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Confissões do pastor - Caio Fábio

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<strong>do</strong>utrina<strong>do</strong> a venerar judeu. Eles eram a raça eleita, o povo escolhi<strong>do</strong>, os descendentes <strong>do</strong>s<br />

patriarcas, os escritores da Bíblia, os irmãos raciais de Jesus e os gênios <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Pensei assim<br />

até que, numa certa manhã em Jerusalém, um desses filhos de Abraão acabou com minha poesia.<br />

Ora, Alda e eu estávamos in<strong>do</strong> da Cidade Velha para a Cidade Nova e pegamos um ônibus de<br />

judeus. O veículo estava completamente lota<strong>do</strong>. Vagou um assento, e Alda sentou. Quan<strong>do</strong> vagou<br />

o próximo, foi a minha vez. Pedi licença em inglês e me espremi ao la<strong>do</strong> de uma figura religiosa<br />

masculina, toda vestida com um fraque preto. Sobre a cabeça, uma cartola e, debaixo desta,<br />

cachinhos de cabelo loiro, que escorriam por suas têmporas. A barba era imensa e tinha as<br />

extremidades esfiapadas, parecen<strong>do</strong> que não eram aparadas havia tempo. Perceben<strong>do</strong> que ele<br />

queria ficar no corre<strong>do</strong>r, estiquei as pernas e consegui passar, sentan<strong>do</strong>-me à janela, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

religioso. Sorri para ele umas três vezes, mas nada. O judeu me olhava fixamente, quase me<br />

fuzilan<strong>do</strong> com os olhos. “Ele deve estar pensan<strong>do</strong>: ‘o que esse gentio esquisito está fazen<strong>do</strong><br />

senta<strong>do</strong> aqui ao la<strong>do</strong> de um legítimo filho de Abraão’, afinal, esta é a terra deles”, falei comigo<br />

mesmo, me sentin<strong>do</strong> quase na obrigação de achar explicação para a atitude mal-encarada daquele<br />

fariseu.<br />

Bum, bum, traack, pruuu, foi o que ouvi, enquanto o homem me olhava fixamente e mantinha<br />

a banda esquerda de sua nádega erguida uns quatro centímetros <strong>do</strong> assento, a fim de poder<br />

disparar melhor os seus mais letais puns contra a minha pessoa. Não acreditei. De repente, o gás<br />

subiu com to<strong>do</strong> o seu veneno e corruptibilidade. Fedia como jamais imaginara que um filho de<br />

Abraão fosse capaz de fazê-lo feder. Tentei abrir a janela, mas estava emperrada.<br />

— Alda — falei entre os dentes sem olhar para ela —, esse cara aqui está podre e quer me<br />

humilhar. Tá soltan<strong>do</strong> pum aqui e fica olhan<strong>do</strong> pra mim. Dá pra acreditar? — e ela, ao ouvir a<br />

história, ficou roxa de tanto rir ante o insólito da situação.<br />

Bem ali, no meio <strong>do</strong> bairro judeu de Jerusalém, a mística <strong>do</strong>s filhos de Jacó acabou para mim.<br />

Daquele dia em diante, eu veria Israel como uma nação única na história, mas o judeu, enquanto<br />

indivíduo, apenas como um ser capaz de soltar os piores puns <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como qualquer outro<br />

mortal. A minha decepção foi muito maior <strong>do</strong> que a daquele caboclo que flagrou meu avô João<br />

<strong>Fábio</strong> soltan<strong>do</strong> aquele monumental pum no porão de sua casa. “E judeu também peida?”, era<br />

minha questão existencial mais profunda naquele momento. A partir daquele dia, passei a assistir<br />

ao Woody Allen, procuran<strong>do</strong> uma resposta.<br />

Mas aquela viagem mu<strong>do</strong>u a minha vida espiritual e, sobretu<strong>do</strong>, a minha visão da Bíblia.<br />

Sen<strong>do</strong> uma pessoa tão olfativa e visual, a peregrinação pela palestina capacitou-me a, daí em<br />

diante, fazer uma leitura multidimensional das Escrituras, pois, além de to<strong>do</strong> o enriquecimento<br />

geográfico, histórico e até mesmo arqueológico que a viagem nos propiciou, as grandes<br />

contribuições aconteceram mesmo foi no nível da subjetividade. As páginas da Bíblia ganharam<br />

cor, cheiro, ondulação, abóbada celeste e dimensão para mim. Além disso, a visita à Galiléia<br />

enterneceu-me a alma a tal ponto, que era como se eu tivesse i<strong>do</strong> lá para namorar Deus. Fiquei<br />

apaixona<strong>do</strong> e romantiza<strong>do</strong> pelo divino, e Jesus dava a Ele um rosto meigo e amigo.<br />

No fim da viagem, fomos para Tel Aviv curtir um pouco de praia mediterrânea. Entramos na<br />

água às oito da manhã e às seis da tarde ainda estávamos lá, nos delician<strong>do</strong> naquela praia de ondas<br />

mansas e de águas tépidas.<br />

Naquela noite, entretanto, após o jantar num <strong>do</strong>s restaurantes à beira-mar, resolvemos<br />

caminhar pela calçada. Não sei por que cargas-d’água perguntei a Alda se ela era feliz.<br />

— Não. Não sou! — foi sua resposta. Eu quase caí para trás.<br />

— O quê? Você não é feliz? Mas como? Você tem tu<strong>do</strong>! Eu vivo para você, temos <strong>do</strong>is filhos<br />

lin<strong>do</strong>s, conhecemos o amor de Deus, e estamos aqui, num lugar onde jamais imaginamos estar<br />

em nossas vidas. Como não ser feliz? Não acredito no que estou ouvin<strong>do</strong> — falei oscilan<strong>do</strong> entre

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