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escrever este livro me abismou num mun<strong>do</strong> de sentimentos e memórias que eu julgava que<br />
haviam desapareci<strong>do</strong> quase completamente de dentro de mim. Que nada! Este livro me fez ver<br />
como seu Araujinho e suas energias vitais, boas e más, me habitam com mais profundidade que<br />
poderia imaginar. Vovô João <strong>Fábio</strong> e seus ideais, sua casa-hospital, sua “atração-desconfiada” em<br />
relação à polícia, porventura não se repetem em meus sonhos de solidariedade, na Fábrica de<br />
Esperança e no meu namoro sempre esquivo com os políticos? E que dizer de vovô Firmino e seu<br />
espírito andarilho? Há ou não traços dele em mim? E mais: sua busca de prazeres perigosos<br />
existe em mim desde há muito, sen<strong>do</strong> que hoje exerço razoável controle sobre isso.<br />
Ora, e a Mãe Velhinha? Seu encanto pela natureza e seus mun<strong>do</strong>s feitos de o<strong>do</strong>res ainda hoje<br />
me alucinam, me inspiram e me seduzem. Sou vítima de aromas e de suas inesquecíveis<br />
lembranças.<br />
Meu pai? Ora, desse então não preciso nem falar. Mais da metade de mim é ele. Ou de onde<br />
me vem essa esperança incurável e inamovível, senão de raízes que nascem no peito cabelu<strong>do</strong><br />
daquele ser de alma amazônica incorrigível?<br />
Mamãe? Além <strong>do</strong>s seios cheios de leite e de muito cafuné, ela me deu apetite existencial.<br />
— Como é que a senhora está se sentin<strong>do</strong> hoje, mamãe? — indaguei no mês que passou.<br />
— Como uma menina de vinte anos. Minha alma se recusa a envelhecer. Pena que meu<br />
corpo não saiba disso. Por que será, meu filho? — devolveu-me mamãe.<br />
Escreven<strong>do</strong> este livro, foi-me possível ver como eles to<strong>do</strong>s estão vivos em mim e em minhas<br />
ações. Muitos <strong>do</strong>s meus sentimentos e sonhos nada mais são <strong>do</strong> que uma projeção de seus<br />
sonhos, assim como muitos <strong>do</strong>s meus fantasmas nada mais são <strong>do</strong> que lembranças de seus<br />
me<strong>do</strong>s.<br />
E a vida se repete. Hoje, 2 de novembro de 1996, faz vinte anos que meu irmão Luiz <strong>Fábio</strong><br />
partiu para o Eterno. Mas é possível vê-lo nas mãos cheias e hábeis de meu filho Ciro, de vinte<br />
anos — um ano mais velho que meu irmão no ano de sua partida —, quan<strong>do</strong> ele escorre o mesmo<br />
talento musical que <strong>do</strong> tio vazava para o piano, ao qual ele jamais fora formalmente apresenta<strong>do</strong>,<br />
mas pelo qual irremediavelmente seduzi<strong>do</strong>. Luiz vive em Ciro.<br />
Foi por querer que você soubesse que eu não existo sozinho, mas que sou apenas extensão,<br />
continuidade emocional e histórica de outros seres que me precederam, que escrevi este livro<br />
inician<strong>do</strong> em 1820, com aquele cearense apaixona<strong>do</strong> pela vida, que meus pais disseram foi o meu<br />
bisavô, a quem amei, respeitei e em quem muitas vezes me inspirei, mesmo sem jamais lhe ter<br />
da<strong>do</strong> sequer um único cheirinho no cangote.<br />
Possivelmente quan<strong>do</strong> este livro vier a ser publica<strong>do</strong> eu já estarei com 42 anos. “É ce<strong>do</strong><br />
demais para se escrever uma autobiografia”, disseram-me alguns amigos mais velhos. Eu<br />
concor<strong>do</strong>. Mas como é que eu poderia saber se era ce<strong>do</strong>, se nem mesmo sei se estarei vivo na<br />
Terra no dia de amanhã?<br />
O tempo de escrever uma autobiografia é hoje, é tu<strong>do</strong> o que posso responder. Mas o que de<br />
fato aprendi escreven<strong>do</strong> estas “memórias” é que to<strong>do</strong> ser humano neste planeta deveria escrever<br />
as suas. Mesmo que não seja para torná-las públicas, devem ser escritas para “publicar” para nós<br />
mesmos os intrincamentos de nosso interior. Eu me tornei público para mim mesmo puxan<strong>do</strong><br />
este livro de dentro de minha alma. Autobiografias podem ser as melhores auto-ajudas que se<br />
pode receber <strong>do</strong> melhor de to<strong>do</strong>s os analistas: a sua própria alma, quan<strong>do</strong> tomada pela mão de<br />
Deus e conduzida a “encontros” de cura e bálsamo. E isso só acontece quan<strong>do</strong> a gente se dispõe a<br />
abraçar seus monstros e seus príncipes, neste lugar onde mito e realidade são a mesma coisa: a<br />
psique.<br />
Olho para o futuro e vejo que já estou no lucro. Afinal, sou aquele rapaz que sempre achou<br />
que não passaria <strong>do</strong>s trinta e que no auge de sua paixão existencial pelas coisas da fé desejou