Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
O corpo foi esfola<strong>do</strong> e arrasta<strong>do</strong> pelas ruas <strong>do</strong> Complexo <strong>do</strong> Alemão. Nem Maluco foi decapita<strong>do</strong>.<br />
Que desperdício!<br />
Dias depois, Ronaldinho e Raimundinho se desentenderam. Eram irmãos. Mas Ronaldinho<br />
man<strong>do</strong>u dar um tiro na cabeça de Raimundinho. Ronaldinho está preso em Bangu I: a última<br />
parada antes da sepultura.<br />
Nós continuamos nossas incursões nas favelas. Mangueira, Rocinha e Borel foram as mais<br />
marcantes das mais de 45 que visitamos. No Borel, Rubem César Fernandes subiu conosco. O<br />
Exército tinha acaba<strong>do</strong> de realizar duas ações ali: tiraram a cruz que havia no alto <strong>do</strong> monte,<br />
alegan<strong>do</strong> que o Coman<strong>do</strong> Vermelho era o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> símbolo, e tomou uma Igreja Católica que fica<br />
no alto da favela, já na outra comunidade fronteiriça ao Borel, chamada Chácara <strong>do</strong> Céu, e<br />
transformou-a em sala de interrogatório de suspeitos. Encontraram sangue dentro <strong>do</strong> templo. As<br />
“irmãs católicas” disseram que haviam tortura<strong>do</strong> pessoas no lugar de culto. Foi um escândalo.<br />
Nós fomos subin<strong>do</strong> o Borel entre canções e preces. Às cinco da tarde, quan<strong>do</strong> iniciamos,<br />
éramos no máximo trinta pessoas. À meia-noite, quan<strong>do</strong> chegamos à igreja, que fica quase no<br />
topo <strong>do</strong> monte, já éramos mais de trezentas. À nossa frente, como guia local, ia o tempo to<strong>do</strong><br />
Pedro <strong>do</strong> Borel, missionário de não mais que trinta anos de idade, com cara de garotão de praia e<br />
que, à semelhança de André Fernandes, compõe o grupo cada vez mais apaixona<strong>do</strong> de jovens<br />
cristãos de classe média que saem de suas casas, alugam barracos, e vão servir a Deus na favela.<br />
Pedro estava to<strong>do</strong> remenda<strong>do</strong>. Sua canela tinha si<strong>do</strong> severamente ferida por chutes e botinadas<br />
que recebera de solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Exército, quan<strong>do</strong> da recente invasão da favela.<br />
— Qui é isso, moço? Num faz isso não, moço! Sou missionário. Trabalho aqui e tenho<br />
carteira de trabalho — dizia Pedro, enquanto o pau cantava na canela dele.<br />
— Que missionário que nada, seu safa<strong>do</strong>! Tu tem cara de bandi<strong>do</strong>. Tá é disfarça<strong>do</strong>. Vai<br />
apanhar sim — respondiam os soldadinhos, enquanto descascavam o osso da canela de Pedro,<br />
que apanhou até que o povo <strong>do</strong> local chegou para socorrê-lo.<br />
— Ele é <strong>pastor</strong> sim. Ele é da Jocum. Num faz isso, não. O Pedro ajuda a gente — disseram<br />
muitas vozes em seu favor, fazen<strong>do</strong> os militares pararem de bater no irmão.<br />
As estações da subida eram tantas quantas a vida nos oferecesse: um <strong>do</strong>ente numa casa, um<br />
velho choran<strong>do</strong> numa cadeira de rodas, crianças se agarran<strong>do</strong> às nossas pernas, jovens na esquina<br />
sorrin<strong>do</strong> para nós e nos chaman<strong>do</strong> de sangue bom, uma “mãe de santo” local que estava <strong>do</strong>ente e<br />
queria receber uma oração <strong>do</strong> “<strong>pastor</strong> <strong>Caio</strong>”. Enfim, tu<strong>do</strong> era pretexto para nós pararmos.<br />
Entretanto, o mais significativo de to<strong>do</strong>s os momentos foi uma parada no lugar que tinha si<strong>do</strong> a<br />
casa de invocação de espíritos de Isaías <strong>do</strong> Borel, preso em Bangu I.<br />
— Aqui é o lugar mais temi<strong>do</strong> <strong>do</strong> morro — disse-me uma pessoa <strong>do</strong> local.<br />
— Por quê? — indaguei.<br />
— É que o Isaías “chamava” os espírito aí. Pra nós, é um lugar mal-assombra<strong>do</strong> — explicou.<br />
— O Isaías agora não invoca mais espíritos malignos. Eu o batizei na prisão e ele agora lê a<br />
Bíblia e deseja mudar seus caminhos — falei, enquanto uma multidão <strong>do</strong> lugar se juntava ao<br />
nosso grupo aumentan<strong>do</strong> bastante a audiência. Os olhos da maioria estavam arregala<strong>do</strong>s. Havia<br />
temor no ar. Então constatei a profundidade <strong>do</strong> poder de Isaías sobre os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Borel.<br />
Além de ser considera<strong>do</strong> pelos habitantes o bandi<strong>do</strong> mais temi<strong>do</strong> e justo que entre eles já vivera,<br />
Isaías também tinha sobre si a mística <strong>do</strong>s bruxos e <strong>do</strong>s feiticeiros. Ele carregava sobre sua<br />
imagem duas grandes forças: a militar e a religiosa, e ambas eram, no seu caso, combinações de<br />
poder incomparável: o traficante-militariza<strong>do</strong> e o bandi<strong>do</strong>-sacer<strong>do</strong>taliza<strong>do</strong>. Naquele lugar, a força<br />
da presença de Isaías, mesmo estan<strong>do</strong> preso, era incomparável. Ele tinha muito mais força no