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Confissões do pastor - Caio Fábio

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infindáveis, que não incluíam mais <strong>do</strong> que as aproximadamente 550 pessoas que viviam no lugar.<br />

Políticos, militares e intelectuais que ocupavam espaço nas conversas da maioria das pessoas,<br />

em qualquer cidade maior que uma vila no sudeste <strong>do</strong> Brasil eram completamente ignora<strong>do</strong>s<br />

pelos mora<strong>do</strong>res daquela região, onde as notícias já chegavam com tamanho atraso, que os que as<br />

recebiam acabavam pensan<strong>do</strong>: “Se eu vivi <strong>do</strong>is anos sem saber que isto havia aconteci<strong>do</strong> e nada<br />

mu<strong>do</strong>u na minha vida, então é porque tanto faz como tanto fez; isso só importa num outro<br />

mun<strong>do</strong>, muito longe daqui. Pra gente aqui, saber ou não saber quem foi eleito, quem morreu ou<br />

quem foi preso e acusa<strong>do</strong> de traição, não altera a vida em nada.”<br />

E assim eles seguiam, fazen<strong>do</strong> seus rituais simples na liturgia <strong>do</strong> cotidiano.<br />

Aqui e ali se fazia passar um pouco de café num coa<strong>do</strong>r de pano, o que promovia rápidas<br />

interrupções na fabricação de farinha. Em geral, essas breves paradas para o café também se<br />

faziam acompanhar de pedaços de beiju, alimento que naqueles dias ocupava o lugar <strong>do</strong> pão no<br />

interior <strong>do</strong> Amazonas. Foi naquele cantão <strong>do</strong> Brasil, que hoje o mun<strong>do</strong> conhece como The<br />

Amazon Rain Forest, que meu bisavô ficou famoso e quase mítico, tornan<strong>do</strong>-se uma espécie de<br />

lenda cabocla das beiradas <strong>do</strong> Purus.<br />

As histórias sobre ele são muitas, mas as que mais me fascinam têm a ver com sua força.<br />

Havia por aquelas bandas um certo Sebastião Preto, conheci<strong>do</strong> por ter braços fortes e<br />

musculosos e por ser o louco da aldeia. No entanto, quan<strong>do</strong> estava alivia<strong>do</strong> de seu esta<strong>do</strong> de<br />

loucura, Sabá era um homem calmo, especialmente carinhoso com o menino João <strong>Fábio</strong>. Mas,<br />

quan<strong>do</strong> a perturbação mental lhe revirava a razão, era capaz de qualquer coisa, inclusive de<br />

machucar aqueles de quem gostava.<br />

Um dia, o louco amanheceu ataca<strong>do</strong> e partiu para um ato bestial. Ao perceber a presença de<br />

João <strong>Fábio</strong> na pequena praça <strong>do</strong> vilarejo, correu alucina<strong>do</strong> para cima da criança, demonstran<strong>do</strong> a<br />

clara intenção de estrangulá-la.<br />

Quan<strong>do</strong> o velho Araujinho percebeu Sabá corren<strong>do</strong> na direção de seu filho, lançou-se de um<br />

salto entre o louco e o menino, atracou-se a Sabá como se fosse uma cobra jibóia, empurrou-o<br />

contra o muro de uma casa e tirou-lhe os pés <strong>do</strong> chão, manten<strong>do</strong>-o no ar, imobiliza<strong>do</strong> entre a<br />

parede e o seu próprio corpo.<br />

— Tragam as cordas — gritou o velho Araujinho entre estrebuchos e grunhi<strong>do</strong>s. — Tragam<br />

as cordas. Não demorem — pediu mais uma vez.<br />

Depois que levaram o pobre louco amarra<strong>do</strong>, meu bisavô confessou que se tivessem<br />

demora<strong>do</strong> mais um minuto, ele não teria agüenta<strong>do</strong>.<br />

Uns dizem que ele ficou ali, imóvel, seguran<strong>do</strong> Sabá no ar por mais de cinco minutos. Outros<br />

falam que não durou tanto tempo assim. Mas ele não largou o negro até que trouxeram as cordas<br />

e amarraram Sebastião, vítima de uma insanidade para a qual os tempos não tinham ainda<br />

qualquer esperança de cura à vista.<br />

Quan<strong>do</strong> as jovens de Nova Vista se referiam ao velho Araujinho como sen<strong>do</strong> alguém de idade<br />

avançada, ele sempre falava: “É, minha senhora, sou velhete, mas sou espertete. A senhora quer<br />

uma demonstração?” E, assim, cessavam as inconveniências, afinal, a mulherada sabia que<br />

aquele velhote marca<strong>do</strong> pelo tempo, mas de saúde invicta, era realmente espertete com o sexo<br />

feminino, <strong>do</strong>no de longa e diversificada experiência naquela área. E as mulheres tinham certeza<br />

de que não se tratava apenas de memória de um remoto passa<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s sabiam, ou pelo menos<br />

ouviam falar, das façanhas contemporâneas daquele velho incorrigivelmente galantea<strong>do</strong>r, às vezes<br />

discretamente assanha<strong>do</strong>, e que parecia estar sempre fisicamente bem-disposto.<br />

Araujinho viveu casa<strong>do</strong> apenas cinco anos. Com a morte da esposa, resolveu pedir ajuda a um<br />

amigo para completar a educação <strong>do</strong>s filhos. Perceben<strong>do</strong>-se sem jeito para as atividades de<br />

natureza <strong>do</strong>méstica e avalian<strong>do</strong> a dificuldade que seria manter em casa o filho em idade escolar

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