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Confissões do pastor - Caio Fábio

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pequeno Cainho, ele dizia que seria um menino forte como fora seu pai, o velho Araujinho.<br />

No entanto, logo após completar seu primeiro ano de vida, a saúde <strong>do</strong> menino foi subitamente<br />

abalada por uma estranha e inexplicável febre.<br />

Como João <strong>Fábio</strong> estava viajan<strong>do</strong>, Zezé pediu ajuda a um farmacêutico local, a fim de<br />

enfrentar a febre com uma injeção. Seu Ernesto foi chama<strong>do</strong> às pressas e prontamente acorreu.<br />

Tiran<strong>do</strong> <strong>do</strong> estojo sua seringa e agulhas, perfurou a borracha que vedava o vidro com o remédio,<br />

passou álcool nas nádegas da criança, dividiu mentalmente o bumbum em quatro partes,<br />

escolheu uma dele e sapecou a agulha.<br />

Tu<strong>do</strong> certo, exceto pelo fato de que a febre não cedeu e o menino continuou a definhar no seu<br />

bercinho.<br />

Quan<strong>do</strong> João <strong>Fábio</strong> voltou, viu, choca<strong>do</strong>, que algo estava muito erra<strong>do</strong> com seu pequeno <strong>Caio</strong>.<br />

Sua perninha direita não se movia. Os movimentos eram normais na outra perna, que podia ser<br />

erguida na hora <strong>do</strong> choro ou <strong>do</strong>s movimentos espontâneos, mas a perna direita não se<br />

movimentava, permanecen<strong>do</strong> sempre paralisada.<br />

— Zezé, o que fizeram com esse menino? Alguém esteve aqui cuidan<strong>do</strong> dele? — perguntou<br />

o já experiente farmacêutico.<br />

— <strong>Fábio</strong>, você não estava aqui. A criança estava com uma febre que não cedia. Então eu<br />

chamei o seu Ernesto. Ele deu uma injeção no menino — respondeu vovó.<br />

João <strong>Fábio</strong> examinou cuida<strong>do</strong>samente o bumbum <strong>do</strong> filho, constatou a marca da entrada da<br />

agulha e olhou sofri<strong>do</strong> e grave para esposa, mas sem nenhuma expressão de raiva na face.<br />

— Aleijaram nosso filho — disse com voz solene e cheia de pesar.<br />

Saiu dali andan<strong>do</strong> pesadamente, foi até a varanda e olhou longa e perdidamente para o<br />

deslizar suave <strong>do</strong> rio Purus, que incansavelmente ondulava suas águas em frente à cidade de<br />

Canutama, naquela quente tarde de março de 1927.<br />

Embora nunca tenha toma<strong>do</strong> nenhuma providência legal contra seu Ernesto, pois conhecia<br />

bem o homem e sabia que se tratava de pessoa de bem, o Dr. João <strong>Fábio</strong> estava certo. <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong><br />

jamais andaria sem muleta, para o resto de sua vida. <strong>Caio</strong>, em latim, é também bordão, caja<strong>do</strong>.<br />

Apesar de pesaroso e frustra<strong>do</strong> com o que acontecera ao menino, vovô cui<strong>do</strong>u de iniciar um<br />

processo de ajuda a seu filho, sem saber que estava plantan<strong>do</strong> as sementes que fariam dele um<br />

ser humano raro, tanto no seu caráter quanto nas suas percepções da vida.<br />

Não era a primeira vez que vovô experimentava o gosto amargo da <strong>do</strong>r que o atingia a partir de<br />

uma fatalidade ligada aos filhos, porém o caso de meu pai tornou-se muito forte para ele. Talvez<br />

isto se explique pelo fato de que as mortes de Luís Ricar<strong>do</strong>, Edgar e José tenham-no deixa<strong>do</strong> com<br />

a violenta angústia da perda, mas sem o peso da responsabilidade de criar um filho deficiente.<br />

Os três meninos morreram, e ele chorou e sofreu suas mortes. Mas com Cainho era<br />

diferente. Ele estava ali, debilita<strong>do</strong> e irremediavelmente aleija<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> diante de si um mun<strong>do</strong><br />

que meu avô percebia que seria cada vez mais competitivo e que não ofereceria ajuda a quem não<br />

pudesse se virar sozinho.<br />

Aquela foi a gota d’água final na decisão de mudar de Canutama para Manaus. Ele precisava<br />

oferecer aos filhos uma boa chance de se prepararem para os avanços deste século, que estava<br />

apenas começan<strong>do</strong>.<br />

Em 1931 a mudança finalmente foi efetivada.<br />

Na capital, a família foi morar num sobra<strong>do</strong> na rua Sete de Setembro, bem no centro da<br />

cidade. No andar inferior da casa, o Dr. <strong>Fábio</strong> tinha a sua farmácia, aberta a quem pudesse e a<br />

quem não pudesse pagar o remédio de que necessitava.<br />

Pelo fato de estar sempre preocupa<strong>do</strong> com o bem-estar <strong>do</strong>s muitos que dele se acercavam,<br />

vovô resolveu tentar ampliar seus horizontes. Assim, entrou para a faculdade de direito e

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