23.04.2013 Views

Confissões do pastor - Caio Fábio

Confissões do pastor - Caio Fábio

Confissões do pastor - Caio Fábio

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

profunda no seu compromisso existencial com Deus, mas se servia de alguns recursos espirituais<br />

para aliviar a sufocação <strong>do</strong> peito.<br />

Toda terça-feira à tarde ela ia à Igreja Presbiteriana para unir-se a outras mulheres que<br />

oravam. Meu pai era objeto constante das intercessões espirituais daquelas mulheres. Jardim de<br />

Oração era o nome da<strong>do</strong> ao encontro. Foi ali, naquele jardim de preces, que mamãe conseguiu<br />

diminuir a sensação de solidão que sobre ela se abatera.<br />

Eu, entretanto, não sabia recorrer a tais recursos. O que me possuiu foi uma saudade<br />

espiritual de alguém. Lembro-me que passei a me postar na varanda lateral de nossa casa e olhar<br />

o pôr-<strong>do</strong>-sol, que acontecia por trás de uma alta e fron<strong>do</strong>síssima mangueira, que virava Sarça<br />

Ardente quan<strong>do</strong> as luzes multimatizadas <strong>do</strong> ocaso pintavam-na de tons quase psicodélicos e<br />

davam-lhe o poder místico <strong>do</strong>s sacramentos.<br />

Para minha mente de oito anos, as maiores impressões ficavam por conta <strong>do</strong> fato de que as<br />

folhas se <strong>do</strong>iravam com o reflexo <strong>do</strong> sol e aquela silhueta imensa da árvore me enchia de uma<br />

estranha sensação: era como se aquela mangueira fosse o símbolo de algo espiritual para a minha<br />

alma, de alguma coisa na qual um dia minha existência encontraria seu senti<strong>do</strong>. Algo sau<strong>do</strong>so,<br />

porém vivo. Era como se a pessoa que mais me amasse estivesse escondida ali, atrás daquela<br />

árvore mágica, sagrada, reluzente e cheia de uma estranha sombra colorida.<br />

Eu ficava lá. Em pé. Sozinho. Pensan<strong>do</strong>. Olhan<strong>do</strong> a mangueira.<br />

Uma vez Mãe Velhinha chegou perto de mim e perguntou o que eu estava sentin<strong>do</strong>. “É como<br />

se eu ainda não conhecesse a pessoa que eu mais amo. É como sentir saudade de alguém que<br />

você não sabe quem é”, foi mais ou menos o que eu respondi. Ela apenas ouviu.<br />

As conseqüências <strong>do</strong> que estava acontecen<strong>do</strong> a papai e mamãe ganharam manifestações no<br />

soma, na carne da gente. Luiz <strong>Fábio</strong> começou a engordar sem parar. Suely foi fican<strong>do</strong> retraída e<br />

um tanto complexada. Eu, que dificilmente engordaria ou me voltaria completamente “para<br />

dentro”, fui toma<strong>do</strong> de uma gagueira horrível.<br />

Era uma gagueira diferente. Não era <strong>do</strong> tipo que fazia patinar nas palavras o tempo to<strong>do</strong>. Às<br />

vezes eu falava normal. Mas, de repente, ficava engata<strong>do</strong> numa sílaba e, a menos que eu parasse<br />

de falar, respirasse fun<strong>do</strong> e pronunciasse a palavra quase cantan<strong>do</strong>, não saía mais nada.<br />

Mãe Velhinha assumiu o papel de fonoaudióloga e resolveu que me curaria rapidinho. Como<br />

alguém havia dito a ela que bom para curar gagueira era paulada de colher de pau na cabeça, dada<br />

por trás, na hora em que a pessoa estivesse engatada na palavra, andava o tempo to<strong>do</strong> com uma<br />

colher pendurada à cintura. E sempre que me via encalha<strong>do</strong> em algo como Lu, lu, lu, lu-iz, você<br />

vai brin, brin, brin, brin-car na vovó, vinha por trás e sapecava a colher de pau na minha cabeça.<br />

Eu odiava aquilo. Humilhava, deixava um galo na cabeça e, obviamente, não curava nada.<br />

Na intenção de diminuir o peso <strong>do</strong> problema, mamãe foi algumas vezes a Belém, para a praia<br />

de Mosqueiros, aliviar a cabeça. De nossa parte, em Manaus, a opção era ficar mais perto da<br />

figura paterna de tio Carlos, que, apesar de tu<strong>do</strong> o que estava acontecen<strong>do</strong> com papai, não deixou<br />

jamais de nos levar ao sítio, aos sába<strong>do</strong>s, mesmo que papai já não fosse tão assíduo nas suas idas<br />

ao antigo paraíso.<br />

Foi também no desejo de desviar a cabeça <strong>do</strong> luto familiar que passei a tentar arranjar coisas<br />

fora e longe de casa para fazer. E foi então que minha paixão pelo Rio Negro Futebol Clube se<br />

desenvolveu. Onde havia jogo, lá estava eu, tentan<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> para me sentir parte daquele mun<strong>do</strong><br />

de muitas alegrias, nas vitórias, e de <strong>do</strong>res, bem mais leves que as de casa, quan<strong>do</strong> o Nacional às<br />

vezes nos mandava para casa de cabeça baixa.<br />

Mas a minha grande paixão daqueles dias foi uma menina <strong>do</strong>is ou três anos mais velha <strong>do</strong> que<br />

eu.<br />

Margarida tinha uns 11 anos e morava na casa vizinha à nossa. Sua família era pobre e to<strong>do</strong>s

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!