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Confissões do pastor - Caio Fábio

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ânimo pela profissão e pela existência, mas como tinha muito dinheiro guarda<strong>do</strong>, dizia que podia<br />

se dar o luxo de passar alguns anos meditan<strong>do</strong> sobre a vida. E foi o que fez.<br />

Eu, mesmo sem saber por que, fui invadi<strong>do</strong> por um horrível sentimento suicida. Às vezes ia<br />

para o tanque de água que havia no alto de nosso edifício e ficava imaginan<strong>do</strong> o que aconteceria<br />

comigo se pulasse de lá, <strong>do</strong> décimo andar. E para piorar a história, o pai de um amigo meu pulou<br />

da janela <strong>do</strong> apartamento, angustia<strong>do</strong> que estava por viver uma vida sem senti<strong>do</strong>.<br />

O único que parecia estar melhoran<strong>do</strong> lá em casa era o Luiz <strong>Fábio</strong>. Aliás, naqueles dias<br />

lúgubres, ele foi nossa salvação. Estava com sete anos, era branquinho, gordinho, de rosto<br />

re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, cara de pintinho e uma mente muito franca. Amava máquinas e música. Ainda em<br />

Manaus, seus <strong>do</strong>ns musicais haviam se manifesta<strong>do</strong>. Tocava piano de ouvi<strong>do</strong>, com muita<br />

desenvoltura e com eleva<strong>do</strong> nível de complexidade. No mesmo perío<strong>do</strong>, trouxera à luz outro<br />

talento. Tinha enorme capacidade de entender os mecanismos <strong>do</strong>s carros e deleitava-se em<br />

vê-los sen<strong>do</strong> conserta<strong>do</strong>s na oficina particular que meu pai mantinha com tio Carlos no fun<strong>do</strong> de<br />

nosso quintal.<br />

Luiz sabia tu<strong>do</strong> o que uma criança de sua idade podia saber sobre as máquinas. Reconhecia o<br />

ronco <strong>do</strong>s carros a distância e ousava até dizer o que estava erra<strong>do</strong>. Além disso, aos seis anos já<br />

sabia tirar da garagem os carros menores de papai.<br />

Luiz também se tornou muito engraça<strong>do</strong> durante o nosso primeiro ano em Copacabana. Ele<br />

ia comigo e Suely a pé <strong>do</strong> posto seis ao Leme, para o Colégio São Tomás de Aquino. No trajeto, ia<br />

e vinha falan<strong>do</strong> com to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A gente às vezes morria de rir, às vezes morria de vergonha.<br />

Dependia de como ele resolvia botar sua verve humorística para fora.<br />

Conquanto Luiz fizesse a festa, nós to<strong>do</strong>s precisávamos de muito mais <strong>do</strong> que ele podia nos<br />

oferecer. Minhas angústias estranhas não me largavam. Eu jogava bola com Caruso e Nino na<br />

calçada, via o Lá Vai Bola jogar na praia, mas não adiantava. A coisa ficou pior quan<strong>do</strong> papai<br />

levantou numa noite quente <strong>do</strong> verão de 1966 e me viu em pé na janela <strong>do</strong> décimo andar,<br />

<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, sonhan<strong>do</strong>, porém posta<strong>do</strong> em posição de salto e dizen<strong>do</strong>, já com o corpo projeta<strong>do</strong><br />

para o la<strong>do</strong> de fora: “Agora é minha vez. Vou pular.”<br />

Papai sabia que eu era um sonâmbulo <strong>do</strong> tipo executivo. Eu sonhava e fazia. Uma vez eu<br />

interrompi um jantar lá em casa porque, ten<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> e sonha<strong>do</strong> que estava dançan<strong>do</strong> nu, tirei<br />

a roupa e bailei pela<strong>do</strong> pela casa, para deleite da assembléia de amigos. Agora, entretanto, eu não<br />

me preparava para dançar, mas para pular <strong>do</strong> décimo andar de nosso prédio. Papai só teve tempo<br />

de me puxar para dentro <strong>do</strong> quarto. Os <strong>do</strong>is caímos na cama juntos. O coração dele palpitava<br />

como eu nunca sentira antes. Apenas mais <strong>do</strong>is segun<strong>do</strong>s e o desfecho poderia ter si<strong>do</strong> trágico.<br />

Para completar o clima de depressão, vieram as chuvas de 1966. Quem morava no Rio na<br />

época lembra da devastação total que provocaram. Nosso prédio, na Sá Ferreira, olhava direto<br />

para a favela <strong>do</strong> Pavão-Pavãozinho. E lá ficava eu na janela, ven<strong>do</strong> casas rolarem morro abaixo,<br />

com gente dentro gritan<strong>do</strong> e sumin<strong>do</strong> na lama. Foram centenas de mortes. Víamos apenas os<br />

cadáveres serem retira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> meio <strong>do</strong>s escombros. Papai tentava nos proibir de olhar, mas era<br />

impossível. A cena era brutal e o fascínio mórbi<strong>do</strong> que ela exercia sobre mim era algo que eu<br />

desconhecia. Odiava ver, mas não conseguia parar de ver. Repúdio e sedução mórbida moravam<br />

ali, naquele episódio marca<strong>do</strong> pela morte, fruto da negligência que se acumulava há anos. Eu não<br />

sabia o que era aquilo, mas sabia que não era justo. E mais ainda: sabia que <strong>do</strong> quintal de minha<br />

vó a gente jamais veria aquelas coisas. Então, chorava com saudades de Manaus.

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