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Confissões do pastor - Caio Fábio

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experiência com sua própria brancura.<br />

Davi era um santo. Não dava trabalho e <strong>do</strong>rmia o tempo to<strong>do</strong>. Diferentemente de Ciro, que<br />

com apenas 11 meses me dava uma canseira profunda. Não parava e mostrava-se tão irrequieto,<br />

que às vezes eu pensava que ele tinha alguma coisa fora <strong>do</strong> lugar. Até ali, entretanto, nossa<br />

família, já de quatro pessoas, vivia socada no mesmo quartinho que abrigara Alda e eu desde o<br />

início. Só que agora, além de nós quatro, ainda havia minha biblioteca, de quase mil livros, e mais<br />

berços, cama de casal, aparelho de som, uma mesa para escrever, penteadeira e um monte de<br />

outras bugigangas. Tu<strong>do</strong> isso em, no máximo, vinte metros quadra<strong>do</strong>s de área.<br />

No início de maio de 1977 recebemos um telegrama <strong>do</strong>s pais de Alda nos convidan<strong>do</strong> para<br />

irmos à Europa visitá-los. “Não agüentamos mais ficar sem nossos netos”, dizia a mensagem. Em<br />

seguida, eles nos mandaram o dinheiro das passagens. Partimos para Portugal. Na chegada<br />

ficamos surpresos com as mor<strong>do</strong>mias que o governo brasileiro concedia aos seus representantes<br />

no exterior. Sabíamos que existiam vantagens, mas não imaginávamos que fossem tantas. Só que<br />

em Portugal, em 1977, as facilidades eram ainda maiores, pois com a revolução socialista em<br />

Angola e Moçambique, milhares de “retorna<strong>do</strong>s” africanos de língua portuguesa invadiram a<br />

terrinha. E uma das conseqüências dessa situação foi que muitos deles, no desespero de<br />

encontrar onde morar e não achan<strong>do</strong> pousada, emprego ou vínculos, acabavam invadin<strong>do</strong><br />

casarões ou castelos que serviam como segunda ou terceira residência para a aristocracia<br />

lusitana, toman<strong>do</strong>-os e, muitas vezes, vilipendian<strong>do</strong>-os.<br />

Meus sogros estavam viven<strong>do</strong> em Sintra, paraíso histórico nas montanhas, a apenas trinta<br />

minutos de Lisboa. A residência onde se instalaram era a Casa <strong>do</strong>s Pene<strong>do</strong>s, uma mansão de uma<br />

senhora riquíssima, que, ten<strong>do</strong> moradia fixa numa casa maravilhosa na capital, se dava ao luxo de<br />

possuir uma outra igualmente extraordinária entre a serra da Estrela, ao norte, e a maravilha de<br />

Sintra, a qual usava como residência de verão. Ficamos estupefatos com o luxo, a arte, a grandeza<br />

e o bom gosto que definiam a casa, bem como com a paisagem lindíssima de toda aquela região.<br />

Dos janelões da Casa <strong>do</strong>s Pene<strong>do</strong>s via-se o Palácio da Vila, com suas torres em forma de<br />

grandes Fantas. Ao re<strong>do</strong>r deste, havia uma quantidade enorme de casas e pequenos palácios,<br />

to<strong>do</strong>s plenos de detalhes artísticos. Olhan<strong>do</strong>-se à esquerda <strong>do</strong>s mesmos janelões, era possível<br />

avistar as torres <strong>do</strong> Palácio da Pena Verde, lugar belíssimo e considera<strong>do</strong> mal-assombra<strong>do</strong> pelos<br />

mora<strong>do</strong>res da região, vez que, inexplicavelmente, sobre ele caíam pedras abrasadas, vindas <strong>do</strong><br />

céu. De lá também se via a torre <strong>do</strong>s Sete Ais e o horizonte infindável <strong>do</strong> oceano Atlântico. Nos<br />

fun<strong>do</strong>s da casa, erguia-se uma montanha de aparência medieval, cheia de árvores antigas, de<br />

cujos galhos derramavam-se teias vegetais finas e bem decoradas. A tonalidade das folhas era<br />

belíssima. Tantos eram os tons, que para um amazonense acostuma<strong>do</strong> apenas a variações <strong>do</strong><br />

verde, aquilo parecia uma experiência alucinógena, de matizes surrealistas.<br />

No topo da montanha, <strong>do</strong>is castelos erguiam-se imponentíssimos. As ruínas <strong>do</strong>s Mouros,<br />

com seus muros de pedras brutas, desenhavam os contornos da montanha, prosseguin<strong>do</strong><br />

ondulantemente à medida que a topografia subia e descia. E um pouco à direita, acima <strong>do</strong>s<br />

Mouros, projetava-se, de mo<strong>do</strong> sobranceiro e cheio de realeza, o Palácio Nacional da Pena. Este<br />

sim, era algo deslumbrante e capaz de fazer a alma apaixonada pela história viajar para dias em<br />

que os mares ainda eram habita<strong>do</strong>s por dragões, a terra era plana, o horizonte terminava num<br />

abismo e o nosso planeta era o centro <strong>do</strong> universo, exceto para uns poucos seres humanos que<br />

ousaram enfrentar o papa, a Igreja, a ciência e os bons costumes, a fim de crer e viver de outro<br />

mo<strong>do</strong>.<br />

Os primeiros 15 dias ali foram de total deslumbramento para nós. Visitamos to<strong>do</strong>s aqueles<br />

castelos e nos metemos em cada lugarzinho pitoresco da vila. À tarde, descíamos <strong>do</strong>s pene<strong>do</strong>s<br />

pelas vielas de chão de paralelepípe<strong>do</strong> liso, que serpenteavam românticas entre casas estreitinhas

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