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de um cachorro amigo <strong>do</strong> Negão, que não parava de lamber-lhe os pés.<br />
A conversa foi interessantíssima. Ele iniciou dizen<strong>do</strong> que acompanhava meu trabalho<br />
ministerial e, especificamente, meu esforço pela pacificação da cidade.<br />
— Essa campanha Rio Desarme-se foi a melhor coisa que já vi acontecer nessa cidade. Lá<br />
em casa eu dei ordens para que meus filhos entregassem as armas de brinque<strong>do</strong> e que só<br />
brincassem com brinque<strong>do</strong>s de paz — disse com um tom calmo de voz. — Eu vivo assim, <strong>pastor</strong>,<br />
mas não quero que ninguém viva essa vida. É um inferno! — acrescentou o traficante de 24 anos,<br />
idade de ancião para quem vive daquele tipo de negócio.<br />
Eu peguei dali e levei a conversa adiante, dizen<strong>do</strong> que lera sua entrevista no livro <strong>do</strong> Zuenir e<br />
percebera como sua humanidade ainda estava lá, explorável, potencialmente presente. Disse-lhe,<br />
também, o que Jesus ainda poderia fazer por ele e como poderia transformá-lo, se ele quisesse. O<br />
Negão sacudiu a cabeça. Depois, começou a nos contar como a Operação Rio já estava<br />
corrompida.<br />
— Aí, ó. Os “meninos <strong>do</strong> Exército” estão encontran<strong>do</strong> muito mais armas <strong>do</strong> que eles dizem,<br />
cara. Tão achan<strong>do</strong> muita droga escondida também. Mas eles num dizem nada. Escondem e<br />
depois revendem pra gente. Vê se pode. Tá tu<strong>do</strong> corrompi<strong>do</strong> — disse o Negão.<br />
Falou também da corrupção de alguns elementos da polícia e de como agora, com a saída <strong>do</strong>s<br />
traficantes de peso da cidade, havia policiais seqüestran<strong>do</strong> até mulher de bandi<strong>do</strong> para forçar a<br />
mineira, ou seja, a extorsão, como pagamento de resgate. Falou ainda de torturas e extermínios.<br />
— É, reveren<strong>do</strong>, a coisa tá feia, muito feia — repetiu, olhan<strong>do</strong> para o chão.<br />
Eu juntei a conversa daquele ponto e tentei, mais uma vez, trazer o assunto para Jesus. Disse<br />
que o Adão, ex-companheiro dele de tráfico, preso em Bangu I, havia me pedi<strong>do</strong> para batizá-lo.<br />
— É, o cara é maneiro. Batiza sim, <strong>pastor</strong> — falou.<br />
Insisti no fato de que, se ele largasse aquela vida marginal, fosse para um lugar distante e<br />
buscasse socorro em Jesus, a igreja seria, ainda, um “último recurso”. Negão prometeu pensar no<br />
caso. Mas para gente como Flávio Negão, a marginalidade é muito mais que uma maneira ilegal e<br />
bandida de ganhar a vida. É, na maioria das vezes, um caminho sem volta, pois trata-se de um<br />
enraizamento num chão aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pelo esta<strong>do</strong>, no qual eles ganharam usucapião. Por isso,<br />
Negão não sabia pensar na vida sem se ver como aquele sultão favela<strong>do</strong> no qual ele se tornara. A<br />
conversa toda durou uma hora e vinte minutos, mais ou menos. No fim, ele disse que tinha armas<br />
para <strong>do</strong>ar à campanha Rio, Desarme-se.<br />
— Em alguns dias vou fazer contato dizen<strong>do</strong> quantas armas serão <strong>do</strong>adas. Mas vai ser um<br />
montão.<br />
Finalizei dizen<strong>do</strong> que queria orar com ele, pois tinha o terrível pressentimento de que ele iria<br />
morrer logo. Então Negão pegou uma de minhas mãos entre as suas, enquanto eu colocava a outra<br />
mão sobre sua cabeça.<br />
— Jesus, dá luz à alma <strong>do</strong> Flávio. Ele tá viven<strong>do</strong> nesse caminho de morte. Abre sua mente pra<br />
ele ver como esse caminho é perverso. Jesus, salva a alma <strong>do</strong> Flávio antes que ele morra na<br />
escuridão. Tem misericórdia dele, Senhor — orei com emoção. O cachorro ficou ali o tempo<br />
to<strong>do</strong>, lamben<strong>do</strong> o pé <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> traficante mais famoso <strong>do</strong> Rio como se ele fosse um rei ou um<br />
mendigo.<br />
— Valeu, <strong>pastor</strong> — foi o que ele disse quan<strong>do</strong> me levantei para sair. Descemos as escadas até<br />
a rua ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> bar.<br />
— É bandi<strong>do</strong>, mas é gente boa, não é, <strong>pastor</strong>? Tem um bom coração — afirmou Djalma, o<br />
irmão dele, assim que me viu.<br />
— É, sim. Ele é gente. Mas tem que largar essa vida, senão vai morrer — falei de passagem.<br />
Voltei para minha casa, e Flávio Negão voltou para o caminho da morte.