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Dava para ver somente a metade <strong>do</strong> rosto de Simone, sozinha, choran<strong>do</strong>.<br />
Foi quan<strong>do</strong> não pude acreditar no que vi. Mamãe abriu o portão, an<strong>do</strong>u firme pelo corre<strong>do</strong>r,<br />
sozinha, na direção de Simone. Era como se ela andasse no tempo para abraçar o passa<strong>do</strong>, libertar<br />
seus fantasmas e ver nos olhos quem um dia a havia magoa<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> mamãe já estava a uns dez metros da porta, Simone correu de lá na direção dela,<br />
jogou-se sobre o ombro de minha mãe e chorou com urros de <strong>do</strong>r e angústia.<br />
— Eu vim aqui te dizer que Jesus me libertou de minhas amarguras e que eu estou livre pra<br />
amar você. Você não me deve mais nada. Tu<strong>do</strong> o que eu quero é que você seja feliz — mamãe<br />
falou, enquanto Simone se derretia de tanto chorar. To<strong>do</strong>s nós a abraçamos, inclusive papai, e<br />
antes de sairmos fiz uma oração abençoan<strong>do</strong> o Natal dela.<br />
Daquele dia em diante, muita coisa mu<strong>do</strong>u em nossas vidas. Surgiu uma liberdade enorme<br />
para confessar, para ser, para viajar em busca <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> a fim de poder caminhar com paixão em<br />
busca <strong>do</strong> futuro, que só existe para quem quer que o ame com força.<br />
Mamãe passou a dar atenção espiritual a Simone. Eu, sempre que podia, visitava Alma na<br />
clínica. Mas depois de um tempo, percebi que minhas visitas não faziam bem a ela. Confusa<br />
como estava, ela sempre imaginava que eu estava ali por outras razões.<br />
Nossas vidas prosseguiram em paz, até que em março de 1978, grávida de seis meses e meio,<br />
Alda acor<strong>do</strong>u em trabalho de parto. Corremos para o hospital. Nasceu um menino. Era lin<strong>do</strong>,<br />
branquinho, de nariz afila<strong>do</strong> e cabeça bem-feitinha. Viveu cinco horas e morreu. Alda e eu<br />
choramos baixinho. Resolvemos chamá-lo Luiz. Estranhamente, só percebemos depois, era o<br />
terceiro Luiz em minha família que morria, um em cada geração. Sepultamos nosso filho e<br />
voltamos à vida, sem perguntas e sem mágoas.<br />
O episódio da morte de Luizinho teve, entretanto, um aspecto hilário, pois nos lábios das<br />
crianças, mesmo a mais estranha declaração, com potencial para soar perversa, reveste-se de<br />
outro tom.<br />
Quan<strong>do</strong> minha irmã Suely, que estivera conosco no hospital fazen<strong>do</strong> vigília à porta da sala<br />
onde Luiz estava numa incuba<strong>do</strong>ra, ouviu de seu passamento, resolveu ir até a nossa casa para a<br />
dar a notícia aos que lá estavam. Ao chegar, deu de cara com Ciro e Davi em pé, juntos, à porta.<br />
— Tia, cadê o Luizinho? — perguntou Ciro.<br />
— Cirinho, Davizinho, o neném nasceu e uma coisa muito boa aconteceu com ele. Olha, ele<br />
já foi morar no céu, com Jesus. O neném está lá, ven<strong>do</strong> anjos e um monte de coisas lindas — ela<br />
disse com voz de quem contava uma historinha de Walt Disney.<br />
— Tia, o céu é lin<strong>do</strong>? É mais bonito que aqui? — perguntou o curioso Ciro, enquanto Davi,<br />
loiríssimo, olhava em volta sem nem bem saber o que estava acontecen<strong>do</strong>.<br />
— Ah! É lin<strong>do</strong>, sim. É tão bom morar no céu — concluiu Suely, achan<strong>do</strong> que a conversa<br />
estava encerrada.<br />
Então Ciro ficou olhan<strong>do</strong> para as nuvens azuis sobre sua cabeça, suspirou profun<strong>do</strong>, botou<br />
um <strong>do</strong>s braços em volta <strong>do</strong> pescocinho de Davi, e disse:<br />
— Jesus. O céu é lin<strong>do</strong>. Leva o Davizinho pra morar no céu contigo também.<br />
Assim, a morte de Luizinho não é lembrada por nós como um momento de <strong>do</strong>r, mas como<br />
uma ocasião na qual a inocência de um menino de três anos, inquieto com a chegada de irmãos<br />
que vinham sem pedir licença, desejou o melhor para eles, promoven<strong>do</strong>-os ao céu, e deixan<strong>do</strong><br />
assim a terra livre para o exercício de seus banais privilégios.<br />
Aqueles dias, entretanto, tiveram também componentes de natureza profundamente<br />
espiritual. Duas são as histórias que podem muito bem caracterizá-los. O fascinante dessas<br />
histórias é que ambas têm a ver com anjos e aconteceram exatamente no mesmo lugar: um<br />
grande prédio cheio de apartamentos e lojas, no centro comercial de Manaus.