Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
sagacidade e sua imensa capacidade de provocar. Ágil, ferino e delica<strong>do</strong>; foi assim que vim a<br />
perceber o estilo <strong>do</strong> repórter.<br />
— Pô, legal. Gostei de conhecer o senhor. É difícil a gente encontrar líderes religiosos que<br />
falem abertamente sobre as coisas. Gostei — falou Otávio ao final da entrevista.<br />
Foi só quan<strong>do</strong> li O Globo <strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo seguinte que entendi o que ele queria dizer. Minhas<br />
declarações sobre o papel da polícia e a presença evangélica nas favelas estavam dentro de um<br />
contexto bem amplo, onde havia a suspeita <strong>do</strong> envolvimento de igrejas evangélicas acobertan<strong>do</strong><br />
criminosos. A matéria de Otávio era, entretanto, completamente favorável, e a única coisa que<br />
pegava era a manchete de primeira página com uma alusão ao fato de que O presidente da<br />
Associação Evangélica diz que policiais são bandi<strong>do</strong>s farda<strong>do</strong>s.<br />
— Esse negócio vai pegar. Dentro está ótimo, mas a manchete tá ruim pra você.<br />
Generalizaram algo que você relativizou. A polícia vai ficar zangada — disse Gerson Pacheco, um<br />
amigo bem chega<strong>do</strong>.<br />
Eu sabia que aquilo acontece sempre. Às vezes o editor pega uma declaração e joga como<br />
manchete. Falei com Otávio e ele disse para eu mandar uma reparação que eles publicariam.<br />
Mandei, e eles publicaram. O resulta<strong>do</strong> daquilo foi que se iniciou ali uma boa relação de amizade<br />
com o repórter, mas começou também um relacionamento tenso com a polícia. Recebi grupos de<br />
PMs evangélicos indigna<strong>do</strong>s, cartas, e até <strong>do</strong>is telefonemas com ameaças. Um deles dizia que se<br />
eu fosse fazer o casamento de Benedita da Silva e Antônio Pitanga na catedral Presbiteriana, seria<br />
alvo de alguma violência. Fui, e nada aconteceu. Apenas bem mais tarde perceberia as<br />
implicações daquelas declarações à luz de uma sucessão de outros incidentes.<br />
Houve, entretanto, <strong>do</strong>is episódios, separa<strong>do</strong>s por cerca de um ano, que se encadearam quase<br />
como numa conspiração e mudaram completamente a minha vida em razão de seus muitos<br />
des<strong>do</strong>bramentos: o incêndio de uma fábrica e uma visita a um secretário de Justiça.<br />
Um ano antes, no dia 30 de outubro de 1992, a Formiplac, fábrica de lamina<strong>do</strong> técnico,<br />
conheci<strong>do</strong> como fórmica, pegou fogo. Meu amigo, Alípio Gusmão me telefonou e perguntou: “O<br />
senhor viu uma fábrica pegan<strong>do</strong> fogo no Jornal Nacional da TV Globo? É Minha. Comprei há<br />
alguns meses. Dá pro senhor ir até lá ver o que aconteceu?”, pediu-me com objetiva simplicidade<br />
empresarial.<br />
Em setembro de 1993 o <strong>pastor</strong> Washington de Souza, da Assembléia de Deus, me convi<strong>do</strong>u<br />
para ir visitar o vice-governa<strong>do</strong>r Nilo Batista, também secretário de Justiça e de Polícia, a fim de<br />
propor uma parceria com o esta<strong>do</strong> para incrementar o trabalho de capelanias nos presídios <strong>do</strong><br />
Rio.<br />
Em 1992 , a visita ao prédio da Formiplac tinha si<strong>do</strong> rápida. Nem sequer entrei. Fiquei em pé<br />
à porta da fábrica e de lá fui à Delegacia de Polícia na Pavuna, acompanha<strong>do</strong> de um policial<br />
federal evangélico, e fiquei saben<strong>do</strong> da história <strong>do</strong> incêndio: um rapaz de Acari, envolvi<strong>do</strong> com o<br />
tráfico de drogas local, transformara-se na chamada bola da vez. Temen<strong>do</strong> a execução, fugiu para<br />
o prédio central da fábrica e conseguiu chegar despercebi<strong>do</strong> ao terceiro andar, onde ateou fogo no<br />
que encontrou, na intenção de chamar a atenção da polícia ou <strong>do</strong> corpo de bombeiros e ser salvo<br />
<strong>do</strong>s seus executores. A sala onde ele iniciou o fogo ficava ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> laboratório químico, e o<br />
prédio foi pelos ares daquele andar para cima.<br />
Um ano depois, já em setembro de 1993, Alípio me chamaria outra vez, a fim de dizer que<br />
“Deus lhe falara ao coração” que aquela propriedade seria uma “obra para a Glória de Deus, uma<br />
coisa social”.<br />
— O senhor quer ficar com a fábrica pra fazer algo pro benefício daquela população? —<br />
perguntou-me Alípio.<br />
Como eu o conhecia havia anos, e como ele nunca brincara comigo, especialmente usan<strong>do</strong> o