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— Não. Somos idealistas, mas não chegamos a ser estúpi<strong>do</strong>s. Desarmar o Rio é tarefa para<br />
Deus, e eu não sou Ele e nem secretário Dele. Apenas achamos que é possível fazer gestos de<br />
desarmamento que afetem a atitude mental das pessoas na sociedade — repeti inúmeras vezes.<br />
Organizamo-nos em grupos de invasão de paz e partimos para o ataque. Em cerca de 45 dias<br />
visitamos mais de trinta favelas. A primeira subida foi ao morro Dona Marta e quase não<br />
aconteceu, pois na hora de subir chegaram três pessoas dizen<strong>do</strong> que alguns irmãos tinham ti<strong>do</strong><br />
visões de que eu morreria naquela favela.<br />
— Reveren<strong>do</strong>, ligaram de São Paulo dizen<strong>do</strong> que alguém teve uma visão <strong>do</strong> senhor coberto<br />
de sangue. O senhor acha que deve subir aí hoje? — perguntou-me minha secretária às 17 horas<br />
pelo celular.<br />
— Se hoje for dia, será — respondi. Mas os que estavam comigo não estavam tão certos de<br />
que deveríamos subir.<br />
— Olha, eu acredito em profecias, mas não dirijo minha vida por elas. Se eu aceitar a tirania<br />
das profecias, estou perdi<strong>do</strong>, não faço mais nada na vida. Profecia é pra se cumprir, não para<br />
impedir o caminho da gente. Mas essa profecia vai ser mudada. Vamos orar e vamos subir. Nós<br />
servimos a Deus, não aos profetas — falei.<br />
— A gente vai contigo até o fim — disse o <strong>pastor</strong> Ezequiel Teixeira.<br />
Subimos e foi uma bênção. Descemos exaustos e felizes por volta da meia-noite. O me<strong>do</strong><br />
desapareceu e as invasões passaram a ser uma grande festa. Eram grupos que iam de 12 até mil<br />
pessoas, como foi o caso da Rocinha. Sempre fomos recebi<strong>do</strong>s com extremo carinho. Íamos de<br />
casa em casa, cantávamos nas ruelas e becos, orávamos com os <strong>do</strong>entes, ensinávamos canções às<br />
crianças, dávamos as mãos aos bêba<strong>do</strong>s em bares e nos confraternizávamos com eles, parávamos<br />
em lugares marca<strong>do</strong>s por crimes, mortes, chacinas e sombras e pedíamos a Deus que libertasse<br />
as pessoas de suas lembranças <strong>do</strong>lorosas e de seus fantasmas.<br />
Houve de tu<strong>do</strong> naquelas invasões. No morro Dona Marta, encontrei uma moça encostada a<br />
um poste, às dez horas da noite, choran<strong>do</strong>, com o rosto incha<strong>do</strong>, quase a ponto de explodir, tanto<br />
era o pus que havia sob a pele dela.<br />
— Meu Deus! Que é isso menina? — perguntei. Ela só gemia. Quis levá-la ao médico.<br />
— Tô vin<strong>do</strong> de lá. Ele não sabe o que fazer — ela me respondeu entre gemi<strong>do</strong>s.<br />
— Então, deixa eu botar a mão na tua cabeça e pedir a Jesus pra curar você. Posso? —<br />
perguntei, movi<strong>do</strong> de compaixão por ela. Ela apenas confirmou com os olhos.<br />
— Senhor Jesus. Sei que Tu estás aqui no Dona Marta. Vê a <strong>do</strong>r desta moça e tira dela esse<br />
mau. Cura esta garota, Jesus — orei rapidamente, mas com fé e intensidade. Havia umas<br />
quarenta pessoas olhan<strong>do</strong> o que estava acontecen<strong>do</strong>. Prosseguimos no nosso caminho. No dia<br />
seguinte, André Fernandes, nosso companheiro de aventura, me contou que a moça estava<br />
totalmente curada. O pus desaparecera de sua face. Demos glória ao nome de Deus e nos<br />
animamos em relação à nossa missão.<br />
O chocante era constatar como, à medida que a mídia divulgava nossas incursões, duas coisas<br />
aconteciam mais e mais freqüentemente.<br />
A primeira era que nossa popularidade e respeito nas favelas alcançava níveis inimagináveis.<br />
— Pára de beber. O <strong>pastor</strong> tá passan<strong>do</strong> — eu ouvia.<br />
— Fecha a boca. Tem gente de Deus no pedaço — falavam outros.<br />
— Reveren<strong>do</strong>, o senhor é sangue bom — gritavam “os meninos”.<br />
— Tira tu<strong>do</strong> que é bebida com álcool daqui. O reveren<strong>do</strong> vai entrar pra tomar um guaraná —<br />
disse um certo rapaz que só depois fiquei saben<strong>do</strong> que era o segun<strong>do</strong> na hierarquia <strong>do</strong> tráfico de<br />
uma importante favela.<br />
A segunda percepção era a de que nossas intenções não estavam sen<strong>do</strong> bem entendidas.