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Confissões do pastor - Caio Fábio

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papai, na época com dez anos de idade, estava tranqüilamente senta<strong>do</strong> na varanda de nossa casa<br />

quan<strong>do</strong> viu chegan<strong>do</strong> seu irmão Carlos <strong>Fábio</strong> com um menino na gravata, gritan<strong>do</strong>: “Cainho, toca<br />

tua muleta na cabeça desse desgraça<strong>do</strong> antes que ele escape da minha gravata.” Papai pegou a<br />

muleta e sapecou-a com tanta força na cabeça <strong>do</strong> menino, que a briga acabou na hora.<br />

A infância para meu pai não foi exatamente fácil, mas não chegou a ser difícil. Ele fora<br />

abençoa<strong>do</strong> não só com um pai humano e sensível, mas com uma mãe meiga e, ao mesmo tempo,<br />

enérgica. Dona Maria Josefina de Araújo não dava descanso aos filhos. O compromisso que ela e o<br />

mari<strong>do</strong> tinham era o de dar a cada filho, incluin<strong>do</strong> as meninas, a possibilidade de concluírem um<br />

curso superior. Dinheiro eles não deixariam, mas cultura era um bem imprescindível, na visão<br />

deles. Por isto, aquela mulher franzina, de cabelos loiros e olhos azuis, não cansava de<br />

interromper os melhores momentos de diversão <strong>do</strong>s filhos para botar to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para estudar.<br />

Talvez a marca mais expressiva da vida no casarão-hospital da rua Japurá tenha si<strong>do</strong> o espírito<br />

social e comunitário da vida em família. Tal como havia si<strong>do</strong> no interior, João <strong>Fábio</strong> não cessava<br />

de se solidarizar com as pessoas que agora o procuravam na cidade. Não apenas remédios, que ele<br />

tirava de seu negócio, enfraquecen<strong>do</strong>-o cada vez mais, mas também comida e moradia eram<br />

oferendas permanentes que fazia aos necessita<strong>do</strong>s que o procuravam.<br />

A vida na casa era uma experiência absolutamente fascinante e, às vezes, constrange<strong>do</strong>ra. A<br />

fascinação ficava por conta da multiformidade de relacionamentos e amizades que aquele<br />

rebuliço social propiciava a to<strong>do</strong>s. Os constrangimentos tinham a ver com a escassez de tu<strong>do</strong>,<br />

especialmente de comida, pois quan<strong>do</strong> a casa estava vazia, moravam ali cerca de quarenta<br />

pessoas. Nos momentos de pique, chegaram a residir com os Araújos cerca de cento e cinqüenta<br />

almas, todas mais pobres <strong>do</strong> que eles, vidas, aliás, para as quais sua existência era sombra, água,<br />

luz, pão, saúde e esperança.<br />

Não foram raras as vezes em que Zezé teve de cortar as bananas em dezenas de rodelas e<br />

oferecê-las com farinha. Cada um podia tirar apenas uma rodelinha. O trauma dessa experiência<br />

foi tão grande, que meu pai disse que quan<strong>do</strong> ganhou seu primeiro salário, a coisa mais urgente<br />

que fez foi comprar uma penca de bananas e tentar comê-la sozinho.<br />

Entre as muitas histórias daquele perío<strong>do</strong> há uma que bem define a dificuldade <strong>do</strong>s membros<br />

da família em se sentirem totalmente à vontade em casa. Dizem que, numa certa tarde, o Dr.<br />

<strong>Fábio</strong> estava fazen<strong>do</strong> curativos nas feridas de um caboclo que estava em sua casa buscan<strong>do</strong> alívio,<br />

quan<strong>do</strong>, no meio <strong>do</strong> atendimento, sentiu uma irresistível vontade de soltar gases. Controlou-se o<br />

quanto pôde, mas perceben<strong>do</strong> que não dava mais para segurar, pediu licença e procurou a sala ao<br />

la<strong>do</strong>, não sem antes avisar ao paciente que não saísse da cama. O Dr. <strong>Fábio</strong> an<strong>do</strong>u devagar, abriu<br />

as pernas e soltou um enorme pum. Subitamente, ouviu uma voz atrás de si, cheia de<br />

perplexidade, quase como se os anjos tivessem si<strong>do</strong> flagra<strong>do</strong>s no toalete.<br />

— E <strong>do</strong>tô também peida? — indagou o irrequieto caboclo.<br />

Vovô virou-se para ele, toma<strong>do</strong> de estranho prazer ante a infantil pergunta <strong>do</strong> paciente.<br />

— Se peida? Ora, os <strong>do</strong>utores são os que mais peidam neste mun<strong>do</strong> — respondeu.<br />

Mas embora a vida <strong>do</strong>s Araújos fosse marcada sobretu<strong>do</strong> pelo estu<strong>do</strong>, <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, meu pai,<br />

não pôde ir à escola como to<strong>do</strong>s os outros. Até os oitos anos, arrastou-se pelo chão da casa.<br />

Naquele tempo, a muleta ainda não lhe estava disponível, pois era feita de madeira extremamente<br />

pesada e ele não tinha força nos braços para usá-la a contento e com segurança. Por isto, vovó<br />

Zezé tentava ajudá-lo o melhor que podia, fazen<strong>do</strong>-se de janela entre meu pai e o mun<strong>do</strong>, uma<br />

janela tão ampla que permitisse que as <strong>do</strong>res e alegrias que existiam fora <strong>do</strong>s portões <strong>do</strong> casarão<br />

da Japurá pudessem ser percebidas, avaliadas e sentidas. Aos 11 anos, finalmente a muleta deixou<br />

de ser pesada demais para ele, assim, o caminho para o Colégio Barão <strong>do</strong> Rio Branco foi aberto<br />

para o menino. Depois de um tempo, ele foi transferi<strong>do</strong> para o Colégio Dom Bosco, o que o

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