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profético: “É! Deus tá te deixan<strong>do</strong> pegar essas desgraçadas pra ver se você acorda, <strong>Caio</strong>. Não<br />
esqueça que os prazeres não valem essa <strong>do</strong>r, valem?” Eu dizia que não, mas não parava de transar<br />
nem <strong>do</strong>ente. Usava preservativos, mas não dava descanso às meninas.<br />
Minhas experiências também foram fican<strong>do</strong> cada vez mais marginais. Às vezes, Zé Curió<br />
tinha de entregar uns embrulhos proibi<strong>do</strong>s para pessoas importantes da cidade e me levava junto.<br />
Outras vezes, precisávamos pegar encomendas ilegais. Dentre as ocasiões em que fomos buscar<br />
algo ilícito houve uma noite escura, chuvosa e deprimente que nunca mais esquecerei na vida.<br />
Eu e Curió tínhamos passa<strong>do</strong> a noite anterior acorda<strong>do</strong>s. Vimos filmes pornográficos até o dia<br />
nascer e depois <strong>do</strong>rmimos até o entardecer. Acordamos e nos drogamos. Depois comemos e<br />
fomos para o Rodeo — o porto flutuante de Manaus. Quan<strong>do</strong> chegamos lá, ele me disse que<br />
iríamos nos esconder da vigilância até podermos descer para baixo <strong>do</strong> cais, onde haveria alguém<br />
nos esperan<strong>do</strong> com uma canoa.<br />
Tu<strong>do</strong> aconteceu conforme o plano. Burlamos a segurança e encontramos um caboclo numa<br />
canoa nos esperan<strong>do</strong> na escuridão das águas <strong>do</strong> rio Negro, sob o porto. O movimento das águas<br />
produzia um gemi<strong>do</strong> apavorante para quem estava <strong>do</strong>i<strong>do</strong> de drogas, ali no meio das trevas. Fomos<br />
reman<strong>do</strong> devagar até que chegamos ao navio. Era um navio sueco, enorme e de casco preto.<br />
Parecia um monstro visto ali debaixo, de dentro da minúscula canoa. Zé Curió deu um assobio<br />
especial e alguém desceu uma caixa amarrada a uma corda. Pegamos a muamba e subimos pelos<br />
troncos grossos de madeira, presos à estrutura flutuante <strong>do</strong> Rodeo.<br />
Quan<strong>do</strong> pusemos a cabeça no nível <strong>do</strong> piso de cimento, vimos um guarda arma<strong>do</strong> andan<strong>do</strong> na<br />
nossa direção. Ficamos ali, pendura<strong>do</strong>s, seguran<strong>do</strong> o pacote e pedin<strong>do</strong> a Deus que o vigilante se<br />
afastasse. Aqueles dez minutos pareceram durar para sempre. Quan<strong>do</strong> o guarda virou de costas,<br />
nós corremos para trás de uma cabine. Continuamos ali e vimos o canoeiro desaparecer, reman<strong>do</strong><br />
na escuridão das águas misteriosas <strong>do</strong> Negro. Não demorou e começou a chover. Caiu um pé<br />
d’água tão forte, que pudemos sair corren<strong>do</strong> pelo canto <strong>do</strong> porto, já que a visão ficou dificultada<br />
para quem quer que ali estivesse com a intenção de vigiar ou de passar chumbo na gente.<br />
No dia seguinte, o impacto daquela noite tinha si<strong>do</strong> tão forte em mim, que eu não sabia se<br />
tinha realmente aconteci<strong>do</strong> ou se tinha si<strong>do</strong> um pesadelo rega<strong>do</strong> a drogas. Mas não! Tinha si<strong>do</strong><br />
tu<strong>do</strong> verdade.<br />
Assim, as loucuras se sucederam, to<strong>do</strong>s os dias e sem outro objetivo a não ser a loucura pela<br />
loucura. O processo de deterioração moral, emocional e espiritual era tal, que meus amigos<br />
começaram dizer que eu devia sair daquela enquanto podia. Mas eu estava disposto a tu<strong>do</strong>, até<br />
mesmo a morrer. Só não queria era viver de mo<strong>do</strong> que não pusesse a mim mesmo, to<strong>do</strong>s os dias,<br />
em situações que me fizessem beber adrenalina até me embriagar. Era isso que eu chamava de<br />
vida.