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Meu pai é o ser humano que mais me influenciou neste mun<strong>do</strong> até o dia de hoje. Filho de<br />
uma estranha mistura de histórias e experiências humanas, tem vivi<strong>do</strong> sob a marca <strong>do</strong><br />
surpreendente, <strong>do</strong> radical, <strong>do</strong> intenso e <strong>do</strong> inusita<strong>do</strong>. Entretanto, sua vida e a minha própria vida,<br />
por extensão, explicam-se, obviamente, em contextos mais antigos <strong>do</strong> que nossa própria<br />
experiência histórica. Somos apenas os subprodutos de histórias de ancestrais fascinantes e<br />
quase mágicos em suas performances neste mun<strong>do</strong>. E na intenção de destrinçar as teias que<br />
tecem estes lega<strong>do</strong>s familiares tem-se de viajar ao século anterior ao nosso. É para essa viagem<br />
que eu convi<strong>do</strong> você.<br />
Minha herança humana viaja em células e sonhos desde há muito. Mas no nível de minha<br />
consciência histórica, tu<strong>do</strong> começou com meu bisavô, um cearense de saúde férrea e de humor<br />
fino e provocativo, que tinha uma fraqueza especial por saias. Luís Antônio de Araújo saiu <strong>do</strong><br />
nordeste para o Amazonas no século passa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> ainda era bem jovem. Nasci<strong>do</strong> no ano de<br />
1821, em Camuci, Ceará, teve na longevidade e na força física suas mais marcantes<br />
características. Viveu 104 anos e, aos oitenta, era famoso por ainda ser capaz de carregar far<strong>do</strong>s de<br />
pirarucu pesan<strong>do</strong> até 120 quilos.<br />
Meu pai não conheceu o seu Araujinho, como chamavam meu bisavô no interior <strong>do</strong><br />
Amazonas.<br />
Com fama de namora<strong>do</strong>r e de grande conta<strong>do</strong>r de histórias, o velho cearense casou-se com<br />
Maria Santana de Araújo já avança<strong>do</strong> em idade, aos 66 anos, ainda assim depois de um vastíssimo<br />
processo de seleção.<br />
Ele e Santaninha tiveram <strong>do</strong>is filhos: João <strong>Fábio</strong> e Joana, ambos nasci<strong>do</strong>s em Nova Vista de<br />
Canutama, no alto Purus, coração <strong>do</strong> Amazonas. Meu avô, João <strong>Fábio</strong>, nasceu quan<strong>do</strong> seu pai já<br />
tinha 68 anos e precisou lidar com a tragédia desde ce<strong>do</strong>. Em 1893, portanto apenas cinco anos<br />
após haver se casa<strong>do</strong>, Santaninha veio a falecer, vítima de uma das muitas <strong>do</strong>enças que matavam<br />
bestamente as pessoas nas beiras <strong>do</strong>s rios <strong>do</strong> Amazonas: a febre negra.<br />
Naqueles dias, o tempo passava com a mesma preguiça com que as águas deslizavam, lentas e<br />
caudalosas, pelo rio Purus, na região <strong>do</strong> seringal Nova Vista, onde o velho Araujinho conseguira<br />
um emprego como extrativista de balata de borracha. Sua intenção era trabalhar duro a fim de<br />
fazer algum dinheiro com borracha, produto por excelência para quem quer que tivesse uma<br />
visão clara de como a vida se desenharia nos anos por vir. O Amazonas vivia um tempo em que a<br />
borracha era o chip de todas as possibilidades presentes e futuras.<br />
Apesar da pobreza <strong>do</strong> interior, havia algumas inigualáveis compensações. Os cheiros naturais<br />
da região eram um pagamento divino aos que insistiam em viver no lugar. Os aromas da floresta<br />
eram extraordinários, aromas que, em geral, ainda podemos perceber nas vilas e pequenas aldeias<br />
<strong>do</strong> interior <strong>do</strong> Amazonas. Era fragrância de mata viva, misturada com o o<strong>do</strong>r de uma flora<br />
incomparavelmente diversificada, onde se podia perceber o cheiro de flores jamais transformadas<br />
em perfume em lugar nenhum <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Os imensos volumes de água também contribuíam para acrescentar ao ar o estranho o<strong>do</strong>r da<br />
vida subaquática, combina<strong>do</strong> ao das plantas que crescem à margem <strong>do</strong>s rios. Além disso, havia<br />
uma cheirosa sensação de frescor que vinha de toda parte. A areia amarelada à beira <strong>do</strong>s igarapés<br />
tinha em si o cheiro forte de algo que parecia uma mistura de enxofre com pó de café. Era um<br />
aroma quase primal, como se a terra ainda exalasse os cheiros de seu mais recente parto: o<br />
Amazonas.<br />
Na pequena vila <strong>do</strong> seringal Nova Vista podia-se também discernir o forte aroma que vinha<br />
das grandes chapas de ferro ou das imensas bases de barro queima<strong>do</strong>, onde mulheres de cabelos<br />
compri<strong>do</strong>s, presos por prende<strong>do</strong>res feitos de caroço de tucumã, agitavam suas colheres de pau,<br />
fazen<strong>do</strong> a farinha de mandioca dançar incessantemente, enquanto não cansavam de contar casos