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mamãe desesperada.<br />
— Pelo amor de Deus, não. Não faz isso. Pensa nas crianças — ela gritava.<br />
O que vi foi papai, que graças a Deus estava desarma<strong>do</strong> naquele dia, com a muleta no ar,<br />
brandin<strong>do</strong>-a sobre a cabeça de um homem loiro, que cobria o rosto com os braços, páli<strong>do</strong> e<br />
acovarda<strong>do</strong>.<br />
— E agora, seu safa<strong>do</strong>? Você num disse que não me dava uma surra porque eu era aleija<strong>do</strong> e<br />
porque você estava numa corte de lei? E agora, seu frouxo? Vem bater no aleija<strong>do</strong>? Vou te<br />
arrebentar na frente da tua mulher, seu otário! — Mas o homem, inerte, não esboçava qualquer<br />
reação.<br />
As demais pessoas presentes não deixaram que os <strong>do</strong>is se atracassem. Não entendi nada.<br />
Apenas percebi que papai odiava o pai de meu melhor amigo na escola. Mamãe nos reuniu<br />
nervosa, entramos no carro e fomos embora. Papai dirigia cheio de ódio. Queria matar o homem.<br />
Somente em casa é que fiquei saben<strong>do</strong> que o pai de meu amigo era o major <strong>do</strong> Exército que havia<br />
si<strong>do</strong> incumbi<strong>do</strong> de conduzir o inquérito que investigara o possível envolvimento de papai com o<br />
contraban<strong>do</strong> de ouro quase <strong>do</strong>is anos antes, em Manaus. Na hora final, em pleno tribunal, com a<br />
imprensa presente, o major teria dito que não havia como legalmente “pegá-lo”, mas que se papai<br />
não fosse deficiente físico, ele, o militar, iria esquecer a lei e dar-lhe uma boa surra fora da<br />
audiência.<br />
Pois bem, a hora havia chega<strong>do</strong>. Anos depois, questionan<strong>do</strong>-me sobre o que teria leva<strong>do</strong> um<br />
major, em pleno regime militar, a aceitar ser humilha<strong>do</strong> publicamente, diante da esposa e <strong>do</strong>s<br />
filhos, sem reagir, concluí que pouca coisa é mais forte, paralisante e autodestrutiva que uma<br />
consciência pesada, mesmo quan<strong>do</strong> se tem o poder nas mãos.<br />
Não demorou muito até descobrirmos que Simone e suas filhas estavam moran<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is<br />
quilômetros de nós e que papai passava longas tardes com elas. Mas àquela altura <strong>do</strong>s fatos, o<br />
“caso dele com o jaburu” passou a ter importância bem menor para mim.<br />
Nós, como família, tínhamos encontra<strong>do</strong> uma solidariedade mais profunda <strong>do</strong> que a <strong>do</strong>r da<br />
traição que papai provocara. Tínhamos de algum mo<strong>do</strong> descoberto que as verdadeiras ligações de<br />
uma família acabam sen<strong>do</strong> maiores <strong>do</strong> que os detalhes de natureza pessoal liga<strong>do</strong>s ao devaneio<br />
apaixona<strong>do</strong> de um de seus membros. Viver na fronteira da vergonha, da perda e da morte,<br />
permitiu que víssemos de forma mais clara que a fraqueza moral de papai era menos importante<br />
que sua sobrevivência como ser humano, e que a <strong>do</strong>r de mamãe era insignificantemente menor<br />
<strong>do</strong> que a consciência que ela adquirira acerca da importância de tu<strong>do</strong> aquilo que nos fazia ser<br />
uma família, apesar de tu<strong>do</strong>.<br />
Mas a presença de Simone não ajudava a aliviar a <strong>do</strong>r de meu pai. Ele saía e voltava sempre<br />
com a mesma cara de depressão. Seus olhos andavam profun<strong>do</strong>s, pois suas noites eram longas e<br />
insones.<br />
Um dia ele voltou diferente para casa. Chorou sozinho e ficou cala<strong>do</strong> por muito tempo. Havia<br />
nele uma enorme vontade de falar, de explodir numa confissão, num despir-se radical, total e<br />
verdadeiro. Mas ele não sabia como. No entanto, sua atitude em relação à mamãe começou a<br />
mostrar mudanças significativas. Devagar, ele conseguiu nos fazer perceber que tu<strong>do</strong> acabara<br />
entre ele e Simone. Foi apenas o que ficamos saben<strong>do</strong>, sem maiores detalhes. Somente algum<br />
tempo depois é que as notícias de Manaus nos deram conta de que ela já tinha outro no Rio. Foi<br />
então que soubemos que Simone o traíra, e que ele mergulhara em profunda desilusão.<br />
Sem o jaburu em nossas vidas, pudemos ter papai em tempo integral outra vez. Mas sua volta<br />
não nos trouxe tranqüilidade de alma. Alguma coisa ruim tinha entra<strong>do</strong> em nossas vidas. Suely<br />
encaramujou-se como pôde, a fim de fugir <strong>do</strong>s complexos relaciona<strong>do</strong>s ao fato de não conseguir<br />
esticar o braço. Mamãe falava no risco de morrer no parto, que estava às portas. Papai perdera o