.<br />

Para ele, isso parece ter se torna<strong>do</strong> algo importante.<br />

Naquela mesma semana, recebi cinco outras mensagens idênticas de amigos que me<br />

disseram ter ouvi<strong>do</strong> a mesma conversa.<br />

— Olha, lá na igreja há um irmão que trabalha com o governa<strong>do</strong>r. Ele me disse que o<br />

Marcello anda dizen<strong>do</strong> que você é um espertalhão, que ganha dinheiro <strong>do</strong> exterior para a Fábrica<br />

e põe tu<strong>do</strong> no bolso. Disse que você recebeu vinte milhões de dólares da Alemanha e embolsou<br />

tu<strong>do</strong>. Acho que você deveria ir saber o que está acontecen<strong>do</strong> — disse-me por aqueles dias, com ar<br />

de extrema preocupação, o <strong>pastor</strong> Ezequiel Teixeira.<br />

— Reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong>, meu irmão, o Aldir Cabral está <strong>do</strong>i<strong>do</strong>. Sabe que eu encontrei com ele na<br />

ante-sala <strong>do</strong> gabinete <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r e ele me disse que, depois de muito pensar, o Mace<strong>do</strong> e os<br />

bispos da Universal concluíram que o irmão é um “infiltra<strong>do</strong> católico” no meio evangélico? Ele<br />

me disse isso sério. No início, pensei que fosse gozação. Mas não, o cara tava falan<strong>do</strong> sério —<br />

contou-me um importante político da cidade, que também é evangélico.<br />

— Que coisa louca. Mas que é engraça<strong>do</strong>, é. O cardeal participa de conversas onde eu sou<br />

estraçalha<strong>do</strong>, e vem o Aldir Cabral e diz que sou espião católico. Só pode ser piada. Mas o que<br />

você acha que ele está conseguin<strong>do</strong> com isso? — perguntei.<br />

— Eu acho que ele tá envenenan<strong>do</strong> o Marcello contra o senhor — concluiu.<br />

Pensei, orei e decidi ir ao encontro de Marcello Alencar o quanto antes. Assim, recorri a<br />

alguém que eu sabia que não teria dificuldade em marcar a entrevista.


Capítulo 56<br />

“Com efeito: quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Contu<strong>do</strong>, a espera<br />

<strong>do</strong> futuro já está no espírito. E quem poderá contestar que o passa<strong>do</strong> já não existe?<br />

Contu<strong>do</strong>, a lembrança <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ainda está no espírito. Enfim, haverá alguém<br />

que negue que o presente carece de duração, porque é um instante que passa?<br />

Contu<strong>do</strong>, perdura a atenção, pela qual o que vai ser seu objeto tende a deixar de<br />

existir. O futuro, portanto, não é longo, porque não existe.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Em 1995, percebi que minha maior vulnerabilidade social estava na Fábrica de Esperança,<br />

daí ter resolvi<strong>do</strong> colocar lá alguém que ocupasse a função de supervisão geral. A pessoa naquela<br />

posição precisaria possuir grande habilidade política e diplomática, pois, naquele momento, mais<br />

<strong>do</strong> que de dinheiro, nós precisávamos de articulação e de vínculos. Havia ainda uma outra<br />

preocupação por trás daquela mudança. Sentia que existia algo estranho acontecen<strong>do</strong> nos<br />

basti<strong>do</strong>res da cidade e, para mim, estava claro que, o que quer que fosse acontecer, iria tocar<br />

naquele que era o meu calcanhar-de-aquiles: a Fábrica de Esperança. Se alguma coisa desse<br />

erra<strong>do</strong> ali, estaria de canela quebrada. Portanto, precisava ter lá uma pessoa de minha mais<br />

absoluta confiança.<br />

— Cris, eu tenho uma proposta a lhe fazer. Você quer assumir a supervisão geral da Fábrica?<br />

Serão quase quatro horas por dia dentro <strong>do</strong> carro só pra ir e voltar, e os maiores abacaxis <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> pra descascar. Você quer? — perguntei àquela que me dissera, quan<strong>do</strong> de nossa primeira<br />

visita ao prédio da Fábrica, que “aquilo era presente de grego”, e não dei tempo para a resposta.<br />

— Vá pra casa. Fale com seu mari<strong>do</strong> e com seus filhos e me dê uma resposta amanhã.<br />

Cristina já trabalhava como minha secretária há dez anos e sabia que eu não preciso falar<br />

muito tempo para expressar o desejo de uma decisão profunda. E, depois de chorar de me<strong>do</strong> da<br />

nova função e saudades da última, ela aceitou o desafio.<br />

— Eu não me sinto sain<strong>do</strong>, mas apenas continuan<strong>do</strong>. Se o senhor precisa de mim lá, eu vou<br />

— disse com emoção. E foi para ficar.<br />

No dia 8 de junho de 1995, uma fagulha quase pôs nosso sonho a perder. Um funcionário que<br />

soldava uma placa de ferro nas proximidades de um <strong>do</strong>s galpões da Fábrica de Esperança teve a<br />

infelicidade de ver uma pequena faísca desprender-se de seu maçarico e passar por entre as<br />

frestas <strong>do</strong> portão de ferro e a parede <strong>do</strong> galpão. A fagulha caiu sobre um lote de mil e seiscentas<br />

máquinas Xerox embaladas em caixas de isopor. As chamas gulosas por pouco não engoliram


aquilo que estávamos construin<strong>do</strong> a duras penas.<br />

Mas aquele incêndio era inevitável. Fazia parte de um desígnio divino. E como to<strong>do</strong> plano de<br />

Deus, a gente só entende bem depois.<br />

— <strong>Caio</strong>, eu sonhei com a Fábrica. Era uma coisa ruim, um acidente, mas eu não tenho<br />

detalhes — contou-me Alda.<br />

Não disse nada, mas fiquei preocupa<strong>do</strong>. A sensação que eu tinha era a de que um anjo de<br />

trevas, com imensa fúria, estava grunhin<strong>do</strong> contra nós.<br />

— Nós estamos mexen<strong>do</strong> em coisas cruciais: a miséria, a perversidade, a violência, o<br />

banditismo, a polícia, os políticos, a mídia e as vaidades humanas. Além disso, também temos<br />

toca<strong>do</strong> em alguns nervos expostos desta cidade. Então, é de se esperar que os principa<strong>do</strong>s espirituais<br />

<strong>do</strong> Rio estejam revolta<strong>do</strong>s conosco — eu dizia a algumas pessoas mais íntimas.<br />

Dizen<strong>do</strong> isso, estava ecoan<strong>do</strong> uma importantíssima convicção cristã: as cidades, nações e toda<br />

sorte de relações humanas comunitárias são marcadas por forte presença <strong>do</strong>s anjos. A Bíblia dá<br />

margem para que se creia que em cada povoa<strong>do</strong> humano haja anjos que protegem<br />

especificamente aquele grupo. Mas a mesma <strong>do</strong>utrina tem o seu outro la<strong>do</strong>. Anjos da escuridão<br />

também disputam o controle psicossocial daquele ajuntamento. Aquilo que Jung chamou de<br />

“inconsciente coletivo”, a Bíblia chama de “principa<strong>do</strong>s e potestades”, e existem não apenas<br />

como subprodutos da fabricação cultural da sociedade, mas também como seres autônomos, que<br />

tanto se alimentam da cultura social como a influenciam decisivamente. E como nós estávamos<br />

tocan<strong>do</strong> nos nervos sociais daqueles poderes invisíveis, eu achava possível esperar represálias.<br />

— Pastor, estou muito incomodada com a Fábrica — disse-me uma pessoa amiga. — Estou<br />

com o pressentimento de que algo está para acontecer por lá.<br />

— Brother <strong>Caio</strong>. I am calling you because I have been concerned with you. God gave me a text<br />

from the Bible. It is for you. Read it, Brother — disse-me o reveren<strong>do</strong> Samuel Doctorian,<br />

chaman<strong>do</strong>-me de Los Angeles.<br />

A passagem bíblica que ele me mandara ler dizia que Deus haveria de proteger seus servos<br />

com um muro de fogo.<br />

— Dona Cristina, vem cá que eu quero lhe contar uma coisa. Eu tava aqui na cozinha da<br />

Fábrica quan<strong>do</strong> vi uma coisa feia. Era uma grande sombra. Tive certeza que era coisa <strong>do</strong> Maligno.<br />

Peguei o garoto da cozinha e fomos orar. Pusemos os joelhos no chão e clamamos ao Senhor.<br />

Pedimos a Sua proteção. Os Seus anjos. Mas eu queria que a senhora soubesse. Tem luta aqui —<br />

disse tia Biga, cozinheira da Fábrica.<br />

— Hum. Estou sentin<strong>do</strong> cheiro de fogo aqui. Vai ver se tem alguma coisa queiman<strong>do</strong>. Estou<br />

com esse cheiro de fogo no nariz — disse Cristina para o encarrega<strong>do</strong> da segurança às dez horas<br />

daquela manhã.<br />

— Num é nada, <strong>do</strong>na Cristina — disse o homem.<br />

— É melhor ficar de olho aberto. Eu estou sentin<strong>do</strong> esse cheiro — repetiu Cristina sem<br />

saber que estava ten<strong>do</strong> uma premonição olfativa.<br />

— Fooogo. Fooogo. Fooogo! — eram os gritos que se ouviam por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s às 11h45<br />

min da manhã, gritos que se misturavam ao som ensurdece<strong>do</strong>r da sirene da Fábrica.<br />

O pânico foi geral. Logo a mídia estava lá. O helicóptero da Globo voava sobre o incêndio.<br />

Transmissões ao vivo foram feitas simultaneamente para to<strong>do</strong> o Brasil. Centenas de pessoas<br />

começaram a telefonar e a orar a Deus por nós. Um multidão correu para a frente da Fábrica. Eu<br />

estava na sede da Vinde, em Niterói.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, o Robin está no telefone dizen<strong>do</strong> que a Fábrica está em chamas — disse Elisa,


minha secretária à época, com os olhos arregala<strong>do</strong>s.<br />

Não esperei nem que ela terminasse a frase. Corri para o carro e disparei para Acari em<br />

companhia <strong>do</strong> <strong>pastor</strong> Arioval<strong>do</strong> Ramos.<br />

— <strong>Caio</strong>, fica tranqüilo. Parece que é um incêndio setoriza<strong>do</strong> e que já está sob controle. Não<br />

fica angustia<strong>do</strong> — dizia Alda, enquanto os meus olhos me provavam que a informação estava<br />

incorreta, pois ainda estávamos na avenida Brasil, na altura de Parada de Lucas, a uns seis<br />

quilômetros de distância, e já era possível ver as nuvens negras cobrin<strong>do</strong> toda a região da Fábrica.<br />

Fomos oran<strong>do</strong> em silêncio. Não gritamos e nem nos agitamos. Silêncio e o pensamento em<br />

Deus era o que eu conseguia fazer.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos, já havia centenas de pessoas se espremen<strong>do</strong> em frente à Fábrica. Muita<br />

gritaria e muito desespero. Tive de entrar no peito e na raça, pois a mídia queria uma<br />

“declaração” minha já ali fora.<br />

— Se eu declarar, eu perco a Fábrica. Depois. Agora é hora de apagar o incêndio — falei e<br />

entrei pelo portão lateral.<br />

A cena era caótica. O Galpão 17, o primeiro da lateral direita da propriedade, já tinha acaba<strong>do</strong>.<br />

Dois outros ao la<strong>do</strong> ameaçavam ter o mesmo fim. As chamas corriam pelo telhadão único de<br />

amianto, que cobre pelo menos 15 mil metros quadra<strong>do</strong>s de área e onde havia vários outros<br />

galpões. Tu<strong>do</strong> aquilo poderia virar cinzas. Quan<strong>do</strong> me dei conta, havia um espetáculo fascinante<br />

acontecen<strong>do</strong> paralelamente à catástrofe. Funcionários da Parmalat, nossa vizinha, estavam<br />

corren<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s com suas empilhadeiras, tentan<strong>do</strong> tirar as máquinas da Xerox de<br />

dentro <strong>do</strong>s outros galpões. Bombeiros recebiam ajuda heróica <strong>do</strong>s funcionários da fábrica.<br />

Policiais militares que por ali iam passan<strong>do</strong> pararam e entraram na luta contra as chamas,<br />

ajuda<strong>do</strong>s por um monte de rapazes suspeitos, que, ven<strong>do</strong> as chamas invadirem o lugar, pularam o<br />

muro e levaram sua colaboração.<br />

— Corre gente. Anda gente. Aqui está nossa esperança. Ela não pode virar cinzas. Vamos<br />

apagar esse fogo — eram os gritos que se faziam ouvir durante to<strong>do</strong> o tempo.<br />

Não fosse tamanha solidariedade, o desfecho poderia ter si<strong>do</strong> outro.<br />

No meio de tu<strong>do</strong> aquilo, subi corren<strong>do</strong> para o topo <strong>do</strong> prédio central, de onde vi que as<br />

chamas corriam sobre o telha<strong>do</strong>, animadas que estavam pelo vento produzi<strong>do</strong> pela hélice <strong>do</strong><br />

helicóptero de reportagem da Globo.<br />

— Mande o pessoal passar um rádio pro helicóptero levantar e filmar de longe. Ele tá<br />

abanan<strong>do</strong> o fogo. E mande um grupo quebrar uma linha de uns três a quatro metros de largura<br />

em toda extensão <strong>do</strong> telha<strong>do</strong> para as chamas não passarem — falei para Egnal<strong>do</strong> Júnior e<br />

Reginal<strong>do</strong>.<br />

As duas providências foram tomadas e com a ajuda informal <strong>do</strong> grupo da solidariedade<br />

antiincêndio conseguimos extinguir as chamas depois de três horas de combate.<br />

Aquele incêndio queimou mais de mil máquinas Xerox, mas gerou três coisas. Primeiro, a<br />

consciência da importância da Fábrica para os habitantes <strong>do</strong> lugar. Além da solidariedade <strong>do</strong>s<br />

adultos, recebemos depois centenas de trabalhos infantis das escolas da região mostran<strong>do</strong> o<br />

impacto <strong>do</strong> incêndio na produção <strong>do</strong>s alunos. Eram declarações lindas de amor à Fábrica.<br />

Segun<strong>do</strong>, a enorme mídia que o episódio nos deu em to<strong>do</strong> o Brasil. Até aquele dia, a Fábrica era<br />

um projeto social <strong>do</strong> Rio, conheci<strong>do</strong> na cidade e cuja existência era de alguma forma percebida<br />

em outros lugares. Mas as transmissões ao vivo, bem como nos telejornais e demais veículos de<br />

comunicação, nos tornaram conheci<strong>do</strong>s em to<strong>do</strong> o país. Terceiro, a constatação de nossa<br />

fragilidade contra aquele tipo de coisa e contra qualquer outra situação na área de segurança<br />

física da Fábrica. Numa área tão grande como aquela, não havia meios humanos que nos dessem<br />

garantias totais de que coisas daquele tipo não pudessem acontecer outra vez.


— O que foi que o senhor sentiu quan<strong>do</strong> viu a Fábrica em chamas? — perguntaram os<br />

repórteres.<br />

— Olha, eu fui lá pra cima e disse: “Deus, mesmo que isso tu<strong>do</strong> pegue fogo, a gente vai<br />

começar tu<strong>do</strong> das cinzas, outra vez.” Sabe, gente, o fogo que nos arde aqui dentro é mais forte <strong>do</strong><br />

que aquele que nos ameaçou. Mesmo que tivéssemos que recomeçar das cinzas, nós<br />

recomeçaríamos. Não tem mais volta — falei para um batalhão de jornalistas que, àquela altura, já<br />

tinham deixa<strong>do</strong> o profissionalismo de la<strong>do</strong> e expressavam claramente seu alívio com o desfecho<br />

da situação.


Capítulo 57<br />

“Também a estes odiava meu coração, porém não com ódio perfeito, porque, na<br />

realidade, mais os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar <strong>do</strong> que pela<br />

simples injustiça de seu comportamento. Naquele tempo — confesso — preferia<br />

que não fossem maus para meu interesse <strong>do</strong> que bons por Teu amor.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

— Veloso, dá pra você marcar um encontro meu com o governa<strong>do</strong>r? — perguntei ao então<br />

vice-líder <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> de Marcello na Assembléia Legislativa.<br />

— Tá marca<strong>do</strong> para o dia 12 de julho. Eu disse que vou junto, tá bom? — informou-me o<br />

<strong>pastor</strong> Veloso, deputa<strong>do</strong> pelo PSDB, algum tempo depois.<br />

No dia marca<strong>do</strong>, já à porta <strong>do</strong> palácio, o <strong>pastor</strong> Veloso me perguntou o motivo <strong>do</strong> encontro.<br />

— Para ser franco, é uma coisa pessoal. Quero conversar com ele sobre a Fábrica e também<br />

sobre mim — respondi sem esclarecer muita coisa.<br />

— Ei, reveren<strong>do</strong>! Dá pro senhor fazer uma oração pela multidão que está ali à porta <strong>do</strong><br />

palácio? — pediram uns repórteres que estavam no lugar.<br />

É que um grupo de pessoas amigas da jornalista Vera Dias, mulher <strong>do</strong> executivo David<br />

Kogan, seqüestra<strong>do</strong> há sessenta dias, tinha i<strong>do</strong> até lá protestar contra a ineficiência da polícia<br />

quanto a solucionar o caso. Fui até lá e orei com a multidão. Depois, entrei no palácio e<br />

encontrei-me com o governa<strong>do</strong>r.<br />

A conversa foi cordial. Falamos sobre o valor <strong>do</strong> voluntaria<strong>do</strong> cristão em obras sociais e de<br />

como o esta<strong>do</strong> não conseguia fazer coisas tão baratas quanto as igrejas e organizações baseadas<br />

no serviço voluntário. A seguir, Marcello falou <strong>do</strong> quanto a situação <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> estava difícil.<br />

Depois, passou para a mídia, que, segun<strong>do</strong> ele, o estava poupan<strong>do</strong> de críticas mais sérias, apesar<br />

de tu<strong>do</strong>. E fomos adiante. Eu já estava ansioso. Já tínhamos conversa<strong>do</strong> quase uma hora e não<br />

tinha consegui<strong>do</strong> trazer à tona o assunto que me levara até lá. Então decidi que, se ele não me<br />

desse nenhuma deixa, criaria uma, por minha própria conta.<br />

— Governa<strong>do</strong>r, eu pedi ao Veloso para me trazer aqui hoje porque eu tenho um assunto<br />

pessoal para tratar com o senhor — falei interrompen<strong>do</strong> as amenidades que haviam marca<strong>do</strong><br />

nossa conversa até ali.<br />

— Claro. Pode ficar à vontade — disse Marcello Alencar amavelmente.<br />

— É que nos últimos dias eu tenho recebi<strong>do</strong> informações, vindas de pessoas distintas, umas<br />

afirman<strong>do</strong> que souberam de primeira mão, outras dizen<strong>do</strong> que ouviram de terceiros, mas todas<br />

falan<strong>do</strong> que o senhor está muito magoa<strong>do</strong> comigo. Eu queria saber o que houve. Se eu fiz algo que


o machucou, por favor, tire isso <strong>do</strong> coração. Eu não quero criar situações que venham a<br />

amargurá-lo — falei, enquanto ele se ajeitava na cadeira mais de uma vez.<br />

Eu pensei que ele iria mudar o tom e julgar minha palavra impertinente. Achei que talvez ele<br />

fosse me confrontar. E até preferia que fosse assim, pois me daria a chance de esclarecer as<br />

coisas e botar um ponto final naquilo tu<strong>do</strong>.<br />

— Olhe, nós estamos viven<strong>do</strong> dias difíceis. A imprensa entra no processo para cumprir um<br />

papel muito negativo. No primeiro semestre, até que me pouparam, embora o tom seja sempre<br />

contra as instituições <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Mas eu acredito na democracia. Se antes eu já acreditava, agora<br />

acredito mais. Críticas fazem parte <strong>do</strong> processo. Agora, devo dizer, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> quer que o esta<strong>do</strong><br />

seja o paizão que dá tu<strong>do</strong>. Não funciona. Temos é que ajudar as pessoas a gerarem renda por elas<br />

mesmas — disse o governa<strong>do</strong>r com um ar filosófico.<br />

— Certo, governa<strong>do</strong>r. Certo — disse eu, enquanto ele prosseguia.<br />

— Agora, jornalista, repórter, não, eles não têm acesso às minhas intimidades sobre as<br />

instituições e a respeito das pessoas — completou o governa<strong>do</strong>r. Naquele momento, eu entendi<br />

que ele estava achan<strong>do</strong> que aquelas informações haviam si<strong>do</strong> passadas a mim especificamente<br />

por algum jornalista. — Aqui no esta<strong>do</strong>, é tu<strong>do</strong> muito difícil. Até para reequipar a polícia é difícil.<br />

Você tenta, mas pode vir um tribunal e botar a sua intenção por terra. Lá na sua Fábrica de<br />

Esperança é diferente. Você aperta o botão, determina e tu<strong>do</strong> acontece. Aqui eu aperto o botão,<br />

mas não funciona. <strong>Caio</strong>, pra fazer funcionar, tem que se dar por inteiro. Eu tenho muita<br />

preocupação com a parte institucional. É por isso que eu me preocupo com alguns movimentos<br />

de vocês. Às vezes o teor é muito radical, às vezes cometem muitos equívocos — naquele ponto,<br />

eu estava tentan<strong>do</strong> entender onde o governa<strong>do</strong>r Marcello Alencar queria chegar, mas ainda não<br />

estava claro para mim. — Olha só o Betinho. Sou amigo dileto dele. Mas quan<strong>do</strong> ele trabalhou<br />

como “ouvi<strong>do</strong>r” da prefeitura, foi para Brasília com o (ex-prefeito) Saturnino para abraçar o<br />

Congresso de mãos dadas, para pressionar a votação de uma lei. Bonito, mas não dá. Estou<br />

falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Betinho como exemplo clássico. Agora ele está numa boa, amadureceu. Já quer que<br />

to<strong>do</strong>s os cidadãos façam alguma coisa. Antes ele jogava muito só. Ele melhorou. Eu não quero<br />

magoar o Betinho, eu o a<strong>do</strong>ro. O que eu acho é que, às vezes, esses movimentos de vocês são um<br />

pouco maniqueístas: o governo não presta, e nós é que temos que fazer as mudanças — disse o<br />

governa<strong>do</strong>r.<br />

Naquele momento, entendi um pouco melhor. De alguma forma, ele nos percebia como<br />

inimigos da ineficácia <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Reconhecê-la era muito fácil para ele. Afinal, ele mesmo dissera<br />

que “apertava os botões e não funcionava”. Mas gostaria que ele mesmo fosse aquele que tivesse<br />

sempre o direito de criticar a máquina <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Quem quer que o fizesse de fora <strong>do</strong> sistema<br />

corria o risco de ser visto como um radical maniqueísta.<br />

Ele prosseguiu falan<strong>do</strong> de como a reputação <strong>do</strong>s políticos andava baixa e <strong>do</strong> quanto isso<br />

atrapalhava as ações <strong>do</strong> governo. Então entrou mais objetivamente na questão das chamadas<br />

ONGs.<br />

— Eu acompanho, respeito, estimulo e acolho esses movimentos. Mas faço isso confiante de<br />

que esses movimentos não deixem de dar ao esta<strong>do</strong> as responsabilidades que lhe são inerentes. O<br />

esta<strong>do</strong> não pode se dar ao luxo de dar satisfação para uma ONG. Elas não têm a legitimidade que<br />

o esta<strong>do</strong> tem. Eu tive experiências muito ruins com as ONGs na Eco 92. Mas o movimento de<br />

vocês eu respeito, tem caráter religioso e eu aprendi a respeitar os evangélicos na campanha<br />

política. Foi quan<strong>do</strong> eu tive a idéia de terceirizar a ação social <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> para as instituições<br />

religiosas. O governo não tem como competir com o voluntaria<strong>do</strong> das igrejas, tem? — concluiu<br />

Marcello Alencar, indiretamente dizen<strong>do</strong> por que ele havia entrega<strong>do</strong> toda a Secretaria de<br />

Bem-Estar Social <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> para a Igreja Universal. — Na Fábrica de Esperança você tem algum


serviço para tratar de droga<strong>do</strong>s? — perguntou.<br />

— Não. Lá nós só tratamos preventivamente ou psicologicamente. Mas não internamos<br />

ninguém. Internação não fazemos lá — eu respondi.<br />

A conversa prosseguiu extremamente cordial. Falamos um pouco mais da Fábrica de<br />

Esperança e terminamos conversan<strong>do</strong> sobre um hospital dirigi<strong>do</strong> por umas freiras. Ele estava<br />

impressiona<strong>do</strong> com o que tinha visto lá.<br />

— Aquilo funciona, ouviu, é uma coisa incrível — disse o governa<strong>do</strong>r.<br />

Depois de ouvi-lo falar, acreditei que ele estava realmente dizen<strong>do</strong> coisas de seu coração e<br />

que tu<strong>do</strong> o que me tinha si<strong>do</strong> dito antes não passava de um grande mal-entendi<strong>do</strong>.<br />

— Não se esqueça de mim em suas orações — disse-me ele quan<strong>do</strong> nos preparávamos para<br />

sair.<br />

— O senhor nos permitiria orar agora mesmo, governa<strong>do</strong>r? — perguntei.<br />

— Claro — consentiu ele.<br />

Então demos as mãos e oramos juntos. Pedi a Deus que abençoasse o esta<strong>do</strong> e que desse ao<br />

governa<strong>do</strong>r sabe<strong>do</strong>ria para governar. Pedi por sua vida e saúde. Roguei ao Senhor que ele sempre<br />

tivesse to<strong>do</strong>s os recursos para realizar um bom governo para o povo. Enfim, orei aquilo que se ora<br />

por um governante.<br />

— <strong>Caio</strong>, você aceitaria ser convida<strong>do</strong> de vez em quan<strong>do</strong> para vir até aqui conversar um<br />

pouco? Eu sou um homem experiente, mas conselho é sempre bem-vin<strong>do</strong>. Você viria aqui de vez<br />

em quan<strong>do</strong>? — perguntou-me Marcello Alencar para minha total surpresa quan<strong>do</strong> nós já<br />

estávamos na ante-sala de seu gabinete.<br />

— Se o senhor achar que eu tenho qualquer coisa útil para lhe oferecer, por favor, não hesite<br />

em me chamar. Eu estarei sempre às ordens — falei e me retirei.<br />

— Rapaz, essa conversa foi maravilhosa, <strong>Caio</strong>. Eu nunca tinha visto o governa<strong>do</strong>r tão<br />

tranqüilo quanto hoje — disse Veloso.<br />

— Tomara que sim. Espero que esteja tu<strong>do</strong> resolvi<strong>do</strong> — eu disse quase com um suspiro de<br />

alívio.<br />

No dia seguinte, minha visita ao governa<strong>do</strong>r tinha vira<strong>do</strong> notícia exatamente pelo la<strong>do</strong><br />

contrário à minha intenção ao ir ao seu encontro: — Pastor <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> faz prece pela multidão<br />

que foi protestar contra Marcello, dizia a chamada da matéria de um <strong>do</strong>s principais jornais <strong>do</strong> Rio.<br />

Fiquei preocupa<strong>do</strong> e tratei de me certificar se aquilo não tinha modifica<strong>do</strong> os humores <strong>do</strong><br />

governa<strong>do</strong>r.<br />

— Fica tranqüilo. Tá tu<strong>do</strong> bem — disse-me o <strong>pastor</strong> Veloso dias depois.<br />

Por alguma razão, entretanto, tu<strong>do</strong> o que eu não conseguia era ficar tranqüilo. Alguma coisa<br />

daquela “profecia” <strong>do</strong> início <strong>do</strong> ano voltou a me garantir que aquele seria ainda o ano das grandes<br />

tentações e das grandes tribulações.


Capítulo 58<br />

“Se fazem réus <strong>do</strong>s mesmos crimes os que com o pensamento e a palavra se<br />

enfurecem contra Ti, dan<strong>do</strong> coices contra o aguilhão, ou quan<strong>do</strong>, quebra<strong>do</strong>s os<br />

freios da sociedade humana, alegram-se, audazes, com as facções ou sedições, de<br />

acor<strong>do</strong> com suas simpatias ou antipatias. E tu<strong>do</strong> isso se faz quan<strong>do</strong> és aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>,<br />

fonte da vida, único e verdadeiro cria<strong>do</strong>r e senhor <strong>do</strong> universo, e com orgulho<br />

egoísta, ama-se uma parte <strong>do</strong> to<strong>do</strong> como se fosse o to<strong>do</strong>.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Até junho de 1995, meus conflitos com o bispo Edir Mace<strong>do</strong> eram claros e perceptíveis,<br />

mas jamais tínhamos nos enfrenta<strong>do</strong>. A mecânica <strong>do</strong>s nossos desencontros era alimentada pela<br />

maneira como eles apareciam perante a sociedade, as cobranças que nos eram feitas em razão<br />

disso, as freqüentes misturas de imagem (Vocês são crentes <strong>do</strong> tipo “Mace<strong>do</strong>”?), as posturas de<br />

arrogância deles em relação aos evangélicos quan<strong>do</strong> estavam por cima e as tentativas de se<br />

esconderem atrás da bandeira <strong>do</strong>s outros evangélicos quan<strong>do</strong> estavam mal. Estas eram as<br />

questões sobre as quais eu respondia, dizen<strong>do</strong> que eles eram eles, e nós éramos nós.<br />

Como resulta<strong>do</strong>, às vezes dava entrevistas que os desagradavam, e eles partiam para o ataque<br />

não no plano das idéias, mas sempre baixan<strong>do</strong> o nível. De janeiro de 1995 em diante, começaram<br />

a aparecer cartoons com caricaturas minhas na Folha Universal, bem como alguns artigos<br />

atacan<strong>do</strong>-me e alcunhan<strong>do</strong>-me de Balaão Evangélico. Para quem não sabe, Balaão foi um bruxo<br />

da Mesopotâmia que recebeu dinheiro para amaldiçoar o povo de Deus. Mace<strong>do</strong> começou a dizer<br />

desde uma reunião no hotel Caesar Park, no final <strong>do</strong> ano anterior, que eu era como Balaão: um<br />

infiltra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s jesuítas católicos no meio evangélico, a fim de desmoralizar gente como ele.<br />

Tu<strong>do</strong> piorou com o anúncio da estréia da telenovela Decadência.<br />

O escritor Dias Gomes possivelmente nunca imaginou que fosse entrar para a história da<br />

Igreja Evangélica Brasileira. O personagem <strong>do</strong> <strong>pastor</strong> Mariel, interpreta<strong>do</strong> por Edson Celulari na<br />

novela, apresentava um rapaz pobre, complica<strong>do</strong> e extremamente confuso, porém <strong>do</strong>no de um<br />

grande carisma e de uma fantástica presença, que teve um encontro com a luz. O problema é que<br />

a conversão de Mariel tirou-o <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> anterior e projetou-o num mun<strong>do</strong> de ambições,<br />

manipulações e mercantilismo da fé. Ten<strong>do</strong> começa<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> simples, logo ele percebeu que a<br />

fé é o mais caro e o mais vendável de to<strong>do</strong>s os produtos, pois é dentro de seu embrulho que se<br />

pode encontrar um milagre.<br />

Fé produz milagre. Para quem vende, é ótimo. Não custa quase nada para produzir e é<br />

facílimo de vender. Se não funciona, a culpa é sempre <strong>do</strong> compra<strong>do</strong>r, que não soube ligar o


produto, ten<strong>do</strong> lhe falta<strong>do</strong> a energia: a fé. Se o fabricante precisa subir o preço, é só pedir mais<br />

pelo produto. Ele pode valer tu<strong>do</strong>, pois a demanda é ditada pela necessidade <strong>do</strong> coração, e este<br />

não mede sacrifícios para encontrar coisas que o introduzam à possibilidade <strong>do</strong> amor, da alegria,<br />

da prosperidade, da saúde ou <strong>do</strong> fim de alguma crise que lhe tire o sono, roube-lhe uma paixão ou<br />

o afaste de um sonho obsessivo.<br />

A fé, todavia, abre portas para tu<strong>do</strong> isto. E quem não dá tu<strong>do</strong> o que tem para comprar tais<br />

tesouros? Num país como o Brasil, e muitos outros <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Terceiro Mun<strong>do</strong>, especialmente,<br />

a oferta da fé, como coisa a ser comprada, tem um apelo extraordinário. Muito mais eficiente <strong>do</strong><br />

que para os revolucionários marxistas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, quanto mais miséria, pobreza, crise, angústia e<br />

me<strong>do</strong>, melhor — mas muito melhor mesmo. Isto porque se paga pela fé exatamente o preço que o<br />

desejo de se livrar da <strong>do</strong>r impõe. Em tempos de calamidade, dá-se o que se tem por um recurso<br />

que move montanhas, seca rios, pára o sol, faz pão cair <strong>do</strong> céu e cura toda enfermidade. E nesse<br />

senti<strong>do</strong>, o Brasil tem si<strong>do</strong> um paraíso nos últimos trinta anos.<br />

O <strong>pastor</strong> Mariel, de Dias Gomes, foi um ilumina<strong>do</strong> espertalhão. Religioso e velhaco, ele<br />

combinou carisma e tortuosidade de caráter a fim de criar uma religião quase evangélica, porém<br />

marcada por uma teologia de aparência pentecostal, ainda que cheia de conteú<strong>do</strong>s de natureza<br />

pagã extremamente perversa. Para Mariel, a vontade de Cristo se confundia com a sua própria<br />

vontade, e a Bíblia era apenas um livro que ele usava ao seu bel-prazer, ainda que seus conteú<strong>do</strong>s<br />

não fossem jamais objeto de reflexão ou apreciação. Mariel tinha si<strong>do</strong> feito para aquela hora, e a<br />

hora fora criada para Mariel.<br />

Com o anúncio na mídia de que a Rede Globo lançaria uma novela que seria uma<br />

caracterização de Edir Mace<strong>do</strong> e sua igreja, a Universal iniciou imediatamente uma ação no<br />

senti<strong>do</strong> de estabelecer um enfrentamento. O problema é que assim fazen<strong>do</strong> eles vestiram a<br />

carapuça. Quan<strong>do</strong> espernearam, o Brasil inteiro disse: “Serviu.” Ao perceberem o erro de<br />

marketing que haviam cometi<strong>do</strong>, mudaram brilhantemente a estratégia.<br />

— Esta novela é uma agressão a toda a Igreja Evangélica. Temos que nos unir e lutar contra a<br />

Globo porque esse é o início da perseguição contra o povo de Deus — disseram eles no programa<br />

25ª Hora e em suas mídias, especialmente o rádio.<br />

Eu já havia me posiciona<strong>do</strong> contra a inclusão <strong>do</strong>s <strong>pastor</strong>es evangélicos no estereótipo <strong>do</strong> tal<br />

<strong>pastor</strong> Mariel, de Decadência. Que há muitos Mariéis disfarça<strong>do</strong>s de <strong>pastor</strong>es, não há dúvida.<br />

Somente um ser muito estúpi<strong>do</strong> ou radicalmente fanatiza<strong>do</strong> poderia ter a coragem de negar esse<br />

fato. Entretanto, os Mariéis estão longe de ser maioria. Ao contrário, aqueles que vivem com<br />

dignidade e honram o evangelho mediante uma vida limpa e sóbria são tantos, que seria ridículo<br />

pretender que a figura <strong>do</strong> <strong>pastor</strong> de Decadência pudesse caber como definição de um típico<br />

<strong>pastor</strong> evangélico.<br />

A virada na ênfase de que Decadência fosse um ataque à liderança da Universal, mas, ao<br />

contrário, revelasse uma tentativa de desmoralização de todas as igrejas e to<strong>do</strong>s os <strong>pastor</strong>es<br />

evangélicos <strong>do</strong> Brasil por parte da Globo, foi brilhante e rápida. Assim agin<strong>do</strong>, a Universal fez<br />

com que a maioria <strong>do</strong>s <strong>pastor</strong>es que fazem o gênero Mariel procurassem imediatamente abrigo à<br />

sombra <strong>do</strong>s bispos de Edir Mace<strong>do</strong> ou de sua Rede Record de televisão. E mais que isto: muitos<br />

outros <strong>pastor</strong>es, que não tinham nenhuma identificação com as práticas da Universal, foram para<br />

lá, atraí<strong>do</strong>s pelo me<strong>do</strong> da falada “perseguição contra os <strong>pastor</strong>es”.<br />

A mania de perseguição que existe entre os evangélicos é o fenômeno mais forte a unir o<br />

grupo to<strong>do</strong>. Durante to<strong>do</strong>s esses anos de circulação no meio cristão, verifico, aturdi<strong>do</strong>, que<br />

mesmo a centralidade de Cristo e a referência máxima da Bíblia não têm tanta capacidade de unir<br />

os diferentes no nosso meio quanto uma boa “onda de perseguição”. Quan<strong>do</strong> isso acontece,<br />

mesmo os hereges se unem, e aqueles que se acusam de práticas completamente inaceitáveis


descobrem a necessidade de se protegerem para lutar contra adversários supostamente comuns.<br />

Nesse caso, o pensamento é que o pior herege é ainda melhor <strong>do</strong> que o mais verdadeiro <strong>do</strong>s<br />

homens que não esteja <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de cá <strong>do</strong> muro. E tu<strong>do</strong> o que se diga sobre nós e contra nós só pode<br />

ser dito por nós mesmos e dentro de nossas paredes; <strong>do</strong> contrário, nos unimos contra a suposta<br />

perseguição, mesmo que na verdade saibamos que merecemos ser trata<strong>do</strong>s com tal atitude.<br />

“Roupa suja se lava em casa” não está escrito na Bíblia, mas é, sem dúvida, o mais obedeci<strong>do</strong><br />

de to<strong>do</strong>s os mandamentos evangélicos.<br />

O problema era que, mesmo os mais surta<strong>do</strong>s pela fobia persecutória, tinham ainda imensa<br />

dificuldade de ficar ao la<strong>do</strong> da Universal. O que eles esperavam era que eu me levantasse e<br />

pegasse a bandeira da luta contra a mídia, a Globo e as elites intelectuais e forma<strong>do</strong>res de opinião<br />

<strong>do</strong> país. Entretanto, mesmo não ten<strong>do</strong> nenhum temor de assim ter de proceder um dia, não me<br />

via em condições de fazê-lo naquele momento por três razões: a primeira, era que eu sabia que<br />

aquele estereótipo encontrava muitos representantes legítimos em nosso meio; a segunda, era que<br />

eu tinha consciência de que para os líderes da Universal aquela defesa da fé não era nada além de<br />

uma estratégia de marketing e que, da parte deles, não haveria nenhum compromisso com os<br />

demais evangélicos uma vez que tu<strong>do</strong> passasse e eles se sentissem fortaleci<strong>do</strong>s; e a terceira e<br />

última razão tinha a ver com o fato de que, mesmo que a tal caricatura <strong>pastor</strong>al criada por Dias<br />

Gomes fosse verdadeira no to<strong>do</strong> de sua descrição — e não o era nem de longe —, eu jamais<br />

acharia que a melhor maneira de enfrentar a situação fosse mediante a declaração de uma guerra<br />

contra a mídia. O silêncio e a indiferença, nesse caso, teriam poderes muito maiores no confronto<br />

de tais ataques.<br />

Quan<strong>do</strong> comecei a dizer que não me via incluí<strong>do</strong> no personagem <strong>do</strong>m Mariel, a Universal<br />

percebeu que aquilo enfraqueceria a campanha deles quanto a serem a cara pública <strong>do</strong>s<br />

evangélicos. Afinal, eles tinham sua própria mídia na mão e não havia a menor razão para que eles<br />

não falassem pelos demais evangélicos.<br />

No dia em que a minissérie estreou, a Igreja Evangélica se dividiu profundamente no Brasil.<br />

Os Mariéis e aqueles que sofriam de fobia persecutória ficaram com os bispos de Mace<strong>do</strong>. Os<br />

que desejavam uma diferenciação radical daquele estereótipo perceberam que, mesmo não<br />

gostan<strong>do</strong> de ver aquele assunto trata<strong>do</strong> em rede nacional de televisão, ainda assim, era melhor<br />

ficar <strong>do</strong> la<strong>do</strong> que eu representava no conflito. Ou seja: as posições de natureza ética apregoadas<br />

pela Associação Evangélica Brasileira.<br />

No entanto, naquele momento as frentes de combate e as motivações para o enfrentamento<br />

eram muitas e diferentes. A Globo trazia o assunto ao palco da mídia por verificar o crescimento<br />

estron<strong>do</strong>so da Universal e <strong>do</strong> império de comunicação das Organizações Mace<strong>do</strong>. Por seu turno,<br />

Mace<strong>do</strong> enfrentava a Globo por se julgar forte o suficiente para fazê-lo, sobretu<strong>do</strong> no papel de<br />

injustiça<strong>do</strong>, o que lhe renderia, sem dúvida, bons pontos de audiência. A grande mídia, por seu<br />

la<strong>do</strong>, divulgava o assunto com prioridade por ser preconceituosa e, ao mesmo tempo, por ter<br />

ainda, mesmo que de mo<strong>do</strong> ateu, uma alma com memória católica. E a Veja, nitidamente<br />

comprometida com a Universal naquele episódio, assumiu o papel da revista isenta, a fim de<br />

bater na Globo, inimiga <strong>do</strong>s Civitta, <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> Grupo Abril, pois, na percepção deles, quem quer<br />

que ajude a diminuir o poderio da Globo está trabalhan<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> das intenções igualmente<br />

hegemônicas e expansionistas que eles nutrem no coração e em suas ações. E quem não as tem?<br />

Já <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro da igreja, as razões para a defesa ou o ataque encontravam motivações<br />

diferentes. Muitos <strong>do</strong>s que aderiram à Universal naquele momento o fizeram pelo me<strong>do</strong> da<br />

perseguição. Alguns outros líderes que a eles se aliaram o fizeram, entretanto, por outras formas<br />

de interesse ou obrigação. Os tais interesses iam desde uma participação societária numa das<br />

televisões da Universal, como era o caso <strong>do</strong> <strong>pastor</strong> Fanini; no canal 13, Rio, até o desejo de poder


também manter a cota de 20% da conta de Mace<strong>do</strong> na compra de horário na CNT-Rio, no valor<br />

de aproximadamente duzentos mil reais mensais, à época, como diziam ser o caso <strong>do</strong> <strong>pastor</strong> Silas<br />

Malafaia.<br />

Os demais defensores eram caracteriza<strong>do</strong>s por três motivações básicas: uns eram <strong>pastor</strong>es <strong>do</strong><br />

bispo e tinham mesmo a obrigação de entrar na luta pela sobrevivência ou pela conquista de mais<br />

poder interno; outros eram <strong>pastor</strong>es candidatos a cargos políticos, que viam na Universal e na<br />

chance de estarem na televisão uma excelente estratégia de autopromoção e de conquista de<br />

votos, como era o caso <strong>do</strong>s <strong>pastor</strong>es Glaico e Ciro Terra Pinto, pai e filho, que tinham postulações<br />

políticas nas eleições em Belo Horizonte. Os últimos eram ilustres desconheci<strong>do</strong>s entre os<br />

evangélicos, em busca de alguma notoriedade, como um certo João Campos, cujo único grau de<br />

familiaridade nacional com a Igreja Evangélica vinha-lhe por carregar o nome de um outro João<br />

Campos, de Recife, esse sim, conheci<strong>do</strong> em quase to<strong>do</strong> o país.<br />

Meia hora de luzes de estúdio e o encantamento de lentes de câmeras de televisão têm mais<br />

poder de sedução no meio evangélico que mulher pelada ou que o próprio diabo.<br />

O único que, a meu ver, estava lá não apenas por causa de interesses de natureza política ou<br />

comercial era o <strong>pastor</strong> Silas Malafaia. Segun<strong>do</strong> soube, o negócio publicitário no agenciamento da<br />

CNT era uma de suas motivações, mas não a única. Ele estava lá também porque é uma pessoa de<br />

temperamento colérico, e com seu temperamento colérico, dificilmente perderia a oportunidade<br />

de se apresentar ao país como grande defensor da fé. No caso dele, entretanto, tal defesa tem<br />

aspectos genuínos. Ele é fervoroso em suas convicções e lutaria até mesmo contra Mace<strong>do</strong> se seus<br />

princípios o induzissem a isso. O problema é que, apesar de jovem, o <strong>pastor</strong> Silas possui uma<br />

mente sempre disposta à defesa corporativista e ao sentimento sindicalista e dinossauriano de<br />

proteção da categoria. Este livro, certamente, lhe provocará intenso desejo de partir para o ataque<br />

outra vez, e o argumento será corporativista: roupa suja se lava em casa.<br />

A análise que aqui faço da presença de tais pessoas ao la<strong>do</strong> de Mace<strong>do</strong> naquele episódio não é<br />

especulação minha, pois conversei com várias delas antes de que suas posições fossem definidas.<br />

O conflito começou entre a Rede Globo e a Rede Record, mas acabou se concentran<strong>do</strong> num<br />

enfrentamento pessoal entre Mace<strong>do</strong>, supostamente o defensor <strong>do</strong>s evangélicos persegui<strong>do</strong>s, e<br />

<strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, o amigo da mídia e sócio de Dr. Roberto Marinho, conforme a versão que eles<br />

divulgavam.<br />

— Ele é consultor informal da Rede Globo. Não sou eu quem tá falan<strong>do</strong> não. É ele mesmo.<br />

Tá aqui nesse jornalzinho da Vinde. Ó, Ó. Tá ven<strong>do</strong> — dizia Malafaia, agitadíssimo, na telinha da<br />

Record, enquanto sacudia diante das câmeras o Vinde Informa. — Amigos, eu conheço o homem.<br />

Ele é íntegro e sério, mas tá aqui. O órgão de informação dele mesmo é que diz isso. Que pena! —<br />

falava Silas repetidamente, fazen<strong>do</strong> alusão ao fato de que em 1994 e 1995 a Globo, bem como a<br />

maioria <strong>do</strong>s outros meios de comunicação, quase sempre me procurava antes de lançar ao grande<br />

público coisas sobre os evangélicos.<br />

— A gente tá só queren<strong>do</strong> saber com o senhor se as coisas são assim mesmo — indagavam os<br />

repórteres.<br />

E muitas vezes eu disse que eles estavam completamente equivoca<strong>do</strong>s em suas intenções, o<br />

que fez com que não raramente seus trabalhos jornalísticos fossem substancialmente altera<strong>do</strong>s<br />

após a consulta. Fiz isto, muitas vezes, até mesmo a favor da Universal.<br />

Minhas motivações naquela batalha não tinham a ver com nenhuma das razões mencionadas<br />

até aqui. Não tinha e não tenho nada pessoal contra o bispo Mace<strong>do</strong>, não ganho nada de nenhum<br />

de seus inimigos, não sou candidato a nada e não me vejo na obrigação de defender os evangélicos<br />

apenas por uma questão de fidelidade a uma ética corporativista, mafiosa. Além disso, não tenho e<br />

nunca tive nenhum vínculo societário ou empregatício com nenhum grupo de comunicação. E os


que possa ter ti<strong>do</strong> foram to<strong>do</strong>s defini<strong>do</strong>s por prestação de serviço deles para comigo, na compra<br />

de horário.<br />

Para mim, aqueles dias foram o inferno. Não fora para aquilo que eu me tornara cristão. Em<br />

meio a tu<strong>do</strong>, às vezes eu me lembrava <strong>do</strong>s tempos em Manaus, das vigílias de oração, das reuniões<br />

nas escolas e faculdades, onde dava pura e simplesmente o testemunho de minha fé e amor, e me<br />

perguntava: “O que me trouxe até aqui?” Também me vinha ao coração a convicção de que não<br />

estava fazen<strong>do</strong> nada que tivesse a ver com as coisas pelas quais vale a pena viver e morrer. Aquela<br />

briga era necessária, talvez; mas era perversa, com certeza. Era preciso esclarecer ao Brasil que<br />

Mace<strong>do</strong> e sua igreja tinham e têm o direito de existir, mas eles precisavam assumir que suas<br />

práticas eram suas, e não podiam tentar fazer a nação crer que to<strong>do</strong>s nós fazíamos as mesmas<br />

coisas. Na minha mente, não havia como evitar fazer tais esclarecimentos. Por outro la<strong>do</strong>, estava<br />

com raiva de precisar assumir aquele papel ingrato. Entretanto, naquele contexto, não havia mais<br />

nada que eu pudesse fazer para evitar aquele confronto, a menos que um outro assumisse o meu<br />

lugar.<br />

Durante e depois da novela, as notícias sobre “a briga entre o bispo Mace<strong>do</strong> e o <strong>pastor</strong> <strong>Caio</strong>”<br />

passaram a ser diárias. Meu sossego acabou completamente. As matérias saíram das páginas de<br />

miolo <strong>do</strong>s jornais e começaram a ser chamadas na primeira página. Eram repórteres to<strong>do</strong>s os<br />

dias, e o telefone não parava de tocar um só momento. A mídia internacional também nos achou.<br />

A história corria o mun<strong>do</strong>. Era a BBC de Londres, a TV Alemã, os canais da América Latina e de<br />

Portugal. Eu tinha a sensação de que estava sen<strong>do</strong> esmaga<strong>do</strong> por um rolo compressor, e não havia<br />

nada que eu pudesse fazer para evitar aquele atropelamento.<br />

Aquela foi a primeira vez que pude realmente sentir a força avassala<strong>do</strong>ra da mídia, pois mais<br />

<strong>do</strong> que com fatos importantes, estávamos lidan<strong>do</strong> com a construção de um espírito coletivo. E o<br />

processo de sua formação era o seguinte: os repórteres vinham e tiravam de mim tu<strong>do</strong> o que eu<br />

pensava sobre as ações <strong>do</strong>s líderes da Universal. Então publicavam. No dia seguinte, era a vez<br />

deles reagirem. Também era publica<strong>do</strong>. E assim íamos, andan<strong>do</strong> não sobre fatos que<br />

espontaneamente brotassem <strong>do</strong> chão, mas sobre a pavimentação de uma idéia, de um espírito, de<br />

uma entidade quase autônoma, que se alimentava de nossas energias mentais.<br />

Aquilo não afetou apenas a mim, mas a eles também. Nos cultos da Universal, o clima de<br />

guerra cresceu para níveis quase islâmico-xiitas. Era ódio para to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>. Repórteres foram<br />

ameaça<strong>do</strong>s, o Dr. Roberto Marinho teve sua morte “decretada” no programa 25ª Hora para no<br />

máximo até o fim de 1996, e eu fui declara<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> “o Golias que seria derruba<strong>do</strong>” pelas<br />

pedras deles. E mais <strong>do</strong> que isso: disseram-me que eu tinha um Exu na boca e que a maldição<br />

divina estava sobre a minha cabeça.<br />

— Quem é o reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>? — perguntou uma amiga que ligou para o templo<br />

central da Universal no Brás, em São Paulo, fazen<strong>do</strong> de conta que não me conhecia.<br />

— Esse é o Golias que a gente vai derrubar. Ele é aquele que casa homossexuais e que é<br />

nosso inimigo. Nós vamos derrubá-lo — disse a pessoa <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha.<br />

— Pastor <strong>Caio</strong>, estou choca<strong>do</strong>. Nunca vi nada igual. Eles vão enlouquecer. Há brilho de ódio<br />

nos olhos deles — disse-me João Bezerra, que trabalha comigo desde 1984 e que fora a uma<br />

Igreja Universal ver como o clima estava. — Eles pediram dinheiro 45 minutos. Depois,<br />

começaram a pedir provas de fé. O <strong>pastor</strong> perguntou quem tinha coragem de levar uma garrafada<br />

na cabeça até o sangue jorrar. Insistiu. Ele dizia que queria ver sangue no chão. Ninguém foi. Até<br />

que veio um rapaz e ofereceu a cabeça para levar uma garrafada por amor a Cristo. Já pensou?<br />

Mas o <strong>pastor</strong> não deu. Então disse: “Você só está oferecen<strong>do</strong> a cabeça porque já conhece o<br />

esquema. Volta pro teu lugar.” E continuou: “Se você quer qualquer coisa de Deus, tem que ser<br />

louco. Tem que oferecer a cabeça para levar a garrafada.” Foi aí que ele começou a pedir para as


pessoas fazerem loucuras, darem o que não tinham e oferecerem to<strong>do</strong>s os bens que possuíam.<br />

Ele limpou até a moedinha de uma velhinha. Levou vale-transporte, ticket refeição e o dinheiro <strong>do</strong><br />

ônibus. Não deixou nada. Limpou tu<strong>do</strong>. Aí, então, ele percebeu que eu estava choca<strong>do</strong>. Acho que<br />

foi por causa da minha cara de angústia. O homem então começou a ameaçar colocar câncer na<br />

garganta de quem estivesse olhan<strong>do</strong> para ele com ar de incredulidade. Disse também que quem<br />

assistir à Globo vai ficar com AIDS, câncer e outras maldições. Era muito ódio. Nunca vi nada<br />

igual — falou João, sem conseguir nem parar para respirar de tão agita<strong>do</strong> que estava.<br />

A pressão vinha de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Eram líderes liga<strong>do</strong>s à AEVB que queriam uma tomada de<br />

posição. Eram outros que queriam que silenciássemos. E havia também os que exigiam um<br />

esclarecimento público e final sobre as razões de nós sermos tão contrários às práticas e posturas<br />

da IURD.<br />

— Só se fizermos um manifesto e o divulgarmos em nome da AEVB, botan<strong>do</strong> um ponto final<br />

nesse bate-boca — disse para várias pessoas.<br />

A idéia <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento prevaleceu. Assim, nos reunimos da noite para o dia e elaboramos o<br />

texto. A idéia era afirmar o direito constitucional da Universal existir <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> que bem<br />

entendesse, dentro das fronteiras da legalidade, mas mostrar as imensas diferenças de natureza<br />

ética, <strong>do</strong>utrinária, prática e de conteú<strong>do</strong>s que nos separavam. Por isto, solicitaríamos que eles<br />

falassem em seu próprio nome e parassem com aquela estratégia de se esconderem atrás <strong>do</strong>s<br />

evangélicos sempre que aprontavam e não queriam ficar para pagar a conta sozinhos.<br />

O texto foi aprova<strong>do</strong>, e cerca de cento e dez líderes de expressão o subscreveram em menos<br />

de 24 horas. A legitimidade <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento estava garantida <strong>do</strong> ponto de vista da AEVB, visto que<br />

nós mesmos não ousávamos falar em nome de to<strong>do</strong>s os evangélicos, pois nossa associação não<br />

representava mais <strong>do</strong> que 45% <strong>do</strong> total. Entretanto, mesmo sem representatividade absoluta,<br />

ainda assim, refletíamos o pensamento da maioria esmaga<strong>do</strong>ra e silenciosa, possuída de um<br />

pu<strong>do</strong>r religioso extremamente covarde.<br />

Na véspera de entregar o <strong>do</strong>cumento, recebi um telefonema de um conheci<strong>do</strong> líder<br />

evangélico de São Paulo.<br />

— Alô, <strong>pastor</strong> <strong>Caio</strong>? Olha, irmão, eu estou imploran<strong>do</strong> para você não apresentar o manifesto<br />

amanhã. Eles são tu<strong>do</strong> o que você está dizen<strong>do</strong> e muito mais. Eu vivo com eles e sei que tem gente<br />

ali que é capaz de tu<strong>do</strong>. Eles não têm escrúpulos. Sabe aquele negócio <strong>do</strong> <strong>do</strong>m Mariel botar uma<br />

mulher para seduzir o empresário? Eles são capazes de criar uma situação para envolver você<br />

com alguém. Não corra o risco. Você é a nossa liderança legítima. Eles são artificiais. Mas olha,<br />

irmão, se você entregar o <strong>do</strong>cumento, eu vou ter que ficar com eles por razões comerciais. Eu não<br />

posso perder meu programa na Record.<br />

— Obriga<strong>do</strong> pelo telefonema e pelo incentivo que você está me dan<strong>do</strong> para convocar a<br />

imprensa amanhã e entregar o nosso manifesto. Se eu ainda tinha dúvidas, você acabou de me<br />

tirá-las agora — falei com profunda <strong>do</strong>r no coração, enquanto caminhava <strong>do</strong> restaurante 14 Bis no<br />

aeroporto Santos Dumont e ia ao estacionamento pegar o meu carro.<br />

Durante o resto <strong>do</strong> dia que antecedeu a coletiva à imprensa recebi inúmeros telefonemas. A<br />

maioria deles, entretanto, era de gente preocupada se eu iria me queimar.<br />

— Olha, está tu<strong>do</strong> certo. Mas eles são poderosos. As armas deles não são idéias. Eles jogam<br />

pesa<strong>do</strong>. Vão destruir você. Será que vale a pena o sacrifício? — foi a pergunta que ouvi naquele<br />

fim de tarde de vários <strong>pastor</strong>es de to<strong>do</strong> o Brasil.<br />

Ouvin<strong>do</strong> aquele desfile de declarações que revelavam apenas um profun<strong>do</strong> instinto de<br />

sobrevivência por parte <strong>do</strong>s <strong>pastor</strong>es que me telefonavam, percebi como o nosso país, e nele a<br />

própria igreja, está dramaticamente destituí<strong>do</strong> de princípios que, eventualmente, nos conduzam<br />

ao espírito de sacrifício, entrega, idealismo e até de martírio. A fé chegara até nós porque muita


gente de fibra tinha ti<strong>do</strong> a coragem de brigar contra coisas e pessoas maiores e mais fortes. Agora,<br />

entretanto, esse espírito de compromisso was gone with the winds. Eu, contu<strong>do</strong>, aprendera com<br />

papai e com a Bíblia que, por princípios, fica-se e luta-se contra os adversários, mesmo que eles<br />

sejam até mais fortes <strong>do</strong> que você.<br />

— Olha, eu vou. Não tenho me<strong>do</strong> de combate desde que tenha certeza de que a verdade está<br />

<strong>do</strong> meu la<strong>do</strong>. Se eu morasse lá em Israel nos dias de Davi, quan<strong>do</strong> ele lutou contra o gigante<br />

Golias, não teria si<strong>do</strong> tão fácil para Davi como foi. Eu e ele iríamos disputar no “palitinho” o<br />

privilégio de ir enfrentar o gigante. Se vocês me disserem que eu estou erra<strong>do</strong>, eu não vou. Mas se<br />

tu<strong>do</strong> o que vocês tiverem para me dizer for esse blablablá de sobrevivência e de não se queimar,<br />

me per<strong>do</strong>em: eu vou morrer algum dia e prefiro que seja por uma boa causa <strong>do</strong> que por uma que<br />

não exalte a verdadeira fé — declarei para muita gente naquele dia.<br />

A coletiva à imprensa aconteceu e a maior parte da mídia <strong>do</strong> país estava lá naquela tarde de<br />

inverno de 1995.<br />

— O senhor não tem me<strong>do</strong> de estar lutan<strong>do</strong> contra gente muito mais forte que o senhor?<br />

Eles têm poder para infernizar sua vida se quiserem. O senhor está com me<strong>do</strong>? — indagou o<br />

repórter <strong>do</strong> jornal da Bandeirantes.<br />

Respondi que não e fui para casa alivia<strong>do</strong>. Agora, o Brasil to<strong>do</strong>, e não somente o Rio de<br />

Janeiro, saberia que a posição <strong>do</strong>s evangélicos não era a de Mace<strong>do</strong>.<br />

Triste ilusão a minha. Ven<strong>do</strong> que não poderiam nos enfrentar à altura da cabeça, partiram<br />

para o golpe baixo. Começaram os ataques cada vez mais pessoais contra a minha pessoa. O que<br />

me espantava era a incapacidade que tinham de responder numa boa, sem partir para a<br />

ignorância. Além disso, alguns fanáticos de lá começaram a me fazer ameaças por telefone.<br />

— Nós vamos te pegar, seu desgraça<strong>do</strong> — dizia um aviso.<br />

— Quem avisa amigo é. Diz pra ele que a gente ainda vai destruí-lo — falou um outro.<br />

— Ou ele se cala ou a gente cala ele — ouvimos ainda.<br />

Diante de tu<strong>do</strong> aquilo, minha esposa perdeu completamente a paz. A situação ficou tão grave,<br />

que num daqueles dias ela me disse, em meio a muita angústia, que desejava apressar sua<br />

temporada com nossos filhos mais novos fora <strong>do</strong> Brasil.<br />

— Olha, <strong>Caio</strong>. Eu sou fiel a você até a morte, mas não quero viver assim.<br />

— Por que a gente não passa um tempo nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s? Você fica lá direto, se restaura,<br />

enquanto eu posso ficar lá e aqui: sete dias lá e 12 aqui no Brasil. O que você acha? — sugeri. Alda<br />

aceitou.<br />

Uma semana depois <strong>do</strong> Manifesto da AEVB, veio a carta aberta da Universal. Dizem os<br />

entendi<strong>do</strong>s que a tal carta teria si<strong>do</strong> redigida pelo <strong>pastor</strong> Silas Malafaia e autenticada pelos bispos<br />

de Mace<strong>do</strong>. Não posso afirmar, mas foi o que correu pelo meio evangélico, ainda que isto não seja<br />

importante para o desfecho <strong>do</strong>s fatos. Eu estava em Foz <strong>do</strong> Iguaçu, no congresso Vinde para<br />

<strong>pastor</strong>es, quan<strong>do</strong> Fernan<strong>do</strong> Molica, então repórter da Folha de São Paulo, me telefonou<br />

perguntan<strong>do</strong> o que eu tinha a declarar.<br />

— Eu não sei <strong>do</strong> que você está falan<strong>do</strong> — afirmei com ar de perplexidade.<br />

— Bem, há uma carta assinada pelos principais líderes da Universal e alguns <strong>pastor</strong>es <strong>do</strong> Rio<br />

e de Minas Gerais. A surpresa é o nome <strong>do</strong> Fanini. O que deu nele? Ele é batista e assinou o<br />

<strong>do</strong>cumento. O que o senhor tem a dizer? Pedi tempo para ler a tal carta aberta e então dar uma<br />

resposta. Mal acabei de falar com Molica e já havia várias cópias da carta chegan<strong>do</strong> ao fax <strong>do</strong> hotel.<br />

Além disso, amigos de to<strong>do</strong> o Brasil começaram a telefonar empenhan<strong>do</strong> solidariedade.<br />

Li o texto e fiquei sem saber o que sentir. Primeiro deu raiva. Afinal, nós havíamos sempre<br />

trata<strong>do</strong> o assunto no nível da reflexão, e eles o haviam trazi<strong>do</strong> para um plano absolutamente<br />

pessoal. Mas depois que li o texto pela segunda vez, me deu vontade de rir. O material era tão


pobre e sem construção de idéias, tão simplista nos seus argumentos e, ao mesmo tempo, tão<br />

cheio de tolices, que achei que eles to<strong>do</strong>s, os que assinaram aquela carta, estavam me fazen<strong>do</strong> um<br />

favor.<br />

Respondi à mídia com uma “nota” na qual lamentava que as questões levantadas pelo nosso<br />

manifesto continuassem sem resposta — com certeza devi<strong>do</strong> à impossibilidade de negar as<br />

evidências de tu<strong>do</strong> o que disséramos — e que, ao invés de partirem para o nível das idéias, “eles”<br />

estivessem gastan<strong>do</strong> tanto dinheiro — a matéria era paga — para tentar enlamear o meu nome.<br />

Continuei em Foz e não mudei a rotina de minhas pregações naquela região <strong>do</strong> Brasil até o<br />

fim de meus compromissos. Na semana seguinte, a situação tinha ganha<strong>do</strong> outro contorno, <strong>do</strong><br />

ponto de vista interno. A diretoria da Associação Evangélica em São Paulo queria tomar medidas<br />

imediatas para afastar o <strong>pastor</strong> Jabes Alencar, membro da entidade naquele esta<strong>do</strong>, que, por<br />

razões de interesse pessoal, havia decidi<strong>do</strong> assinar a carta da Universal.<br />

— Na minha opinião, como se tratou de um texto dirigi<strong>do</strong> a mim e não à AEVB, não há nada a<br />

ser feito. Não foi ético o que o <strong>pastor</strong> Jabes fez, mas não foi ilegal <strong>do</strong> ponto de vista de seu vínculo<br />

para conosco — eu disse mais de uma vez, com me<strong>do</strong> de que o episódio gerasse um tempo de<br />

caça às bruxas dentro de nosso grupo espalha<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o Brasil.<br />

— Mas por que o <strong>pastor</strong> Fanini também assinou a carta? — era, entretanto, a pergunta que<br />

eu mais ouvia.<br />

Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> eleito para uma função diplomática de representação <strong>do</strong>s batistas mundiais,<br />

Fanini estava cumprin<strong>do</strong> uma formalidade da política daquela igreja, que faz rodízios<br />

democráticos, indican<strong>do</strong> presidentes de continentes diferentes a cada perío<strong>do</strong>.<br />

— O que fez o <strong>pastor</strong> Fanini mudar tanto? Não foi ele quem disse que preferia a Umbanda à<br />

Igreja Universal? — indagou de mim um evangélico que é repórter de um grande jornal.<br />

— Olha, você é repórter, então investigue para ver se descobre o que fez com que ele<br />

mudasse de um extremo para outro tão radicalmente — disse de mo<strong>do</strong> vago, ainda que soubesse<br />

qual era a razão daquela mudança.<br />

Mas como ouvira a verdadeira história de pessoas de “dentro”, o que incluía informações que<br />

o próprio <strong>pastor</strong> Fanini me passara num almoço que tivera comigo cerca de <strong>do</strong>is meses antes <strong>do</strong><br />

episódio da carta aberta, julguei que não cabia a mim desvendar o mistério, embora as razões<br />

existissem e fossem bem objetivas.<br />

Não sou e nunca fui uma pessoa amargurada. Mas aqueles fatos estavam fazen<strong>do</strong> mal à minha<br />

alma. Meu coração estava começan<strong>do</strong> a ficar malicioso outra vez, depois de 22 anos. Às vezes, me<br />

apanhava construin<strong>do</strong> um plano sofistica<strong>do</strong> para trazer tu<strong>do</strong> aquilo à luz de mo<strong>do</strong> irrefutável.<br />

Então, me recolhia na solidão de mim mesmo e buscava a Deus em oração.<br />

“Jesus, não foi para isto que a Tua Graça me alcançou um dia. Salva-me da amargura e da<br />

iniqüidade de pensamento. Eu me entrego a Ti, que és o único que conheces a verdade. Vem e<br />

traz Tua luz”, era minha prece constante.<br />

Foi naquele perío<strong>do</strong>, mais <strong>do</strong> que em qualquer outro, que pude perceber a bênção da criação<br />

que tivera, apesar de to<strong>do</strong>s os percalços. Se papai não tivesse me estimula<strong>do</strong> a ir empinar a minha<br />

pipa longe de casa, sem me<strong>do</strong> de andar sozinho, e se ele não me tivesse força<strong>do</strong> a lutar contra<br />

adversários sempre maiores <strong>do</strong> que eu, certamente estaria esbagaça<strong>do</strong> pela força daqueles<br />

acontecimentos.<br />

Ainda que sen<strong>do</strong> traí<strong>do</strong> por pessoas até então tão próximas a mim, e mesmo ten<strong>do</strong> de andar<br />

por aquele caminho em profunda solidão, jamais me senti sozinho na estrada. Podia ver onde o<br />

vento estava sopran<strong>do</strong> e para onde a minha pipa estava in<strong>do</strong>. “Para longe de casa?”, você<br />

perguntaria. É, talvez eu estivesse in<strong>do</strong> away from home. Mas as vozes <strong>do</strong> Pai e de papai estavam<br />

sempre comigo. “<strong>Caio</strong>zinho, pode ir até lá soltar o seu papagaio. Se você sabe onde está sain<strong>do</strong> e


para onde está in<strong>do</strong>, então não há perigo. Você sempre vai saber o caminho de volta para casa”,<br />

dizia ele me mostran<strong>do</strong> the long and winding road, ensinan<strong>do</strong>-me, assim, que não importa por<br />

onde passe a estrada, pois ela sempre leads me to your <strong>do</strong>or, como ensinaram os meninos de<br />

Liverpool. E, no meu caso, the <strong>do</strong>or era Cristo. Sabia que aquele caminho estava me levan<strong>do</strong> para<br />

longe de casa, especialmente se pensasse que a igreja e suas instituições tinham si<strong>do</strong> minha casa<br />

nas últimas duas décadas. Entretanto, havia em mim a certeza de que aquela estrada me<br />

conduziria cada vez mais para perto de mim mesmo e de meu Deus.<br />

Mas nem tu<strong>do</strong> foi triste naqueles dias. Houve também coisas com um tom engraça<strong>do</strong>.<br />

— Ó, <strong>pastor</strong> Marcos, diz pro reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong> que tem um tal de Mala-qualquer-coisa falan<strong>do</strong><br />

muito mal dele na TV Record — disse um <strong>do</strong>s mais temi<strong>do</strong>s prisioneiros de Bangu I.<br />

— Malafaia. Esse é o nome. É um <strong>pastor</strong> — disse Marcos Batista.<br />

— Pois é. Diz pro reveren<strong>do</strong> que a gente tá ouvin<strong>do</strong> esse cara falar mal dele e que tem gente<br />

aqui perden<strong>do</strong> a paciência. Se esse cara continuar a falar mal <strong>do</strong> nosso reveren<strong>do</strong>, a gente acaba<br />

mandan<strong>do</strong> dar um esfrega nele. O que ele pensa? Que pode falar mal de gente que só faz o bem e<br />

ficar assim mesmo? Num fica assim não, <strong>pastor</strong>. A gente tá aqui, mas nossos amigos tão lá fora.<br />

Esse cara leva um aperto e não sabe nem por quê. Diz pro reveren<strong>do</strong> que a gente tá às ordens —<br />

disse o detento.<br />

— Olha aqui. O reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong> é um homem de Deus. Ele é cristão. E um cristão não paga o<br />

mal com o mal. Um cristão paga o mal com o bem. Então, se vocês puderem, orem pelo <strong>pastor</strong><br />

Silas Malafaia e assim vocês vão cumprir a lei de Cristo. Eu não vou dizer um negócio desses pro<br />

reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong> de jeito nenhum. Ele iria ficar muito angustia<strong>do</strong>. E tem mais: ele está triste com o<br />

<strong>pastor</strong> Silas, mas gosta dele. Orem pelo <strong>pastor</strong> Silas. Só isso — explicou Marcos Batista numa de<br />

suas últimas visitas a Bangu I.<br />

— Desculpa o mau jeito, <strong>pastor</strong>. Mas esse é o nosso mo<strong>do</strong> de ser amigo. Aqui com a gente,<br />

amizade é amizade, parceria é parceria, e ninguém trai. Se trair, dança — disse o bandi<strong>do</strong>, muito<br />

mais consciente <strong>do</strong> valor de certos princípios que alguns de meus companheiros de ministério<br />

cristão.<br />

No dia 12 de outubro, o bispo von Helder, da Igreja Universal, chutou a imagem de Nossa<br />

Senhora de Aparecida, vista pelos católicos como a Padroeira espiritual <strong>do</strong> Brasil. Foi um<br />

escândalo. Ele agrediu, provocou, chutou e esmurrou a imagem da santa, ao vivo, na televisão.<br />

— Olha essa coisa feia, desgraçada, miserável. Isso aqui num tem poder nenhum — disse ele<br />

em meio a muitas outras coisas.<br />

O país parou, e eu fui outra vez “guinda<strong>do</strong>” para dentro <strong>do</strong> conflito com a Universal.<br />

— Tá certo chutar a santa? — era a questão que repórteres <strong>do</strong> Brasil e <strong>do</strong> exterior me faziam<br />

o dia to<strong>do</strong>.<br />

— Nós, evangélicos, vemos o culto aos í<strong>do</strong>los ou santos como i<strong>do</strong>latria inaceitável, de acor<strong>do</strong><br />

com a Bíblia. Mas entendemos que num país pluralista como o Brasil, ninguém tem o direito de<br />

fazer enfrentamentos físicos e públicos contra objetos de culto, sejam eles quais forem. Portanto,<br />

mesmo condenan<strong>do</strong> a i<strong>do</strong>latria, temos também que condenar o mo<strong>do</strong> pagão como von Helder<br />

brigou com o í<strong>do</strong>lo — foi o que respondi inúmeras vezes.<br />

Foram mais duas semanas de confrontos, opiniões e debates. Parecia que o disco não<br />

mudava. Eu já estava cansa<strong>do</strong> e começan<strong>do</strong> a evitar dar entrevistas sobre o assunto.


Capítulo 59<br />

“E conheci por experiência que não é de admirar que o pão seja um tormento para<br />

o paladar <strong>do</strong> enfermo, embora seja agradável para o paladar <strong>do</strong> sadio, e que olhos<br />

enfermos considerem odiosa a luz, que para os puros é amável.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No ano de 1995 houve muitos seqüestros no Rio, o que era muito ruim para o governo <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong>, pois o governa<strong>do</strong>r Marcello Alencar havia si<strong>do</strong> eleito com forte apoio da classe média e<br />

com a promessa de reduzir a situação de pânico a níveis de razoabilidade em um ano. No entanto,<br />

o ano correra carrega<strong>do</strong> de confusão e crescente perplexidade na questão da violência. E, para<br />

piorar, vários atos isola<strong>do</strong>s de barbarismo haviam aconteci<strong>do</strong> a pessoas vinculadas à chamada alta<br />

sociedade carioca, fazen<strong>do</strong> com que um clima de histeria tomasse conta da mídia. A gota d’água<br />

foi o seqüestro de Eduar<strong>do</strong> Eugênio, filho de um industrial de renome, que acabara de ser eleito<br />

para o cargo de presidente da Federação das Indústrias <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro.<br />

Os poderosos da sociedade carioca estavam se sentin<strong>do</strong> extremamente inseguros, o que<br />

poderia deixar o governa<strong>do</strong>r numa situação difícil, politicamente falan<strong>do</strong>. E aqui é bom lembrar<br />

que, no Rio, os governantes ganham ou perdem eleições dependen<strong>do</strong> de como o termômetro da<br />

violência se mostra. E na definição desses níveis, a mídia tem papel preponderante, uma vez que<br />

há a violência real e a violência psicossocial. A primeira, aqueles que nós convencionamos chamar<br />

de bandi<strong>do</strong>s realizam; já a segunda, é basicamente uma produção da mídia, e afeta o inconsciente<br />

da sociedade.<br />

O processo é o seguinte: os órgãos de comunicação constatam a violência real e divulgam-na a<br />

tal ponto, que fazem com que algo de dimensão particular se torne um fenômeno de proporções<br />

coletivas incomparavelmente mais abrangentes <strong>do</strong> que o fato noticia<strong>do</strong>. Então, to<strong>do</strong>s comentam o<br />

assunto e um espírito comunitário é cria<strong>do</strong>. E é essa entidade psicossocial que alimenta a<br />

marginalidade potencial que existe no coração humano, a qual resulta tanto de perversões de<br />

natureza intrinsecamente individual quanto de contribuições feitas pela miséria, pelas<br />

desigualdades e pelas injustiças instituídas em microssociedades, onde inúmeros seres humanos<br />

são força<strong>do</strong>s a existir. E as favelas são o mais trágico exemplo dessa forma de existência.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, o publicitário Roberto Medina está sugerin<strong>do</strong> que a cidade <strong>do</strong> Rio pare para<br />

um ato contra tanta violência. O que o senhor acha? — perguntou-me uma repórter.<br />

— Não acredito em atos contra a violência. Acredito em ações contra a violência. Atos desse<br />

tipo só fazem senti<strong>do</strong> se forem segui<strong>do</strong>s de ações práticas, tipo: intervenção econômico-social nas<br />

favelas, uma política de geração de renda para áreas empobrecidas e um trabalho de saneamento


moral das polícias, com uma melhor remuneração para os policiais — respondi, já cansan<strong>do</strong> de<br />

dizer a mesma coisa.<br />

— Mas se houver o ato contra a violência, o senhor vai? — perguntou.<br />

Respondi que sim, desde que o propósito <strong>do</strong> ato não fosse o ato em si.<br />

— <strong>Caio</strong>, há uma mobilização sen<strong>do</strong> preparada. Preciso de você nesse negócio. Dá pra você<br />

mobilizar o pessoal <strong>do</strong> Rio Desarme-se e os evangélicos? — indagou Rubem César.<br />

Reunimo-nos e conversamos sobre a marcha Reage Rio, como o ato começou a ser chama<strong>do</strong>.<br />

Levei ao Rubem César as impressões de alguns grupos de favela, que achavam que a coisa estava<br />

mais para Reage Rico <strong>do</strong> que para qualquer outra coisa. Combinamos que a Fábrica de Esperança<br />

e a Casa da Paz puxariam o movimento <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s Norte e Oeste da cidade, e que eu tentaria<br />

também envolver os evangélicos no processo.<br />

No dia 18 de novembro os jornais noticiaram amplamente o relançamento da campanha Rio<br />

Desarme-se como mais uma contribuição de peso ao Reage Rio.<br />

Naqueles dias, entretanto, aconteceu algo que me deixou muito preocupa<strong>do</strong>. Os jornais<br />

publicaram um cartaz feito por <strong>Caio</strong> Ferraz, André Fernandes e Cristina Leonar<strong>do</strong>, convidan<strong>do</strong> a<br />

população para telefonar para a Fábrica de Esperança ou para a Casa da Paz em casos de<br />

denúncias contra bandi<strong>do</strong>s ou policiais. Gelei quan<strong>do</strong> vi o anúncio estampa<strong>do</strong> nos jornais O Dia e<br />

O Globo.<br />

— André, que negócio é esse? Isso aqui acaba com a gente. Já pensou na situação em que<br />

esse anúncio nos colocou? A polícia nos verá como “alia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tráfico”, e os traficantes nos verão<br />

como X-9 da polícia. Assim não dá, André. A Cristina Leonar<strong>do</strong> pode fazer isso porque ela não<br />

está aqui, em Acari. Nós estamos aqui, completamente vulneráveis aos <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s da guerra.<br />

Nunca mais deixe essas coisas que têm o nome da Fábrica saírem sem minha ordem escrita —<br />

disse a André Fernandes, assessor comunitário da Fábrica, já perceben<strong>do</strong> o risco gratuito no qual<br />

estávamos sen<strong>do</strong> coloca<strong>do</strong>s. No dia seguinte, esclareci o assunto nos jornais, mas fiquei com a<br />

desconfiança de que o estrago já estava feito.<br />

O assunto “Universal” ficou esqueci<strong>do</strong> por um tempo, e a mídia passou a me procurar apenas<br />

pela temática <strong>do</strong> Reage Rio. Enquanto isso, as reuniões de organização da caminhada<br />

continuavam seu curso, com adesões de to<strong>do</strong>s os tipos e engrossan<strong>do</strong> aquele que se queria que<br />

fosse um ato tão cheio de significa<strong>do</strong>, que pusesse nas mãos da população da cidade <strong>do</strong> Rio de<br />

Janeiro um capital cidadão grande o suficiente para permitir que fosse solicita<strong>do</strong> ao governo<br />

federal investimentos na cidade na ordem de um bilhão de dólares. Para isto, esperava-se que um<br />

milhão de pessoas viessem às ruas.<br />

A idéia era de Betinho: Um milhão por um bilhão. Esse era o desafio que o Viva Rio,<br />

organiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ato, tinha pela frente. E a julgar pelo número de adesões e pelo apoio da mídia,<br />

aquele seria um evento pleno de sucesso. De minha parte, estava disposto a contribuir.<br />

Entretanto, nem de longe eu era um <strong>do</strong>s maiores incentiva<strong>do</strong>res <strong>do</strong> ato. Achava que todas as<br />

ações de cidadania eram bem-vindas, mas precisávamos de mais objetividade. Mas fosse qual<br />

fosse o resulta<strong>do</strong> da marcha, comecei a perceber que a mobilização em si carregava um objetivo<br />

bem prático: aproximar segmentos da cidade até então completamente distantes. E se alcançasse<br />

apenas aquele resulta<strong>do</strong>, já julgava que o evento teria vali<strong>do</strong> a pena.<br />

No entanto, o governa<strong>do</strong>r entendeu que aquele ato era algo que acontecia contra os poderes<br />

constituí<strong>do</strong>s ou com a intenção de enfraquecer as forças institucionais para que alguém se<br />

beneficiasse politicamente com o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> evento. Assim, daquele momento em diante, nosso<br />

evento saiu de seu fluxo de ação cidadã e passou a ser trata<strong>do</strong> pelas autoridades como uma<br />

mobilização subversiva e marginal. Todavia, consideran<strong>do</strong> os que se sentam à mesa da<br />

coordenação <strong>do</strong> Viva Rio, aquele julgamento <strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong> evento eram hilários. Desde quan<strong>do</strong>


os que ali estavam tinham jamais participa<strong>do</strong> de ações contra governos instituí<strong>do</strong>s? Com exceção<br />

de uns <strong>do</strong>is ou três que militavam na esquerda, e de outros <strong>do</strong>is que haviam si<strong>do</strong> mais afoitos long<br />

ago, os demais eram apenas empresários e executivos cansa<strong>do</strong>s de se sentirem impotentes em<br />

relação à única dimensão da vida social sobre a qual eles não tinham muito como se proteger: o<br />

enlouquecimento de seres humanos toma<strong>do</strong>s por imensa desesperança e anima<strong>do</strong>s por profun<strong>do</strong><br />

ódio.<br />

Somente o desespero político <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Marcello Alencar, incentiva<strong>do</strong> pela angústia<br />

militar <strong>do</strong> secretário de Segurança, general Nilton Cerqueira, poderia ter visto nos membros <strong>do</strong><br />

Viva Rio algum tipo de potencial subversivo. Mas de qualquer forma, foi assim que alguns de nós<br />

fomos trata<strong>do</strong>s, especialmente aqueles que estavam mais próximos da população. E neste<br />

aspecto, creio que mais <strong>do</strong> que qualquer outra pessoa ali eu me tornara o mais vulnerável de<br />

to<strong>do</strong>s: <strong>pastor</strong> evangélico, agente social em zona de guerra, capelão de presos perigosos, Don<br />

Quixote de favelas, proponente de desarmamento, comunica<strong>do</strong>r de TV e rádio, receben<strong>do</strong> muita<br />

atenção da mídia e capaz de se expressar de mo<strong>do</strong> razoavelmente articula<strong>do</strong> e carismático — eu<br />

era a figura ideal para ser o nervo pelo qual a <strong>do</strong>r de um ataque se fizesse sentir naqueles dias.<br />

— Gente assim como “o irmão” pode ser a parte mais fraca de um movimento, mas também<br />

pode ser a mais forte. Tu<strong>do</strong> depende <strong>do</strong> dia e da hora — disse o <strong>pastor</strong> Arioval<strong>do</strong> Ramos.<br />

— Tu<strong>do</strong> depende da Graça de Deus e <strong>do</strong> momento histórico em que se está viven<strong>do</strong> — eu<br />

acrescentaria.


Capítulo 60<br />

“Se Tua justiça desagrada aos maus, muito mais desagradam a víbora e o<br />

caruncho, que criaste convenientes para a parte inferior de Tua criação; como<br />

também os injustos que tanto mais se assemelham ao mau quanto mais diferem de<br />

Ti, assim como outros se assemelham às partes superiores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> na medida<br />

em que se assemelham a Ti.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

No dia 23 de novembro de 1995, o plano para o meu seqüestro moral foi executa<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong><br />

habili<strong>do</strong>síssimo. Eles não capturaram meu corpo, mas conseguiram botar a mão nas únicas<br />

coisas que poderiam significar bem público para mim: minha integridade como cristão e minha<br />

honra como cidadão.<br />

Aquele dia tinha amanheci<strong>do</strong> como to<strong>do</strong>s os outros naquela semana, uma vez que após a troca<br />

de chumbo no episódio com os líderes da Universal e alguns de seus sócios, a vida parecia ter<br />

volta<strong>do</strong> ao normal. Fui mais ce<strong>do</strong> para o aeroporto <strong>do</strong> Galeão, comi uma deliciosa picanha com<br />

pimenta, ainda me aventurei numa rabada, e aguardei a hora <strong>do</strong> embarque. Eu tinha de ir até<br />

Caruaru, em Pernambuco, a fim de encerrar o Primeiro Congresso Sertanejo de Evangelização.<br />

O vôo era pinga<strong>do</strong>: Rio, Salva<strong>do</strong>r, Aracaju, Maceió, para só então chegar ao Recife, aí por volta das<br />

18 horas.<br />

— <strong>Caio</strong>, olha! Tenho notícias ruins. Acharam cocaína na Fábrica de Esperança — me disse<br />

Alda na primeira ligação que entrou no meu celular tão logo liguei o aparelho após o pouso em<br />

Salva<strong>do</strong>r.<br />

— Mas e daí? Naquele lugar, com aquele tráfico de drogas ali <strong>do</strong> la<strong>do</strong>, com a polícia<br />

invadin<strong>do</strong> a favela to<strong>do</strong>s os dias e fazen<strong>do</strong> o pessoal tentar pular o nosso muro, e com uma área <strong>do</strong><br />

tamanho da que temos, como seria possível garantir que isso jamais aconteceria? — perguntei a<br />

ela como quem questiona o óbvio.<br />

— O problema é que a mídia tá toda lá. Parece que querem fazer um escândalo — respondeu<br />

ela.<br />

— Chamem o Arioval<strong>do</strong> Ramos, redijam um texto e mandem para os jornais. Amanhã,<br />

quan<strong>do</strong> eu chegar, <strong>do</strong>u uma coletiva para esclarecer o assunto — disse sem ver por que aquela<br />

situação pudesse ter maiores repercussões.<br />

Para mim, era como alguém dizer que havia acha<strong>do</strong> uma estopa nas proximidades de uma<br />

oficina mecânica ou que nas imediações de um campeonato de surfe haviam encontra<strong>do</strong> um vidro<br />

com parafina. Afinal, nós não estávamos em Acari para as férias, mas para correr o risco de tentar


ajudar a quem vivia na região da sombra da morte.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, que bom que eu achei você. Já tá saben<strong>do</strong> que acharam uma sacola com<br />

papelotes de cocaína na Fábrica? — perguntou Eliane Azeve<strong>do</strong>, que trabalhava na chefia de<br />

reportagem de O Globo.<br />

— Já sim. A Vinde está soltan<strong>do</strong> uma nota sobre o assunto. Não vejo nada demais nisso —<br />

falei, cren<strong>do</strong> realmente que aquilo tu<strong>do</strong> era natural naquelas circunstâncias.<br />

— Mas, olha, a coisa não é tão simples assim. O comandante da operação, tenente-coronel<br />

Marcos Paes, disse que foi lá guia<strong>do</strong> por uma denúncia feita ao Disque Denúncia e que não achou<br />

apenas a droga, mas também encontrou evidências de que a direção da Fábrica era conivente com<br />

aquilo, pois havia até mesmo um colchão ao la<strong>do</strong> para o pessoal tomar conta à noite — disse-me<br />

ela com um tom nervoso. Afinal, além de repórter, ela também era minha amiga.<br />

— Olha, tem algo erra<strong>do</strong> aí. Nós vamos investigar. Amanhã eu vejo isso — falei, ainda<br />

tentan<strong>do</strong> diminuir o impacto da situação.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, não dá pra esperar até amanhã. Agora estou falan<strong>do</strong> como repórter e não como<br />

sua amiga. A coisa tá feia e o senhor tem que esclarecer. Além disso, o governa<strong>do</strong>r já se<br />

manifestou sobre o assunto. Falta o senhor — falou Eliane.<br />

— E o que foi que ele falou? — perguntei, começan<strong>do</strong> a ficar nervoso.<br />

— Vou lhe dizer, porque o assunto vai estar no jornal de amanhã e ele não pediu segre<strong>do</strong>. A<br />

questão é que havia um repórter de O Globo ao la<strong>do</strong> dele quan<strong>do</strong> ele recebeu um telefonema no<br />

celular. O governa<strong>do</strong>r estava em Brasília. O repórter disse que ele ouviu, e depois disse: “Que<br />

bom. Quer dizer então que chegou a hora de pipocar esse negócio? Vai cair tu<strong>do</strong>.” Então, virou<br />

pros outros que estavam com ele e disse: “Acharam droga lá na Fábrica de Esperança. A coisa vai<br />

começar a pipocar”, e aí, reveren<strong>do</strong>, deu uma gargalhada. O repórter ficou choca<strong>do</strong>. Ele disse que<br />

esperava que o governa<strong>do</strong>r lamentasse. Mas que nada. Ele chamou a imprensa e deu uma<br />

entrevista dizen<strong>do</strong> que sempre soube que a Fábrica era um paiol de drogas e outras coisas. Como<br />

o senhor vê, a coisa tá feia. Meu Deus, ele é o governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>!<br />

— Olha, Eliane, tu<strong>do</strong> o que eu tenho a dizer é que uma coisa dessas acontecer lá em Acari é<br />

mais que possível, é provável. A gente está numa zona de risco. É como ser feri<strong>do</strong> em guerra. O<br />

perigo vem com o trabalho, e to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sabe disso. E mais: acontece to<strong>do</strong>s os dias em lugares<br />

diferentes <strong>do</strong> Rio. Ele só está dan<strong>do</strong> valor a isso por causa <strong>do</strong> movimento Reage Rio — falei com<br />

muita angústia.<br />

O desassossego de meu coração foi profun<strong>do</strong> daí para a frente. Meus pés gelaram como todas<br />

as vezes que, na a<strong>do</strong>lescência, tinha uma briga marcada para o dia seguinte. Meu desejo era pegar<br />

o avião de volta ao Rio e partir para o confronto. Fiquei com raiva. Imaginei a irresponsabilidade e<br />

maldade daquelas declarações. No meu coração, fiquei toma<strong>do</strong> de ira. Minha vontade era não ser<br />

um <strong>pastor</strong> e nunca ter comprometi<strong>do</strong> a minha vida com os princípios <strong>do</strong> amor e da não-violência<br />

<strong>do</strong>s evangelhos.<br />

“Ai, meu Deus. Esse ímpio só tá dizen<strong>do</strong> isso porque ele sabe que nós não vamos reagir. Eu<br />

Te confesso, Senhor, se eu não fosse cristão, esse cara iria conhecer o poder da língua irada de<br />

um homem que não deve nada a ele. Ajuda-me, Jesus. Eu não quero odiar esse homem. Dá-me a<br />

chance de fazer o que Tu mandaste, quan<strong>do</strong> disseste que devemos amar os inimigos e orar pelos<br />

que nos perseguem. Dá-me forças, Senhor. Eu não quero ser venci<strong>do</strong> pelo ódio e pela amargura”,<br />

orei insistentemente e em lágrimas durante o resto <strong>do</strong> vôo até Recife.<br />

Quan<strong>do</strong> cheguei lá, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> já sabia. Algumas redes de televisão haviam mostra<strong>do</strong> a ação<br />

policial quase ao vivo e a coisa se transformara num assunto de repercussão nacional. Fiquei com<br />

mais raiva ainda. O celular não parava de tocar. Além da imprensa, as rádios e TVs estavam<br />

queren<strong>do</strong> informações. Nas rádios eu entrava ao vivo. O duro era não perder o controle. Tu<strong>do</strong> o


que não queria era “ventar” minha ira e baixar o nível. Mas quanto mais entrevistas eu dava pelo<br />

celular, mais “notícias” tinha de tu<strong>do</strong> e mais indigna<strong>do</strong> ficava.<br />

Fui direto para o hotel tomar um banho e tentar orar um pouco. Tomei o banho, mas não<br />

consegui me concentrar na oração. O mun<strong>do</strong> inteiro girava na minha cabeça.<br />

— Cristina, você está bem? — perguntei à supervisora geral da Fábrica, que naquele dia, em<br />

razão de minha ausência, tivera de lidar com toda aquela pressão.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, foi o pior dia de toda a minha vida. Tem muita maldade no ar. Eles querem é<br />

fazer mal à gente, não importa como. Eles odeiam a gente e a Fábrica. Volte logo, por favor.<br />

Amanhã a coisa vai ser pior. O governa<strong>do</strong>r não pára de fazer declarações cheias de ódio. Parece<br />

coisa <strong>do</strong> diabo — ela respondeu ainda dentro <strong>do</strong> carro, às sete e meia da noite, tentan<strong>do</strong> voltar<br />

para seu esposo e filhos naquele dia de angústia e injúria.<br />

O assunto da cocaína na Fábrica estava em to<strong>do</strong>s os telejornais. Mas bastava estar no Jornal<br />

Nacional para já ser um estrago. Assisti às notícias e saí para o lugar <strong>do</strong> culto.<br />

— <strong>Caio</strong>, meu irmão. Acho que eu posso te ajudar. Não faz nada sozinho. Nós temos de agir<br />

juntos. O que o governa<strong>do</strong>r quer é atingir o Reage Rio. Ele meteu na cabeça que é uma passeata<br />

contra ele. E como você é parte disso e também é o nome por trás da questão <strong>do</strong> desarmamento,<br />

ele pensa que, usan<strong>do</strong> o episódio da Fábrica, ele vai quebrar com a gente e desmobilizar a marcha<br />

— disse-me Rubem César na hora em que eu ia entran<strong>do</strong> no auditório superlota<strong>do</strong>, com mais de<br />

quatro mil pessoas, onde eu iria pregar em trinta minutos.<br />

Agradeci ao Rubem e disse que falaria com ele depois <strong>do</strong> culto. Só Deus sabe como eu estava<br />

por dentro. Pela misericórdia divina, os cânticos espirituais acalmaram a minha alma e eu tive<br />

paz. Preguei uma mensagem sobre o amor como único motiva<strong>do</strong>r legítimo da ação missionária<br />

<strong>do</strong>s cristãos. “Se você se entregar à vida missionária motiva<strong>do</strong> por qualquer outra coisa que não o<br />

amor, você vai se amargurar. Não há recompensas lógicas para a prática <strong>do</strong> bem. Não espere que<br />

paguem a você. Por isto, pague a você mesmo com a alegria de servir a Deus e ao próximo por<br />

nada, só pela bênção de poder amar”, disse muito mais para mim <strong>do</strong> que para a multidão que ali<br />

estava.<br />

Finalizada a reunião, falei com Alda para saber como ela estava; chamei Rubem para ouvi-lo<br />

sobre os des<strong>do</strong>bramentos <strong>do</strong>s fatos, e liguei para Cristina pedin<strong>do</strong> que ela chamasse a mídia toda<br />

para a Fábrica às 11 horas <strong>do</strong> dia seguinte.<br />

Não <strong>do</strong>rmi a noite toda. No meu coração não havia me<strong>do</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r nem de suas<br />

declarações. Eu tinha me<strong>do</strong> era de mim mesmo. Meu pavor era perder a linha e falar o que não<br />

devia. Marcello Alencar já perdera a compostura de governante e eu não queria perder a postura e<br />

a conduta de um <strong>pastor</strong>, ainda que tivesse de falar de mo<strong>do</strong> enérgico, se fosse necessário.<br />

Graças a Deus o avião que me levou de volta não tinha os jornais <strong>do</strong> Rio e de São Paulo, pois<br />

se eu tivesse li<strong>do</strong> o que o governa<strong>do</strong>r havia dito sobre nós, certamente minha reação não teria si<strong>do</strong><br />

de tanto controle. Quan<strong>do</strong> botei o pé na esteira da porta automática da saída <strong>do</strong> aeroporto <strong>do</strong><br />

Galeão, um batalhão de flashes espocou sobre mim e uma multidão de microfones cercou meu<br />

rosto.<br />

— O senhor vai processar o governa<strong>do</strong>r?<br />

— O governa<strong>do</strong>r disse que desde janeiro sabia que a Fábrica era depósito de drogas.<br />

— Ele disse que vai fechar a sua obra social.<br />

Estas eram algumas das muitas perguntas que vinham juntas.<br />

— Olha, o que eu tenho a dizer é que ele está sen<strong>do</strong> precipita<strong>do</strong>, leviano e irresponsável. Ele<br />

não pode sair por aí tentan<strong>do</strong> julgar quem ele não recebeu mandato para julgar. Ele é o<br />

governa<strong>do</strong>r. Não é investiga<strong>do</strong>r, delega<strong>do</strong>, promotor público, juiz nem Deus. Ele tem que se<br />

acalmar em vez de tentar destruir obras que não conhece — falei com energia, mas,


estranhamente, já sem ódio no meu coração. Eu orara tanto na viagem, que meu coração ficara<br />

livre daqueles sentimentos de hostilidade que haviam habita<strong>do</strong> em mim desde o pôr-<strong>do</strong>-sol <strong>do</strong> dia<br />

anterior.<br />

“Não se ponha o sol sobre a vossa ira e nem deis lugar ao diabo”, era o texto de Paulo que eu<br />

lembrava a mim mesmo nas horas de recaída.<br />

Na viagem <strong>do</strong> Galeão a Acari, Jorge Antônio Barros, editor-chefe da Revista Vinde, e o <strong>pastor</strong><br />

Arioval<strong>do</strong> Ramos atualizaram-me sobre as notícias <strong>do</strong>s jornais <strong>do</strong> Rio e de São Paulo e me fizeram<br />

uma avaliação da situação.<br />

— Apesar de chamadas ambíguas ou mesmo ruins, os textos <strong>do</strong>s jornais estão com a gente.<br />

Tá to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> perceben<strong>do</strong> que há algo pessoal da parte <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r contra o senhor e contra<br />

o Reage Rio. Já as rádios estão todas descaradamente a nosso favor. O povo também. Hoje de<br />

manhã, o Arol<strong>do</strong> de Andrade, da Rádio Globo, fez uma pesquisa de opinião a respeito <strong>do</strong> assunto<br />

e ninguém foi contra nós. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> desceu a lenha no governa<strong>do</strong>r. É um assunto<br />

constrange<strong>do</strong>r, mas fique calmo que a coisa vai ficar bem — disse-me Jorge Antônio.<br />

O carro parou à porta da Fábrica. Outro grupo de repórteres correu para cima de mim.<br />

Estranhamente, entretanto, minha mente se desconectou completamente de tu<strong>do</strong> aquilo. Não foi<br />

nada mais longo <strong>do</strong> que um intervalo de uns vinte a trinta segun<strong>do</strong>s. Para mim, no entanto, foi<br />

uma viagem existencial intensa e de profun<strong>do</strong> significa<strong>do</strong> psicológico. Olhei a fachada enorme da<br />

Fábrica e fui transporta<strong>do</strong> até a primeira “fábrica de esperança” que eu criara na minha vida, aos<br />

cinco anos de idade, no quintal da vovó, no paraíso, em Manaus. Era aquela casinha de<br />

compensa<strong>do</strong> que papai me dera e que tivera um papel psicológico importantíssimo para mim.<br />

“Meu filho, entre aí. Ame seus filhos...”, era a lembrança da voz de papai, mais viva <strong>do</strong> que nunca,<br />

que me vinha à mente, apontan<strong>do</strong>-me a porta de entrada da pequena casa.<br />

“Meu Deus, a vida toda eu tenho construí<strong>do</strong> casas simbólicas. Esta aqui é mais uma das casas<br />

que construí. Aqui é mais um lugar mágico, onde eu encontro meus filhos espirituais. Senhor,<br />

ajuda-me a proteger a minha casa, a casa que meu pai me deu”, orei, gritan<strong>do</strong> para dentro de<br />

mim mesmo, enquanto olhava para a fachada da Fábrica. Depois, fiz algumas declarações à<br />

imprensa, mas insisti que só falaria tu<strong>do</strong> uma hora mais tarde.<br />

Lá em cima, no sexto andar, encontrei Alda, em companhia de Cristina Christiano, Henrique<br />

Cala<strong>do</strong>, Egnal<strong>do</strong> Júnior, Ernan e Rubem César. Então nos reunimos para ouvir o que realmente<br />

havia aconteci<strong>do</strong> na tarde <strong>do</strong> dia anterior.<br />

A versão oficial dizia que, estan<strong>do</strong> em Acari para uma operação de rotina, o tenente-coronel<br />

Marcos Paes, comandante <strong>do</strong> 9º Batalhão da Polícia Militar, teria recebi<strong>do</strong> um informe <strong>do</strong> serviço<br />

Disque Denúncia, avisan<strong>do</strong> que dentro da Fábrica haveria o tal “volume”. Assim instruí<strong>do</strong>s, os<br />

PMs teriam tenta<strong>do</strong> entrar na Fábrica, receben<strong>do</strong> resistência por parte da vigilância da<br />

propriedade, e só conseguin<strong>do</strong> fazê-lo após ameaça de enfrentamento. Em lá chegan<strong>do</strong>, os<br />

policiais não só teriam troca<strong>do</strong> tiros com bandi<strong>do</strong>s escondi<strong>do</strong>s no interior da Fábrica, mas<br />

também teriam acha<strong>do</strong> a droga dentro de uma caldeira aban<strong>do</strong>nada, conforme a dica recebida.<br />

A versão <strong>do</strong>s funcionários da Fábrica, bem como de Cristina, Henrique e Júnior, to<strong>do</strong>s<br />

trabalhan<strong>do</strong> lá em cargos de minha confiança, era completamente diferente.<br />

1) Os primeiros guardas não entraram pelo portão da frente, mas pulan<strong>do</strong> o muro, pela<br />

lateral, em perseguição a três rapazes que fugiram para dentro da Fábrica.<br />

2) O segun<strong>do</strong> grupo de policiais não foi “deti<strong>do</strong>” à porta da Fábrica, pois o portão estava<br />

aberto para que Fernan<strong>do</strong> Moça, funcionário da Xerox, pudesse sair. Assim, os guardas entraram<br />

atiran<strong>do</strong> em perseguição aos rapazes, que já haviam pula<strong>do</strong> para dentro da propriedade.<br />

3) Os vigilantes da Fábrica não tentaram deter ninguém, apenas disseram que iriam


informar à diretoria o que estava acontecen<strong>do</strong>. Deviam esta informação a um guarda que havia<br />

fica<strong>do</strong> para trás, enquanto os demais invadiram a propriedade em perseguição aos invasores <strong>do</strong><br />

tráfico.<br />

4) Os guardas viram quan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s rapazes jogou um saco para o la<strong>do</strong> na correria, foram<br />

até o local e apreenderam o material.<br />

5) Os três rapazes foram então presos e leva<strong>do</strong>s dali.<br />

6) Os cerca de 16 guardas que participaram da operação dentro da Fábrica disseram estar<br />

com fome e subiram para o nosso refeitório, onde almoçaram descontraidamente.<br />

7) Cristina desceu <strong>do</strong> sexto andar, onde fica sua sala, e foi conversar com o comandante<br />

Marcos Paes. Viu, então, que ele estava falan<strong>do</strong> com alguém num telefone celular. “Tem mala”,<br />

dissera ele, fazen<strong>do</strong> alusão à presença de alguém estranho, no caso Cristina.<br />

8) Marcos Paes foi entran<strong>do</strong> na Fábrica, já depois da operação, aparentemente sen<strong>do</strong><br />

guia<strong>do</strong> por alguém <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha.<br />

9) Ao telefone, o comandante Paes recebeu instruções para “preservar o local”, quan<strong>do</strong>,<br />

então, man<strong>do</strong>u que retirassem a droga de dentro da Patamo da polícia, que estava estacionada ao<br />

la<strong>do</strong> da caldeira.<br />

10) Cristina viu quan<strong>do</strong> da mala da caminhonete foi retirada uma sacola preta e levada outra<br />

vez para as proximidades da caldeira, a fim de que houvesse a perícia. Foi quan<strong>do</strong> a supervisora<br />

da Fábrica estranhou que a quantidade de drogas retirada de dentro da Patamo fosse bem maior<br />

<strong>do</strong> que a que fora anteriormente posta dentro <strong>do</strong> veículo.<br />

Depois disto, a mídia foi chamada, e o circo foi monta<strong>do</strong>.<br />

Como eu conheço muito bem aqueles que trabalham comigo, não havia de minha parte a<br />

menor dúvida sobre o que eles estavam falan<strong>do</strong>. E, basea<strong>do</strong> no testemunho deles, não cederia sob<br />

hipótese alguma ante as ameaças de quem quer que fosse quanto a pretender lançar sobre nós<br />

uma suspeição que nós abominávamos.<br />

Logo a seguir, reunimos a imprensa, mas não falei tu<strong>do</strong> o que já sabíamos. Preferi dizer que<br />

estávamos fazen<strong>do</strong> três coisas:<br />

1) Crian<strong>do</strong> uma comissão de investigação paralela, formada por uma policial federal, um juiz<br />

e um oficial militar. Razão: como o governa<strong>do</strong>r já demonstrara seu ânimo acusatório, perdera<br />

completamente a autoridade para conduzir o processo, de mo<strong>do</strong> que teríamos de nos precaver;<br />

caso contrário, seríamos julga<strong>do</strong>s sem tribunal. O veredicto governamental já estava da<strong>do</strong>.<br />

2) Contrataríamos uma vigilância independente para cuidar da segurança da Fábrica.<br />

3) Solicitaríamos a presença <strong>do</strong> Ministério Público acompanhan<strong>do</strong> as investigações policiais,<br />

visto havermos perdi<strong>do</strong> a confiança quanto à i<strong>do</strong>neidade <strong>do</strong> processo de investigação.<br />

Depois que eu falei, Rubem César pediu a palavra e abriu o coração. Falou de como aquela<br />

atitude governamental era perversa e disse que ninguém ali tinha nada contra o governa<strong>do</strong>r, mas<br />

que ele insistia em nos ver como inimigos.<br />

— Essa cidade é nossa. É de cada um de nós que vive nela. Não vamos nos sujeitar a esse<br />

arbítrio que quer nos tirar o direito de construirmos a sociedade onde vivemos — disse Rubem<br />

baten<strong>do</strong> no peito, fugin<strong>do</strong> ao seu estilo quase sempre comedi<strong>do</strong> e pedagógico. E enquanto ele<br />

falava, eu me emocionava.<br />

Em seguida, chegaram flores de Betinho para mim e para a Fábrica. Depois, <strong>Caio</strong> Ferraz, da<br />

Casa da Paz, pediu a palavra, caiu no choro e anunciou que estava deixan<strong>do</strong> o Rio, pois não<br />

agüentava mais o terror ao qual fora submeti<strong>do</strong> naquele ano, viven<strong>do</strong> sob ameaças e a freqüente


sensação de estar sen<strong>do</strong> segui<strong>do</strong>. Pediria asilo ao Ministério da Justiça, em Brasília, e depois iria<br />

para Boston, estudar.<br />

Durante to<strong>do</strong> aquele tempo de entrevista coletiva vi um rapaz branco, de cara re<strong>do</strong>nda e<br />

cabelo liso, escorri<strong>do</strong> sobre a testa, em pé, encosta<strong>do</strong> a uma coluna.<br />

A imprensa se retirou, mas as declarações ensandecidas <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r não cessaram.<br />

Marcello Alencar atacava de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, e eu respondia. Algumas declarações <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r<br />

merecem ser aqui transcritas, ainda que resumidamente:<br />

“Não venham me dizer que eles (os traficantes) passaram ali e deixaram a droga em<br />

trânsito. Estavam fazen<strong>do</strong> daquele lugar um depósito de drogas e os titulares dessa<br />

entidade terão que ser responsabiliza<strong>do</strong>s porque consentiram.” — Jornal <strong>do</strong> Brasil,<br />

25/11/95<br />

“A polícia tem fortes suspeitas de que as crianças são usadas para transportar a<br />

droga.” — Jornal <strong>do</strong> Brasil, 25/11/95<br />

“Suspeito que aí tem o fio de uma meada que não sei onde vai parar. A Fábrica pode<br />

fechar como instrumento equivoca<strong>do</strong> de assistência. Ou então extinguir a ação daqueles<br />

que comandam um empreendimento que não apresenta as características que anuncia.”<br />

— Tribuna, 25/11/95<br />

“Essa investigação vai nos levar aos engana<strong>do</strong>res de nossa sociedade.” — Jornal <strong>do</strong><br />

Brasil, 25/11/95<br />

“Eles não vão pedir nada (investigação acompanhada pelo Ministério Público), pois o<br />

Ministério Público não vai dar atenção (ao <strong>pastor</strong>), não vai desmoralizar uma ação <strong>do</strong><br />

governo. Eu é que quero saber como eles funcionam, de onde vêm e para onde vai o<br />

dinheiro dessa gente.” — O Globo, 27/11/95, sobre o meu pedi<strong>do</strong> ao MP para que<br />

acompanhasse as investigações. Mas em 28 de novembro, ven<strong>do</strong> que havíamos si<strong>do</strong><br />

atendi<strong>do</strong>s e a fim de não se desmoralizar, Marcello Alencar então solicitou ao Ministério<br />

Público que designasse alguém para acompanhar o caso.<br />

“O que eu quero é a apuração real, verdadeira, sem preconceito. Então, vem esse<br />

cidadão e diz que vai fazer investigação paralela. Ele que faça o que quiser no âmbito de<br />

suas atividades. Isso eu não posso impedir, mas que é ridículo dizer que vai apurar sem ser<br />

através da polícia, isso é. É uma bobagem.” — O Globo, 28/11/95<br />

“O <strong>pastor</strong> <strong>Caio</strong> fez uma afirmação ridícula de que vai apurar o caso. Essa função é da<br />

polícia. Onde já se viu desprestigiar a autoridade.” — Jornal <strong>do</strong> Brasil, 28/11/95<br />

“É hora de confiarmos no poder público e não em aventureiros que aparecem aí sob a<br />

capa da generosidade.” — O Dia, 28/11/95<br />

“Eu não falo de <strong>Caio</strong>s. Os únicos <strong>Caio</strong>s que eu respeito são os da história romana.” —<br />

O Dia, 1º/12/95<br />

Além de tu<strong>do</strong> isso, o governa<strong>do</strong>r chamou a Fábrica de Esperança de Fábrica de<br />

Desesperança e disse que iria fechá-la, pois desde janeiro daquele ano sabia que ali havia<br />

tráfico de drogas.<br />

Respondi às acusações <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> conforme me man<strong>do</strong>u a consciência<br />

e não me arrepen<strong>do</strong>, até o dia de hoje, de uma única resposta sequer.<br />

“O governa<strong>do</strong>r foi leviano, irresponsável e inconseqüente. Isto não é declaração de um<br />

governa<strong>do</strong>r de esta<strong>do</strong>.” — 25/11/95, frase repetida em to<strong>do</strong>s os órgãos de imprensa <strong>do</strong> Rio<br />

e nas redes de televisão a propósito das primeiras declarações de Marcello Alencar sobre<br />

a Fábrica ser depósito <strong>do</strong> tráfico de drogas e a utilização de criancinhas para aquela


suposta tarefa.<br />

“Não tenho me<strong>do</strong> de tráfico nem de traficante. Isso aqui foi uma puxada no tapete. Mas<br />

nós vamos reagir.” — O Globo, 25/11/95, sobre se eu não tinha me<strong>do</strong> de estar acusan<strong>do</strong><br />

os traficantes de terem nos “puxa<strong>do</strong> para dentro de uma guerra que não era nossa”.<br />

“A Fábrica não é autarquia <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, não está submissa ao governa<strong>do</strong>r. Afinal,<br />

vivemos num país livre, regi<strong>do</strong> por leis, e não numa tirania. Nada pode ser feito pelos<br />

governantes que não seja dentro da lei. É só à lei que eu me submeto.” — O Globo<br />

26/11/95<br />

“O governa<strong>do</strong>r está se esquecen<strong>do</strong> de que é nosso parceiro no projeto da Fábrica,<br />

através <strong>do</strong> Centro de Defesa da Cidadania, que funciona dentro da área da Fábrica.” —<br />

O Globo, 26/11/95<br />

“É coisa <strong>do</strong> diabo.” — O Dia, 26/11/ 95, responden<strong>do</strong> sobre de onde vinha tanto ódio<br />

de Marcello Alencar contra mim.<br />

“Isso é a coisa mais idiota. Ele que prove minha conivência com o tráfico. O<br />

governa<strong>do</strong>r não fala como estadista, mas como pessoa amargurada e raivosa.” — O Dia,<br />

26/11/95<br />

“Será que ele está enciuma<strong>do</strong> porque a Fábrica está dan<strong>do</strong> certo sem a tutela <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong>?” — O Dia, 26/11/95<br />

“A tentativa dele de nos incriminar mostra que ele está mal-intenciona<strong>do</strong>. Eu o desafio<br />

a investigar a minha vida até mesmo com a ajuda da Interpol. Se for investigação limpa,<br />

sem armação, podem fazer até escuta no meu telefone.” — O Dia, 26/11/95<br />

“Se eu acusasse o bispo Mace<strong>do</strong>, estaria agin<strong>do</strong> como o governa<strong>do</strong>r Marcello Alencar,<br />

que condena antes mesmo de investigar.” — O Dia, 28/11/95, sobre uma possível conexão<br />

entre o ódio de Marcello e as influências da Universal.<br />

“O governa<strong>do</strong>r foi tão peremptório em seu julgamento, e já demonstrou que na sua<br />

opinião a direção da Fábrica é culpada, daí a nossa investigação particular.” — Jornal <strong>do</strong><br />

Brasil, 28/11/95, sobre o fato de termos cria<strong>do</strong> uma comissão de investigação paralela,<br />

formada pelo ex-delega<strong>do</strong> de Polícia Federal, Neemias Carvalho, o coronel reforma<strong>do</strong> da<br />

Polícia Militar, José da Costa Santos, e o juiz aposenta<strong>do</strong> José Gonçalo Rodrigues.<br />

“Estamos num país livre, onde a Constituição garante liberdade religiosa. Isso aqui<br />

não é o Irã, onde o soberano tem poderes absolutos.” — O Dia, 30/11/95, sobre o fato de<br />

que, por “ordens superiores”, o presidente <strong>do</strong> Instituto de Assistência aos Servi<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, cancelou a programação evangélica que eu realizaria naquele lugar.<br />

“Quan<strong>do</strong> eles falaram de ‘ordens superiores’, certamente não estavam se referin<strong>do</strong> a<br />

Deus, estavam?” — O Dia, 30/11/95, sobre a mesma questão <strong>do</strong> cancelamento <strong>do</strong> culto.<br />

“Poderíamos criar o Muro de Acari, uma versão carioca <strong>do</strong> Muro de Berlim, onde<br />

solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> arma<strong>do</strong>s metralhariam quem tentasse subir. Ou então, poderíamos nos<br />

tornar um CIEP (escola pública <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>), pois bem perto daqui tem um sem cerca, onde<br />

to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> entra e ninguém cobra nada <strong>do</strong> governo sobre quem é que pula lá dentro.” —<br />

Jornal <strong>do</strong> Brasil, 2/12/95, sobre a tentativa <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r de nos responsabilizar pela<br />

invasão da Fábrica.<br />

“Não posso transformar a Fábrica no Bunker da Esperança. O esta<strong>do</strong> que venha<br />

proteger o nosso muro.” — Jornal <strong>do</strong> Brasil, 2/12/95<br />

“Estão queren<strong>do</strong> inverter as responsabilidades. É a mesma coisa que pedir a Eduar<strong>do</strong><br />

Eugênio (que havia si<strong>do</strong> seqüestra<strong>do</strong>) garantias de que ele não será seqüestra<strong>do</strong><br />

novamente.” — Jornal <strong>do</strong> Brasil, 2/12/95<br />

Para piorar a situação, o prefeito César Maia entrou na briga a favor de seu pior<br />

inimigo político na cidade: o governa<strong>do</strong>r.


“Os menores entram para assistir aula e saem levan<strong>do</strong> os papelotes.” — Jornal <strong>do</strong><br />

Brasil, 25/11/95<br />

“Esse fato é muito grave e tem que ser apura<strong>do</strong> rapidamente, e o responsável, se for<br />

comprovada alguma coisa contra ele, tem que ser imediatamente retira<strong>do</strong> da direção <strong>do</strong><br />

Viva Rio.” — Jornal <strong>do</strong> Brasil, 25/11/95<br />

“Desde a visita <strong>do</strong> presidente Fernan<strong>do</strong> Henrique que já se sabia. Perguntei ao<br />

Marcello como ele ia levar o presidente lá. Ficou preocupa<strong>do</strong>. A polícia e o governa<strong>do</strong>r já<br />

sabiam há algum tempo. Estavam só esperan<strong>do</strong> a hora certa de agir.” — Jornal <strong>do</strong> Brasil,<br />

25/11/95, fazen<strong>do</strong> referência à conversa na qual ele, Marcello e <strong>do</strong>m Eugênio Salles,<br />

arcebispo <strong>do</strong> Rio, teriam trata<strong>do</strong> <strong>do</strong> assunto.<br />

“O quê? To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em Acari sabe. Até os cachorros, gatos e Aedes aegypts.” —<br />

Jornal <strong>do</strong> Brasil, 25/11/95, responden<strong>do</strong> de onde vinham as informações que ele dizia<br />

possuir.<br />

“O hipotético envolvimento das pessoas ligadas à Fábrica com o tráfico deve ser<br />

investiga<strong>do</strong> e prova<strong>do</strong>. A polícia já sabia de tu<strong>do</strong>. Havia pessoas infiltradas investigan<strong>do</strong> a<br />

instituição.” — O Dia, 27/11/96<br />

Que o governa<strong>do</strong>r me atacasse, eu podia entender. Mas o prefeito não tinha razão para isso.<br />

Para ser franco, os ataques de César Maia me <strong>do</strong>eram na alma muito mais <strong>do</strong> que os de Marcello<br />

Alencar, pois eu o respeitava muito mais como administra<strong>do</strong>r público e como político com amplas<br />

condições de se projetar em nível nacional. Tê-lo contra nós, e sem maiores explicações,<br />

deixou-me arrasa<strong>do</strong>. Respondi a algumas de suas “alfinetadas”, mas tentei me distanciar <strong>do</strong><br />

confronto com ele. Além <strong>do</strong> mais, entre aqueles que trabalhavam na equipe <strong>do</strong> prefeito havia<br />

gente que eu respeitava pela competência e por afinidade.<br />

— Não sei o que deu no prefeito. Estou estranhan<strong>do</strong> a atitude dele. Mas pode ter certeza de<br />

uma coisa: o César é um cara bom. Se ele perceber que está erra<strong>do</strong>, vai mudar de posição. Ele não<br />

é <strong>do</strong> tipo que guarda ressentimento e não é vingativo. Mas o Marcello é vingativo. Não tenha<br />

muita esperança de se reaproximar dele nunca mais — disse-me um político da cidade com livre<br />

trânsito entre o prefeito e o governa<strong>do</strong>r.<br />

Alda estava de viagem marcada para a Flórida para o dia 24 de novembro. Ela iria encontrar<br />

uma casa para que nós pudéssemos dar seqüência ao nosso plano de passar 1996 e 1997 com os<br />

filhos mais novos nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />

— Desculpa amor, mas não vou de jeito nenhum — disse ela.<br />

— Que nada. O pior já passou. Daqui pra frente é só administrar a situação. Vá em paz. Se<br />

acontecer qualquer coisa diferente, eu aviso a você — eu disse a ela, saben<strong>do</strong>, entretanto, que a<br />

estava enganan<strong>do</strong>. O pior ainda estava por vir, e eu sabia disso. O problema é que eu conhecia o<br />

senti<strong>do</strong> de justiça de minha esposa e não queria que ela morresse de raiva ven<strong>do</strong> todas as<br />

perversidades que contra nós ainda seriam praticadas nos próximos dias.<br />

Ela foi à Flórida para um perío<strong>do</strong> de nove dias com a promessa de que se algo diferente<br />

acontecesse eu a avisaria. Tive de enganá-la to<strong>do</strong>s aqueles dias.<br />

— <strong>Caio</strong>, como estão as coisas? — ela me perguntava.<br />

— Estão se arruman<strong>do</strong>. Não se preocupe que está tu<strong>do</strong> em paz — dizia a cada noite, depois<br />

de um dia pior que o outro.<br />

Durante cerca de dez dias o assunto mais palpitante na cidade foi o caso da guerra entre o<br />

governa<strong>do</strong>r e o <strong>pastor</strong>. E para animar o debate, não faltavam rádios, televisões e jornais. Se eu<br />

fosse um forte candidato a algum cargo público de expressão, poderia até conseguir entender<br />

aquela “atitude” <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r contra mim. Mas aquele não era o caso. No meio de to<strong>do</strong> aquele


fogo cruza<strong>do</strong>, deixei as reflexões de la<strong>do</strong> e parti para dentro. Os inimigos eram bem maiores <strong>do</strong><br />

que eu, mas desde menino a minha luta tinha si<strong>do</strong> aquela: enfrentar o adversário maior. Agora<br />

não seria diferente.<br />

“Meu Deus, se o governa<strong>do</strong>r me ataca é porque está ven<strong>do</strong> em mim, ou no que ele acha que<br />

eu represento, um adversário muito forte. Mas o que é que eu represento que o ameaça tanto?”,<br />

orei muitas vezes a Deus, em profunda angústia.<br />

A situação estava <strong>do</strong> jeito que o diabo gosta. Mas os anjos <strong>do</strong> Senhor estavam acampa<strong>do</strong>s ao<br />

nosso re<strong>do</strong>r e nos guardavam. Em meio a tu<strong>do</strong> aquilo, meu consolo vinha da Palavra de Deus.<br />

Naqueles dias, o Salmo que eu mais lia era aquele que Davi escreveu quan<strong>do</strong> enfrentava a<br />

perseguição <strong>do</strong> rei:<br />

“Tem misericórdia de mim ó Deus, porque o homem procura ferir-me; e me oprime<br />

pelejan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o dia. Os que me espreitam continuamente querem ferir-me, e são muitos os<br />

que atrevidamente me combatem. Em me vin<strong>do</strong> o temor hei de confiar em Ti. Em Deus,<br />

cuja Palavra eu exalto, neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode<br />

fazer o mortal? To<strong>do</strong> o dia torcem as minhas palavras; seus pensamentos são to<strong>do</strong>s contra<br />

mim para o mal. Ajuntam-se, escondem-se, espionam os meus passos, como aguardan<strong>do</strong> a<br />

hora de darem cabo de minha vida. Contaste os meus passos quan<strong>do</strong> sofri perseguições;<br />

recolheste as minhas lágrimas no Teu odre: não estão elas inscritas no Teu livro? No dia<br />

em que eu Te invocar baterão em retirada os meus inimigos: bem sei isto que Deus é por<br />

mim. Pois da morte me livraste a alma, sim, livraste da queda os meus pés, para que eu<br />

ande na presença de Deus na luz da vida.” De Davi, quan<strong>do</strong> Saul o perseguia e os<br />

filisteus o prenderam em Gate. Salmo 56.


Capítulo 61<br />

“Não há prazer algum em beber ou comer se não se sentiu antes o aguilhão da sede<br />

e da fome. Os que bebem costumam comer antes alguma coisa salgada, que lhes<br />

cause sede ardente; que se transformará em prazer quan<strong>do</strong> acalmada com a<br />

bebida.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

A presença de Deus era forte em meu coração, apesar das turbulências. E o melhor de tu<strong>do</strong><br />

foi que naquela hora me foi possível perceber que os anos de viagem por to<strong>do</strong> o Brasil e pelo<br />

exterior não tinham si<strong>do</strong> em vão. Centenas de cartas, fax, telegramas e telefonemas vinham de<br />

todas as partes. Eram governa<strong>do</strong>res, secretários de esta<strong>do</strong>, sena<strong>do</strong>res, deputa<strong>do</strong>s, empresários,<br />

<strong>pastor</strong>es e amigos de todas as classes e vivências. To<strong>do</strong>s se manifestavam indigna<strong>do</strong>s e pediam<br />

orientação sobre como proceder em relação ao governa<strong>do</strong>r Marcello Alencar.<br />

Naquela hora, entretanto, por mais que todas as manifestações de apoio fossem<br />

importantíssimas <strong>do</strong> ponto de vista da relação política, o que mais me preocupava era como os<br />

parceiros empresariais da Fábrica de Esperança haveriam de se posicionar frente ao fato. Alípio<br />

Gusmão e Salo Seibel manifestaram-se absolutamente solidários. Marly, esposa de Alípio, pegou<br />

um avião da ponte aérea e veio ao Rio a fim de estar conosco. A Xerox também hipotecou<br />

solidariedade total. Mas e os demais? Iria aquele episódio desestimular os outros parceiros?<br />

Minha emoção foi enorme quan<strong>do</strong> a irmã <strong>do</strong> tricampeão de Fórmula 1, Ayrton Senna, decidiu<br />

gravar uma mensagem de apoio incondicional à Fábrica. Dois meses antes daquilo, o Instituto<br />

Ayrton Senna, presidi<strong>do</strong> por Viviane Senna, havia inaugura<strong>do</strong>, em regime de parceria com a<br />

Fábrica, um curso de informática para seiscentos a<strong>do</strong>lescentes das favelas da região. O gesto de<br />

compromisso de Viviane nos fortaleceu muito publicamente, e encorajou os demais parceiros a<br />

fazerem o mesmo. Então vieram fax da Golden Cross, Yázigi, Caixa Econômica Federal e outros,<br />

afirman<strong>do</strong> que aquele incidente tinha apenas mostra<strong>do</strong> a eles como nós estávamos fazen<strong>do</strong> o que<br />

devia ser feito naquela zona de guerra.<br />

— Ore por Marcello Alencar, peça a Deus para ele voltar a si e também mande um fax para<br />

ele dizen<strong>do</strong> o que você está sentin<strong>do</strong> — era a resposta que eu e meus assessores invariavelmente<br />

dávamos aos que nos buscavam desejan<strong>do</strong> saber como proceder para mostrar ao governa<strong>do</strong>r o<br />

repúdio que sentiam por suas declarações.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, eu trabalho no palácio e tenho uma coisa pra lhe dizer: nós nunca recebemos<br />

tantos telefonemas e fax como nesta semana. Tão até desligan<strong>do</strong> o fax porque está incomodan<strong>do</strong><br />

muito — disse uma jovem presente a uma reunião evangélica na qual eu falei naquela ocasião.


No dia 25, um grupo de amigos se reuniu em minha casa para planejar o que faríamos. Entre<br />

eles estava Otávio Guedes, o repórter que me introduzira às questões sobre a violência no Rio<br />

alguns anos antes. A esperteza e a mordacidade jornalística de Otávio se manifestaram<br />

impressionantes naquela reunião.<br />

— O quê? O governa<strong>do</strong>r tá dizen<strong>do</strong> que sabia que havia tráfico na Fábrica desde janeiro? Tá<br />

brincan<strong>do</strong>? No mínimo ele devia ter avisa<strong>do</strong> ao senhor, <strong>pastor</strong>. Ou então tinha que ter agi<strong>do</strong> como<br />

governa<strong>do</strong>r e feito alguma coisa. O senhor pode cobrar uma das duas posições dele. Tá brincan<strong>do</strong><br />

— disse ele logo no início da conversa. — O prefeito falou que até os mosquitos, cachorros e<br />

gatos de Acari sabiam que a Fábrica era lugar onde drogas eram escondidas? Tá louco! Então,<br />

<strong>pastor</strong>, peça a ele pra trazer as testemunhas dele para depor. Vai ser um barato. O prefeito vai<br />

chegar com aquela cachorrada, gataria e com nuvens de mosquitos. Que testemunhas, hem? —<br />

falou com ironia, mas nos mostran<strong>do</strong> que o ridículo de tu<strong>do</strong> aquilo tinha que ser trata<strong>do</strong> por nós<br />

com igual ridículo e ironia.<br />

— Ele falou isso tu<strong>do</strong> da gente, mas o terreno onde o esta<strong>do</strong> construiu o Centro Comunitário<br />

de Defesa de Cidadania é nosso. A Fábrica cedeu a eles — disse Cristina.<br />

— O quê? O CCDC está dentro <strong>do</strong> terreno da Fábrica? Que beleza. Pastor, o senhor só tem<br />

que se referir ao governa<strong>do</strong>r agora como o nosso parceiro — disse ele com veneno.<br />

— Eles nos acusaram de termos dificulta<strong>do</strong> a entrada da polícia na Fábrica, mas eles têm<br />

acesso à área da Fábrica pelo CCDC a hora que quiserem. A chave está nas mãos <strong>do</strong>s PMs <strong>do</strong><br />

Centro e a fechadura fica virada para o la<strong>do</strong> de dentro, <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> — falou Henrique Cala<strong>do</strong>, então<br />

diretor de operações da Fábrica.<br />

— Que é isso, gente? Isso tu<strong>do</strong> é gozação! Então eles estão acusan<strong>do</strong> vocês de dificultarem a<br />

ação enquanto a chave <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s tava com eles, com os PMs? — largou com picardia.<br />

E assim a reunião para avaliar o que deveríamos fazer acabou em muita risada. Otávio não<br />

parou ali. Foi adiante nos mostran<strong>do</strong> o quão insólita a situação toda era, e nos ajudan<strong>do</strong> a ver que<br />

contra aquele tipo de “argumentação insana” a seriedade não deveria ser jamais um recurso.<br />

— Pastor, a coisa é tão ridícula, que é melhor contar como piada! — disse Otávio.<br />

A única coisa séria que saiu da reunião foi a nossa decisão de fazer uma concentração na<br />

frente da Fábrica na segunda-feira a fim de mostrar para a população que nós não estávamos<br />

intimida<strong>do</strong>s diante de nada daquilo. E mais: transformaríamos o evento um avant premier <strong>do</strong><br />

Reage Rio, que aconteceria no dia seguinte.<br />

Na segunda-feira não tínhamos uma grande multidão na frente da Fábrica, mas<br />

consideran<strong>do</strong>-se o tempo de preparação (24 horas) e a hora <strong>do</strong> evento (dez da manhã de um dia<br />

útil), o happening foi de bom tamanho. Cerca de mil pessoas se amontoaram ali, enquanto<br />

<strong>pastor</strong>es, presidentes de associações de mora<strong>do</strong>res, políticos de vários parti<strong>do</strong>s de direita,<br />

esquerda e centro; artistas e amigos tomavam a palavra para fazer suas declarações de<br />

solidariedade, que não podiam ser mais longas <strong>do</strong> que cinco minutos.<br />

A mais interessante de todas as falas foi a de Garotinho, adversário político de Marcello<br />

Alencar nas eleições para o governo <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, que naquele ano tivera uma experiência de fé e<br />

fora por mim batiza<strong>do</strong> alguns meses antes daquela manhã em Acari.<br />

— Reveren<strong>do</strong> <strong>Caio</strong>. As mesmas mãos que hoje estão tentan<strong>do</strong> destruir esse projeto virão<br />

aqui acariciá-lo. A consciência deles vai pesar. Quem sabe o que aconteceu vai falar. É só esperar.<br />

Essa não é uma luta política, é espiritual — disse Garotinho em tom profético, para então<br />

terminar seu discurso com um texto da epístola <strong>do</strong> Apóstolo São Paulo aos efésios. — Pois a<br />

nossa luta não é contra carne e nem sangue, mas contra principa<strong>do</strong>s e potestades; contra os<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res deste mun<strong>do</strong> tenebroso, contra as forças espirituais <strong>do</strong> mal nas regiões celestes —<br />

disse para delírio da multidão, acostumada a vê-lo falar como político, mas não como prega<strong>do</strong>r <strong>do</strong>


evangelho.<br />

A expectativa para o dia seguinte era enorme. O dia enfim chegou e, com ele, uma chuva<br />

pesadíssima.<br />

— Pastor, o senhor está na charge <strong>do</strong> Chico Caruso com o Betinho e o Rubem César<br />

Fernandes. São os três. O senhor é o “R”, meio gordinho; o Betinho é “I”, bem fininho; e o<br />

Rubem é “O”, fazen<strong>do</strong> Rio — disse-me Jorge Antônio Barros logo de manhã ce<strong>do</strong>.<br />

O Globo, Jornal <strong>do</strong> Brasil e O Dia tinham determina<strong>do</strong> que colocariam um repórter ao la<strong>do</strong><br />

de cada personagem da charge de Chico Caruso. Assim, desde ce<strong>do</strong> três repórteres colaram no<br />

meu pé e quiseram saber a que horas eu acordara, tomara banho, comera etc. Depois, os três<br />

foram almoçar comigo no restaurante La Mama, em Niterói. Decidi ir a pé até o centro <strong>do</strong> Rio.<br />

No caminho, as pessoas falavam conosco e nos estimulavam. Eu, todavia, estava cada vez mais<br />

preocupa<strong>do</strong>. A chuva era tão forte, que muitos <strong>do</strong>s que haviam se vesti<strong>do</strong> de branco para a marcha<br />

— e havia uma multidão de gente vestin<strong>do</strong> a cor da paz — estavam voltan<strong>do</strong> para casa antes<br />

mesmo da hora da caminhada.<br />

— Pastor, pelo jeito o negócio vai gorar — disse Otávio Guedes, um <strong>do</strong>s três “colas” que<br />

estavam comigo naquele dia.<br />

— É, tô com me<strong>do</strong>. Mas acho que vai ter gente pro gasto. Se não fosse a chuva, seria muito<br />

melhor — respondi.<br />

Chegamos e fomos direto para a Associação Comercial onde a coordenação da caminhada<br />

deveria se encontrar. O lugar estava cheio de repórteres e artistas. Parecia que as comportas da<br />

Globo tinham si<strong>do</strong> abertas e os elencos de todas as novelas haviam resolvi<strong>do</strong> se encontrar ali. Foi<br />

só naquele momento que percebi o quanto as minhas atividades no Rio estavam repercutin<strong>do</strong> em<br />

todas as camadas sociais. Até então eu sabia que a população já tomara conhecimento de muito <strong>do</strong><br />

que fazíamos, mas não imaginava que aquelas pessoas, a quem eu sempre vira como “gente<br />

distante”, pudessem ter interesse em acompanhar as atividades de um <strong>pastor</strong> evangélico.<br />

Foram beijos, abraços, juras de solidariedade, declarações de carinho, palavras de estímulo<br />

— enfim, recebi toda sorte de palavra de esperança naquela tarde.<br />

— Eu estava proibi<strong>do</strong> de mencionar o seu nome e o de Betinho lá. Era um patrulhamento<br />

terrível — disse Chico Pinheiro, recém-saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> jornalismo da Rede Record.<br />

— Foi uma tentativa de seqüestro que lhe fizeram, <strong>pastor</strong>. Afinal, seu bem maior é seu nome<br />

— disse Frei Beto, também presente naquela tarde de chuva.<br />

<strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, de algoz a mártir. No seu texto o jornal O Dia disse como viu a virada que o caso<br />

teve. Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> para me atingir e assim esvaziar a marcha <strong>do</strong> Reage Rio, o incidente da<br />

Fábrica acabara ten<strong>do</strong> efeito oposto.<br />

“Do tremendão Erasmo Carlos ao presidente da Central Única <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res<br />

(CUT), Vicentinho, quase todas as personalidades convidadas para a caminhada fizeram<br />

questão de abraçá-lo. ‘Pastor, parabéns pela sua obra. Se a declaração <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r foi<br />

impensada, não sei como ele está conseguin<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmir tranqüilo’, apoiou Erasmo. Quan<strong>do</strong><br />

entrou na Associação Comercial onde autoridades e artistas se concentravam para o ato,<br />

Vicentinho fez questão de ir direto falar com o <strong>pastor</strong>. ‘O governa<strong>do</strong>r pisou na bola. A<br />

postura e a conduta de <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong> são um atesta<strong>do</strong> de dignidade.’”<br />

À medida que caminhava pela avenida Rio Branco, ouvia as pessoas dizen<strong>do</strong> palavras de<br />

ânimo.<br />

— Num liga não, <strong>pastor</strong>. Só jogam pedra em árvore cheia de frutos — dizia alguém.<br />

— Fica firme, irmão. Isso só vai te ajudar — falava um outro. E assim por diante.


O único senão foi com uma famosa atriz da Globo. Como haviam pedi<strong>do</strong> que eu andasse mais<br />

rápi<strong>do</strong> para chegar à plataforma antes <strong>do</strong> ato final da marcha, Sirkis e Fernan<strong>do</strong> Gabeira me<br />

levaram para um canto da avenida Rio Branco e fizeram uma cordão de isolamento bem<br />

espontâneo, dan<strong>do</strong> as mãos, de mo<strong>do</strong> a abrir espaço para que passássemos. De súbito, no entanto,<br />

a multidão se moveu junta. Nós perdemos o equilíbrio e eu quase caí. Tropecei e pisei sem<br />

querer no pé da atriz global.<br />

— Ai. Puxa vida. Vê se enxerga. Fica pisan<strong>do</strong> no pé <strong>do</strong>s outros. Vê se vê onde anda, tá? —<br />

disse ela afetadíssima, em voz alta, enquanto eu me derretia em pedi<strong>do</strong>s de desculpa, não por ser<br />

“a atriz global”, mas por ser uma mulher em cujo pé meus 105 quilos haviam descansa<strong>do</strong> por<br />

cinco segun<strong>do</strong>s.<br />

“Meu Deus, como é que alguém vem para um evento desse com essa atitude tão hostil?”,<br />

pensei envergonha<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> papelão que ela fizera.<br />

O grupo da Fábrica de Esperança saiu em alguns ônibus e foi para a avenida. Quan<strong>do</strong><br />

chegaram, milhares de pessoas os reconheceram e a eles se juntaram. De repente, a maioria <strong>do</strong>s<br />

evangélicos da avenida e mais gente de to<strong>do</strong>s os tipos, inclusive o bloco <strong>do</strong>s funkeiros e até o <strong>do</strong>s<br />

alcoólatras, pediram licença e foram “sair” com a garotada da Fábrica. Foi uma festa.<br />

O SONHO DE DEUS NÃO PODE VIRAR PÓ — era o que estava escrito na grande faixa que<br />

o artista plástico cristão Vilmar Madruga levou para a avenida naquela tarde. O impacto da frase<br />

comoveu a muitos pela alusão que fazia ao pó de cocaína “acha<strong>do</strong>” na caldeira da Fábrica.<br />

O dia estava acaban<strong>do</strong> quan<strong>do</strong>, completamente molha<strong>do</strong>s, chegamos ao fim da avenida Rio<br />

Branco, onde fogos de artifício foram queima<strong>do</strong>s e um sino foi toca<strong>do</strong> pela paz no Rio. Não houve<br />

discursos, apenas esperanças e aplausos. Muitas lágrimas também. Voltamos para casa saben<strong>do</strong><br />

que o Rio continuava o mesmo. Havia, entretanto, a esperança de que alguns de nós tivéssemos<br />

muda<strong>do</strong>, e para melhor.<br />

No dia seguinte, Chico Caruso fez outra charge <strong>do</strong> Reage Rio com as mesmas três figuras:<br />

Rubem, Betinho e eu. Só que, agora, havia sobre nós um guarda-chuva com o slogan: Rega Rio.


Capítulo 62<br />

“Fala com Tua verdade ao meu coração, porque só Tu sabes falar assim. Enquanto<br />

isso, eu os deixarei fora [os adversários], sopran<strong>do</strong> no pó e levantan<strong>do</strong> terra contra<br />

os próprios olhos.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

Alda voltou da Flórida poucos dias depois <strong>do</strong> Reage Rio. Logo na chegada, ainda no<br />

aeroporto, ela percebeu que havia si<strong>do</strong> enganada e chorou.<br />

— Como é que você me deixa fora de tu<strong>do</strong> o que você tem passa<strong>do</strong>? Você não tinha o direito<br />

de decidir por mim. Mesmo que fos- se muito pra mim, eu queria ter esta<strong>do</strong> aqui — ela disse<br />

com certa mágoa.<br />

Aqueles dias tinham si<strong>do</strong> terríveis. É horrível estar nas primeiras páginas <strong>do</strong>s jornais por um<br />

motivo tão perverso quanto aquele. Ven<strong>do</strong> de manhã bem cedinho os jornais, Juliana, ainda com<br />

dez anos, escondia as primeiras páginas, queren<strong>do</strong> me poupar.<br />

— Cadê o jornal? Onde está a primeira a página? — eu perguntava.<br />

— Não precisa ler não, pai. Esse governa<strong>do</strong>r não conhece você — ela respondia.<br />

E tinha si<strong>do</strong> por tu<strong>do</strong> isso que eu ficara feliz por ter podi<strong>do</strong> poupar Alda.<br />

A Fábrica estava sen<strong>do</strong> intimada em juízo e eu, na condição de presidente da entidade;<br />

Cristina Christiano, na posição de supervisora; e Henrique Calla<strong>do</strong> e Egnal<strong>do</strong> Júnior, como<br />

diretores de área, tínhamos que depor.<br />

Naquele momento, havia uma decisão muito difícil a ser tomada. A Fábrica precisava de um<br />

advoga<strong>do</strong> e a escolha natural seria a de meu amigo e irmão, Nilo Batista, que já havia me<br />

telefona<strong>do</strong> e dito que estava às ordens. No entanto, gente de “dentro” <strong>do</strong> palácio havia dito a<br />

mim que tu<strong>do</strong> o que os assessores <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r queriam era que eu fizesse aquela escolha.<br />

— Se ele escolher o Nilo, a coisa fica <strong>do</strong> jeito que a gente quer. Então vira política e ele perde<br />

a isenção — diziam eles, segun<strong>do</strong> me contou essa pessoa que transita por lá.<br />

O problema era que eu sabia que Nilo poderia ficar magoa<strong>do</strong> se eu não desse a ele a chance<br />

de mostrar o seu compromisso de amizade para comigo e a Fábrica. Mas to<strong>do</strong>s os que estavam<br />

mais chega<strong>do</strong>s a mim na ocasião achavam que tu<strong>do</strong> o que nós não precisávamos naquele<br />

momento era transformar o confronto numa disputa de natureza política. Não que Nilo fosse<br />

levar a questão naquela direção, mas os nossos adversários certamente levariam.<br />

— Nilo, meu irmão. Vou ter que fazer outra escolha. Estou convidan<strong>do</strong> o Dr. José Carlos


Fragoso para pegar a causa, pois temo que eles só estejam esperan<strong>do</strong> você pegar pra cair matan<strong>do</strong><br />

— falei angustia<strong>do</strong>, pois não queria magoar Nilo de jeito nenhum. Senti, entretanto, que ele ficou<br />

magoa<strong>do</strong>. Mas sabia que aquele não era um mal sem cura. Afinal, o que nos unia era muito maior<br />

<strong>do</strong> que os desencontros de um momento. E foi o que aconteceu: Nilo não achou que fiz o melhor,<br />

porém me per<strong>do</strong>ou pela decisão que tomei.<br />

O depoimento aconteceu no dia 30 de novembro, na 40ª DP de Rocha Miranda, num<br />

subúrbio <strong>do</strong> Rio. O delega<strong>do</strong> se dizia evangélico, mas, pelo menos ali, não demonstrava ter nem<br />

mesmo cacoete de crente. No início nos tratou bem, depois endureceu e, por fim, tornou-se<br />

extremamente amável. A mídia cobriu amplamente o assunto.<br />

O clima estava pesa<strong>do</strong>. Havia sempre um carro para<strong>do</strong> em frente à Fábrica de Esperança com<br />

alguns homens mal-encara<strong>do</strong>s dentro, que filmavam to<strong>do</strong>s os nossos movimentos de entrada e<br />

saída. Meu carro também estava sen<strong>do</strong> segui<strong>do</strong> por um Santana marrom metálico, com quatro<br />

homens fortes, que não faziam questão de disfarçar que iam atrás de mim onde quer que eu<br />

fosse.<br />

— Que foi isso, Ivo? — perguntei assusta<strong>do</strong> por ter si<strong>do</strong> acorda<strong>do</strong> de um cochilo com uma<br />

manobra súbita que ele fizera na entrada da ponte Rio—Niterói.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, é que eu consegui dispensar os caras. Fiz que ia pra avenida Brasil e, na<br />

horinha, virei pra Niterói. Dessa vez eles dançaram. Num dá pra retornar com to<strong>do</strong>s esses carros<br />

atrás deles — disse meu motorista, feliz da vida por ter despista<strong>do</strong> os “homens”.<br />

— Da próxima vez, vê se não me acorda, Ivo. Tô <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> pouco à noite e aproveito pra<br />

cochilar aqui no carro — falei brincan<strong>do</strong>.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, os caras tão aí atrás de novo. O que a gente faz? — perguntou Ivo,<br />

decepciona<strong>do</strong>.<br />

— Nada irmão. A gente não faz nada. A gente num tá nem aí. Eu vou <strong>do</strong>rmir — falava<br />

brincan<strong>do</strong>, mas certo que aquela era a única coisa a ser feita.<br />

— Quem são esses caras? — perguntava o motorista.<br />

— Sei lá, meu irmão. Acho melhor a gente nem descobrir — respondia com convicção.<br />

Naqueles dias, tive certeza que nossos telefonemas estavam sen<strong>do</strong> “ouvi<strong>do</strong>s”. Então,<br />

contratei a firma de um cristão que trabalha com essas tecnologias de espionagem e<br />

contra-espionagem e pedi que passassem um “pente fino” em nossos aparelhos.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, os da Fábrica estão grampea<strong>do</strong>s. Os da Vinde, não. E o seu celular é fácil<br />

grampear. Os caras que estão atrás <strong>do</strong> senhor no Santana podem ouvir tu<strong>do</strong> com um aparelho<br />

muito simples. Até mesmo com outro celular. Não converse nada pessoal ou íntimo no celular<br />

porque é cilada — informou-me ele.<br />

— Tem umas cartas estranhas aqui. Abri porque vi que eram pro senhor e foram mandadas<br />

pra Fábrica. Gente que escreve pro senhor não escreve pra cá, mas pra Vinde. E essas aqui têm o<br />

timbre da PM — disse Cristina me estenden<strong>do</strong> duas cartas.<br />

Os textos das cartas eram confusos para leigos <strong>do</strong>s assuntos policiais da cidade. Mas para um<br />

entendi<strong>do</strong>, ali podiam estar algumas pistas interessantes.<br />

Eis aqui um trecho <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> da primeira carta:<br />

A outra carta seguia uma linha diferente, mas levava basicamente ao mesmo tema: teria<br />

havi<strong>do</strong> manipulação ou mesmo armação no episódio da apreensão de cocaína na Fábrica de<br />

Esperança. A diferença é que a segunda carta fora encaminhada ao governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Eis o


texto:<br />

— Se o senhor quiser fazer um estrago, já tenho <strong>do</strong>is jornais que dão essa matéria com<br />

chamada de primeira página — disse-me Jorge Antônio Barros. — Mas o senhor tem que avaliar<br />

se quer sair pra briga. Se for esse o caso, tu<strong>do</strong> bem. Mas o senhor não vai ter mais sossego. Os<br />

caras vão partir pra dentro e as armas deles são pesadas — concluiu Jorge com a experiência de<br />

quem conhecia aquele jogo muito bem.<br />

— Se eu sair pro enfrentamento, vou estar sen<strong>do</strong> irresponsável com a Fábrica e com aqueles<br />

que passam o dia e a noite lá. Eu quero prosseguir investigan<strong>do</strong>, mas quero fazer isso de mo<strong>do</strong><br />

discreto — falei para alívio de to<strong>do</strong>s eles.<br />

Entreguei as duas cartas ao Ministério Público, mas decidi agir também por trás <strong>do</strong>s panos.<br />

Saben<strong>do</strong> que o comandante geral da Polícia Militar <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro era um irmão na<br />

fé, resolvi procurá-lo.<br />

Eu havia si<strong>do</strong> formalmente apresenta<strong>do</strong> ao comandante Dorazil alguns meses antes, numa<br />

conversa em seu gabinete. Agora, no entanto, dadas as circunstâncias, achei melhor não expor o<br />

“irmão”, in<strong>do</strong> até a sede da PM. Por isto, pedi a um amigo comum que marcasse o encontro à<br />

noite, nos fun<strong>do</strong>s da Igreja Evangélica Congregacional, no centro velho <strong>do</strong> Rio.<br />

Quan<strong>do</strong> cheguei, Dorazil já me aguardava conversan<strong>do</strong> com o <strong>pastor</strong> Paulo Leite. Paulo pediu<br />

licença e saiu. Então eu fui logo ao assunto, mostran<strong>do</strong> as cartas ao militar. Dorazil leu ambas as<br />

cartas com muito cuida<strong>do</strong>, em silêncio. Então, releu-as. Pensou, suspirou fun<strong>do</strong> e mostrou o<br />

constrangimento que aquela situação estava lhe causan<strong>do</strong>. Ele me conhecia bem e sabia que as<br />

acusações eram tresloucadas. Mas na sua função militar, ele tinha que estar lá, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>, e <strong>do</strong><br />

mo<strong>do</strong> mais discreto possível.<br />

Dorazil agiu de mo<strong>do</strong> totalmente ético. Não disse uma única palavra sobre o episódio, mas<br />

“suspirou” sua <strong>do</strong>r e desagra<strong>do</strong>. Entendi e agradeci.<br />

— Meu irmão, você acha que o que aconteceu pode ter si<strong>do</strong> como as cartas sugerem? —<br />

indaguei.<br />

— Tu<strong>do</strong> pode acontecer. Eu não posso botar a minha mão no fogo por ninguém. O Marcos<br />

Paes, entretanto, tem uma história limpa na PM. Nunca ouvi nada que o desabonasse —<br />

respondeu. — Posso ficar com as cartas? — perguntou.<br />

— São suas, comandante — respondi.<br />

Passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is dias, recebi uma terceira carta; uma semana depois, me chegou a quarta.<br />

Um trecho da terceira carta segue aqui transcrito:<br />

Já a quarta carta apontava apenas um certo cabo como sen<strong>do</strong> alguém que havia trama<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>.<br />

Tirei cópias das duas últimas cartas e enviei-as ao comandante Dorazil. Foi tu<strong>do</strong> o que fiz a<br />

respeito.<br />

— Reveren<strong>do</strong>, tem um homem na linha dizen<strong>do</strong> que sabe algo sobre a cocaína na Fábrica<br />

que vai interessar ao senhor. O senhor atende? — perguntou Rosângela, que estava me<br />

secretarian<strong>do</strong> no meio daquela guerra. Obviamente eu corri para atender o tal homem.<br />

— Pastor, meu nome é João Carlos. Eu sou cristão evangélico e acho que Deus botou algo na<br />

minha mão que vai dar poder pro senhor até derrubar esse governo que tá aí, tentan<strong>do</strong> destruir o<br />

senhor — disse o misterioso João.<br />

— E? Que informação é essa?


— É uma fita de vídeo, <strong>pastor</strong>. Uma fita que conta a história toda <strong>do</strong> que fizeram pro senhor<br />

— falou com voz nervosa, com o ar sen<strong>do</strong> entrecorta<strong>do</strong>, como se ele estivesse cansa<strong>do</strong> ou sem<br />

fôlego.<br />

— E que fita é essa? — insisti, inician<strong>do</strong> a gravação da conversa no pequeno aparelho que um<br />

de meus assessores havia conecta<strong>do</strong> ao meu telefone direto.<br />

— Pastor, é coisa de Deus. O senhor sabe, a PM tem um serviço de gravação interna pra<br />

eventos e outras coisas. Meu amigo Renato trabalha nesse serviço. Olha, umas três semanas<br />

atrás, antes da coisa na Fábrica acontecer, ele foi gravar uma fala <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r, na casa dele,<br />

pros policiais. Era um negócio interno. O Renato tava sozinho pra gravar e me levou com ele.<br />

Quan<strong>do</strong> acabou a gravação, a gente começou a desligar o equipamento. Desligamos tu<strong>do</strong> e fomos<br />

embora.<br />

— Mas e daí, João? O que isso tem a ver comigo e com o que me aconteceu?<br />

— Calma, <strong>pastor</strong>. Calma. O senhor vai gostar. Foi Deus que me man<strong>do</strong>u lá. Bom, mais de<br />

uma semana depois, a gente foi editar as fitas. Foi quan<strong>do</strong> eu vi que, enquanto a gente<br />

desmontava o equipamento, uma câmara continuava gravan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, porque a gente tinha<br />

esqueci<strong>do</strong> de desligar. Gravou tudinho <strong>pastor</strong> — falou com um tom de mistério.<br />

— Tudinho o quê, João? — falei um tanto impaciente.<br />

— O papo <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r com os outros caras, dizen<strong>do</strong> que o senhor tinha que levar uma<br />

dura, que o senhor tinha que ser ferra<strong>do</strong>. Olha, era tu<strong>do</strong> o que eu tinha pra dizer. Agora que o<br />

senhor já sabe, tome as providências — disse o tal João, como se tivesse ajuda<strong>do</strong> muito.<br />

— João, assim você não me aju<strong>do</strong>u. Você só me angustiou. Afinal, você apenas confirmou o<br />

que eu já suspeitava, mas isso não me ajuda em nada. Você só vai me ajudar se me der essa fita.<br />

— Olha, é muito perigoso. O Renato num queria nem que eu falasse com o senhor. É tu<strong>do</strong><br />

que eu posso fazer. Se eles descobrirem que a gente tem isso, a gente tá ferra<strong>do</strong>.<br />

— Olha, eu posso proteger vocês tanto aqui no Brasil quanto no exterior. Isso não é<br />

problema. Tenho muitos amigos no mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> e aqui também. Sei que posso proteger vocês<br />

<strong>do</strong>is. João, eu tenho que te ver.<br />

— Eu vou conversar com o Renato e ligo pro senhor amanhã — disse ele, desligan<strong>do</strong>.<br />

Chamei o pessoal que estava junto comigo naquela situação e mostrei a gravação. Eles riram à<br />

beça de meu jeito “súplice”.<br />

— Pô, <strong>pastor</strong>, o senhor é bom mesmo pra implorar. Tá dan<strong>do</strong> uma pena danada <strong>do</strong> senhor —<br />

disse Jorge Antônio Barros, já cain<strong>do</strong> na risada.<br />

— Sabem qual é meu me<strong>do</strong>? Eu não acredito nessa fita. O governa<strong>do</strong>r jamais seria capaz de<br />

uma baixeza dessas. Ele nunca se exporia assim e também não acredito que ele seja esse tipo de<br />

homem. E mesmo que fosse, não daria uma bandeira dessas. Sabem o que eu acho? Acho que<br />

estamos sen<strong>do</strong> extorqui<strong>do</strong>s ou grava<strong>do</strong>s por gente que quer ver se arranca de nós declarações<br />

contra o governa<strong>do</strong>r. E se eu entrar nessa, amanhã viro o vilão dessa história. Vou dar corda pra<br />

ver até onde vai, mas vou pisan<strong>do</strong> em ovos — falei a to<strong>do</strong>s.<br />

No dia seguinte, João ligou de novo. Durante uma semana ele agiu <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>. Fez de<br />

tu<strong>do</strong> para criar um clima de ansiedade insuportável, de perigo iminente. E, conforme havíamos<br />

decidi<strong>do</strong>, entrei no clima, gemen<strong>do</strong> de angústia ao telefone, mostran<strong>do</strong> o meu espírito de<br />

seqüestra<strong>do</strong> e de parente da vítima, ao mesmo tempo, e imploran<strong>do</strong> para saber o preço <strong>do</strong> resgate.<br />

Mas João endureceu ao máximo. Protelou como pôde. Até que na quinta-feira, dia 14 de<br />

dezembro, dei um ultimato a ele.<br />

— João, eu não tenho mais tempo a perder. Ou você me encontra amanhã ou não ligue nunca<br />

mais — disse de mo<strong>do</strong> absolutamente resoluto.<br />

— Amanhã a gente se vê. Mas onde? Tem que ser um lugar seguro pra nós <strong>do</strong>is — falou


João.<br />

— Sabe o restaurante que tem no segun<strong>do</strong> andar <strong>do</strong> Santos Dumont, o 14 Bis? Lá é bom.<br />

Tem muita gente em volta, mas é tranqüilo. Pode ser lá — sugeri.<br />

— Tá bom. Mas o senhor tem que ir sozinho. E tem que ser às oito da manhã — disse João.<br />

— O senhor vai só, num vai? — perguntou para se certificar.<br />

— Não, é claro que não. Eu sempre an<strong>do</strong> com o meu motorista. A cidade é muito grande e<br />

ele me ajuda a tornar as coisas mais rápidas. Ele vai comigo, mas vai ficar no estacionamento, me<br />

esperan<strong>do</strong>.<br />

— Não, claro. Tá bom. Até amanhã — disse João.<br />

E começou a discussão para ver o que faríamos. Eu queria ir só, levan<strong>do</strong> apenas o coronel<br />

Santos, militar aposenta<strong>do</strong>, evangélico e meu amigo, para tomar o lugar <strong>do</strong> motorista. Antônio<br />

Carlos, <strong>pastor</strong> e uma espécie de filho na fé para mim, implorava que eu não fosse.<br />

— Pode ser perigoso — dizia ele, queren<strong>do</strong> me proteger.<br />

Jorge Antônio Barros, a essa altura envolvidíssimo na coisa toda, dizia que devíamos montar<br />

uma operação de <strong>do</strong>cumentação jornalística.<br />

— A gente vai com grava<strong>do</strong>r, câmera, um bom fotógrafo e <strong>do</strong>cumenta tu<strong>do</strong> de longe —<br />

sugeriu.<br />

— O senhor vai me desculpar, <strong>pastor</strong>, mas acho que a gente precisa chegar arrepian<strong>do</strong>. Isso<br />

aí é operação de espionagem. Esse cara num é evangélico queren<strong>do</strong> ajudar o senhor coisa<br />

nenhuma. É P2 (polícia secreta da PM) ou bandi<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> extorquir o senhor. Então, a gente<br />

tem que jogar pesa<strong>do</strong>. A gente prende os caras. Não se preocupe que eu cui<strong>do</strong> dessa parte —<br />

disse o coronel em meio a intensa gesticulação e uma enorme disposição para cumprir o que<br />

estava sugerin<strong>do</strong>.<br />

Já Ernan Caldeira de Andrade e o <strong>pastor</strong> Arioval<strong>do</strong> Ramos achavam que devíamos ficar no<br />

meio-termo. Um pouco de <strong>do</strong>cumentação jornalística e um pouco de prontidão policial, se fosse o<br />

caso de agirem numa emergência.<br />

De minha parte, não estava convenci<strong>do</strong> de que deveríamos trair João e seu amigo Renato.<br />

Minha consciência não deixava. Afinal, lá no fun<strong>do</strong>, queria dar algum crédito aos <strong>do</strong>is homens da<br />

fita, ainda que minha mente se negasse a crer que eles pudessem estar falan<strong>do</strong> a verdade.<br />

Depois de muito pensar, decidimos o que faríamos. Eu levaria um aparelho de escuta dentro<br />

<strong>do</strong> bolso de meu paletó, enquanto o coronel Santos e Ernan ficariam rondan<strong>do</strong> o lugar, sen<strong>do</strong> que<br />

Ernan chegaria mais ce<strong>do</strong> e ficaria toman<strong>do</strong> um café numa mesa <strong>do</strong> restaurante. Jorge Antônio e<br />

Arioval<strong>do</strong> Ramos pousariam de executivos da ponte aérea, mas sempre por perto.<br />

O primeiro problema aconteceu às sete horas. Ivo, meu motorista, já vinha dan<strong>do</strong> claros<br />

sinais de exaustão nervosa, mas naquele dia seu limite chegou ao fim. Com o pescoço<br />

endurecen<strong>do</strong> e a perna rígida de tensão, dez minutos antes das sete da manhã, em frente à sede<br />

da Vinde, em Niterói, Ivo pediu para ir tomar um cafezinho na esquina e só apareceu três meses<br />

depois. Assim, Ernan tomou o lugar de Ivo e foi de meu chofer particular. Os demais foram em<br />

carros separa<strong>do</strong>s, em intervalos de cinco minutos.<br />

Fui direto para o restaurante 14 Bis e descobri que estava fecha<strong>do</strong>. Então fui para o Café<br />

Palheta, aberto ao la<strong>do</strong>. Sentei e pedi um cafezinho: oito horas e nada; oito e meia e nada ainda.<br />

Pouco antes das nove fui até o balcão <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> andar e olhei para o hall da ponte aérea. Vi Jorge<br />

Antônio conversan<strong>do</strong> com Domingos Meireles, repórter da Rede Globo, e fiquei com me<strong>do</strong> de ser<br />

reconheci<strong>do</strong>.<br />

Voltei para o Café. Umas dez pessoas passaram e me reconheceram. Pararam e falaram<br />

comigo.<br />

“Com essa gente toda me reconhecen<strong>do</strong>, esse cara não vai me abordar nunca”, pensei


preocupa<strong>do</strong> e já achan<strong>do</strong> que nosso “time” tinha si<strong>do</strong> descoberto por João e Renato. Olhei outra<br />

vez para o relógio: nove horas e nada. “Se não chegar em cinco minutos, vou embora”, pensei<br />

inquieto e impaciente.<br />

— Bom dia. O senhor não pensou que fosse eu, pensou? — disse um rapaz branco, tamanho<br />

médio, cabelos lisos, castanho-escuros, um pouquinho acima <strong>do</strong> peso, vestin<strong>do</strong> jeans e camisa<br />

branca e aparentan<strong>do</strong> ter uns 35 anos.<br />

— Não. Nunca pensei que fosse você — disse apenas para fazê-lo pensar que eu realmente o<br />

havia reconheci<strong>do</strong>.<br />

— Desculpa a demora. Mas é que o Renato é desconfia<strong>do</strong> e queria se certificar de que tava<br />

tu<strong>do</strong> limpo — falou nervoso.<br />

Nesse momento, percebi que a pele de “João” estava completamente empolada, tão forte era<br />

o arrepio que percorria seu corpo. Então vi uma mancha nervosa, vermelha, brotar entre o<br />

pescoço e o queixo <strong>do</strong> rapaz. Deixei-o falar. Dois minutos depois, eu já tinha um perfil básico da<br />

peregrinação lingüística de João. Seu “s” era <strong>do</strong> Brasil Central, quase goiano. O “r” soava um<br />

pouco sulista. E, no geral, o sotaque era sem dúvida carioca.<br />

— Onde você morou no Brasil Central? — perguntei sem dar margem a nenhuma dúvida.<br />

— Em Campo Grande, lembra? Foi lá que eu vi o senhor pregar pela primeira vez.<br />

— Certo. Você tá falan<strong>do</strong> da primeira vez que eu fui pregar lá, há uns 12 anos?<br />

— É, naquele tempo eu morava lá. Eu fui no ginásio de esportes ouvir o senhor.<br />

— Mas você morou no sul também, não foi?<br />

— Como é que o senhor sabe?<br />

— É o seu “r”. Tem um quê de sulista nele.<br />

— Morei em Santa Catarina. Depois voltei pro Rio. Eu sou carioca.<br />

— Você estava na Fábrica no dia em que eu dei a primeira coletiva à imprensa lá, não estava?<br />

Cê tava encosta<strong>do</strong> na coluna, num tava? — perguntei outra vez de chofre, sem dar margem a<br />

outra resposta a não ser a confirmação.<br />

— É, eu tava sim. Também estava lá no dia da manifestação na frente da Fábrica. Até gravei<br />

em fita. Mas hoje eu tô aqui pra ajudar o senhor — disse.<br />

— Mas e aí, João? Como é que a gente vai fazer? — perguntei.<br />

— Olha, o Renato não quer proteção; o que ele quer é dinheiro. Ele não é crente como eu,<br />

por isso não tem interesse de ajudar de graça. Eu, sim. Aju<strong>do</strong> o senhor de graça — explicou com<br />

ar “sacer<strong>do</strong>tal”.<br />

Nesse momento vi uma cena hilária. O coronel Santos veio até onde João e eu estávamos. Ele<br />

carregava uma linda menina loira no colo e parou bem na minha frente, mostran<strong>do</strong> os aviões lá<br />

fora, na pista.<br />

— Olha o viãozinho. Tá ven<strong>do</strong>, neném? — dizia o coronel num fantástico acesso de<br />

babysitter militar. Fiz de tu<strong>do</strong> para não rir.<br />

— Você num quer chamar seu amigo pra vir tomar um cafezinho com a gente? — perguntei,<br />

jogan<strong>do</strong> um verde, e apontei para um rapaz moreninho, que andava agita<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para o<br />

outro <strong>do</strong> pátio em frente ao local em que estávamos.<br />

— Não. Deixe ele lá. Se ele souber que o senhor sacou ele, vai ficar chatea<strong>do</strong>. Ele achou que<br />

o senhor num ia perceber.<br />

— Puxa, mas dan<strong>do</strong> a bandeira que ele deu, não tinha como não perceber — falei,<br />

começan<strong>do</strong> a me divertir. — Mas, João, vamos lá. O que eu tenho de fazer pra ter a fita? —<br />

reconduzi o assunto à “extorsão”.<br />

— O Renato quer 210 mil reais. Ele diz que é muito arrisca<strong>do</strong> e só vale se for por muito<br />

dinheiro. O senhor sabe, esses caras podem matar a gente.


— Mas, João, eu sou apenas um <strong>pastor</strong>. Não tenho esse dinheiro to<strong>do</strong>. E se tivesse, não<br />

poderia entregá-lo num negócio desses. Dinheiro de <strong>pastor</strong> é para fazer a obra de Deus, não pra<br />

pagar por informação — disse em tom manso, desejan<strong>do</strong> encontrar um caminho que me<br />

permitisse penetrar nas tais sensibilidades cristãs que João dizia possuir.<br />

— Eu enten<strong>do</strong>, <strong>pastor</strong>. Mas com o Renato vai ter que ser grana. Quanto é que os seus amigos<br />

<strong>do</strong> Viva Rio estariam dispostos a pagar pela informação? Tá bom que 210 mil é muito, mas faça<br />

seu preço — falou João com voz firme, inflexível.<br />

— Eu jamais levaria um assunto desses para o Viva Rio. Tenho vergonha de falar o que está<br />

acontecen<strong>do</strong> comigo. Portanto, ou você ajuda ou não ajuda — falei para ver até onde ele ia.<br />

— O que a gente pode fazer é baixar bem o preço. Vê o que dá pra fazer, <strong>pastor</strong>. É muito risco<br />

pra gente — propôs João, jogan<strong>do</strong> sua última cartada, enquanto olhava firmemente para a mesa,<br />

como que tentan<strong>do</strong> evitar os meus olhos, fixos nele.<br />

— Olha, eu vou estudar a situação. Mas, de qualquer forma, a coisa vai ter que funcionar<br />

assim: você vai, fala com o Renato, copia a fita e me telefona. Então, eu ponho um vídeo dentro <strong>do</strong><br />

carro e vejo a fita com você. Se o material justificar, eu vou ver o que consigo de “compensação”<br />

para você e seu amigo — evitei usar a palavra “dinheiro” ou seus equivalentes explícitos, tamanho<br />

era meu me<strong>do</strong> de que a conversa estivesse sen<strong>do</strong> gravada a fim de “provar o contrário”; ou seja:<br />

que eu era aquele que estava tentan<strong>do</strong> “subornar” um policial.<br />

Durante aquele meio-tempo muitas pessoas passaram pela frente <strong>do</strong> Café e me saudaram.<br />

Eu percebia que a cada saudação João se inquietava profundamente. Era como se na sua testa<br />

estivesse escrito o que ele estava fazen<strong>do</strong> ali.<br />

— O senhor vai sair comigo? — perguntou João depois que paguei a conta de nossa água<br />

mineral, suco de laranja e cafezinho.<br />

— Não. Se não viemos juntos, por que vamos sair juntos? Você vai sozinho e eu vou depois —<br />

disse com me<strong>do</strong> de que ele estivesse também fotografan<strong>do</strong> ou filman<strong>do</strong> a distância os nossos<br />

movimentos. — Ah! João, uma coisa. Vou deixar esse Mobi com você, e por meio dele vou mandar<br />

mensagens e você responde. Você tem até <strong>do</strong>mingo à noite para resolver tu<strong>do</strong>. Caso contrário, não<br />

precisa gastar mais tempo comigo, pois não tenho tempo para investir em ansiedade.<br />

Naquele mesmo dia João me telefonou para dizer que Renato tinha topa<strong>do</strong> fazer a cópia.<br />

Queria saber onde nos encontraríamos para fazer a troca.<br />

— João, eu falei que antes eu vejo a fita e depois faremos a troca. Como é que eu vou saber se<br />

não é uma gravação <strong>do</strong> Pato Donald e seus sobrinhos?<br />

— Bem, é que o Renato quer simplificar a coisa. Dá pra ser? — perguntou.<br />

— Não. Não dá. Ou é como falei ou não tem mais conversa.<br />

— Tá bom. Vai dar sim. E o senhor vem de novo? — perguntou.<br />

— Não. Dessa vez eu não vou. Quem vai é o “missionário” Ernan. Ele trabalha comigo há<br />

anos e é pessoa de minha inteira confiança. Você viu como eu sou reconheci<strong>do</strong> onde vou. Já<br />

pensou se me reconhecem no meio de uma operação como essa? Não vou, não. Mas não haverá<br />

problema, haverá?<br />

— Olha, eu ligo amanhã ce<strong>do</strong> pra gente definir o local.<br />

— João, só mais uma coisa. Se você não ligar até segunda-feira, às <strong>do</strong>ze horas, não ligue<br />

nunca mais, pois não atenderei. João, eu não sou emocionalmente seqüestrável. Quan<strong>do</strong> chega a<br />

um determina<strong>do</strong> ponto, eu viro a mesa e me torno inconseqüente, mas não fico escravo de<br />

ninguém — falei com uma ponta de raiva.<br />

— Não. Fica tranqüilo, <strong>pastor</strong>. A fita já tá comigo. Vai ter jogo sim — disse João.<br />

Esperamos o fim de semana to<strong>do</strong>. No <strong>do</strong>mingo passei uma mensagem para o Mobi de João<br />

advertin<strong>do</strong> sobre o nosso trato.


— Rosângela, mande cancelar o Mobi. Pague a multa, mas cancele. Diga que se extraviou —<br />

disse para minha secretária quan<strong>do</strong> passaram cinco minutos <strong>do</strong> meio-dia de segunda-feira.<br />

João nunca mais ligou. Tu<strong>do</strong> pode ter aconteci<strong>do</strong>. O mais provável, no entanto, é que eles<br />

tenham descoberto que o <strong>pastor</strong> encurrala<strong>do</strong> não estava tão intimida<strong>do</strong> quanto imaginavam e,<br />

então, tenham percebi<strong>do</strong> que não valeria a pena tentar me enganar. Já as outras hipóteses prefiro<br />

esquecer, pois ao listá-las, estaria fazen<strong>do</strong> juízo de valores sobre pessoas públicas, e não é meu<br />

feitio proceder assim.<br />

“Se Deus é por nós, quem será contra nós?”, era o texto de São Paulo que não me deixava o<br />

coração. Fosse como fosse, o Senhor esteve ao nosso la<strong>do</strong> e nos ensinou que não basta fazer o<br />

bem, é preciso saber também a quem aquele bem está incomodan<strong>do</strong>. Nesse caso, não se deve<br />

jamais deixar de fazê-lo, mas fazê-lo com extremo cuida<strong>do</strong>. Caso contrário, a prática <strong>do</strong> bem pode<br />

fazer com que aqueles que o “praticam” a partir de motivações diferentes possam ver você como<br />

um inimigo da hegemonia social que eles pretendem seja somente deles.<br />

A pior luta que existe não é por dinheiro, mas pelo direito de <strong>do</strong>minar o coração <strong>do</strong> povo!


Capítulo 63<br />

“O que eu desejava não era tanto estar mais junto de Ti, mas mais firme em Ti.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

As acusações <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r diminuíram, mas as ações contra nós aumentaram. A Fábrica<br />

entrou num túnel, onde havia investigações de to<strong>do</strong>s os níveis. Conforme esperávamos, tu<strong>do</strong><br />

aquilo só nos passou um atesta<strong>do</strong> de i<strong>do</strong>neidade. Viraram-nos de cabeça para baixo e nos<br />

sacudiram. Só caíram moedinhas. A perplexidade deles foi constatar como com tão pouco<br />

dinheiro a Fábrica conseguia fazer tanto. Para que se tenha uma idéia, basta dizer que um <strong>do</strong>s<br />

quatro fiscais designa<strong>do</strong>s para a investigação de nossa obra social saiu choran<strong>do</strong> de sua primeira<br />

visita de apuração.<br />

— Com tanto safa<strong>do</strong> solto na cidade, o que eu estou fazen<strong>do</strong> aqui, meu Deus? — foi o que<br />

ele disse a Cristina depois de andar pela Fábrica ven<strong>do</strong> as atividades que lá são desenvolvidas.<br />

O prefeito César Maia continuou agressivo até o fim de 1995. E nas vésperas <strong>do</strong> Natal disse<br />

algo que me transtornou.<br />

“Os <strong>pastor</strong>es e padres têm que fazer como os sacer<strong>do</strong>tes italianos, que andam com<br />

seguranças arma<strong>do</strong>s, mas entregam os mafiosos. Aqui nas favelas, os <strong>pastor</strong>es e padres são<br />

coniventes”, foi a síntese <strong>do</strong> que ele disse em to<strong>do</strong>s os jornais da cidade.<br />

Obviamente a mídia veio em cima de mim e sobre o arcebispo <strong>do</strong> Rio, a fim de saber o que<br />

pensávamos das declarações <strong>do</strong> prefeito. Dom Eugênio, bem dentro <strong>do</strong> seu estilo, disse que<br />

esperaria “as repercussões <strong>do</strong> caso na mídia” para decidir se falaria algo ou não. Eu, de minha<br />

parte, fui logo falan<strong>do</strong>.<br />

— O prefeito tinha mais era que pensar em asfaltar e levar água para as favelas em vez de<br />

ficar queren<strong>do</strong> ensinar padre a rezar a missa e <strong>pastor</strong> a ganhar perdi<strong>do</strong>s. Nós, <strong>pastor</strong>es<br />

evangélicos, jamais seremos informantes da polícia, tanto quanto jamais seremos cúmplices <strong>do</strong><br />

tráfico. O prefeito está se exceden<strong>do</strong>.<br />

César não gostou!<br />

— Ele vestiu a carapuça. Quem é que falou nele? É a consciência pesada — disse o prefeito.<br />

— É que o César esqueceu que eu sou <strong>pastor</strong>. Ele vive tentan<strong>do</strong> fazer com que eu seja visto<br />

como candidato a um cargo político, o que eu não sou. Quan<strong>do</strong> fala de <strong>pastor</strong>es, ele está falan<strong>do</strong><br />

da única coisa que eu sou, publicamente — contestei.<br />

Pensei que as coisas iriam parar ali. Mas, não. O prefeito me devolveu com um petar<strong>do</strong>.<br />

— Quem tem que se explicar é ele. Ele é que é o <strong>pastor</strong> <strong>do</strong> pó — falou com to<strong>do</strong> o veneno que<br />

tinha.<br />

— O César Maia precisa de ajuda médica, ou melhor: psicoterapêutica. Ele vive, hoje, num<br />

esta<strong>do</strong> de profunda esquizofrenia. Quan<strong>do</strong> ele acorda César, enche o peito e sai para construir<br />

grandes obras, faz rampas, estradas e monumentos. Mas quan<strong>do</strong> o coita<strong>do</strong> acorda Maia, ele evoca


a memória genocida <strong>do</strong>s maias e cai em depressão. Pensa que o Rio vai acabar e começa a brigar<br />

com fantasmas. O caso dele é médico — falei com extrema picardia, já começan<strong>do</strong> a me<br />

acostumar com aquele jogo de imagens, caricaturas e factóides.<br />

— Agora ele excedeu. Deixou de falar como <strong>pastor</strong> e falou como político — disse César Maia,<br />

esquecen<strong>do</strong>-se que ele mesmo havia dito, semanas antes, que não me via como <strong>pastor</strong>, mas como<br />

político.<br />

— Depois de amanhã é Natal. Daqui pra frente, não falo mais nada sobre o prefeito. Vou me<br />

recolher à oração por ele. Ele pode dizer o que quiser. Eu sei quem sou, e Deus também o sabe.<br />

Que Deus abençoe o prefeito e sua família — falei depois de ter me arrependi<strong>do</strong> de ter trazi<strong>do</strong> o<br />

debate para o campo pessoal, na jocosa resposta que dera sobre a suposta esquizofrenia entre<br />

César e Maia.*<br />

*Somente 11 meses após aquele tiroteio foi que o prefeito e eu pudemos nos encontrar, longe da mídia e <strong>do</strong> processo eleitoral, e<br />

descobri que nem ele era aquele que eu havia dito que ele era, que nem eu sou a pessoa que ele pensou que eu fosse. Ao contrário,<br />

depois de uma visita à Fábrica de Esperança em companhia <strong>do</strong> deputa<strong>do</strong> federal Arolde de Oliveira, o prefeito pôde ver de perto o<br />

nosso trabalho. De minha parte, pude vê-lo não como um cria<strong>do</strong>r de factóides, mas como um ser humano capaz de voltar atrás e<br />

reparar equívocos, o que o fez crescer imensamente ante os meus olhos, uma vez que só consigo crer em homens capazes de<br />

penitência. Os inflexíveis são perigosos, e os rancorosos são os piores e mais letais de to<strong>do</strong>s. Mas graças a Deus, César Maia não<br />

parece ser assim. Dessa forma, em novembro de 1996, se reconciliou comigo e com a Fábrica de Esperança, e terminamos como<br />

parceiros em vários projetos sociais.<br />

Naquele mesmo dia 22 de dezembro de 1995, o Jornal Nacional, da Rede Globo, anunciou a<br />

existência de uma fita de vídeo feita por um ex-sócio <strong>pastor</strong>al de Edir Mace<strong>do</strong>, que vinha a<br />

público para revelar os estratagemas <strong>do</strong> bispo para levantar fun<strong>do</strong>s para sua igreja. O material era<br />

chocante. As caretas, posturas e frases traziam para um plano horrível a questão de como o<br />

dinheiro é trata<strong>do</strong> pelos líderes da Universal.<br />

— Ó! Ó! Ou o cara dá ou desce — foi a frase <strong>do</strong> bispo Mace<strong>do</strong> que mais ecoou de tu<strong>do</strong> aquilo.<br />

O problema é que a tal frase trazia à memória um monte de ane<strong>do</strong>tas de natureza erótica, o que<br />

aumentava imensamente o impacto da declaração.<br />

A mídia voou em cima de mim. Fugi de quase to<strong>do</strong>s eles. As poucas declarações que me<br />

permiti fazer foram extremamente “distantes e frias”.<br />

— Tô cansa<strong>do</strong> disso tu<strong>do</strong> — falei aos repórteres.<br />

Peguei a esposa e os filhos e fui a Manaus passar o Natal com meus pais, em cuja companhia<br />

não celebrava aquela data há mais de dez anos.<br />

— Pastor <strong>Caio</strong>? Aqui é a Guta, <strong>do</strong> Jornal Nacional. O senhor já chegou a Manaus? —<br />

indagava uma jovem da produção <strong>do</strong> Fantástico tão logo liguei o telefone celular, com o avião<br />

ainda taxian<strong>do</strong> na pista. — Olha, <strong>pastor</strong>, tem uma equipe <strong>do</strong> Fantástico esperan<strong>do</strong> o senhor no<br />

hall <strong>do</strong> aeroporto. Dá pro senhor dar só uma entrevistinha? — perguntou-me ela.<br />

Foi a última entrevista que dei em 1995. Fui lacônico. A partir dessa data, recusei cada uma<br />

das tentativas que a mídia fez de me trazer para dentro daquele e de vários outros temas.<br />

No dia 26 de dezembro fomos passar cinco dias às margens <strong>do</strong> rio Urubu, a cerca de<br />

duzentos quilômetros de Manaus. Os cheiros de minha infância voltaram aos meus senti<strong>do</strong>s.<br />

Andei sozinho pela beirada <strong>do</strong> rio e nadei nas suas águas negras. Lavei-me e batizei-me de todas<br />

aquelas sujidades que haviam poluí<strong>do</strong> minha alma no ano que estava findan<strong>do</strong>.<br />

Naqueles dias fiz uma viagem histórico-mística às raízes daquela região. Em conversa com<br />

minha irmã Suely, fiquei saben<strong>do</strong> que algumas tribos que tinham vivi<strong>do</strong> às margens daquele rio,<br />

exatamente onde estávamos, haviam si<strong>do</strong> chacinadas pelos coloniza<strong>do</strong>res.<br />

Suely estarreceu-me, tamanho era seu conhecimento sobre a história indígena <strong>do</strong> lugar. Sua<br />

memória viajava por caminhos lúgubres, nostálgicos, cheios de <strong>do</strong>res. Ela falava daqueles índios<br />

extintos como se pertencesse à linhagem direta de cada um deles.


— É, a gente briga, se enfrenta e, depois de um século, se torna apenas um amontoa<strong>do</strong> de<br />

lembranças na mente de algum curioso. Quan<strong>do</strong> se dá a sorte de encontrar alguém como Suely,<br />

que se torna cúmplice da história que lê, ótimo. Caso contrário, vira-se fantasma no inconsciente<br />

coletivo e essa é toda a contribuição que cada um dá à história <strong>do</strong>s humanos. Eu não quero isso<br />

pra mim. Meus “pactos” espirituais sempre foram os de que eu queria ser uma contribuição<br />

significativa à história da fé. É como homem de fé que eu quero ser lembra<strong>do</strong> — disse a meu pai<br />

numa das muitas conversas que tivemos em volta de uma grande mesa de madeira rústica,<br />

enquanto comíamos tucumã, pupunha e farinha de mandioca.<br />

Minha briga no Rio não havia ajuda<strong>do</strong> a ninguém. Foi um montão de energia jogada fora.<br />

Sofri com aquela percepção. Orei muito. Sentei nas pedras lisas e rosas que existem às margens<br />

<strong>do</strong> Urubu e pedi a Deus que não permitisse que os meus sonhos de servi-Lo como homem de<br />

Deus não acabassem me levan<strong>do</strong> a um caminho tão distante de meus ideais e princípios.<br />

Amargurara-me profundamente com algumas pessoas e não queria reter aqueles sentimentos<br />

dentro de minha alma.<br />

— Pastor, o governa<strong>do</strong>r desceu a lenha no senhor no “Informe JB”. O senhor quer que eu<br />

leia pro senhor? — perguntou Jorge Antônio Barros, chaman<strong>do</strong>-me no celular.<br />

— Não, não quero não, Jorginho. Essa é uma página virada. Daqui pra frente, o Marcello<br />

Alencar não vai nunca mais ser objeto de meu revide. Eu agora só falo sobre ele com Deus, que é<br />

o juiz de minha vida e meu advoga<strong>do</strong> de defesa — respondi, literalmente viran<strong>do</strong> a última página<br />

de 1995.


Capítulo 64<br />

“Os prazeres da vida humana não só tiram os homens de desgraças que lhes<br />

sucedem contra a vontade, mas também de moléstias premeditadas e desejadas.”<br />

Santo Agostinho, <strong>Confissões</strong><br />

O ano de 1996 foi o de juntar os estilhaços de 1995. E foi isso que comecei a fazer tão logo<br />

voltei de Israel e da Turquia, no final de janeiro, onde estive conduzin<strong>do</strong> mais um grupo de<br />

cristãos, dessa vez ten<strong>do</strong> ocupa<strong>do</strong> um Jumbo inteiro para a viagem. Éramos quase quatrocentas<br />

pessoas.<br />

Os alvos para o ano que estava inician<strong>do</strong> eram claros para mim. Desejava estabelecer uma<br />

base da Vinde na Flórida, onde estaria a cada 12 dias em companhia de Alda e <strong>do</strong>s filhos mais<br />

novos, Lukas e Juliana, que fixariam residência lá. Iríamos duplicar o número de projetos na<br />

Fábrica de Esperança: de 13 para 26. Precisávamos também nos estruturar para colocar no ar o<br />

canal Vinde TV, com programação cristã 24 horas por dia. Além disso, desejávamos fortalecer a<br />

Revista Vinde e aumentar significativamente seu número de assinantes. Seguin<strong>do</strong> o trend<br />

mundial, percebemos que precisávamos cortar custos na Missão Vinde e enxugá-la, a fim de que<br />

nos tornássemos mais ágeis e úteis. E, para finalizar, queria encontrar tempo para a leitura, a<br />

oração e para escrever um livro sobre minha caminhada de fé, com meus encontros e<br />

desencontros, mas sempre na busca de estar em Cristo.<br />

Hoje, dia 2 de novembro de 1996, quan<strong>do</strong> termino este livro, vejo que pela Graça de Deus<br />

cada um daqueles objetivos foi alcança<strong>do</strong>. Minha esposa e meus filhos mais novos estão na<br />

Flórida, realizan<strong>do</strong> seu sonho de a<strong>do</strong>lescência, e tenho esta<strong>do</strong> 12 dias aqui e oito lá; a Fábrica de<br />

Esperança está terminan<strong>do</strong> o ano com 33 projetos em pleno funcionamento, e não apenas os 26<br />

aos quais nos havíamos proposto; a Vinde TV entra no ar no dia 23 de dezembro, véspera de<br />

Natal, realizan<strong>do</strong> assim meu mais antigo sonho infantil: ver os filmes de tio Carlos <strong>Fábio</strong>,<br />

embrião de minha paixão por projeção de imagem, se tornarem um veículo de comunicação; a<br />

Revista Vinde “fecha o ano” com uma edição especial de 114 páginas e, definitivamente, firmada<br />

como “a revista cristã <strong>do</strong> Brasil”; a Missão Vinde está fican<strong>do</strong> bem enxuta, e dentro de mais<br />

alguns meses vamos poder usar os recursos que ela recebe para cumprir melhor a sua missão de<br />

evangelização, especialmente em países onde a palavra de Cristo não tem si<strong>do</strong> difundida. Além<br />

disso, este livro só foi escrito porque eu pude achar tempo para orar, pesquisar e escrever,<br />

especialmente em razão <strong>do</strong>s dias “diferentes” que tenho ti<strong>do</strong> na Flórida.<br />

Hoje, minhas percepções são outras. Descobri que 1996 foi o ano de juntar não apenas os<br />

“estilhaços” <strong>do</strong> ano anterior, mas os retalhos de minha vida psicológica, pois o processo de


escrever este livro me abismou num mun<strong>do</strong> de sentimentos e memórias que eu julgava que<br />

haviam desapareci<strong>do</strong> quase completamente de dentro de mim. Que nada! Este livro me fez ver<br />

como seu Araujinho e suas energias vitais, boas e más, me habitam com mais profundidade que<br />

poderia imaginar. Vovô João <strong>Fábio</strong> e seus ideais, sua casa-hospital, sua “atração-desconfiada” em<br />

relação à polícia, porventura não se repetem em meus sonhos de solidariedade, na Fábrica de<br />

Esperança e no meu namoro sempre esquivo com os políticos? E que dizer de vovô Firmino e seu<br />

espírito andarilho? Há ou não traços dele em mim? E mais: sua busca de prazeres perigosos<br />

existe em mim desde há muito, sen<strong>do</strong> que hoje exerço razoável controle sobre isso.<br />

Ora, e a Mãe Velhinha? Seu encanto pela natureza e seus mun<strong>do</strong>s feitos de o<strong>do</strong>res ainda hoje<br />

me alucinam, me inspiram e me seduzem. Sou vítima de aromas e de suas inesquecíveis<br />

lembranças.<br />

Meu pai? Ora, desse então não preciso nem falar. Mais da metade de mim é ele. Ou de onde<br />

me vem essa esperança incurável e inamovível, senão de raízes que nascem no peito cabelu<strong>do</strong><br />

daquele ser de alma amazônica incorrigível?<br />

Mamãe? Além <strong>do</strong>s seios cheios de leite e de muito cafuné, ela me deu apetite existencial.<br />

— Como é que a senhora está se sentin<strong>do</strong> hoje, mamãe? — indaguei no mês que passou.<br />

— Como uma menina de vinte anos. Minha alma se recusa a envelhecer. Pena que meu<br />

corpo não saiba disso. Por que será, meu filho? — devolveu-me mamãe.<br />

Escreven<strong>do</strong> este livro, foi-me possível ver como eles to<strong>do</strong>s estão vivos em mim e em minhas<br />

ações. Muitos <strong>do</strong>s meus sentimentos e sonhos nada mais são <strong>do</strong> que uma projeção de seus<br />

sonhos, assim como muitos <strong>do</strong>s meus fantasmas nada mais são <strong>do</strong> que lembranças de seus<br />

me<strong>do</strong>s.<br />

E a vida se repete. Hoje, 2 de novembro de 1996, faz vinte anos que meu irmão Luiz <strong>Fábio</strong><br />

partiu para o Eterno. Mas é possível vê-lo nas mãos cheias e hábeis de meu filho Ciro, de vinte<br />

anos — um ano mais velho que meu irmão no ano de sua partida —, quan<strong>do</strong> ele escorre o mesmo<br />

talento musical que <strong>do</strong> tio vazava para o piano, ao qual ele jamais fora formalmente apresenta<strong>do</strong>,<br />

mas pelo qual irremediavelmente seduzi<strong>do</strong>. Luiz vive em Ciro.<br />

Foi por querer que você soubesse que eu não existo sozinho, mas que sou apenas extensão,<br />

continuidade emocional e histórica de outros seres que me precederam, que escrevi este livro<br />

inician<strong>do</strong> em 1820, com aquele cearense apaixona<strong>do</strong> pela vida, que meus pais disseram foi o meu<br />

bisavô, a quem amei, respeitei e em quem muitas vezes me inspirei, mesmo sem jamais lhe ter<br />

da<strong>do</strong> sequer um único cheirinho no cangote.<br />

Possivelmente quan<strong>do</strong> este livro vier a ser publica<strong>do</strong> eu já estarei com 42 anos. “É ce<strong>do</strong><br />

demais para se escrever uma autobiografia”, disseram-me alguns amigos mais velhos. Eu<br />

concor<strong>do</strong>. Mas como é que eu poderia saber se era ce<strong>do</strong>, se nem mesmo sei se estarei vivo na<br />

Terra no dia de amanhã?<br />

O tempo de escrever uma autobiografia é hoje, é tu<strong>do</strong> o que posso responder. Mas o que de<br />

fato aprendi escreven<strong>do</strong> estas “memórias” é que to<strong>do</strong> ser humano neste planeta deveria escrever<br />

as suas. Mesmo que não seja para torná-las públicas, devem ser escritas para “publicar” para nós<br />

mesmos os intrincamentos de nosso interior. Eu me tornei público para mim mesmo puxan<strong>do</strong><br />

este livro de dentro de minha alma. Autobiografias podem ser as melhores auto-ajudas que se<br />

pode receber <strong>do</strong> melhor de to<strong>do</strong>s os analistas: a sua própria alma, quan<strong>do</strong> tomada pela mão de<br />

Deus e conduzida a “encontros” de cura e bálsamo. E isso só acontece quan<strong>do</strong> a gente se dispõe a<br />

abraçar seus monstros e seus príncipes, neste lugar onde mito e realidade são a mesma coisa: a<br />

psique.<br />

Olho para o futuro e vejo que já estou no lucro. Afinal, sou aquele rapaz que sempre achou<br />

que não passaria <strong>do</strong>s trinta e que no auge de sua paixão existencial pelas coisas da fé desejou


morrer aos 33 anos, como Jesus.<br />

A vida já me deu um crédito de mais de dez anos. Só que agora, quanto mais vivo, mais longe<br />

gostaria de ir. E tem mais: se eu fosse o seu Araujinho, não teria deita<strong>do</strong> naquela rede, lá no rio<br />

Purus, embalan<strong>do</strong>-me nela até morrer. Tenho dentro de mim uma presença alien que meu<br />

bisavô parece não ter conheci<strong>do</strong> com clareza. A presença <strong>do</strong> Espírito Santo faz nascer na gente<br />

uma vontade enorme de viver, e viver, e viver.<br />

Um dia desses eu estava dentro das águas azuis <strong>do</strong> mar que se derrama sobre a costa de Boca<br />

Raton, na Flórida. As ondas estavam relativamente encapeladas. Iam e vinham, naquela dança<br />

líquida inimitável. Gaivotas e pelicanos voavam sobre minha cabeça. Tu<strong>do</strong> em volta parecia<br />

absolutamente irreal, tamanha era a beleza natural. De repente percebi que aquilo, sim, era mais<br />

que real. Irrealidade é essa vida de vaidades, sejam elas religiosas, políticas, intelectuais, plásticas<br />

ou de qualquer outro tipo, de cujos “espíritos” temos esta<strong>do</strong> quase to<strong>do</strong>s “possessos”.<br />

As ondas se alternavam: umas grandes, outras pequenas. De súbito, uma enorme. Mergulhei<br />

dentro dela e saí <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>.<br />

“Jesus, só Tu sabes que ondas ainda virão sobre mim, se serão grandes, pequenas ou enormes<br />

vagalhões. Não quero saber o que me aguarda. Peço apenas que Tu me livres de meu pior inimigo,<br />

e este, Senhor, não são os poderosos deste mun<strong>do</strong> e nem o diabo. Eu sou a pessoa com maior poder<br />

de destruir aquilo que com tanta paixão eu mesmo venho edifican<strong>do</strong>. Assim, Senhor, não apenas<br />

livra-me <strong>do</strong> mal, mas livra-me de mim, pois ninguém pode fazer mais mal a mim <strong>do</strong> que eu<br />

mesmo”, falei com Deus em meio a lágrimas de confissão e, ao mesmo tempo, de entrega à Graça<br />

Divina.<br />

É difícil terminar um livro como este. Estou olhan<strong>do</strong> para trás e tentan<strong>do</strong> descobrir quais são<br />

as imagens simbólicas mais fortes de toda a minha existência até aqui. Descubro que minha alma<br />

tem <strong>do</strong>is grandes sacramentos: uma árvore encantada e uma casinha de compensa<strong>do</strong>. A primeira<br />

me segue desde que a mangueira <strong>do</strong> quintal da vovó virou Sarça Ardente. Sei que encontrarei a<br />

sua versão final naquela Árvore da Vida, que me está prometida no livro <strong>do</strong> Apocalipse.<br />

Já a casinha, essa nunca me deixou. Eu a carrego comigo desde os cinco anos. Meu pai a<br />

colocou nos meus ombros. Ela cresce, encolhe e toma formas diferentes. Nela, todavia, sempre<br />

encontro meus amores e meus filhos da alma. A sensação que me dá é a de que construirei casas<br />

imaginárias até o último dia de minha vida, quan<strong>do</strong> então irei morar com Aquele que disse: “Na<br />

casa de meu Pai há muitas moradas... Eu irei preparar-vos lugar... Eu voltarei.”<br />

Viver esses poucos anos neste planeta me tem si<strong>do</strong> uma experiência apaixonante. Amo ser um<br />

humano. Gosto de existir. Cada dia, a cada sabor que os momentos trazem, vejo-me mais<br />

seduzi<strong>do</strong> pelas possibilidades de ser quem eu posso ser, ainda. Mesmo quan<strong>do</strong> mergulho nas<br />

minhas memórias mais escuras e plenas de ambigüidades, ainda aí e nelas encontro a certeza de<br />

que, sen<strong>do</strong> quem sou e carregan<strong>do</strong> as emoções humanas que carrego, teria si<strong>do</strong> quase impossível<br />

existir de outro mo<strong>do</strong>. Nesse caso, o milagre da conversão é ainda mais profun<strong>do</strong>, pois, se assim<br />

é, conversão não é apenas uma mudança de história, mas, sobretu<strong>do</strong>, a invasão da Graça Divina,<br />

penetran<strong>do</strong> as teias de nossa intimidade e nos fazen<strong>do</strong> desabrochar de dentro para fora, não para<br />

uma outra existência, mas para o melhor de nossa possibilidade existencial, levan<strong>do</strong> em<br />

consideração quem somos. E o que somos se engra-vida com a graça de Deus, fazen<strong>do</strong> com que<br />

nossa vida encontre em Cristo a melhor variável de nós mesmos. E esta é a vida que vale ser, pois<br />

é vida Nele.<br />

Percebo que lateja em mim uma paixão constante. Com ela tenho passa<strong>do</strong> pela cadeia <strong>do</strong>s<br />

momentos que formam minhas horas, dias, semanas, meses e anos. Disse minhas, fazen<strong>do</strong> alusão<br />

ao tempo, pois cada pessoa tem o seu tempo. E os mais felizes são os que sabem que o tempo é<br />

nosso, não de Deus. O tempo é dádiva divina aos mortais. É essa paixão de viver que me dá esse


fortíssimo sentimento de que o tempo é meu. Mesmo me ven<strong>do</strong> como um cristão que crê na<br />

imortalidade da existência espiritual, ainda assim trato esta dimensão como única, pois ela vai<br />

acabar. Ainda que eu viva para sempre, vou morrer, contingencialmente, como cidadão da Terra,<br />

daí minha sôfrega paixão pela experiência consciente que Deus me deu conhecer neste lapso da<br />

existência cósmica.<br />

É a vida movida por paixão o que nos arremete ao mun<strong>do</strong> como uma dádiva divina, mesmo<br />

nos dias de nossos equívocos. É também essa paixão que nos põe no único espaço onde o me<strong>do</strong> de<br />

existir se desvanece: o chão <strong>do</strong> amor. Quan<strong>do</strong> se chega a esse lugar existencial, percebe-se que<br />

dele se pode ver o perigo de existir, mas descobre-se também que nele a vida não conhece<br />

infelicidade, mesmo quan<strong>do</strong> dói, pois nesse lugar a vida é pura celebração, vez que o verdadeiro<br />

amor nos liberta de toda culpa e nos põe a salvo de to<strong>do</strong> me<strong>do</strong>.<br />

Eu sei que viver assim é fascinantemente assusta<strong>do</strong>r para os que assistem a tal vida em seus<br />

processos. Dessa forma, coletam-se amores, devoções, imita<strong>do</strong>res e patrocina<strong>do</strong>res. Mas<br />

também surgem os adula<strong>do</strong>res, os trai<strong>do</strong>res, os invejosos, os inimigos gratuitos de toda liberdade<br />

conquistada pelo amor e pela graça. É neste ponto da existência que eu me sinto hoje. A tentação<br />

agora é fazer opção por um <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s. Se me dedico aos primeiros, vivo para a mediocridade que<br />

se alimenta de fantasias. Se me entrego ao segun<strong>do</strong> grupo, passo a existir para manter um poder<br />

que não me foi da<strong>do</strong> pela força, mas pela graça <strong>do</strong> amor e que pode sutilmente se converter em<br />

poder satânico, que é aquele que existe para se proteger e para exercer controle, fruto <strong>do</strong> me<strong>do</strong> de<br />

perder o que tem.<br />

Prefiro morrer hoje a me entregar a qualquer desses <strong>do</strong>is grupos. Meu compromisso com<br />

minha própria consciência é o de perseguir novas possibilidades de ser em Deus, pois de uma<br />

coisa estou certo: bondade e misericórdia me segurão to<strong>do</strong>s os dias de minha vida e habitarei na<br />

casa <strong>do</strong> Senhor para to<strong>do</strong> o sempre.<br />

Sou feliz, mesmo quan<strong>do</strong> não estou feliz. Afinal, depois de tu<strong>do</strong>, eu pude perceber que<br />

felicidade só existe como a possibilidade de ser, a cada dia, em Deus e em Seu amor. Assim, sem<br />

escusas, eu confesso quem sou.

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