23.04.2013 Views

Confissões do pastor - Caio Fábio

Confissões do pastor - Caio Fábio

Confissões do pastor - Caio Fábio

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Olhei pela janela da casa de Nalia e vi papai subin<strong>do</strong> a rampa com o olhar roxo de angústia.<br />

Seu rosto estava macera<strong>do</strong> de tanta <strong>do</strong>r.<br />

— Papai, e o Luiz? — corri e perguntei.<br />

— Ele já está onde nós ainda vamos ter de lutar muito para chegar. O Luiz já está com Cristo<br />

— ele disse com força e <strong>do</strong>r, mas sem desespero e sem lágrimas.<br />

Eu o abracei e chorei em silêncio. Uma lâmina fina e fria percorria meu ser de ponta a ponta.<br />

Um carrossel de lembranças ro<strong>do</strong>u intenso à minha volta.<br />

— Papai, deixa eu tocar Dominique-nique-nique no piano? — ele pedira aos seis anos, antes<br />

de nós sabermos que ele tinha a música dentro de si.<br />

— Eu sei tirar o carro da garagem sozinho, qué vê? — quan<strong>do</strong> ele nos assustou, aos sete<br />

anos, mostran<strong>do</strong> perícia ao volante.<br />

E mais: vi aquele rosto nervoso me esperan<strong>do</strong> no aeroporto, feliz e aflito com minha volta para<br />

casa em março de 1973. Também o vi bonachão, sempre dan<strong>do</strong> carona às velhinhas da igreja após<br />

os cultos, e tocan<strong>do</strong> belos hinos no órgão com aquelas mãos enormes e tão contraditórias, que ora<br />

alisavam a música, ora desapertavam parafusos de máquinas de carro com a mesma paixão, como<br />

se ambas fossem extensão uma da outra.<br />

E, por último, eu vi a cena de Ciro urinan<strong>do</strong> na boca de Luiz. Ele, to<strong>do</strong> orgulhoso, levantou o<br />

neném e disse: “Olha o titio, olha Cirinho.” De repente o esguicho. Era pipi para to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>. Luiz<br />

caiu na gargalhada, aparentemente orgulhosíssimo com aquele batismo.<br />

“Meu Deus, por quê? Por que, meu Deus?”, mamãe indagava ao Eterno. Deixou Conceição<br />

sozinha e subiu angustiada a escada de nossa casa, in<strong>do</strong> em direção à sua Bíblia, velha e<br />

manuseada, posta à cabeceira de sua cama. Caiu de joelhos no chão <strong>do</strong> quarto. Abriu as páginas<br />

da Escritura a esmo, enquanto perguntava: “Por que, meu Deus?” Seus olhos pousaram sobre as<br />

páginas de Isaías 57: 2 e 3. “Por que o justo é leva<strong>do</strong> antes que venha o mal; e entra na paz.” De<br />

repente, ela sentiu a força da mesma voz que falara com ela em 1964: “O que eu faço não o sabes<br />

agora, compreendê-lo-ás depois.” Uma paz enorme invadiu sua alma. “Senhor, obrigada. Agora<br />

enten<strong>do</strong> que a morte já não é o pior mal. O verdadeiro mal não é morrer, é viver sem Deus.<br />

Obrigada porque Tu estás poupan<strong>do</strong> o meu Luiz de um mal maior. Eu confio em Ti e vou chorar<br />

sem amargura”, ela anunciou a Deus, com <strong>do</strong>çura de coração.<br />

Aquela foi a primeira vez que tive de lidar com a morte naquele nível de proximidade<br />

emocional. Saí dali e fui ao necrotério. Por ser Fina<strong>do</strong>s, o lugar estava apinha<strong>do</strong> de gente. Foi lá<br />

que fiquei saben<strong>do</strong> que os três rapazes — Luiz, Agnelo e Camilo — haviam apanha<strong>do</strong> uma<br />

carona com um amigo <strong>do</strong> pai deles, que se oferecera para levá-los de volta à cidade. O problema é<br />

que o homem estava completamente embriaga<strong>do</strong>. Seis quilômetros adiante, perdeu o controle <strong>do</strong><br />

carro e mergulhou num precipício de uns trinta metros. O carro voou, ro<strong>do</strong>u no ar e ficou preso<br />

de cabeça para baixo entre <strong>do</strong>is barrancos. To<strong>do</strong>s caíram. O motorista fraturou as pernas e os<br />

braços. Agnelo teve fissura de fíga<strong>do</strong> e baço, além de fraturar a clavícula e abrir um rombo entre o<br />

crânio e o couro cabelu<strong>do</strong> tão profun<strong>do</strong>, que a área ficou toda cheia de terra. Camilo não sofreu<br />

nada, mas o óleo quente <strong>do</strong> motor <strong>do</strong> carro derramou to<strong>do</strong> sobre ele. A <strong>do</strong>r foi tão grande, que fez<br />

com que subisse os trinta metros de barranco íngreme com as unhas. E Luiz <strong>Fábio</strong>, meu irmão,<br />

caiu com a cabeça sobre uma haste de lenha, fraturou a base <strong>do</strong> crânio e morreu<br />

instantaneamente.<br />

Luiz estava com 19 anos quan<strong>do</strong> morreu. Media um metro e oitenta e sete e pesava 96 quilos.<br />

Não gostava de esportes, mas amava a música e os carros. Tu<strong>do</strong> o que ele queria era ter uma<br />

oficina mecânica e tocar órgão na igreja até o fim de sua vida. Ele conseguiu viver e morrer como

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!