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Confissões do pastor - Caio Fábio

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amarelo <strong>do</strong> Apocalipse é a morte — ela disse. — <strong>Caio</strong> <strong>Fábio</strong>, sei que você não gosta de ouvir, mas<br />

Deus está tentan<strong>do</strong> falar com você sobre o caminho de morte no qual você está andan<strong>do</strong> —<br />

concluiu.<br />

Estranhamente, daquela vez eu não disse nada. Dei as costas a ela, pulei na moto e fui<br />

embora, porém com a mente impregnada com as imagens aterrorizantes daquele cinema <strong>do</strong><br />

inconsciente.<br />

Minha busca de inserção social acentuou-se. Ser como to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tornou-se um alvo para<br />

mim. Mas meu desejo de normalidade resumia-se em alcançar algumas coisas básicas: voltaria a<br />

estudar, conseguiria um emprego, arranjaria uma namoradinha de portão e usaria drogas de<br />

mo<strong>do</strong> muito controla<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> que durante a semana fumaria apenas maconha, e somente à<br />

noite, antes de <strong>do</strong>rmir.<br />

Não foi difícil conseguir voltar à escola — havia incentivo e ajuda de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. O<br />

emprego, entretanto, não apareceu. Aliás, eu nem procurei. Já as namoradinhas de portão<br />

surgiram com extrema facilidade e, naquela época, visitei pelo menos <strong>do</strong>is portões a cada semana.<br />

O problema eram as drogas, pois havia um latejante desespero crescen<strong>do</strong> dentro de mim. Era<br />

um sentimento de perdição, de total inadequação à sociedade e ao mun<strong>do</strong>. E mais que isto: sentia<br />

um esmagamento espiritual achatan<strong>do</strong> a minha alma. Era como se estivesse priva<strong>do</strong> de to<strong>do</strong><br />

prazer. Não havia nada que me desse satisfação. O gosto <strong>do</strong> desgosto era marcante e permanente,<br />

além <strong>do</strong> que era como se aquelas experiências espirituais vividas no Rio continuassem a reboar<br />

com seus sons e angústias dentro de mim, de mo<strong>do</strong> ininterrupto.<br />

Como os únicos amigos de compromisso incondicional estavam no Rio — Zé Curió, preso na<br />

Ilha Grande, e Nego Aires, curtin<strong>do</strong> nas praias —, sobrou-me muito pouca gente na cidade em<br />

quem eu podia confiar e ter certeza que não me entregaria para aqueles que desejavam acertar<br />

contas comigo. De fato, dentre os homens de meu relacionamento, os únicos que eu sabia que<br />

não me fariam mal eram os meus primos João <strong>Fábio</strong> e José <strong>Fábio</strong>, com quem passei a andar. As<br />

saídas com eles muitas vezes tomavam o caminho <strong>do</strong> interior, para longe de Manaus, na direção<br />

de Itacoatiara, a cerca de trezentos quilômetros da capital.<br />

Foi numa daquelas viagens para lá que me deparei com um espetáculo único no planeta. José<br />

<strong>Fábio</strong> dirigia um Fusca com cerca de dez anos de uso, porém bem conserva<strong>do</strong>. Nós éramos cinco<br />

pessoas ao to<strong>do</strong>. Chovia fino, embora com extrema insistência. Uma neblina baixa caíra sobre a<br />

estrada de piçarra pedregosa, que, de tanta água, já se transformara em pura lama. Por isso, o<br />

carro deslizava de um la<strong>do</strong> para o outro da pista, enquanto nós ríamos como se estivéssemos<br />

brincan<strong>do</strong> num parque de diversões. A noite já se avizinhava, de tal mo<strong>do</strong> que os faróis <strong>do</strong> carro<br />

estavam acesos.<br />

— Meu Deus, é um tronco? Não! É uma cobra — foi o que ouvimos de repente, bem no meio<br />

de uma curva, enquanto José, perplexo, nos fitava com os olhos arregala<strong>do</strong>s.<br />

— Nããããooo! Não passa por cima dessa bicha — gritei apavora<strong>do</strong> e, num reflexo, puxei os<br />

pés para cima <strong>do</strong> banco dentro <strong>do</strong> carro, como se entre nós e a estrada não houvesse a lâmina<br />

blindada <strong>do</strong> Fusca.<br />

Brum, brum, foi o que ouvimos quan<strong>do</strong> o veículo bateu duas vezes contra uma lombada de<br />

músculos que se revolvia de uma extremidade à outra da estrada.<br />

Paramos uns trinta metros adiante. Manobramos o carro e ficamos de frente, ven<strong>do</strong> aquela<br />

enormidade de réptil mover-se lenta e soberanamente, no meio <strong>do</strong> caminho.<br />

Vun, vun, vun, Zé <strong>Fábio</strong> aqueceu o acelera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> carro outra vez.<br />

— Não vai, bicho, porque se a gente num passar, essa cobra estrangula esse Fusca. Ela é<br />

descomunal — eu disse, tentan<strong>do</strong> dissuadi-lo <strong>do</strong> desejo de dirigir por cima dela mais uma vez.<br />

— Na primeira vez a gente rolou por cima porque a gente vinha no embalo. Agora, é

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