23.04.2013 Views

Confissões do pastor - Caio Fábio

Confissões do pastor - Caio Fábio

Confissões do pastor - Caio Fábio

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

maldade.<br />

A risada começava com um hum, hum, virava há, há, há, e então crescia para uma gargalhada<br />

estridente, enquanto ele tomava ar ao mesmo tempo, o que dava ao som um zuni<strong>do</strong> tanto metálico<br />

quanto animal. Eu sempre gostara daquela gargalhada dele. Mas, naquele dia, foi o sinal de<br />

convocação para a guerra.<br />

Ele nem acabou de rir e já estava no chão. Zé Curió partiu para cima dele com tanta gana e<br />

força, que Pinho não conseguiu nem pular para trás a fim de esboçar seu famoso e poderoso<br />

chute de frente.<br />

— Pára com isso, Zé. Sou eu, teu amigo. Lembra? Esse cara nos dividiu. Ele não é nosso<br />

amigo — exclamava meu ex-melhor-amigo, enquanto era manti<strong>do</strong> imóvel por Curió, imprensa<strong>do</strong><br />

contra um carro, sofren<strong>do</strong> a pior humilhação pública de sua vida.<br />

Nós saímos dali com um esquisito sentimento de vitória, mas o único aparentemente feliz era<br />

Neto. Curió e eu estávamos nos sentin<strong>do</strong> estranhos, pois percebemos que havíamos acaba<strong>do</strong> de<br />

assinar uma confissão pública de cafajestagem <strong>do</strong> pior tipo. Não era exatamente culpa o que eu<br />

sentia, pois minha mente andava bastante cauterizada. Havia, entretanto, um sentimento de<br />

desconforto, de descolagem interior. Era como se algo tivesse fica<strong>do</strong> solto dentro de mim. Por<br />

isso, tive de afogar aquilo sob muita maconha e cachaça, para ver se minha mente encontrava<br />

outro cenário que não fosse aquele de centenas de pessoas paradas, ven<strong>do</strong> alguém a quem eu<br />

havia ama<strong>do</strong> como amigo, ser humilha<strong>do</strong> por mim e Zé, enquanto nós nem bem sabíamos<br />

exatamente por que estávamos agin<strong>do</strong> daquele mo<strong>do</strong>.<br />

Neto continuou conosco mais alguns dias. Durante o perío<strong>do</strong> curtimos todas as glórias<br />

daquele perverso triunfo. Assim, tomamos posse <strong>do</strong>s despojos de guerra: eram loiras, morenas,<br />

solteiras e até casadas. Era a festa <strong>do</strong>s vikings em meio à floresta.<br />

Nós sabíamos que, quan<strong>do</strong> Neto fosse embora para o Rio, teríamos de assumir nossa valentia<br />

contra tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s. Por isso, quan<strong>do</strong> ficávamos sozinhos, Zé sempre me dizia: “Poderoso Caião,<br />

temos de treinar, bicho. Pára de fumar tanta maconha assim. Se os caras nos pegam <strong>do</strong>idões, a<br />

gente dança.”<br />

Além disso onde quer que fôssemos Curió queria que eu estivesse sempre em guarda.<br />

“Prepara pra baiana!”, gritava ele de vez em quan<strong>do</strong>, referin<strong>do</strong>-se à entrada <strong>do</strong> jiu-jítsu nas<br />

pernas <strong>do</strong> adversário para levá-lo ao chão e esmagá-lo como uma jibóia faz com suas vítimas,<br />

matan<strong>do</strong> no acocho.<br />

Neto voltou para o Rio e nos deixou órfãos contra a cidade toda. A polícia andava atrás da<br />

gente por causa <strong>do</strong>s negócios <strong>do</strong> Zé. Os pais de família estavam cheios de ódio de nós porque<br />

havia o zunzunzum de que algumas das senhoras suas esposas estavam sen<strong>do</strong> traçadas pelo<br />

grupo de guerreiros. Além disso, os garotões da cidade também queriam a nossa cabeça,<br />

especialmente a de <strong>do</strong>is trai<strong>do</strong>res como eu e Zé, que havíamos troca<strong>do</strong> nosso direito de<br />

primogenitura pelo aprendiza<strong>do</strong> de uns golpes de jiu-jítsu, “a luta <strong>do</strong>s demônios”, alguns diziam.<br />

Andávamos olhan<strong>do</strong> por sobre os ombros. Zé tinha um revólver e disse que ia mantê-lo<br />

próximo. “Se os caras quiserem pau, tem pau. Mas se quiserem fazer covardia, passo chumbo”,<br />

dizia ele, realmente decidi<strong>do</strong> a fazer o que fosse necessário.<br />

Em razão de tu<strong>do</strong> aquilo, nossas amizades e círculos mudaram completamente na cidade.<br />

Onde quer que eu chegasse, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se retirava. Havia um ódio generaliza<strong>do</strong> contra nós. Mas<br />

contra mim, por razões óbvias, a bronca era maior.<br />

No primeiro fim de semana de nossa orfandade, Zé e eu saímos no jipinho Citroën dele e<br />

paramos para conversar com umas meninas na praça <strong>do</strong> Congresso. Era <strong>do</strong>mingo à noite.<br />

Estávamos ali, com “um olho no padre outro na missa”, quan<strong>do</strong>, de repente, começamos a ver um<br />

monte de carros e motos irem paran<strong>do</strong> à nossa volta. Ficamos ilha<strong>do</strong>s. A burguesia inteira estava

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!