Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
prendiam. Especialmente as forças espirituais que nos amedrontavam. Essa visita de Jesus<br />
beneficiou gente de todas as terras. Alcançou a mim, que vivia corren<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> e da<br />
morte que me perseguiam. E alcançou vocês aqui, que antes viviam com me<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong>: da noite,<br />
<strong>do</strong>s espíritos e das forças da natureza. Agora, to<strong>do</strong>s nós estamos livres para amar uns aos outros e<br />
amar a Deus e a Sua criação. Agora nós somos propriedade exclusiva de Deus e somos os seus<br />
sacer<strong>do</strong>tes neste mun<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s nós somos Aracas de Jesus. To<strong>do</strong>s nós podemos falar com Ele e<br />
ser ouvi<strong>do</strong>s — e prossegui por cerca de vinte minutos.<br />
Como a tradução era demorada — pois o yscariana é uma língua de palavras longas, bem<br />
maiores que o português — às vezes eu falava dez segun<strong>do</strong>s e ficava esperan<strong>do</strong> vinte até Manoel<br />
chegar ao fim da tradução. E como tinha — e tenho — pavor de ser inconveniente e cansativo,<br />
reduzi minha fala ao mínimo. Quan<strong>do</strong> terminei, pedi para orar e ofereci aquele Livro Vermelho a<br />
Deus, pedin<strong>do</strong> que ele fosse sempre a estrela <strong>do</strong>s yscarianas. Pedi ainda que, à semelhança <strong>do</strong>s<br />
uai-uai, eles também se tornassem anjos da floresta.<br />
Araca encerrou o culto e to<strong>do</strong>s voltaram para suas malocas, cada um com um exemplar <strong>do</strong><br />
Novo Testamento Vermelho nas mãos. Ele, então, me convi<strong>do</strong>u para almoçar com os anciãos da<br />
igreja. Atravessamos toda a aldeia e chegamos a um lugar espaçoso, de chão bati<strong>do</strong>, coberto de<br />
palha seca e à volta <strong>do</strong> qual havia muitos cascos de tartaruga. O lugar parecia uma sala de<br />
convenções, uma espécie de Salão Oval ou coisa <strong>do</strong> tipo. Araca me indicou um <strong>do</strong>s cascos de<br />
tartaruga e eu sentei. O ambiente era solene, porém alegre. A seguir, vi que as mulheres<br />
começaram a trazer umas bacias naturais cheias de carne e outras cheias de beiju.<br />
— Irmão Pedro Peter, o que é aquilo? Que carne é aquela? — perguntei a ele, que estava<br />
senta<strong>do</strong> num casco grande de tartaruga, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da sala, bem na minha frente.<br />
— É carne de cuatá! — falou com simplicidade.<br />
— Carne de quê? — insisti.<br />
— Carne de macaco cuatá. Sabe o cuatá? Aquele macaco grande, assim <strong>do</strong> tamanho de um<br />
menino de uns seis ou sete anos? — disse Pedro Peter, e eu quase vomitei.<br />
— Ih, meu Deus, o negócio aqui num tá fácil. Como é que eu vou comer carne de macaco<br />
que parece menino de seis anos? Assim num dá — falei mais comigo mesmo que com Deus, é<br />
claro.<br />
Araca levantou e me chamou para acompanhá-lo na direção <strong>do</strong> cuatá. Pedro Peter fez sinal<br />
com os olhos para eu ir. Ergui-me vacilantemente e andei até lá. Meu estômago embrulhou.<br />
Araca pegou um pedaço mais escuro de carne e me deu. Vi que ali ao la<strong>do</strong> havia uma cuia com sal.<br />
Peguei a carne e taquei sal nela. Depois, mais que relutantemente, coloquei um pedaço na boca,<br />
enquanto Araca esperava eu provar.<br />
— Hum! Que bom! Maravilha! — exclamei.<br />
Meu rosto mu<strong>do</strong>u e minha atitude também. O tal <strong>do</strong> cuatá era uma delícia. Comi até não<br />
poder mais. Além disso, aquele era o primeiro pedaço de carne que eu comia aquela semana. Só<br />
parei de comer quan<strong>do</strong> percebi que o sal da cuia já estava úmi<strong>do</strong> de saliva, pois to<strong>do</strong>s os que se<br />
serviam ficavam voltan<strong>do</strong> à cuia para salgar um pouco mais a sua carne. Para mim já era demais.<br />
Naquele mesmo dia eu voltaria para Manaus. Pedi para ser o último a sair dali. Dois pilotos se<br />
alternaram pegan<strong>do</strong> os que iriam para Manaus. Ao to<strong>do</strong>, éramos sete: Desmun<strong>do</strong>, <strong>do</strong>na Rosa,<br />
Pedro Peter e esposa, um outro casal de missionários e eu. Deixar os yscarianas foi um parto para<br />
a alma. Meu me<strong>do</strong> era o de não voltar mais a vê-los neste mun<strong>do</strong>.